domingo, 29 de outubro de 2023

PVC: Santos vai cair

PVC indica qual gigante do futebol brasileiro não escapa do rebaixamento em 2023

Por Teco Silva, 23/10/2023

A reta final do Brasileirão 2023 tem se tornado cada vez mais emocionante, e a briga contra o rebaixamento promete agitar os corações dos torcedores. Com quase metade dos times ainda mantendo chances matemáticas de cair para a segunda divisão, a competição está em um nível de imprevisibilidade notável.

PVC crava rebaixamento de gigante brasileiro

No programa “De Primeira,” do UOL Esporte, o renomado jornalista Paulo Vinícius Coelho, o PVC, analisou a situação do Santos e fez uma aposta ousada, sugerindo que o time da Baixada Santista pode enfrentar seu primeiro rebaixamento na história do campeonato.

“Eu acho que o Santos vai cair. Torço para que não caia, mas acho que não vai escapar, um pouco pela tabela que tem pela frente. O Santos tem oito vitórias, mas três foram nos últimos cinco jogos, ele pode conseguir cinco nos próximos 10 jogos, não é esse o problema, o problema é voltar a jogar no nível que jogou contra o Palmeiras, por exemplo”, avaliou PVC.

Santos ainda escapa do rebaixamento?

PVC enfatizou que a salvação do Santos pode vir por meio do desempenho do Goiás, que, apesar de apresentar bom futebol, tem deixado escapar pontos cruciais ao longo da temporada.

“O Santos tem uma final de campeonato contra o Coritiba, tem que ganhar do Coritiba de qualquer jeito na Vila Belmiro. Aí ele vai a 33 pontos e pode fazer o clássico contra o Corinthians, no domingo, com os dois na zona de rebaixamento. Acho improvável, porque o Goiás joga bem, mas não ganha jogos. Dos últimos 10 jogos, o Goiás ganhou dois, embora só tenha perdido um, o Goiás empata, empata e empata. O grande candidato para livrar Santos ou Vasco é o Goiás, porque o Goiás não ganha jogos, ele empata muito” disse PVC

Chances de rebaixamento no Brasileirão

De acordo com dados do Departamento de Matemática da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o Santos aparece com 50,3% de chances de rebaixamento na Série A. Nessa estatística preocupante, América-MG e Coritiba lideram, com mais de 98% de riscos de rebaixamento. O Vasco da Gama, por sua vez, figura com 51,7% de chances de cair para a segunda divisão, enquanto outros seis times também estão sob risco.

América-MG: 99,6%

Coritiba: 98,9%

Vasco: 51,7%

Santos: 50,3%

Goiás: 36,7%

Corinthians: 25,3%

Cruzeiro: 14,2%

Bahia: 10,2%

Inter: 8%

Cuiabá: 3,4%

São Paulo: 1,7%

A tensão e a emoção da luta contra o rebaixamento no Brasileirão 2023 estão atingindo níveis máximos, à medida que a competição se aproxima de seu desfecho. O destino do Santos e de outros times na parte inferior da tabela permanece incerto, tornando cada partida uma batalha decisiva pela permanência na elite do futebol brasileiro.

A queda da casa de Usher - série TV

As cicatrizes se tornam armaduras

 A Queda da Casa de Usher, The Fall of the House of Usher, Minissérie de televisão, 2023, Michael Fimognari & Mike Flanagan

Um diálogo no Episódio 3: limões e a limonada

Auguste Dupin: Quando a vida te dá um limão faça uma limonada?
Roderick Usher: Não. Primeiro, faça uma campanha multimídia pra convencer as pessoas de que os limões estão escassos. Só funciona se você estocar limões, controlar o abastecimento e usar a mídia. Limão o único modo de dizer "eu te amo",  um acessório indispensável pra noivados e aniversários. Fora com as rosas. Que venham os limões. Anuncios dizendo que ela não vai transar se não tiver limões.
Traga a De Beers. Braceletes de limão edição limitada, diamantes chamados gotas de limão. Faça a Apple chamar o novo sistema operacional de OS LIMÕES.
Cobre 40% a mais por limões orgânicos e 50% por limões de áreas sem conflitos.
Encha o Capitólio de lobistas, faça uma Kardashian chupar um limão numa sex tape. Timothée Chalamet com sapatos de limão em Cannes. Use hashtags. Algo não é "legal", "maneiro" ou "incrível", e sim "limão". "Viu aquele filme?" , "Foi àquele show? Foi limão pra caralho."
Billie Eilish: "Nossa, hashtag limão"."Faça o Dr. Oz recomendar quatro limões por dia e um supositório de limão pra se livrar de toxinas, porque nada mais assustador do que toxinas. E patenteie as sementes. Crie um código genético que faça o limão se parecer com um seio e terá uma patente do gene da sequência do DNA do seio-limão.
Faça a polinização, faça a sementes circularem na natureza e processe os fazendeiros por violação de direitos quando o código aparecer na terra deles.
Sente-se, recolha os milhões e, depois, quando tiver terminado e tiver vendido seu império  por alguns bilhões de dólares você então faz a porra da limonada.


Cada episódio da série 'A queda da casa de Usher' tem uma referência de um conto de Edgar Allan Poe. O conto base e os episódios:

A queda da casa de Usher de Edgar  

E1: A meia noite que apavora (A midnight dreary)

E2: A máscara da morte rubra (The masque of the red death) 

E3: Os assassinatos da rua Morgan (Murder in the rue Morgue) 

E4: O gato preto (The black cat) 

E5: O coração delator ( The tell-tale heart)

E6: O escaravelho de ouro (Goldbug)  

E7: O poço e o pédulo (The pit and the pendulum) 

E8: O corvo (The raven)

Filme no iutubi: A Queda da Casa de Usher (1928) 

Crítica | A Queda da Casa de Usher (2023)
Mike Flanagan com Allan Poe.
por Felipe Oliveira, 29 de outubro de 2023

Marcando seu projeto de despedida no acordo de vários anos com a Netflix, Mike Flanagan retorna para inspiração de contos góticos para imprimir seu estilo de contar histórias de terror da mesma forma que iniciou com sua série inaugural, baseada no romance de Shirley Jackson, dessa vez, se inspirando na literatura de Edgar Allan Poe. Diferente das primeiras adaptações, Flanagan usa o conto de A Queda da Casa de Usher como uma sala principal que interliga outros contos de Poe, assim, a série limitada funciona como uma coletânea das obras do autor gótico, reunindo num encadeamento narrativo várias de suas histórias criadas, porém, longe de ser uma adaptação pensada para ser fiel ao seu autor, mas, talvez, essa seja uma das adaptações mais distantes e ainda criativa sobre os contos de Allan Poe.

Flanagan trata os contos, poemas e romance de Poe como referências ao seu estilo de trabalhar o terror psicológico, e isso de maneira alguma é um fator negativo – talvez para quem gostaria de ver mais das características de Poe – pois The Fall of the House of Usher entrega mais uma abordagem consistente, um adeus divertido, ao que Flanagan firmou ao longo de suas produções com a Netflix. A estrutura semelhante ao que foi vista em The Haunting of Hill House — além da fotografia azulada que carimba o olhar o frio e melancólico do cineasta —, está presente, mas, desde o primeiro momento, parecia que Flanagan se permitiu a fazer uma subversão de sua identidade, o mais próximo que veríamos de Ryan Murphy se baseando em Succession para criar sua versão de American Horror Story sobre uma família disfuncional encontrando o terror numa premissa adaptada de Stephen King, porém, é só o Flanagan se levando a sério até quando é caricato.

Mesmo quando soa como uma autoparódia ao permitir elementos diferentes a sua abordagem, Flanagan ainda surpreende pelo equilíbrio de manter a história interessante numa decupagem familiar. Há um melodrama ridículo e consciente, e o texto bebe o tempo todo de longos diálogos que se misturam com os poemas de Poe e novamente grita para parecer relevante e ácido ao tecer comentários políticos e à hipocrisia elitizada, mas indo além da comparação óbvia da dinastia em Succession, A Queda da Casa de Usher tem sua personalidade ao ser caricata e manter por perto reflexões existenciais e conflitantes em um clima de luto e o cumprir de uma predestinação punitiva em ação. O que Flanagan faz aqui é prender a curiosidade para o antes e depois dos eventos que levaram a anunciada “queda” do título e entregar um resultado inesperadamente sádico.

Talvez, até a cena final do segundo episódio da série limitada, tudo indicava que The Fall of the House of Usher se contentaria em ser um drama sobre uma dinastia com sugestões para o terror, porém, Flanagan mostra um lado diferente do que vem trabalhado: uma violência grotesca, batidas melodramáticas e a magnífica presença de Carla Gugino interpretando uma entidade sobrenatural que garante o fim da linhagem Usher com um jogo psicótico recriando o inferno de escolhas que o levaram até ali. Com sequências longas que remete a um slasher sobrenatural, se o final cruelmente divertido com a chuva ácida foi uma boa amostra ao que Flanagan espalhou ao longo dos oito capítulos, a sequência com espelhos verdes coroa a criatividade das cenas em ver a queda de uma dinastia ser perversa e cômica, quase que reduzindo a camada existencial, como se não importasse mais já que ver a inevitável ruína dos Usher era a cereja do bolo.

Embora seja até menos Flanagan toda vez que vemos as máscaras que compõem a bizarra família Usher, o cineasta imprime os traços de Poe na presença de Auguste Dupin e na estética, como se fosse um tema para cada um dos episódios que recebe os nomes e interconecta os contos — além de citações de poemas, como de Annabel Lee — e isso veste a série com uma composição chamativa além das cores frias que referenciam a estilização habitual de Flanagan enquanto o drama, os extensos monólogos e os caos que acompanha essa família não parece realmente importar quando estamos vendo uma espécie de novo conto narrando o fim de uma dinastia, o acerto de contas após anos de impunidade. O que torna a minissérie um entretenimento cômico de terror — além de Gugino — são as performances de Willa Fitzgerald e Mary McDonnell interpretando fases diferentes da implacável Madeline Usher superando as versões destoantes de Roderick Usher — e o que dizer de Flanagan tentando recriar um momento de Annalise Keating com McDonnell tirando parte da peruca de sua personagem?

Com menos terror psicológico que Flanagan costuma entregar, a participação imprescindível de Gugino é um lembrete do que tem funcionado durante esses anos de colaboração em projetos diferentes: mesmo caricato, a hipnotizante Venna é o lado de Flanagan que não queria se despir totalmente da sua seriedade com o terror, de ser desconfortável, dramático, um pesadelo reflexivo da existência humana, nem que seja numa família disfuncional finalmente experimentando o inferno do império farmacêutico que criaram. Não temos aqui uma adaptação à estranheza, ao gótico e inquietante universo das histórias de Allan Poe, mas temos Flanagan em seu estado mais morno no que poderia fazer com o terror.




Verna Recites "The City in the Sea"

 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

A queda da casa de Usher de Edgar Allan Poe

 Son coeur est um luth suspendu; Sitôt qu’on le touche il résonne.

[Seu coração é um alaúde suspenso; Tão logo tocado, ele ressoa]

Béranger

Durante todo um dia de outono, monótono, escuro e silencioso, quando as nuvens pendiam opressivamente baixas no céu, eu tinha passado sozinho, a cavalo, por um trecho de terreno singularmente lúgubre e, finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se aproximavam, diante da triste visão da Casa de Usher. Não sei o motivo, mas, ao primeiro vislumbre do edifício, uma sensação de insuportável melancolia permeou meu espírito. Digo insuportável, pois a sensação não foi aliviada por quaisquer daqueles sentimentos algo prazenteiros, porque poéticos, com os quais a mente normalmente acolhe até mesmo as imagens naturais mais horrendas do desolado ou do terrível. Observei a cena diante de mim – a casa e a paisagem simples, características da propriedade, as paredes desoladas, as janelas como órbitas vazias, poucos canteiros de ervas daninhas e alguns troncos alvos de árvores podres – com uma profunda depressão da alma que não consigo comparar a nenhuma sensação terrena com mais propriedade do que à depressão após a euforia causada ao fumador pelo ópio – o amargo retorno à vida diária, o terrível cair do véu.

Havia uma frigidez, uma prostração, uma repugnância do coração – um temor não suavizado em pensar que nenhum estímulo da imaginação seria capaz de extrair qualquer coisa do sublime. O que era – parei para pensar –, o que era que tanto me desalentava ao olhar a Casa de Usher? Era um mistério totalmente insolúvel; nem conseguia alcançá-lo com as ideias nebulosas que me abarrotavam enquanto ponderava. Fui forçado a ceder à conclusão insatisfatória de que, fora de qualquer dúvida, há combinações de desígnios naturais muito simples que, desse modo, têm o poder de nos afetar, mas que a análise desse poder está entre as reflexões que se encontram além do nosso alcance.

Era possível, refleti, que um mero arranjo diferente de pormenores da cena, dos detalhes do quadro, fosse suficiente para modificar ou, talvez, aniquilar sua capacidade para impressões penosas; e, agindo de acordo com essa ideia, conduzi meu cavalo até a íngreme beirada de um pequeno lago negro e lúgubre que se estendia liso como um espelho perto da moradia e olhei abaixo – com um tremor mais intenso do que antes – para as imagens invertidas e modificadas dos arbustos cinzentos, dos troncos lívidos das árvores e das janelas iguais a órbitas vazias.

Contudo, eu agora me propunha residir algumas semanas nessa mansão sombria. Seu proprietário, Roderick Usher, fora um dos meus alegres companheiros de infância; mas muitos anos haviam se passado desde o nosso último encontro. Uma carta, entretanto, me alcançara recentemente numa parte distante do país – uma carta dele –, na qual, em sua importuna natureza tempestuosa, não admitira senão uma resposta pessoal. O manuscrito evidenciava uma agitação nervosa. O redator falava de uma aguda doença física, de uma desordem mental que o oprimia e de um desejo intenso de me ver, como seu melhor, e de fato seu único amigo pessoal, com a finalidade de tentar, pela alegria de meu convívio, algum alívio de sua enfermidade.

Foi o modo como tudo isso, e muito mais, foi dito – a emoção que acompanhou seu pedido – que não me deixou espaço para a hesitação; e, portanto, obedeci incontinente ao que, não obstante, considerava uma convocação muito singular. Embora, quando meninos, tivéssemos sido colegas muito íntimos, eu, no entanto, conhecia muito pouco do meu amigo. Sua reserva sempre fora excessiva e constante. Eu estava ciente, entretanto, de que sua família, muito antiga, se distinguira, em tempos imemoriais, por uma sensibilidade peculiar de temperamento, revelando-se, através de longas eras, em muitas obras de sublime arte, e manifestada, mais recentemente, em repetidos atos de generosa, porém discreta, caridade, como também em uma apaixonada devoção às complexidades, talvez ainda mais do que às ortodoxas e facilmente reconhecíveis belezas, da ciência musical. Eu soubera, também, do fato notável de que o tronco genealógico dos Usher, sempre tão ilustre, não dera origem, em nenhum período, a nenhum ramo duradouro; em outras palavras, que a família toda se perpetuara em linha direta de descendência, e sempre assim fora, com variações insignificantes e temporárias.

Era essa deficiência, imaginava, enquanto percorria em pensamentos a perfeita harmonia do aspecto da propriedade com o reconhecido caráter das pessoas e enquanto especulava sobre a possível influência que um, na longa passagem dos séculos, poderia ter causado no outro – era essa deficiência, talvez, de parentes colaterais e a consequente invariável propagação, de pai para filho, do patrimônio com o nome que tinham, finalmente, identificado os dois, chegando a fundir o título original da propriedade na estranha e ambígua denominação de “Casa de Usher” – uma denominação que parecia incluir, na mente dos camponeses que a usavam, tanto a família quanto a mansão da família. Eu disse que o único efeito de minha experiência um tanto infantil – a de olhar abaixo para a lagoa – aprofundara a primeira impressão peculiar. Não pode haver dúvida de que a percepção do rápido aumento de minha superstição – por que não deveria expressá-la? – serviu principalmente para intensificar esse próprio aumento. Tal, de há muito sei, é a lei paradoxal de todos os sentimentos que têm como base o terror. E deve ter sido apenas por esse motivo que, quando ergui novamente a vista, de sua imagem refletida no lago, para a própria casa, cresceu em minha mente uma estranha ideia – aliás, uma ideia tão ridícula que somente a menciono para mostrar a intensa força das sensações que me oprimiam.

Eu forçara tanto a minha imaginação que realmente acreditava que, na mansão inteira e na propriedade, pairava uma atmosfera bastante peculiar, própria dela e dos arredores – uma atmosfera que não tinha nenhuma afinidade com o ar do céu, mas que emanava das árvores podres, do muro cinzento e da lagoa silenciosa –, uma névoa pestilenta e mística, carregada, morosa, debilmente discernível e plúmbea. Livrando meu espírito do que devia ser um sonho, examinei mais minuciosamente o verdadeiro aspecto do edifício. Sua principal característica parecia ser a excessiva antiguidade. A descoloração das eras fora grande. Minúsculos fungos se espalhavam por todo o exterior, pendendo dos beirais numa fina e emaranhada teia. Tudo isso, porém, não indicava uma maior deterioração.

Nenhuma parte da alvenaria havia desabado; e parecia haver grande inconsistência entre os encaixes ainda perfeitos dos blocos e as condições desintegradoras de cada pedra. Isso muito me lembrou a enganosa integridade do antigo trabalho em madeira apodrecida por longos anos em alguma adega esquecida, sem a perturbação do bafo de ar exterior. Além dessa indicação de extensa decadência, porém, a estrutura dava poucos sinais de instabilidade. Talvez o olhar escrutinador de um observador pudesse descobrir uma rachadura quase imperceptível, que se estendia do telhado do prédio pela frente, descendo em zigue-zague pela parede, até se perder nas águas turvas do lago. Notando essas coisas, atravessei com o cavalo o curto passadiço até a casa. Um cavalariço cuidou da minha montaria, e atravessei o arco gótico do vestíbulo. Um criado, de passos furtivos, dali me conduziu, em silêncio, por muitas passagens escuras e tortuosas em minha marcha para o estúdio de seu amo.

Muito do que vi pelo caminho contribuiu, não sei como, para aumentar as vagas sensações de que já falei. Enquanto os objetos à minha volta – os entalhes do teto, as sombrias tapeçarias nas paredes, o negrume do ébano dos assoalhos e os fantasmagóricos troféus armoriais que rangiam quando eu caminhava – não passavam de objetos aos quais eu estava, ou deveria estar, acostumado desde a infância; enquanto eu hesitava em não reconhecer o quanto tudo aquilo era familiar, ainda me impressionava perceber o quanto eram estranhas as visões que essas imagens tão comuns causavam em mim. Em uma das escadas, encontrei o médico da família. Seu semblante, julguei, exibia uma expressão misto de falta de ânimo e perplexidade. Falou comigo um pouco afobado e foi embora. O criado então abriu uma porta e conduziu-me à presença de seu amo. O aposento no qual me encontrava era amplo e alto. As janelas eram compridas, estreitas e pontudas e estavam a tão vasta distância do assoalho de carvalho negro que eram totalmente inacessíveis do lado de dentro. Débeis raios de luz tingida de vermelho abriam caminho através das gelosias e ajudavam a tornar suficientemente visíveis os objetos mais notáveis ali em volta; o olho, porém, pelejava em vão para alcançar os ângulos remotos da sala ou os recessos do teto abobadado e ornado de gregas {1}.

Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília em geral era profusa, desconfortável, antiga e gasta. Muitos livros e instrumentos musicais se encontravam espalhados por ali, mas não forneciam nenhuma vitalidade à cena. Eu sentia que respirava uma atmosfera de tristeza. Um ar de severo, profundo e irremediável desalento pairava por toda parte e a tudo impregnava. Quando entrei, Usher levantou-se de um sofá no qual estivera deitado ao comprido e me cumprimentou com calorosa vivacidade, na qual havia muito, achei a princípio, de cordialidade forçada, de esforço coagido de homem mundano ennuyé {2}. Um olhar, porém, para seu semblante convenceu-me de sua perfeita sinceridade. Sentamo-nos, e, por alguns momentos, enquanto ele nada falava, fitei-o com um sentimento misto de piedade e espanto. Certamente, nenhum homem jamais se transformara tão terrivelmente antes, em tão curto espaço de tempo, como RoderickUsher!

Foi com dificuldade que me forcei a admitir a identidade entre o homem doentio diante de mim e o meu companheiro de infância. No entanto, as características de seu rosto sempre haviam sido notáveis. Uma compleição cadavérica; olhos sem comparação, grandes, fluidos e luminosos; lábios um tanto finos e muito pálidos, mas de uma curvatura extremamente bela; nariz de um padrão hebraico delicado, mas com narinas largas, incomuns nessas formações semelhantes; um queixo finamente esculpido, revelando, em sua ausência de protuberância, uma falta de energia moral; cabelos mais macios e frágeis do que uma teia; esses traços, com uma desordenada expansão acima das regiões da têmpora, formavam um conjunto de feições difícil de esquecer. E agora, com o mero exagero da característica predominante desses traços e da expressão que costumavam mostrar, havia uma tal mudança que eu não estava certo de quem era meu interlocutor. A agora cadavérica lividez da pele e o agora assombroso brilho do olho, acima de todas as coisas, me surpreendiam e até mesmo me assustavam.

Ao cabelo sedoso, ademais, fora permitido crescer descuidado, e como, em sua agreste textura de teia de aranha, flutuasse em vez de cair sobre o rosto, eu não conseguia, mesmo com esforço, ligar sua arabesca expressão a qualquer ideia de simples humanidade. Nos modos de meu amigo, imediatamente fiquei impressionado com uma incoerência – uma inconsistência; e logo descobri que isso se devia a uma série de débeis e fúteis pelejas para superar uma tremedeira habitual – uma excessiva agitação nervosa. Para algo dessa natureza, eu fora preparado, não apenas por sua carta, mas pelas lembranças de certas características da infância e pelas conclusões tiradas de seu estado físico e temperamento peculiares. Suas atitudes eram alternadamente animadas e taciturnas. Sua voz variava rapidamente de uma trêmula indecisão (quando sua vitalidade se acentuava) àquela espécie de enérgica concisão, aquele enunciado abrupto, pesado, lento e oco, aquele modo de falar moroso, equilibrado e perfeitamente modulado e gutural, que se pode observar no bêbado desorientado ou no inveterado fumante de ópio, durante os períodos de sua mais intensa excitação.

Foi desse modo que ele falou do objetivo de minha visita, de seu determinado desejo de me ver e do alívio que esperava que eu lhe proporcionasse. Introduziu, com algumas minúcias, o que pensava que fosse a natureza de sua enfermidade. Era, disse ele, um mal inerente à família, e para o qual perdera a esperança de encontrar um remédio – uma simples moléstia nervosa, acrescentou de imediato, a qual indubitavelmente logo passaria. Manifestava-se com uma série de sensações antinaturais. Algumas, enquanto ele as detalhava, me interessaram e me deixaram aturdido, embora, talvez, os termos e o modo geral da narração tivessem um certo peso. Ele sofria muito de uma mórbida agudeza dos sentidos; somente tolerava a comida mais insípida; só podia usar roupas com certa textura; os odores de todas as flores eram opressivos; seus olhos eram torturados até pela luz mais suave; e havia apenas sons peculiares, como os de instrumentos de corda, que não lhe provocavam horror. Considerei-o um penhorado escravo de uma anômala espécie de terror. – Eu vou morrer – disse ele. – Devo morrer nesta loucura deplorável. Assim, assim e não de outra maneira, estarei eu perdido.

Tenho pavor dos acontecimentos futuros, não em si mesmos, mas de seus resultados. Tremo só de pensar em qualquer, mesmo no mais trivial, incidente que possa afetar essa intolerável agitação da alma. Não tenho, de fato, aversão ao perigo, mas, sim, ao seu efeito absoluto – o terror. Neste desalentado e deplorável estado, sinto que, mais cedo ou mais tarde, chegará o momento em que deverei abandonar a vida, junto com a razão, em alguma luta com o sinistro fantasma, o MEDO. Descobri, além disso, aos poucos e por insinuações confusas e fragmentadas, outro traço singular de seu estado mental. Ele vivia acorrentado a certas noções supersticiosas relativas à casa em que morava, de onde, por muitos anos, nunca se aventurara a sair. Tudo relacionado a uma influência cuja suposta força foi transmitida em termos muito sombrios para serem repetidos aqui. Uma influência que algumas peculiaridades nas simples forma e substância da mansão da família haviam, por meio de longo sofrimento, disse ele, obtido sobre seu espírito. – Era o efeito que o physique das paredes e torreões cinzentos, e do sombrio lago para dentro do qual tudo olhava, tinha, finalmente, exercido sobre o morale de sua existência.

Ele admitia, porém, embora com hesitação, que grande parte da peculiar melancolia que o afligia podia ter uma origem mais natural e muito mais palpável na grave e prolongada doença e na morte, que evidentemente se aproximava, de uma afetuosamente adorada irmã, sua única companhia por longos anos, sua última e única parente na terra. – Seu falecimento – disse ele, com uma amargura que jamais conseguirei esquecer – me deixaria (a ele, o desesperado e fraco) como o último da antiga raça dos Usher. Enquanto ele falava, lady Madeline (pois era esse seu nome) passou lentamente por uma parte afastada do aposento e, sem notar minha presença, desapareceu. Olhei-a com grande espanto, não livre de temor; ainda assim, achei impossível justificar tais sentimentos. Uma sensação de estupor me oprimiu, enquanto meus olhos seguiam seus passos em retirada. Quando uma porta, finalmente, se fechou atrás dela, meu olhar procurou instintiva e ansiosamente o semblante do irmão; mas ele afundara o rosto nas mãos, e pude apenas perceber que uma palidez maior do que a normal havia se espalhado pelos dedos macilentos, através dos quais gotejavam muitas lágrimas ardentes.

A doença de lady Madeline havia muito tempo desafiava a habilidade de seus médicos. Uma eterna apatia, um gradual definhamento físico e frequentes, embora passageiros, ataques de caráter parcialmente cataléptico constituíam o incomum diagnóstico. Até então ela resistira com firmeza à pressão de sua enfermidade e não se confinara ao leito; mas, ao final da tarde do dia em que cheguei à casa, ela sucumbiu (como me informou seu irmão, à noite, com inexprimível comoção) ao poder aniquilador do extermínio; e eu soube que o vislumbre que tivera de sua pessoa seria talvez o último que obteria e que a dama, pelo menos enquanto vivesse, não seria mais vista por mim. Por vários dias que se seguiram, seu nome não foi mencionado, nem por Usher nem por mim; e, durante esse período, ocupei-me, com sérios esforços, em aliviar a melancolia do meu amigo. Pintávamos e líamos juntos; ou eu ouvia, como num sonho, as extraordinárias improvisações de seu expressivo violão. E, assim, à medida que uma intimidade cada vez maior me permitia um acesso mais sem reservas ao recesso de seu espírito, mais amargamente me dava conta da inutilidade de todas as tentativas de alegrar uma mente da qual a escuridão, como uma qualidade inerente e positiva, despejava-se sobre todos os objetos do universo físico e moral, numa incessante radiação de tristeza.

Sempre levarei comigo a lembrança das muitas horas solenes que desse modo passei sozinho com o senhor da Casa de Usher. Contudo fracassaria em qualquer tentativa de transmitir uma ideia do exato caráter dos estudos ou das ocupações nos quais ele me envolvia ou me conduzia. Uma idealização arrebatada e altamente desregrada lançava um brilho sulfuroso sobre tudo. Seus longos e improvisados cantos fúnebres ressoarão eternamente em meus ouvidos. Entre outras coisas, mantenho dolorosamente na lembrança certa deturpação singular e amplificação da extravagante melodia da última valsa de Von Weber; das pinturas que sua complicada imaginação remoía, e que cresciam, pincelada a pincelada, até uma indefinição que me fazia estremecer emocionadamente. E eu estremecia sem saber por quê, pois dessas pinturas (tão vívidas que até hoje suas imagens estão diante de mim), em vão, eu me empenharia em reproduzir aqui mais do que uma pequena porção do que seria passível de ser traduzido por meras palavras escritas. Através da total simplicidade, da nudez de seus desenhos, ele prendia e sujeitava a atenção. Se jamais um mortal pintou uma ideia, esse mortal foi Roderick Usher.

Para mim pelo menos, nas circunstâncias que então me cercavam, das puras abstrações que o hipocondríaco conseguia jogar em suas telas provinha uma intensidade de intolerável pavor, algo que nem de longe jamais senti ao contemplar os certamente brilhantes, se bem que concretos demais, devaneios de Fuseli {3}. Uma das criações fantasmagóricas do meu amigo, embora não tão rígida no conceito da abstração, pode ser descrita em palavras, ainda que debilmente. Um pequeno quadro representava o interior de uma galeria ou túnel imensamente longo e retangular, com paredes baixas, lisas, brancas e sem interrupção ou ornamentos. Certos pontos acessórios do desenho transmitiam bem a ideia de que essa escavação ficava numa extrema profundidade abaixo da superfície da terra. Nenhuma saída era observada em nenhuma parte de seu vasto comprimento, e não era discernível nenhuma tocha ou outra fonte artificial de luz; contudo, havia uma inundação de raios intensos que banhava tudo num fantasmagórico e inadequado esplendor. Falei há pouco do estado mórbido do nervo auditivo que torna toda música intolerável a esse sofredor, com exceção de certas impressões causadas por instrumentos de corda.

Foram talvez os estreitos limites a que ele se restringia ao violão que deram origem em grande parte à fantástica natureza de sua execução. Mas a fervorosa facilidade de seus improvisos não podia ser explicada. Eles deviam ser, e eram, nas notas, como também nas letras de suas loucas fantasias (pois ele, não raramente, se fazia acompanhar de improvisações verbais rimadas), o resultado da serenidade e da concentração mentais intensas, às quais me referi antes, observadas apenas em momentos particulares da maior excitação artificial. Da letra de uma dessas rapsódias eu me lembro bem. Talvez eu tenha ficado tão impressionado, quando ele a cantou, porque, na corrente implícita ou mística de seu significado, julguei ter percebido, e pela primeira vez, a plena consciência, por parte de Usher, da instabilidade de sua altiva racionalidade sobre o poder dela. Os versos, intitulados “O palácio assombrado”, eram, se não exatamente, mais ou menos assim:

I.

No mais verde de nossos vales,

Por bons anjos habitados,

Outrora um belo e imponente palácio...

Radiante palácio... erguia seu topo.

Nos domínios do monarca Pensamento...

Ali ele se situava!

Nenhum serafim jamais abriu as asas

Sobre construção tão bela.

II.

Bandeiras amarelas, gloriosas, douradas,

Em seu telhado flutuavam e ondulavam

(Isso – tudo isso – foi nos velhos

Tempos de muito antes);

 E cada suave brisa que se demorava,

 Naquele dia suave,

 Pelos baluartes emplumados e pálidos,

 Um ligeiro odor desprendia.

III.

Caminhantes por aquele vale feliz

Por duas janelas iluminadas viam

Espíritos movimentando-se musicalmente

Sob o repertório do alaúde bem afinado;

Em volta de um trono, onde se sentava

(Porfirogênito! {4})

Na condição de sua condizente glória,

 Era visto o senhor do reino.

 IV.

E toda com pérolas e rubis brilhantes

Era a bela porta do palácio,

Através da qual seguia, seguia, seguia,

E cada vez mais cintilando,

Um bando de Ecos cujo suave dever

Era apenas cantar,

Com vozes de insuperável beleza,

A inteligência e a sabedoria de seu rei.

V.

Vultos maus, porém, em vestes de luto,

Atacaram o alto escalão do monarca

(Ah, lamentemos, pois jamais o amanhã

amanhecerá para ele, o infeliz!);

E, em volta de seu lar, a glória

Que enrubescia e florescia

Não passa de uma história de pouca lembrança

Dos velhos tempos sepultados.

VI.

E viajantes agora, por aquele vale,

Pelas janelas iluminadas de vermelho, veem

Grandes formas que se movem fantasticamente

A uma discordante melodia;

Enquanto isso, como um veloz rio espectral,

Através da pálida porta

Passa eternamente uma medonha multidão

E gargalha – porém não mais sorri.

Lembro-me bem de que sugestões suscitadas por essa balada nos levaram a uma linha de pensamento na qual se tornou evidente uma opinião de Usher, que menciono não tanto por causa de sua novidade (outros homens {5} já pensaram assim), mas por conta da insistência com que a sustentava. Essa opinião, em sua forma geral, era em relação à sensitividade de todos os vegetais. Contudo, em sua imaginação desordenada, a ideia adotara um caráter mais ousado e transgredira, sob certos aspectos, o reino do inorgânico.

Faltam-me palavras para expressar toda a extensão ou a sincera desenvoltura de sua convicção. A crença, entretanto, estava relacionada (como insinuei anteriormente) com as pedras cinzentas do lar de seus antepassados. A natureza da sensitividade aqui, imaginava ele, se baseara no método de colocação dessas pedras. Na ordem em que foram arrumadas, como também a dos muitos fungos que se espalhavam por elas, e das árvores apodrecidas que ficavam em volta. Acima de tudo, na longa e imperturbável duração desse arranjo e na sua repetição nas águas paradas do lago. Sua evidência – a evidência da sensitividade – podia ser vista, dizia ele (e aqui me assustei, enquanto ele falava), na gradual mas indubitável condensação de uma atmosfera, própria delas, em volta da água e das paredes.

O resultado, acrescentou, era perceptível naquela silenciosa, ainda que perturbadora e terrível influência que durante séculos moldara os destinos de sua família e que fizera dele aquilo que agora eu via – o que ele era. Tais opiniões dispensam comentários, e não farei nenhum.

Nossos livros – os livros que, durante anos, haviam formado grande parte da existência mental do inválido – estavam, como era de supor, em perfeita harmonia com essa natureza ilusória. Nós nos debruçávamos sobre obras como Ververt et Chartreuse {6}, de Gresset; Belphegor, de Maquiavel {7}; Heaven and Hell {8}, de Swedenborg; Subterranean Voyage of Nicholas Klimm {9}, de Holberg; Chiromancy [10], de Robert Flud, Jean D’Indaginé e De la Chambre; Journey into the Blue Distance   [11], de Tieck; e City of the Sun [12], de Campanella. Um volume favorito era a pequena edição in-oitavo do Directorium Inquisitorum [13], do dominicano Eymerico de Gerona; e havia passagens em Pompônio Mela sobre os velhos sátiros [14] e egipãs africanos [15] sobre as quais Usher se detinha, sonhando por horas. Seu maior prazer, contudo, se encontrava na leitura atenta de um livro muitíssimo raro e curioso em gótico in[1]quarto – o manual de uma igreja esquecida –, a Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae [16].

Não pude deixar de pensar no louco ritual dessa obra e de sua provável influência sobre os hipocondríacos, quando, certa noite, após me informar abruptamente que lady Madeline havia falecido, ele afirmou sua intenção de preservar seu cadáver por duas semanas (antes de seu enterro final) em uma das numerosas câmaras existentes na parte interna das paredes principais do prédio. O motivo, embora profano, para esse singular procedimento era de tal natureza que não me senti à vontade para discutir. O irmão fora levado a essa decisão (segundo me disse) em razão da natureza incomum da enfermidade da falecida, de certas perguntas inconvenientes e impulsivas por parte dos médicos que a tratavam e da localização remota e exposta do cemitério da família. Não negarei que, ao me lembrar do semblante sinistro da pessoa que encontrara na escada, no dia de minha chegada à casa, não senti desejo algum de me opor ao que parecia, na melhor das hipóteses, uma precaução inofensiva e, de modo algum, antinatural.

A pedido de Usher, ajudei-o pessoalmente nos preparativos do enterro temporário. Tendo sido o corpo colocado no caixão, nós dois sozinhos o levamos ao seu descanso. A câmara na qual o colocamos (e que estivera tanto tempo fechada que nossas tochas, meio apagadas em sua opressiva atmosfera, nos permitiram pouca chance de um exame) era pequena, úmida e totalmente sem meios de uma entrada de luz; situava-se, a grande profundidade, imediatamente abaixo daquela parte da edificação na qual ficava o meu quarto de dormir. Aparentemente, ela tinha sido usada, em remota época feudal, para o pior dos propósitos de um calabouço e, em período mais recente, como um depósito de pólvora ou outra substância altamente inflamável, pois parte de seu chão e todo o interior da comprida arcada através da qual chegamos ali foram cuidadosamente revestidos de cobre. A porta, de ferro maciço, havia também sido protegida de modo semelhante. Seu imenso peso, quando movimentada nas dobradiças, causava um ruído notavelmente agudo, áspero.

Tendo depositado nosso triste fardo sobre cavaletes nesse lugar de horror, afastamos parcialmente a tampa do caixão, que ainda não tinha sido aparafusada, e contemplamos o rosto de sua ocupante. Uma incrível semelhança entre o irmão e a irmã atraiu então a minha atenção pela primeira vez; e Usher, adivinhando, talvez, meus pensamentos, murmurou algumas palavras, pelas quais descobri que a morta e ele eram gêmeos e que sempre existiram entre eles afinidades de uma espécie quase incompreensível. Nossos olhares, porém, não demoraram muito sobre a morta, pois não conseguíamos vê-la inconfessada. A enfermidade que levara ao túmulo a dama na flor da idade, como é usual em todas as doenças de caráter estritamente cataléptico, deixara o arremedo de um leve rubor no seio e no rosto e aquele suspeito sorriso que permanecia nos lábios e que é tão terrível na morte. Recolocamos a tampa e a parafusamos e, após fechar a porta de ferro, seguimos nosso caminho, com dificuldade, para os poucos aposentos menos sombrios da parte superior da casa.

Mas, passados alguns dias de amarga tristeza, uma perceptível mudança apoderou-se das características da desordem mental do meu amigo. Seus modos habituais haviam desaparecido. Suas ocupações costumeiras foram negligenciadas ou esquecidas. Ele vagava de aposento a aposento com passos apressados, desiguais e sem objetivo. A lividez de seu semblante adotara, se possível, uma tonalidade ainda mais pálida, e a luminosidade de seus olhos havia desaparecido por completo. A outrora ocasional rouquidão de seu tom de voz não era mais ouvida, e um trêmulo garganteio, como que produzido por extremo terror, caracterizava habitualmente sua expressão vocal. Houve ocasiões, aliás, em que pensei que sua mente incessantemente agitada lidava com algum segredo opressivo e que ele tentava conseguir a coragem necessária para divulgá-lo. Novamente, em algumas ocasiões, fui obrigado a atribuir tudo às meras venetas inexplicáveis da loucura, pois observei-o fitar por longas horas o vazio, numa atitude da mais profunda atenção, como se ouvisse algum som imaginário. Não era de admirar que seu estado me aterrorizasse – e me contaminasse. Senti rastejar sobre mim, lenta mas gradualmente, a louca influência de suas fantásticas, mas impressivas, superstições.

Foi, especialmente, ao me recolher ao leito, tarde da noite do sétimo ou oitavo dia após termos colocado lady Madeline no calabouço, que vivenciei a força total de tais sentimentos. O sono não se aproximava do meu leito, enquanto as horas se desvaneciam e se dissipavam. Pelejei para racionalizar o nervosismo que me dominava. Empenhava-me em acreditar que parte, se não tudo, do que sentia devia-se à influência desconcertante da sombria mobília do quarto, das tapeçarias escuras e esfarrapadas, as quais, forçadas ao movimento pelo sopro de uma tempestade em formação, sacudiam-se espasmodicamente para um lado e para o outro sobre as paredes e roçavam inquietas pelos adornos da cama.

Meus esforços, porém, foram em vão. Um irreprimível temor gradualmente impregnou meu corpo e, finalmente, instalou-se em meu coração um íncubo de alarme totalmente infundado. Sacudindo-o fora com um arquejo e estremecimento, ergui a cabeça do travesseiro e, observando com determinação a intensa escuridão do aposento, ouvi – não sei por quê, talvez um espírito instintivo me tivesse impelido – certos sons baixos e indefinidos que vinham, sem que eu soubesse de onde, em longos intervalos, através das pausas da tempestade. Dominado por intenso sentimento de horror, inexplicável e no entanto insuportável, vesti-me rapidamente, pois sabia que não conseguiria mais dormir durante a noite, e tentei livrar-me daquele deplorável estado em que me encontrava, caminhando rapidamente de um lado a outro do quarto. Eu dera apenas algumas voltas dessa maneira, quando o leve som de passos numa escada próxima atraiu minha atenção. Imediatamente reconheci que eram de Usher. Um instante depois, ele deu uma sutil batida na minha porta e entrou carregando um lampião. Seu semblante, como sempre, era de uma palidez cadavérica, mas, além disso, existia uma espécie de desvairada alegria em seus olhos, uma histeria evidente em todo o seu comportamento. Seu ar me amedrontava, mas qualquer coisa era preferível à solidão que eu tanto tempo suportara. Assim, acolhi sua presença até mesmo com certo alívio.

– E você não viu? – perguntou abruptamente depois de examinar à sua volta, por alguns minutos, em silêncio.

– Ainda não viu?... Mas espere! Verá.

– Assim falando, e tendo protegido cuidadosamente o lampião, ele correu até uma das janelas de batente e a escancarou à tempestade. A impetuosa fúria da rajada que entrou quase nos ergueu do chão. 

Era, de fato, uma noite tempestuosa, mas terrivelmente bela e estranhamente singular em seu terror e sua beleza. Um redemoinho aparentemente reunira suas forças em nossa vizinhança, pois havia frequentes e violentas alterações na direção do vento; e a extrema densidade das nuvens (que pendiam tão baixo como se pressionassem os torreões da casa) não impedia que observássemos a vigorosa velocidade com que deslizavam, vindas de todos os pontos, umas contra as outras, sem desaparecer a distância. Afirmo que nem sua excessiva densidade nos impedia de perceber isso. Entretanto, não tínhamos nenhum vislumbre da Lua ou das estrelas, nem havia nenhum clarão de relâmpago. Mas as superfícies inferiores das enormes massas de vapor agitado, assim como todos os objetos terrestres imediatamente à nossa volta, brilhavam à luz antinatural de uma exalação gasosa fracamente luminosa e claramente visível que pairava ali e envolvia a mansão como uma mortalha.

– Você não deve... você não pode olhar isso – falei, tremendo, para Usher, ao conduzi-lo, com delicada pressão, da janela até um assento. – Essas aparições, que tanto o deixam aturdido, são meramente fenômenos elétricos nada incomuns ou talvez tenham sua origem horrenda no miasma fedorento do lago. Vamos fechar a janela, o ar está gelado, e isso é perigoso para seu estado. Eis aqui um dos seus romances favoritos. Eu lerei, e você ouvirá; desse modo, superaremos juntos esta noite terrível.

O volume antigo que eu havia apanhado era Louca Irmandade, de Sir Launcelot Canning; mas o chamara de favorito de Usher mais como um triste gracejo do que a sério, pois, na verdade, há pouca coisa em sua esquisita e prosaica prolixidade que pudesse interessar a elevada e espiritual imaginação do meu amigo. Era, porém, o único livro imediatamente à mão; e cedi a uma vaga esperança de que a emoção que agora agitava o hipocondríaco pudesse encontrar alívio (a história das perturbações mentais é repleta de anomalias semelhantes) mesmo na excessiva insensatez que eu ia ler. A julgar, de fato, pelo exagerado ar imoderado de vivacidade com que ele escutava atentamente, ou aparentava escutar, as palavras da história, eu bem que poderia me congratular pelo sucesso do meu plano. Eu chegara ao bem conhecido trecho da história em que Ethelred, o herói da Irmandade, tendo se empenhado em vão por um acesso pacífico à habitação do eremita, decide entrar pela força. Aqui, lembro-me bem, a narrativa prossegue assim:

“E Ethelred, que, por natureza, tinha um coração valente e, sobretudo agora, sentia-se forte por causa do poder do vinho que havia tomado, não esperou mais tempo para negociar com o eremita – o qual, na verdade, tinha uma tendência à obstinação e à maldade – e, sentindo a chuva sobre os ombros e temendo o aumento da tempestade, ergueu a maça bem alto e, com golpes, abriu rapidamente espaço nas pranchas da porta para sua mão guarnecida de manopla; e agora, puxando-a com força, ele de tal modo a rachou e quebrou e a fez toda em pedaços que o alarmante ruído da madeira seca e oca reverberou por toda a floresta”.

Ao final dessa frase, sobressaltei-me e, por um momento, fiquei parado; é que a mim me pareceu (embora imediatamente concluísse que minha agitada imaginação me enganara), a mim me pareceu que, de alguma parte muito remota da mansão, chegara, indistintamente, aos meus ouvidos, o que poderia ter sido, por sua exata semelhança, o eco (certamente baixo e abafado) do próprio som de estalar e de quebrar que Sir Launcelot descrevera tão detalhadamente. Foi, sem nenhuma dúvida, apenas a coincidência que prendera a minha atenção; afinal, em meio ao chocalhar dos caixilhos das janelas e dos ruídos normais misturados da tempestade que ainda aumentava, o som, por si só, nada tinha, certamente, que pudesse me interessar ou me perturbar. Continuei a história:

“Mas o valente herói Ethelred, agora passando pela porta, ficou extremamente enfurecido e surpreso por não notar nenhum sinal do malvado eremita; no lugar deste, porém, havia um dragão escamoso e de medonha aparência, e com a língua de fogo, que permanecia de guarda diante de um palácio de ouro, com o chão de prata; do muro, pendia um escudo de bronze reluzente, com o seguinte dístico inscrito:

Quem aqui entrar, um conquistador será;

Quem o dragão matar, o escudo ganhará.

E Ethelred ergueu sua maça e atingiu na cabeça o dragão, que caiu diante dele e exalou o seu bafo pestilento, com um guincho tão horrível e áspero e, ao mesmo tempo, tão penetrante que Ethelred foi forçado a tapar os ouvidos com as mãos para se proteger daquele ruído, algo que ele nunca tinha ouvido antes”.

Aqui, novamente, fiz uma pausa abrupta, e agora com uma sensação de grande surpresa, pois não podia haver dúvida de que, dessa vez, eu de fato ouvira (embora me parecesse impossível dizer de que direção provinha) um baixo e aparentemente distante, mas áspero, demorado e muito invulgar grito ou som rascante – a reprodução exata do que a minha imaginação havia evocado como o guincho sobrenatural descrito pelo romancista.

Afligido, como certamente me encontrava, pela ocorrência dessa segunda e mais extraordinária coincidência e por mil sensações conflitantes, nas quais perplexidade e extremo terror eram predominantes, ainda possuía suficiente presença de espírito para evitar estimular, ao fazer qualquer observação, a sensitiva nervosidade do meu companheiro.

Eu não tinha certeza de que ele notara os sons em questão, embora, certamente, durante os últimos minutos, tivesse ocorrido uma estranha alteração no seu comportamento. De uma posição defronte a mim, ele gradualmente girou sua cadeira, de modo a ficar sentado com o rosto para a porta da sala; assim, eu conseguia distinguir apenas parcialmente o seu rosto, embora visse que seus lábios tremiam como se ele estivesse murmurando inaudivelmente. A cabeça pendera para o peito, mas eu sabia que ele não estava dormindo, por causa dos olhos bem abertos e fixos, quando os vi de perfil. Os movimentos de seu corpo, igualmente, não indicavam que dormisse, pois ele o oscilava de um lado para o outro com um suave, porém constante e uniforme balanço. Após ter rapidamente notado tudo isso, retomei a narrativa de Sir Launcelot, que assim prosseguia:

“E agora o herói, tendo escapado da terrível fúria do dragão, lembrando-se do escudo de bronze e de que havia quebrado o seu encanto, afastou a carcaça do seu caminho e dirigiu-se destemidamente, pelo chão de prata do castelo, para onde, em sua parede, se encontrava o escudo; este, na verdade, não esperou a total aproximação de Ethelred e caiu-lhe aos pés no chão de prata, com um estrondoso som retumbante”.

No mesmo instante em que essas sílabas passaram pelos meus lábios, como se um escudo de bronze tivesse de fato, naquele momento, caído pesadamente num chão de prata, fiquei ciente de uma reverberação nítida, cavernosa, metálica e clangorosa, mas aparentemente abafada.

Completamente amedrontado, pus-me em pé, de um salto, mas o balançar regular de Usher permaneceu inalterado. Corri para a cadeira em que ele estava sentado. Os olhos estavam baixados, fixados em algo à sua frente, e, por todo o seu rosto, reinava uma rigidez pétrea. Mas, quando coloquei a mão sobre seu ombro, ocorreu uma forte agitação por todo o seu corpo; um sorriso doentio estremeceu seus lábios, e notei que ele falava num baixo, apressado e incoerente murmúrio, como se estivesse inconsciente de minha presença. Curvando-me rente a seu rosto, pude enfim captar o terrível sentido de suas palavras.

– Não ouviu isso?...  Sim, eu ouço, e tenho ouvido. Longos... longos... longos... muitos minutos, muitas horas, muitos dias, eu tenho ouvido... mas não tive coragem... oh, pobre de mim, que infeliz sou eu!...  não tive coragem... não tive coragem de falar! Nós a colocamos viva no túmulo! Eu não disse que meus sentidos estavam aguçados? Agora eu lhe digo que ouvi seus primeiros frágeis movimentos no caixão. Eu os ouvi... muitos, muitos dias atrás... mas não tive coragem... não tive coragem de falar! E agora... esta noite... Ethelred... Ha! Ha! Ha!...  O arrombamento da porta do eremita, e o grito mortal do dragão, e o clangor do escudo... diga, em vez disso, o despedaçar da tampa do caixão dela, o ranger das dobradiças de ferro de sua prisão e seu avanço pelas arcadas do calabouço revestido de cobre! Oh! Para onde devo fugir? Ela não estará aqui dentro em pouco? Não está vindo apressadamente para me repreender pela pressa? Não são seus passos que ouço vindos da escada? Não percebo aquela pesada e horrível batida de seu coração? Louco! Nesse momento ele saltou furiosamente, pôs-se de pé e berrou suas palavras, como se, naquele esforço, estivesse desistindo de sua alma:

Louco! Estou lhe dizendo que ela agora está do outro lado da porta!

Como se a energia sobre-humana de sua afirmação tivesse produzido a força de um encantamento, a imensa e antiga porta para a qual ele apontava recuou lentamente, naquele instante, suas pesadas e negras mandíbulas. Foi a obra de uma rajada de vento – mas do outro lado da porta estava de fato a altiva e amortalhada figura de lady Madeline de Usher. Havia sangue em suas vestes brancas e sinais de duro esforço em cada parte de seu corpo macilento. Por um momento ela permaneceu tremendo e balançando de um lado para outro na soleira. Então, com um grito baixo e queixoso, desabou pesadamente sobre o corpo de seu irmão e, na sua violenta e agora final agonia de morte, arrastou-o para o chão, já um cadáver e uma vítima dos terrores que ele havia previsto.

Fugi aterrorizado daquele aposento e daquela mansão. A tempestade ainda assolava o lugar com toda a sua fúria no momento em que eu atravessava o velho passadiço. De repente, surgiu ao longo do caminho uma luz forte, e virei[1]me para ver de onde poderia estar vindo uma luminosidade tão incomum, pois, atrás de mim, somente havia o casarão e suas sombras.

 A irradiação vinha da lua cheia, de um vermelho sangue, que se punha e agora brilhava fulgurante através daquela rachadura antes mal discernível, da qual falei, e que se estendia do telhado da edificação, em zigue-zague, na direção da base. Enquanto eu olhava, essa rachadura rapidamente alargou-se. Dali veio uma furiosa ventania em redemoinho, e toda a esfera do satélite irrompeu de uma vez diante de minha vista. Meu cérebro vacilou quando vi aquelas maciças paredes cair em pedaços. Houve o som de uma demorada e tumultuada gritaria, como o ruído de mil aguaceiros, e o lago profundo e frígido a meus pés se fechou sombria e silenciosamente sobre os destroços da “Casa de Usher”

Notas

{ 1 } Ornado de gregas: Ornatos geométricos constituídos de linhas horizontais e verticais quebradas em ângulo reto, que nunca se fecham. { 2 } Ennuyé: Entediado, displicente em relação às pessoas à sua volta. { 3 } Johann Heinrich Füssli, também conhecido como Henry Fuseli ou Fusely (Zurique, 7 de fevereiro de 1741 – Putnry Hill, 16 de abril de 1825), foi um pintor suíço. { 4 } Porfirogênito: Nascido na Pórfira, palácio onde nasciam os imperadores gregos bizantinos. E também aquele que nasceu durante o reinado do pai. { 5 } Watson, dr. Percival, Spallanzani e, especialmente, o Bispo de Landaff – Ver Chemical Essays, vol. v. { 6 } Ververt et Chartreuse: Sem tradução. { 7 } Belphegor: Sem tradução. { 8 } Heaven and Hell: Céu e Inferno. { 9 } Subterranean Voyage: Viagens aos Subterrâneos de Nicholas Klimm. { 10 } Chiromancy: Quiromância. { 11 } Journey into the Blue Distance: Jornada pela Imensidão Azul. { 12 } City of the Sun: Cidade do Sol. { 13 } Directorium Inquisitorum: Manual do Inquisidor. { 14 } Sátiros: Personagem da mitologia grega com corpo de homem da cabeça à cintura, e de bode na parte inferior. { 15 } Egipãs: Sátiros africanos. { 16 } Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae: Sem tradução.

 

A queda da casa de Usher Edgar AllanPoe

Obra conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Organização: Veio Libri – Luiz Antonio Aguiar © 2011

Tradução de: Domingos Demasi.

Capa: Claudia Xavier Fotos da capa: túmulo: Don Farrall/Getty Images; vampira: Jentakespictures/iStockphoto.com; gárgula: FelixStrummer/iStockphoto.com; aranha: Alex-mit/iStockphoto.com Projeto gráfico e diagramação: Andrea Yanaguita

 

 

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Carta aberta ao ministro Flávio Dino. Por Luiz Eduardo Soares

Publicado por Diario do Centro do Mundo ,  6 de agosto de 2023

Prezado ministro Dino,

Não ousaria ensinar Pai Nosso ao Vigário. Não há agente público mais inteligente, qualificado e experiente. Não precisa de lições, nem mesmo de conselhos. Eu apenas tomo a liberdade de compartilhar algumas observações, fruto de minha já longa vivência e convivência no campo da segurança pública, como gestor e pesquisador. Ao longo de décadas (desde os anos 1980), acumulei mais derrotas do que vitórias. Por isso mesmo, me permito algumas ponderações.

Antes de expô-las, preciso dizer com ênfase, para que não se suponha ingenuidades de minha parte. Já não há tempo para arroubos ideológicos e frivolidades intelectuais. A meu ver, são duas as agendas que se impõem: uma realista (que depende de condições políticas), outra ideal (inaplicável, mas necessária para dar rumo à primeira). Em síntese, a primeira realizará o recorte da segunda que se mostrar viável, de acordo com correlações de força conjunturais e circunstâncias concretas.

Só o ministro saberá filtrar, da segunda agenda, a pauta compatível com os limites da realidade, em cada momento. Ninguém está melhor situado para proceder a esta avaliação.

Entretanto, talvez não seja impertinente contribuir para a formulação da segunda agenda, aquela que, mesmo eventualmente imprópria à conjuntura, deve estar sempre no horizonte.

Começo com o óbvio, mas raramente admitido: a situação da segurança pública é dramática e os fatores que a tornam grave impactam a institucionalidade democrática, isto é, colocam em risco as condições de realização e a estabilidade do Estado democrático de direito. Quando a autoridade, fundada na soberania popular, cuja fonte é o voto, se dissocia do poder, por incapacidade de mobilizar os meios legítimos de coerção, a crise se instala.

Caso o governo prefira evitar desgastes e postergar temas espinhosos, talvez se veja, mais à frente, constrangido a fazê-lo, em contextos ainda mais difíceis. Por isso, creio que a análise das condições objetivas atuais deveria levar em conta os riscos implicados na eventual deterioração do quadro, sabendo-se que tal degradação reduziria o repertório de opções para a ação política.

Sejamos francos e vamos direto ao ponto decisivo:

(1) Governadores não comandam as polícias estaduais, civis e militares, embora esta impotência varie no tempo e no espaço, e haja aí gradações relevantes. Não por incompetência dos executivos estaduais ou deslealdade dos comandantes, mas por processos internos de autonomização ilegal de segmentos, movidos por interesses específicos (ligados à segurança privada informal e ilegal, por exemplo), cumplicidades corporativas e envolvimentos criminosos. Essas conexões horizontais cruzam e cortam os eixos de hierarquia e disciplina, nas PMs, eixos que sequer existem nas polícias civis, as quais, por vezes, se parecem mais a arquipélagos de baronatos feudais do que a instituições internamente articuladas por mecanismo de direção e controle. Não há como pensar a penetração do crime na política -fenômeno do qual as milícias fluminenses constituem apenas uma manifestação particularmente ostensiva- dissociadamente da politização dos policiais. Quem duvidar pode tirar as próprias conclusões, assistindo aos canais ativos no Youtube, conduzidos por policiais ou que se dedicam a entrevistá-los, cujo conteúdo sobrepõe militância “bolsonarista”, defesa de execuções extra-judiciais e da prática de tortura, agressões acintosas ao Supremo Tribunal Federal e reiterada sustentação de autonomia inconstitucional das polícias (autonomia que interpreto como a formação de um enclave institucional refratário à autoridade política, civil, republicana). A dificuldade do STF em impor obediência a suas decisões, no âmbito da ADPF 635, demonstra, à exaustão, a tese aqui exposta. A politização das polícias não se restringe a manobras de cúpula, determinando ativismo ilegal, seletivo e dirigido, como no episódio da PRF, no segundo turno das eleições, em outubro de 2022. A inação, o absenteísmo ou a mera negligência por vezes correspondem à contraface da mesma dinâmica transgressora. E os impulsos ilegais podem derivar de núcleos decisórios alheios às colunas de comando e controle, assentadas em hierarquia e disciplina. Na anarquia, prospera a politização que se tem constatado crescente, e dela decorre a hipertrofia da anarquia, alimentando ciclo vicioso deletério.

(2) Nas polícias civis, há, entre outros, dois problemas chave (que também ocorrem nas PMs, mas com outros aspectos): a fratura entre dois universos, delegados e agentes, não só tem suscitado tensões insuportáveis e desagregadoras, como tem reduzido a efetividade do trabalho investigativo, seu atributo por execelência. Os delegados aspiram à carreira jurídica (elevando-se à condição de juízes de instrução) e operam com os inquéritos e o indiciamento como simulacros de um poder que não alcançam. Os agentes, sentindo-se explorados e não raro humilhados, vêem sua carreira limitada, desde a origem, em contraste com os privilégios de seus chefes: possibilidades de ascensão, patamares salariais, prestígio social. Por outro lado, o inquérito acaba duplicando o tempo do processo judicial, tornando burocrática e formalista a etapa investigativa.

(3) As PMs são obrigadas, por legislação infra-constitucional -apoiada no artigo 144 da Constituição-, a reproduzir o modelo organizacional do Exército, sem que compartilhe com este as destinações constitucionais. Em outras palavras, a estrutura organizacional das polícias militares não corresponde a suas necessidades operacionais e não é adequada ao cumprimento de suas funções.

(4) Postas lado a lado, as duas polícias estaduais exponenciam suas respectivas disfuncionalidades, em vez de as reduzirem, por efeito de cooperação e mútua complementação.

(5) O Ministério Público não exerce o controle externo da atividade policial, seu dever constitucional. Os casos de brutalidade policial letal (no estado do Rio de Janeiro, entre 2003 e 2022, 20.791 pessoas foram mortas por ações policiais, e menos de 10% dos casos suscitaram denúncias do MP), corrupção (como sistema de promiscuidades e acordos padronizados e permanentes, não como desvios de conduta individuais e eventuais), abusos diversos -com inegável viés racista- e descumprimento de finalidade atingiram níveis inaceitáveis, em muitos estados, e não têm provocado reações à altura por parte dos MPs estaduais.

(6) As condições de trabalho sobretudo de agentes e praças não são, via de regra, compatíveis com sua importância e a magnitude dos riscos envolvidos. O sofrimento psíquico tem levado à drogadição em larga escala e suicídios em números elevados, assim como o desgaste físico, resultante do segundo emprego (com frequência, informal e ilegal), tem concorrido para a queda de rendimento profissional.

Note-se que os itens iniciais se incluem entre as responsabilidades do Estado. Há outros temas estratégicos (intimamente ligados), ainda na esfera estatal:

(7) As perícias, cuja independência relativamente às polícias civis (e não só) tem de ser garantida e que necessitam de investimento em formação, tecnologia e condições de trabalho, além de convênios com universidades e institutos de pesquisa. Assinale-se que os homicídios dolosos são os crimes mais graves e vitimam aproximadamente 50 mil brasileiros por ano -marca escandalosa, seja pelo volume, seja por atingir desproporcionalmente a população negra. Enquanto isso, as taxas de elucidação, quando não simplesmente ignoradas, são baixíssimas. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, giram em torno de 12%, o que significa que 88% dos homicídios permanecem impunes.

(8) Finalmente, mas absolutamente crucial, é necessário focalizar, com senso de urgência, o sistema penitenciário. A Lei de Execuções Penais, não raro, é descumprida. Descumprir a lei é crime. Este permanece impune e não corrigido. As consequências são trágicas: não apenas pelas violações aos direitos elementares que o descumprimento implica, mas também porque reside no descontrole das unidades prisionais o fortalecimento de facções criminosas, sua liberdade de ação fora dos presídios e o impulso para suas manifestações sangrentas. Assim nasceu o PCC, em 1992, e essa foi a origem dos ataques recentes no Rio Grande do Norte. Não há como conter a criminalidade sem respeitar a lei no sistema penitenciário.

(9) O fortalecimento das facções decorre de múltiplos fatores, entre eles, e com destaque, da expansão veloz e contínua da população prisional, no contexto caracterizado pelo sistemático e continuado desrespeito à LEP. O contingente que mais tem crescido (saltando, no intervalo de pouco mais de dez anos, de 15% a cerca de 35% -entre as mulheres, são 62%) é aquele composto pelos condenados ou acusados (aguardando julgamento) por tráfico de drogas. Relatórios das Defensorias Públicas têm indicado que a maior parte deste subgrupo é formado por varejistas do comércio ilegal de substâncias ilícitas, presos em flagrante, frequentemente sem porte de arma, prática de violência ou laço orgânico com organização criminosa. São diaristas que combinam tarefas informais e ilegais, na busca do “ganho” cotidiano. Uma vez confinados em unidade prisional comandada por facção, negociarão sua sobrevivência ao preço de lealdade a ser prestada subsequentemente à saída da prisão, cinco anos adiante. Em resumo: o encarceramento em massa está contratando violência futura e entregando força de trabalho jovem aos agenciadores do crime. E o custo humano e material é tão gigantesco quanto irracional é esta dinâmica perversa. De que causas deriva este efeito? As mais imediatas estão sintetizadas na categoria “flagrante”. Aqui está um dos segredos de nossa debilidade, o nó que engata modelo policial inadequado e lei de drogas irracional. Vejamos por quê: a polícia mais numerosa, presente em todo o país, é a Polícia Militar. A instituição é pressionada por políticos, meios de comunicação, opinião pública e políticos a produzir, que ela decodifica como demanda por encarceramento. Para ser produtiva, precisa prender. Entretanto, à PM é vedada a investigação, segundo o artigo 144 da Constituição. O que fazer, sendo instada a prender, não podendo investigar? Prender em flagrante. Quais os crimes comumente passíveis de prisão em flagrante delito? Incidirão sobre eles o investimento das energias da segurança pública. Qual será, então, o principal instrumento da PM? A lei de drogas. Esta será aplicada na captura de transgressores para cumprir cotas e demonstrar efetividade. Sempre em flagrante. O grande tráfico -por exemplo, de cocaína-, que mobiliza bilhões de dólares ao redor do mundo, requer investigação para ser identificado, não se dá ao flagrante. Portanto, articulam-se o modelo policial -de que o Brasil é titular quase único no mundo- com nossa nefasta lei de drogas para promover o encarceramento, cuja voracidade e cujo foco (duas faces da mesma moeda, porque a escala decorre justamente do foco no varejo) tornam a aplicação da LEP e o controle do sistema penitenciário cada vez mais improváveis e desafiadores. Em outras palavras, urge desatar o elo entre o flagrante, o varejo, a política de drogas, o modelo policial e o crescimento veloz da população carcerária, se quisermos promover dois objetivos fundamentais: conter o fortalecimento das facções criminosas e recuperar milhares de jovens que poderiam perfeitamente ser integrados e que o país está empurrando para o crime e a morte. Se caírem no cárcere, no ambiente sem lei (sem LEP), estarão condenados, não à pena ditada pela Justiça, mas ao crime, no futuro, em nome da sobrevivência, no presente.

(10) Armas têm sido corretamente consideradas questão chave pelo governo federal, que tem se empenhado em reverter as decisões desastrosas do governo Bolsonaro. É consabido: mais armas acessíveis, mais crimes, mais acidentes, mais mortes, mais suicídios, mais violência doméstica, mais feminicídio, criminosos mais armados. Entretanto, seria indispensável ir além e organizar um mutirão nacional contra o tráfico de armas, mobilizando as instituições da segurança pública e fortalecendo o centro de investigação da PF, com recursos humanos, materiais e o estado da arte em tecnologia. Não faz sentido promover banhos de sangue em favelas, transformando-as em teatros de guerra para combater grupos armados. O objetivo obsessivo das forças de segurança deve ser a identificação das vias de alimentação dos arsenais criminosos.

Na sequência, menciono dois pontos em que se cruzam política e segurança pública, e que me parecem essenciais:

(11) O descrédito das instituições da segurança e da Justiça criminal sobretudo nos territórios vulneráveis não é novidade, nem foi produzido nos últimos anos. Pelo contrário, os aspectos regressivos, obscurantistas e autoritários que marcam o período mais recente na política é que, em boa medida, são tributários desse descrédito (tema ao qual dediquei um livro: O Brasil e seu Duplo [Todavia, 2019]). Uma reconstrução democrática que não seja fugaz e facilmente reversível terá de incluir um processo difícil, contraditório e complexo que talvez pudesse ser denominado repactuação (sempre com nuances locais e específicas) entre as polícias e as comunidades, em torno da comum rejeição ao racismo e ao patriarcalismo de viés violador. Serão necessárias coragem e criatividade, mas um movimento nesse sentido, embora pareça vago e abstrato, representaria um marco, um ponto de inflexão numa trajetória de afastamento progressivo e tensões crescentes. Pessoalmente, vivenciei duas experiências marcantes e positivas dessa natureza -embora descontinuadas em seus desdobramentos, fruto da descontinuidade política. Não creio que sejam apenas episódios fortuitos da memória privada. São ilustrações documentadas de boas práticas esterilizadas por fatores circunstanciais.

(12) Por fim, gostaria de me deter em breve reflexão sobre condições políticas que, hoje, limitam avanços, mas, paradoxalmente, podem impulsioná-los. Refiro-me à amplitude da coalizão que forma o governo Lula. É verdade que, em nosso país, confinaram-se aos guetos das esquerdas bandeiras como reforma policial e direitos humanos, repactuação antirracista e controle externo das polícias, redução do encarceramento e revisão da política de drogas. Contudo, esse confinamento e essa identificação ideológica não ocorrem em outros países, nem seria, por assim dizer, natural. Quem ignora o vínculo genealógico dos chamados direitos humanos com as tradições judaico-cristãs e com as revoluções burguesas nos Estados Unidos e na França, no século XVIII ? Quem negaria suas raízes liberais? O próprio Marx o reconheceu -aliás, criticamente. Na resistência à ditadura instalada em 1964, estiveram juntos operários, empresários, segmentos religiosos de extrações diversas. O que ocorre no Brasil é lamentável e tem empurrado para as franjas do sistema político e para o sectarismo algumas bandeiras absolutamente fundamentais para a dignidade humana e a democracia, bandeiras que poderiam e deveriam ser abraçadas por conservadores, liberais e progressistas, porque interessam a todos, mesmo que fossem valorizadas por perspectivas diferentes.

Desde os anos 1990, sustento, em minha militância pela reforma das polícias, da política de drogas e do sistema penitenciário, que a legalidade é nossa utopia. Se as polícias respeitassem a Constituição, a vida nas favelas sofreria uma verdadeira revolução. Se as polícias cumprissem a lei e respeitassem rigorosamente a dignidade dos cidadãos, de todas as raças e classes, em todos os espaços, a vida popular daria um salto de qualidade. Se as leis fossem cumpridas nos presídios (a LEP), haveria mudanças profundas, com amplas repercussões. É pedir demais que se cumpram as leis, que se admitam os limites legais? De que modo esse postulado confrontaria princípios liberais? Por que o legalismo contraditaria os princípios conservadores? E se, além do apreço à legalidade constitucional, conservadores e liberais aplicassem a racionalidade para avaliar, com isenção e objetividade, o que o Brasil está fazendo consigo mesmo, na chamada guerra às drogas -ou tolerando a brutalidade policial letal e estimulando o encarceramento em massa de jovens varejistas do mercado ilegal de substâncias ilícitas-, nós poderíamos construir uma nova e inusitada aliança (mas perfeitamente coerente e plausível) por um país melhor, menos desigual, violento e racista.

Quem melhor situado que Flavio Dino, ministro da Justiça do governo Lula, para liderar um movimento dessa natureza? Concluo, afirmando, convicto: uma iniciativa desse porte teria um impacto transformador, mesmo que não fosse imediatamente vitorioso.

Fraternalmente,

Luiz Eduardo Soares

Publicado originalmente no site Rede Estação Democracia (RED) 

Falcão e a falcatrua

 O laudo que revela a edição do filme que incriminaria Falcão

Juca Kfouri, Colunista do UOL, 25/10/2023

A perícia do Instituto de Criminalística de São Paulo sobre o episódio de importunação sexual de Paulo Roberto Falcão em relação à funcionária do hotel em Santos é clara: houve cortes no filme do aparato de segurança, embora fique clara, também, a entrada do acusado em local privativo.

Nem por isso permitiu-se à vítima esgotar as possibilidades de investigação, optando-se pelo arquivamento.

A vítima é pobre e não é branca.

O acusado é poderoso e é branco.

Aliás, fosse negro, provavelmente não encontraria tanta consideração.

Leia trecho do documento:

Chamou a atenção deste Relator que, durante a reprodução dos dois arquivos de vídeo, foram observados em diversos momentos cortes de trechos das imagens, caraterizados pela descontinuidade da linha temporal observada na estampagem do horário (hora - minuto - segundo) exibido no vídeo e posicionamento dos indivíduos observados nas cenas. Verificou-se que algumas interrupções ocorreram no momento em que o autor se encontrava na área interna da recepção, motivo pelo qual trechos de ações eventualmente ocorridos nestes intervalos não puderam ser visualizados. Durante os exames, observou-se que os vídeos apresentam taxa fixa de reprodução de 25 quadros por segundo, portanto, leves movimentações deveriam ser observadas de maneira continuada, diferentemente de alguns movimentos repentinos e bruscos observados nos trechos com cortes dos vídeos examinados. Desta maneira, não é possível afirmar que os diferentes posicionamentos seriam decorrentes de baixa taxa de reprodução.

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Filmes parte 35

A Caixa de Pandora, Die Büchse der Pandora, 1929, Georg Wilhelm Pabst

O Diabólico Barbeiro de Londres, Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, 1936, George King

Viver, Living, 2022, Oliver Hermanus 

Homens das Terras Bravas, The Badlanders, 1958, Delmer Daves

Dança com Lobos, Dances with Wolves, 1990, Kevin Costner

Portal do Paraíso, Heaven's Gate, 1980, Michael Cimino

A Ilha das Maldições, Island of Doomed Men, 1940, Charles Barton

O Siciliano, The Sicilian, 1987, Michael Cimino

Napoleão, Napoléon, 2002, Yves Simoneau

Pistoleiro da Justiça, The Master Gunfighter, 1975, Tom Laughlin

Era uma Vez em Tóquio, Tôkyô monogatari, 1953, Yasujirô Ozu

Kruty 1918, 2019, Aleksey Shaparev

Camaleões, Reptile, 2023, Grant Singer

Na Solidão do Inferno, The Capture, 1950, John Sturges

Cavaleiros de Ferro, Aleksandr Nevskiy, 1938, Sergei Eisenstein & Dmitriy Vasilev

Ricardo: Coração de Leão, Richard the Lionheart, 2013, Stefano Milla

Retour à Séoul, 2022, Davy Chou

A World of Calm, Série de TV, 2020, Ben Devlin&Karen McGann&Daniel M. Smith&Nic&Stacey&Emma Webster 

Maomé - O Mensageiro de Alá, The Message, 1976, Moustapha Akkad

Baile perfumado, 1996, Paulo Caldas & Lírio Ferreira

Central do Brasil, 1998, Walter Salles

A Arma Divina, Diamante Lobo, 1976, Gianfranco Parolini

A Bailarina, Ballerina, 2023, Chung-Hyun Lee (Netflix)

Lydia Bailey, A Feiticeira do Haiti, Lydia Bailey, 1952, Jean Negulesco

O Espião que Saiu do Frio, The Spy Who Came in from the Cold, 1965, Martin Ritt

Raymond & Ray, 2022, Rodrigo García

Arroz Amargo, Riso amaro, 1949, Giuseppe De Santis

O Túnel de Pombos, The Pigeon Tunnel, 2023, Errol Morris

Surrounded, 2023, Anthony Mandler (Prime vídeo)
 

07/09/23
A Caixa de Pandora, Die Büchse der Pandora, 1929, Georg Wilhelm Pabst

No iutubi aqui

Louise Brooks 

A CAIXA DE PANDORA (1929), por RITTER FAN, 17 de outubro de 2018

Existem muitos filmes com elencos maravilhosos, alguns com atores ou atrizes de enorme destaque dentro de sua estrutura e um punhado em que esse ator ou atriz se torna sinônimo da obra que estrela. E, finalmente, existe Louise Brooks em A Caixa de Pandora.

Exagero? Nem de longe. Brooks não só representa a mítica primeira mulher humana criada por Éfeso por ordem de Zeus, conforme a mitologia grega, como ela simplesmente é a essência da obra do austríaco G.W. Pabst, considerado um dos grandes exemplares da filmografia da era da República de Weimar, na Alemanha. Seus pares, porém, são, majoritariamente, filmes expressionistas como os sensacionais O Gabinete do Dr. Caligari, O Golem e Metrópolis que, porém, simplesmente não “casam” com A Caixa de Pandora em termos estilísticos. Aqui, o trabalho de Pabst camba muito mais para um realismo lírico, diria até onírico, mas ancorado em uma pegada niilista, representada pela “abertura da caixa” – no caso a própria Pandora – que solta todos os males no mundo, restando, apenas, a esperança.
Mas, mais importante do que deixar suas expectativa em xeque sobre o que esperar do filme, é apreciar Lulu, o nome de Pandora na obra, vivida por Louise Brooks. 

Quem é exatamente Lulu? Pela forma como ela é introduzida, no apartamento de seu amante, mas recebendo um senhor mais velho e maltrapilho que ela apresenta como seu “primeiro patrono”, é razoável concluir que ela é uma cortesã, ou, em português claro, uma prostituta. Mas será mesmo? O roteiro de Ladislaus Vajda, baseado em duas peças teatrais de Frank Wedekind, não é explícito, mas também não esconde nada. Ele joga para nossa interpretação, algo que Pabst sabiamente também mantém no ar pela forma como ele enquadra Lulu e, especialmente, pela maneira como Brooks a vive. Sim, ela diz que Schilgolch (Carl Goetz) é seu pai em determinado ponto, mas isso em nada altera o raciocínio de que ele poderia ser seu pai e mais do que isso, não é mesmo?

A partir desse ponto introdutório sensacionalmente dúbio, há uma sucessão de escolhas feitas por Lulu, mas também por seu amante Ludwig Schön (Fritz Kortner), com remorso por ter que largá-la para casar, que levam a situações cada vez mais graves e complicadas, com os três primeiros atos (o filme é explicitamente dividido assim) lidando com o que poderíamos chamar de ascensão de Lulu e os demais com sua inevitável e vertiginosa queda. 

Nessa trajetória, em termos narrativos, o filme não é particularmente diferente ou sensacional. O que o torna algo memorável é mesmo Louise Brooks.
A atriz americana era o que se pode chamar de “espírito independente”, tendo largado Hollywood e bandeado-se para a Europa, sob as asas de Pabst, o que lhe garantiu, em retrospecto, a verdadeira imortalidade artística, algo que provavelmente não conseguiria em seu país natal, pelo menos não de forma comparável. E essa imortalidade veio já com A Caixa da Pandora, seu primeiro filme do outro lado do oceano, ainda que a recepção da obra tenha sido alquebrada, com inúmeras versões dela sendo distribuídas para diferentes países, algumas levando à sua incompreensão pelos críticos, notadamente os americanos. A versão “média”, considerada como a versão do diretor, é a que foi objeto da presente crítica e ela revela uma história sólida, com claro começo, meio e fim e um movimento clássico de ascensão e queda da protagonista. 

Mas o que realmente interessa é a mistura de inocência, libidinosidade, ambição, esperteza e generosidade que atravessa o rosto e a expressão corporal de Brooks, mas sem que ela nunca pareça estar fazendo sequer um iota de esforço para atuar. Em poucas palavras, o que ela faz no filme chega a ser desconcertante de tão perfeito, com a atriz no comando diria até incomum das sequências em que aparece (praticamente todas), não deixando espaço para mais ninguém sequer ameaçar sua presença de palco, algo que Pabst percebe muito bem e manobra de maneira precisa em seus enquadramentos.
É curioso notar, porém, como mesmo a atuação de Brooks teve uma recepção fria originalmente, com críticos afirmando, ao contrário, que ela simplesmente fazia o que hoje chamaríamos de “cara de paisagem”. 

Essa visão, porém, ao longo das décadas, evoluiu muito e Brooks foi reconhecida pelo que ela faz aqui, ajudada pelo seu corte de cabelo característico – que ela já usava nos EUA, influenciando inclusive outras atrizes e criando moda – e sua postura ao mesmo tempo assertiva e dependente, com toques de manipulação. Por isso é que a dubiedade do roteiro sobre a natureza de Lulu é preservada também ao longo da película. Brooks, em seu papel, pode ser encarada tanto como uma serpente (a do Paraíso e a literal) quanto um anjo flutuando de acordo com a direção do vento e até mesmo alguém cruelmente manipulada. Podemos ver Lulu como um símbolo feminino muito além de seu tempo, mas também podemos vê-la como a “princesa em apuros” que precisa fiar-se em um homem para estabelecer-se e essa interpretações, estranhamente, não são excludentes e muito menos maniqueístas. Além disso, para um filme de 1929, há um subtexto homossexual muito presente e encapsulado pela presença “masculinizada” de Alice Roberts, como a Condessa Augusta Geschwitz, sempre vestida de terno ou fraque e claramente apaixonada por Lulu, paixão essa que, se não é correspondida na mesma moeda, ganha pelo menos alguma receptividade ou – se assim quisermos ver – é usada para dar cabo dos interesses de Lulu.

Pabst, como disse, sabia o que tinha diante de sua câmera e ele a rege com sua mira em Brooks, obtendo, com isso, o melhor efeito possível e transformando completamente seu filme que, de outra maneira, poderia passar despercebido. Mas calma, pois com isso eu de forma alguma quero colocar em dúvida a técnica de Pabst. Seria muita pretensão e cegueira minha. Muito ao contrário, o mero fato de o diretor ter identificado essas qualidades em Brooks com mais precisão do que qualquer outro diretor antes dele já começa a separar o joio do trigo. Mas há mais. As composições cênicas dele não são menos do que espetaculares também. Isso fica evidente, principalmente, nas sequências em que ele trabalha com uma quantidade grande de extras em cena, particularmente na première da peça musical que tem Lulu como estrela e na festa de casamento de Schön. Os planos-sequências longos são de tirar o chapéu, com um coreografia de bastidores que remete ao trabalho titânico de D.W. Griffith em Intolerância, mas em escala bem menor, claro.

No entanto, talvez Pabst tenha caído em sua própria armadilha e, ao querer mostrar muito, mostrou demais. Cada uma das duas sequências acima é longa, indo muito além do necessário para enquadrar narrativa a questão sendo abordada. E, na segunda metade da projeção, essa situação torna-se ainda mais evidente, já que, tematicamente, as novidades desaparecem e o diretor acaba repisando assuntos que clamam por mais economia. Isso é particularmente claro na sequência da jogatina dentro de um navio e, depois, nos momentos que antecedem a introdução de Jack, o Estripador (aliás, só para deixar bem claro, tudo o que acontece após a entrada desse personagem, vivido por Gustav Diessl, é fenomenal). 

É como ver um carro patinando, sem sair do lugar, o que empresta uma lerdeza à narrativa que pode cansar o espectador que não estiver completamente imobilizado em seu assento pela atuação hipnótica de Brooks. Não há, infelizmente, um corte sequer de A Caixa de Pandora que resolva esse problema. Ao contrário, todas as alterações feitas (pelo menos as que tive oportunidade de conferir) não só não resolvem essa questão, como criam ou agravam outras.
Com isso, a duração não tão exagerada assim do corte do diretor, de 133 minutos, acaba demorando mais do que o comum para passar e tem sua fluidez levemente interrompida por momentos que se alongam no tempo sem efetivamente trazer algo que beneficie a construção narrativa. Ainda são momentos para serem admirados pela técnica de Pabst, notadamente, como já mencionei, as sequências com muitos atores e extras em cena, mas elas acabam servindo de freio para uma obra que, de outra forma, essencialmente graças a Brooks, poderia ser perfeita.

A Caixa de Pandora é um daqueles filmes essenciais para qualquer cinéfilo que se preze, gostando ou não do resultado. É um dos raros exemplares audiovisuais em que a atriz não só se confunde com a protagonista e com o que ela representa, mas também em que essa fusão é tão integral que o próprio filme em si é a atriz. Louise Brooks é Lulu, Pandora, a caixa, tudo o que sai da caixa e, finalmente, também A Caixa de Pandora, apagando – ou talvez minimizando, só pela minha deferência à Pabst – todas as demais considerações.


08/09/23
O Diabólico Barbeiro de Londres, Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, 1936, George King
No iutubi aqui 

Na Inglaterra Vitoriana, o ardiloso Sweeney Todd (Tod Slaughter) fica à espreita a cada navio que chega ao porto de Londres, atraindo marinheiros e passageiros incautos à sua barbearia. Todd promete muito mais do que apenas cortes de cabelo e barba aos clientes… Depois de se certificar que ninguém notará o desaparecimento da vítima, ele degola o cliente para roubar-lhe as posses. Ao lado da barbearia, sua cúmplice, encarregada de sumir com os cadáveres, vende as tortas mais gostosas da vizinhança. Cineplayers 

George Dibdin-Pitt (1799-1855)

Outra versão
Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, 2007, Tim Burton


10/09/23
Viver, Living, 2022, Oliver Hermanus 

Bill Nighy, 1949

LIVING (2022), Ensina-me a morrer. Por RITTER FAN 10 de março de 2023

Em 1952, seguindo o sucesso de Rashomon e o fracasso de O Idiota, Akira Kurosawa dirigiu um de seus filmes mais emotivos e mais bonitos. Apesar de Viver (Ikiru) não ser imediatamente lembrado como um de suas grandes obras, a grande verdade é que ele mostra a impressionante versatilidade do cineasta que, logo depois de adaptar Fiódor Dostoiévski, partiu para levar para as telonas uma versão esperançosa da lancinante e espetacular novela A Morte de Ivan Ilich, de Lev Tolstói, no processo criando outro longa memorável de sua prolífica carreira. E eis que 70 anos depois, o longa ganha uma refilmagem – não exatamente a primeira, eu sei – com ambientação de época na Londres dos anos 50 em regime de coprodução entre Reino Unido, Japão e Suécia, com roteiro de ninguém menos do que o romancista nipônico Kazuo Ishiguro, autor de, dentre outras obras, Vestígios do Dia e Não Me Abandone Jamais, e estrelada por Bill Nighy.

O primeiro grande acerto do remake é justamente não fazer o que Kurosawa fez em 1952, ou seja, ambientá-la em tempo presente. Não que Kurosawa tenha errado ao manter a produção na época em que foi feita, longe disso, mas se Ishiguro tivesse feito o mesmo agora, com o longa se passado em 2022, o efeito da história seria potencialmente muito diferente, pois a narrativa central de Ikiru simplesmente não me parece combinar com o frenesi tecnológico atual. Para firmar de imediato a obra nesse período, Oliver Hermanus faz uso da razão de aspecto padrão da época, ou seja, 1:33:1, mais quadrada, o que pode causar estranhamento para alguns pouco acostumados com ela, mas que, casada com sequências que parecem tiradas de filmagens da época, cria a mistura perfeita para imediatamente no mínimo aguçar a curiosidade do espectador.

E, claro, o segundo grande acerto da produção foi a escalação de Bill Nighy para viver o fechado, sério, sisudo e fleumático Sr. Rodney Williams, chefe de um pequeno grupo de funcionários do conselho da cidade de Londres, responsável, dentre outros, pelas autorizações necessárias para edificações. Nighy, apesar de talvez ser mais lembrado por papeis mais leves, com aquela veia cômica britânica clássica, entrega um perfeito burocrata que vive seus dias há décadas exatamente da mesma maneira e que, em um (não tão) belo dia, recebe o diagnóstico de que tem câncer já em estado terminal, com alguns meses de vida apenas, uma escolha que, eu poderia muito facilmente afirmar, faz do ator a versão ocidental do grande Takashi Shimura vivendo o Sr. Kanji Watanabe em Viver. Apesar de sua idade, Williams não estava preparado para isso – quem está? – e quase que imediatamente percebe que passou suas décadas dentro dos estritos conformes que ele se impôs, sem realmente realizar nada de efetivo ao longo de toda sua carreira repleta de papeis e de negativas constantes.

Depois de pateticamente tentar viver a vida que lhe resta por meio de noitadas intermináveis repletas de bebidas, mulheres e gastação de dinheiro, Williams decide fazer um último – ou primeiro? – ato de teimosia e bondade: aprovar e construir um parquinho para crianças em um terreno baldio que uma trinca de mulheres vinha tentando obter autorização para fazer há bastante tempo. No entanto, como em Viver, essa abordagem, essa história não é contada da maneira usual, pois é nesse aspecto que o roteiro originalmente co-escrito por Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Oguni bebe mais diretamente de Tolstói, algo que, de sua maneira, Ishiguro repete em Living, permitindo, então, que o protagonista passe a ser o sujeito de comentários de seus colegas de trabalho em um interessante, mas talvez aqui muito célere, exercício narrativo.

Aliás, a velocidade do longa – consideravelmente mais curto que o original -, algo que “combina” com os dias imediatistas atuais, talvez seja também seu maior problema, ainda que, felizmente, não em relação ao Sr. Rodney Williams, já que Nighy tem tempo para construí-lo de maneira primorosa, em discretos, mas precisos incrementos que vão aos poucos derrubando a couraça aparentemente intransponível que o personagem construiu ao seu redor ao longo de décadas, com direito até mesmo a um trabalho que arrisca em inserir um sofisticado humor a algumas sequências dos dois primeiros terços da projeção. Mas a questão do tempo apertado atrapalha consideravelmente a abordagem dos personagens coadjuvantes, ambos da equipe de Williams, a jovem Margaret Harris (Aimee Lou Wood), prestes a mudar de emprego, e especialmente o recém-contratado e inexperiente Peter Wakeling (Alex Sharp).

Sob diversos aspectos, Wakeling pode até mesmo ser visto como protagonista, já que sua visão do Sr. Williams é o que funciona como enquadramento da narrativa, mas o personagem em si é vazio de qualquer outra qualidade que não seja sua relativa inocência em relação a praticamente tudo ao seu redor. A conexão dele com Williams – que fica evidente ao final – é, na melhor das hipóteses, forçada e, na pior, artificial e perdida em meio a uma outra história qualquer que não tem relação com o coração do que vemos se desenrolar na obra. Faltou uma distribuição temporal maior para que Alex Sharp pudesse desenvolver seu personagem para além da estereotipada “versão jovem de Williams, mas ainda passível de ser salvo”. Aimee Lou Wood tem mais sorte com sua Margaret Harris, já que a personagem serve, ainda que indiretamente, de catalisadora para a realização, por parte de Williams, do que ele vinha perdendo com seus anos e anos de sisudez extrema, ganhando um pouco mais de espaço quando ela passa a ser uma espécie de conforto – não vejo, ali, nenhum tipo de interesse romântico por quem quer que seja – ao velho burocrata. Mas mesmo Harris tem efeito e função limitadas, com uma inserção apenas funcional dentro do desenvolvimento narrativo e não exatamente orgânica.

Mas, assim como Ikiru, Living é uma lição de vida ou, talvez, uma lição de morte. Mesmo com seus problemas que o mantém distante da versão original em termos qualitativos, a obra de Oliver Hermanus é tocante e, mais ainda, é capaz de nos levar à contemplação sobre como conduzir nossa vida entre deixá-la passar passivamente ou arregaçar as mangas para pelo menos tentar fazer algo que possa significar algo real para alguém que precisa, por menor que seja a ação.


12/09/23
Homens das Terras Bravas, The Badlanders, 1958, Delmer Daves

No iutubi aqui 

Os presidiários Peter Van Hook (Alan Ladd) e John McBain (Ernest Borgnine) ficam amigos na prisão. Soltos quase ao mesmo tempo, eles planejam dar um grande golpe juntos. Decididos a passar a perna no dono de uma rica mina de ouro, eles propõem um trato que não pretendem cumprir: 100 mil dólares em dinheiro vivo em troca de 200 mil dólares em ouro. O dono, que também pensava em passar a perna nos trapaceiros, aceita. Cineplayers


15/09/23
Dança com Lobos, Dances with Wolves, 1990, Kevin Costner

DANÇA COM LOBOS, por RITTER FAN, 28 de novembro de 2014

Dança com Lobos foi uma surpresa quando foi lançado em 1990. Ninguém esperava não só o sucesso de crítica, mas, principalmente, o sucesso de público que o primeiro filme dirigido por Kevin Costner alcançou, especialmente em se tratando de um épico de três horas em sua versão original, que ganhou quase uma hora a mais em sua versão estendida lançada um ano depois.

A grande verdade, porém, é que essa ambiciosa obra literalmente carregada nas costas por Costner, fala profundamente não só com o povo americano e sua história recente, com o massacre dos nativos, a exploração da “fronteira”, mas também de maneira universal com todos os povos, independente de nacionalidade. Há um tema maior, sempre presente por detrás da história de um soldado desesperançoso que se encontra ao fazer amizade com uma tribo Sioux, um tema que toca a todos nós, que é o significado da presença humana em nosso pequeno planeta azul. O ar de melancolia que perpassa Dança com Lobos traz à tona nossos sentimentos escondidos e dialoga com eles, desnudando verdades que são cada vez mais óbvias para nós. E talvez por isso o filme sobreviva tão facilmente por tanto tempo. Ele é cada vez mais atual, mais urgente, além de nos fazer voltar para um passado de não muito tempo atrás em que o abuso dessa rocha em que vivemos estava em sua infância.
Mas talvez esteja sendo um eco-chato aqui e normalmente não sou assim. Entendo a necessidade e a premência da evolução (para o bem ou para o mal), mas agradeço filmes como esse e diversos outros que nos fazem pausar e refletir. É brega e piegas? Talvez. Mas tenho para mim que não. Dança com Lobos é um filme honesto, bem feito e muito bem atuado, que merece a atenção de qualquer cinéfilo, além dos prêmios que amealhou (dentre os mais importantes,sete estatuetas do Oscar, incluindo de melhor filme, direção, roteiro e trilha sonora, além de três Golden Globes, de melhor filme dramático, roteiro e direção).

E Dança com Lobos ainda foi responsável por finalmente revitalizar o faroeste que, desde o começo da década de 80, perdera seu charme, voltando timidamente com Silverado (também com Costner, aliás), mas nunca realmente ganhando força. No entanto, talvez acima de tudo isso, a fita seja a obra de ficção que, até então, traria o mais honesto e profundo olhar sobre a população nativa americana que, apesar de sempre ter sido elemento essencial de filmes do gênero, só recebia tratamentos estereotipados ou pelo menos simplificados, unidimensionais e maniqueístas, com raríssimas exceções.
Michael Blake, que havia escrito o roteiro de Stacy’s Knights, um dos primeiros filmes com Costner, vinha tentando vender seu spec script (uma versão simplificada de um roteiro) de Dança com Lobos desde o começo da década de 80. Foi o próprio Costner que, vendo futuro no material, sugeriu a Blake que escrevesse um romance baseado em sua ideia e ele assim o fez, somente para ver o fruto de seu trabalho rejeitado repetidas vezes até ser publicado em 1988. Costner, então, adquiriu os direitos sobre a obra e partiu para a produção, resultando em um filme fotografado quase que integralmente na Dakota do Sul, com algumas sequências no Wyoming.

O escopo épico da fita pode ser resumido em apenas uma majestosa e desde já clássica sequência, banhada pela bela trilha sonora de John Barry: a caçada aos tatanka (como são chamados os bisões – ou búfalos americanos – em lakota, língua nativa dos Sioux). Lembram-se da sequência do estouro dos gnus em O Rei Leão? Pois bem, é algo como aquilo, só que ainda maior e, claro, em live action, sem uso de efeitos especiais. E o prenúncio dessa sequência já traz um dos elementos recorrentes do filme, que é a destruição da natureza pelos invasores brancos, ao vermos dezenas de bisões sem o couro e as línguas mortos na pradaria, com a carne apodrecendo. Ao testemunharmos, não muito tempo depois, os bisões aos milhares – filmados durante um estouro de verdade de uma manada gigantesca no meio-oeste americano, com Costner efetivamente galopando – enxergamos a esperança, ainda que saibamos que ela é efêmera. Só que essa montanha-russa de sentimentos continua e a conclusão parece ser mesmo a de “luz no fim do túnel”, pois, historicamente, os bisões foram quase extintos pela ação humana nos Estados Unidos e só depois de muito esforço de proteção ao longo de décadas é que as manadas voltaram e a presença delas no filme nos lembra disso, da capacidade humana de fazer o bem, de reverter situações quase irreversíveis.

No entanto, o que realmente chama atenção é como Costner transita bem entre momentos como esse, com fotografia com memoráveis planos abertos do prolífico Dean Semler, até planos médios e close-ups da intimidade dos indígenas em suas pequenas ocas. E, quando o filme passa a abordar os costumes da tripo Sioux na fronteira americana, depois de uma longa e pessimista introdução, em que vemos o tenente John J. Dunbar (Costner) tentando o suicídio de maneira espetacular depois que percebe que perderá a perna durante a Guerra Civil, com o personagem aos poucos entendendo seu lugar no mundo e descobrindo quem de verdade ele é, a palavra que vem à mente e uma que é mencionada por Dunbar durante a projeção: harmonia.

Essa harmonia nos faz entender o porquê de Dunbar (que nos representa) ter ficado maravilhado com o que se deparou no desolado Forte Sedgewick, para onde pede para ser mandado depois que seu “suicídio” o transforma em herói: os nativos vivem da terra e para a terra. Eles estão em perfeito equilíbrio com a natureza, caçando para sobreviver e se aproveitando o máximo do ambiente, com uma organização mais eficiente até que a militar.

Uma das críticas que se faz ao filme é que a retratação dos Sioux como “mocinhos” e dos Pawnee como “vilões” é maniqueísta, além de historicamente errada, já que os Sioux foram mais poderosos que os Pawnee. Sim, talvez seja maniqueísta, mas somente à primeira vista, pois o roteiro mostra o lado “sombrio” dos Sioux de maneira muito evidente, como quando a carroça dos caçadores brancos de bisões é vista por Dunbar na taba e a tribo toda festeja a morte dos homens brancos, com a orgulhosa exibição dos escalpos. Há sadismo e raiva ali. O mesmo vale para a reação inicial de todos em relação a Dunbar – sempre violenta – especialmente no caso de Wind is His Hair, vivido de maneira convincente por Rodney A. Grant. Sobre correção histórica, a resposta é simples: Dança com Lobos por vezes até parece ser, mas não é um documentário.

Outro aspecto sempre mencionado como negativo é a conveniente presença de uma branca no meio dos indígenas, Stands With a Fist, vivida pela sempre bela Mary McDonnell. No entanto, casos de sequestro de mulheres brancas eram comuns no oeste bravio, um desses casos até tendo servido de inspiração para um dos maiores expoentes do gênero, Rastros de Ódio. Assim, além de ser um elemento historicamente correto, a inclusão da personagem funciona como um forma de tornar crível para os espectadores a relação de Dunbar com os Sioux, sem que ele tenha que milagrosa e instantaneamente aprender a língua ou se tornar o Marcel Marceaux da fronteira.

A versão estendida do filme, que não contou com o envolvimento de Costner e, por isso, não pode ser chamada de “corte do diretor”, consegue mergulhar mais a fundo ainda na cultura Sioux, dando-nos tempo para absorver cada aspecto que nós é apresentado. É um tour de force, sem dúvida, pois eleva a já longa experiência cinematográfica para 4 horas. No entanto, diferente de muitas versões estendidas por aí, a inclusão desses 55 minutos extras não esmorecem a narrativa. Ao contrário, a tornam mais rica ainda. Particularmente, gosto igualmente das duas, mas, se tivesse que escolher, ficaria com a versão estendida, mesmo sem ela ter a benção do diretor.

Dança com Lobos é um filme que, apesar da trama central ser batida (a eterna releitura da história de Pocahontas), surpreende pelo conjunto composto pelo visual embasbacante, a trilha sonora arrebatadora, a direção eficiente de Costner, além de um elenco azeitado, que nos convence de cada papel, mesmo os mais caricatos e vilanescos. E, talvez o mais importante: ele nos faz refletir.

16/09/23
Portal do Paraíso, Heaven's Gate, 1980, Michael Cimino

O PORTAL DO PARAÍSO (Heaven’s Gate) – OBRA-PRIMA OU DESASTRE CINEMATOGRÁFICO?

Falando de “Os Brutos Também Amam”, a crítica Pauline Kael afirmou que “os westerns são melhores quando não têm tanta pretensão de importância”. Pode-se deduzir da frase de Kael que quanto mais rebuscado for um faroeste mais ele se distanciará da realidade do Velho Oeste, ainda que fortunas sejam gastas para recriar um pseudo-realismo que acaba soando empostado. Esse parece ser o mal maior de “O Portal do Paraíso” (Heaven’s Gate), filme de 1980 dirigido por Michael Cimino, concebido por seu autor para ser um portentoso faroeste, o melhor de todos mesmo.

O fracassado lançamento - Fontes divergentes indicam que "O Portal do Paraíso" custou ao redor de 40 milhões de dólares para um orçamento inicial de sete e meio milhões de dólares. A um custo diário superior a 100 mil dólares, o filme levou dez meses em produção em locações no Glassier National Park, em Montana e um período adicional para filmagem do prólogo, em Oxford na Inglaterra, que consumiu mais três milhões e meio de dólares. A título de comparação, “Cavaleiro Solitário” (Pale Rider), de Clint Eastwood, produzido cinco anos depois, custou sete milhões de dólares e rendeu 42 milhões de dólares, sendo rodado em 30 dias. Os problemas de “O Portal do Paraíso” continuaram com seu apressado lançamento em novembro de 1980, a tempo de concorrer ao Oscar daquele ano. Lançado inicialmente com metragem de 219 minutos, o filme mal alcançou um milhão e trezentos mil dólares na primeira semana de exibição, o que muito se deve às resenhas negativas dos críticos. Liderados por Vincent Canby, do jornal ‘The New York Times”, a crítica quase unanimemente destruiu a reputação do filme, afugentando o público. Canby encerra sua resenha datada de 19 de novembro afirmando que “O Portal do Paraíso é algo bastante raro em filmes hoje em dia, pois é um desastre absoluto”. O diretor Michael Cimino pediu então à United Artists que retirasse “O Portal do Paraíso” de exibição para que sob sua supervisão o filme fosse reeditado. A nova versão foi encurtada em inacreditáveis 70 minutos e reapresentada meses depois, sendo exibida com a duração de 149 minutos. Essa versão reduzida tornou o filme incompreensível e novas e massacrantes críticas contribuíram para o fracasso total de “O Portal do Paraíso”. O então encurtado faroeste de Michael Cimino teve uma receita de mais dois milhões de dólares, totalizando três milhões e trezentos mil dólares e um monumental prejuízo de quase 40 milhões de dólares à United Artists.

Faroeste apocalíptico - Apó o sucesso obtido com “O Franco Atirador”, Michael Cimino era visto como a nova sensação de Hollywood e a United Artists lhe deu completa liberdade artística para filmar o roteiro de sua autoria intitulado “Heaven’s Gate”. O perfeccionismo do diretor durante as filmagens implicava em novos gastos e parecia não ter limites, como numa cena filmada com Kris Kristofferson acordando de um porre. O ator teve que repetir 52 vezes a tomada que na tela dura quatro ou cinco segundos. Diariamente Cimino, vociferando insultos demitia algum técnico e mesmo atores. Willem Dafoe foi um deles, podendo ser visto apenas na versão de 219 minutos e mesmo assim sempre em segundo plano, resultado de não aceitar o despotismo de Michael Cimino. Más línguas comentam que dos 40 milhões de dólares gastos na produção, metade foram gastos em cocaína consumida aberta e exageradamente durante as filmagens. O mesmo se falou de “Apocalypse Now”, acidentado e dispendioso filme de Francis Ford Coppola, que, diferentemente do faroeste de Michael Cimino, foi imediatamente saudado como obra-prima, status que mantém 32 anos depois de filmado. O faroeste era um gênero em baixa desde o início dos anos 60 e acreditou-se que o fracasso de “O Portal do Paraíso” decretou a morte do faroeste no cinema. De fato, os fãs de westerns tiveram que esperar até 1985 para matar a saudade de um bom faroeste. Nesse ano foram produzidos “Cavaleiro Solitário”, de Clint Eastwood e “Silverado”, de Lawrence Kasdan.

A estrela era Cimino - Um filme tão caro como “O Portal do Paraíso” teve um elenco composto por artistas do segundo escalão, mesmo um deles alcançando o estrelato mais tarde, no caso de Jeff Bridges. Jane Fonda, que era a grande estrela de Hollywood, foi cogitada pela United Artists para o principal papel feminino, recusando-o porém. Michael Cimino nunca se preocupou com a falta de um ou dois nomes fortes no elenco de seu filme pois a estrela maior deveria ser, sem qualquer concorrência, seu delirante diretor. Kris Kristofferson, Christopher Walken, Sam Waterston, Brad Dourif, John Hurt e outros nunca chegaram a ser astros de primeira grandeza. Quanto à atriz francesa Isabelle Huppert, esta foi a mais infeliz e equivocada das escolhas de Cimino. Kris Kristofferson (aos 44 anos) e John Hurt (aos 40 anos) aparecem interpretando os rapazes recém-formados em Harvard no prólogo do filme. Certo que James Stewart e John Wayne, respectivamente aos 52 e 53 anos interpretaram jovens de menos de 30 anos em “O Homem que Matou o Facínora”. Mas Stewart e Wayne eram nomes capazes de levar público ao cinema, tanto que o western de John Ford, mesmo sem ser um campeão de bilheterias, deu lucro a seus produtores.

Cannes e a Framboesa de Ouro - Enquanto nos Estados Unidos “O Portal do Paraíso” sofreu forte campanha negativa da imprensa, na França ocorria o inverso. Os críticos franceses saudaram o western de Cimino como um dos grandes filmes do ano, cotadíssimo para receber a Palma de Ouro no Festival de Cannes. O júri preferiu dar o prêmio ao hoje esquecido “Homem de Ferro”, do polonês Andrzej Wajda. Eram os tempos de Lech Walesa e o filme de Wadja era de cunho notoriamente político, enquanto “O Portal do Paraíso” fazia sim referências políticas, mas a um episódio ocorrido 90 anos antes no Wyoming, a chamada “Johnson County War”. Há quem veja referência subliminar ao massacre de My Lai ocorrido em 1968 no Vietnã. Em 1981 aconteceu a segunda edição do hoje conceituado e até bastante disputado primo inverso do Oscar, o ‘Golden Raspberry Award’ (Framboesa de Ouro), criado para premiar os piores filmes do ano nos Estados Unidos. “O Portal do Paraíso” concorreu nas categorias de pior filme, pior diretor, pior roteiro, pior score musical e pior ator (Kris Kristofferson). Acabou ficando com o 'Golden Raspeberry de Pior Diretor' para Michael Cimino. Na premiação do Oscar, “O Portal do Paraíso” concorreu apenas a Melhor Direção de Arte (cenários), que perdeu para “Os Caçadores da Arca Perdida”. Mesmo sendo um filme fracassado, “O Portal do Paraíso” jamais foi esquecido, talvez mesmo por uma questão de peso na consciência de tantos quantos sabiam que havia algo de injusto para com o épico de Cimino. A redenção estava a caminho.

‘Obra-prima absoluta’ - Pelo menos um crítico importante, Robin Wood, destoou da maioria, em 1981, dizendo que o filme de Cimino em sua versão de 219 minutos era “um dos mais autenticamente inovativos filmes norte-americanos”. O também muito respeitado Philip French, nos anos 90, surpreendia colocando “O Portal do Paraíso” entre seus Top-Ten Westerns, assim como havia feito Robin Wood. Outro conceituado crítico, David Thomson, e o cineasta Martin Scorsese eram outros que sempre lembraram das qualidades ignoradas de “O Portal do Paraíso”. A campanha desenvolvida por esses críticos fez com que o filme de Michael Cimino passasse pelos modernos processos de remasterização e fosse lançado em Blu-Ray. Mesmo diante dos argumentos de seus defensores, “O Portal do Paraíso” ainda encontra detratores como o crítico do ‘The Guardian’, que afirma ser “Heaven’s Gate” o pior filme da história do cinema. Projetado (em tela grande, claro), no Festival de Veneza de 2012 e no New York Festival Film, também deste ano, “O Portal do Paraíso” foi adjetivado desde ‘obra-prima absoluta’ até ‘uma das grandes injustiças da história do cinema’.

Luta de classes - A história escrita por Michael Cimino refere-se ao incidente ocorrido no Wyoming em abril de 1892 e que ficou conhecido como “The Johnson County War”. No filme a ação se passa durante três dias de 1890 com a chegada do delegado federal James Averill (Kris Kristofferson) ao condado de Johnson. Lá a associação dos pecuaristas planeja, com a autorização do governo federal, se defender contra imigrantes que estariam roubando cabeças de gado de seus rebanhos. Averill se posiciona contra a associação dos criadores que então contrata 50 mercenários para assassinar 125 imigrantes cujos nomes fazem parte de uma lista que chega às mãos de Averill. O líder dos grandes proprietários de terra é Frank Canton (Sam Waterston) e seu principal regulador (contratado para matar) é Nathan D. Champion (Christopher Walken). Averill e Champion gostam da mesma mulher, Ella (Isabelle Huppert) a dona do prostíbulo local. Ella aceita dinheiro ou gado roubado como forma de pagamento e por isso é incluída na lista entre os 125 nomes marcados para morrer. Os imigrantes se unem e se armam e para enfrentar os homens de Canton numa batalha violenta da qual Averill também participa ao lado dos perseguidos imigrantes.

Senhores da terra, senhores da lei - O que muito prejudica “O Portal do Paraíso” é seu roteiro confuso repleto de incoerências. Nunca é explicado o que leva um ex-aluno de Harvard, com brilhante futuro, a se embrenhar pelo Wyoming para defender imigrantes do Leste Europeu que mal falam Inglês. Menos clara ainda é a ambígua relação de amizade entre Champion e Averill, que se conhecem há mais tempo mas não se sabe exatamente de onde. Nunca é esclarecido o que faz também Billy Irvine (John Hurt), outro formando de Harvard, no Wyoming , uma vez que se sabe que Irvine conheceu Paris a ponto de amar a Cidade-Luz. O western de Cimino toca num fato incomum aos faroestes que é mostrar a etnia pouco conhecida de gente que imigrou para o Oeste norte-americano, entre eles russos, ucranianos e búlgaros. E o consequente conflito gerado por aqueles que se julgam senhores absolutos das terras e das próprias leis. Frequentadores de um local de diversão chamado ‘Heaven’s Gate’, que avisa que ali passarão ‘A Moral and Exhilarating Experience’ (uma emocionante experiência moral) os imigrantes se divertem rodopiando sobre patins ao som de canções da mais pura música country e não de mazurcas, como se poderia imaginar. Apostam também em rinhas de galo e curiosamente nunca se debruçam no enorme balcão do bar para beber, o que seria natural. Os imigrantes gostam de sexo com as prostitutas do bordel da região e para isso usam como moeda até mesmo gado que lhes poderia saciar a fome.
“I love Paris” - Cimino criou desnecessariamente um triângulo amoroso envolvendo personagens centrais da trama, ou seja, o delegado Averill, a cafetina Ella e o mercenário Champion. 

Mas a intenção do roteiro nunca funciona a contento e não integra os personagens na história. A diferença de classe entre Averill e Champion, aquele rico, este a soldo dos poderosos, parece provocar uma admiração recíproca demonstrada quando Champion coloca o chapéu do rival e exclama “Averill tem muita classe”. E Ella, que fica nua em muitos momentos do filme, não demonstra possuir personalidade suficiente para administrar um bordel e menos ainda para controlar dois homens embrutecidos como os dois que a disputam. Com o visível propósito de ser um filme de arte, nada melhor que colocar na tela as sofridas expressões dos tantos russos em close-up, como se fossem heróis revolucionários. Essas imagens, porém, se perdem no desenvolvimento inconsequente das manifestações daqueles homens. Reunidos no ‘Heaven’s Gate’, fica-se a esperar pelo grande momento do imigrante vivido por Brad Dourif (Eggleston), o que não acontece. O ilógico discurso de formatura do personagem de John Hurt em Harvard tem mais sentido que as frases por ele ditas durante o filme, entre elas “Filho-da-puta sempre foi a expressão favorita neste país”, ou pior ainda, em meio a centenas de tiros disparados de todos os lados durante a batalha de Johnson County, Hurt diz surrealisticamente “No ano passado, nesta época, eu estava em Paris. Eu amo Paris”.

David Mansfield e Vilmos Szigmond - E “O Portal do Paraíso” é absurdamente longo com seu desnecessário prólogo e valsa nos jardins de Harvard (Oxford). Mais apropriada e lírica mesmo é a cena de patinação no ‘Heaven’s Gate’ ao som do violino e da banda country do chaplinesco David Mansfield que alegra os imigrantes do Leste Europeu. Esse fordiano momento é belíssimo e tocante, prejudicado porém com a sequência com o salão estranhamente esvaziado para que o casal Averill e Ella dancem romanticamente. A música de David Mansfield foi um achado para o filme tornando-o singelo e poético em muitas sequências magistralmente fotografadas por Vilmos Szigmond. A atmosfera exigida para o filme muitas vezes prejudica a ação, com os excessivamente nevoentos exteriores ou enfumaçados interiores e a luz sempre difusa no tom sépia que foi moda naquele período do cinema norte-americano. Foi assim em “Esta Terra é Minha”, de Hal Ashby e em “Honkytonk Man”, de Clint Eastwood, filmes também passados em poeirentas cidades do interior sem, no entanto, prejudicar o reconhecimento dos personagens como em “O Portal do Paraíso”.

Adeus em meio às chamas - A sequência da batalha é o ponto alto do filme. Sabe-se que para filmá-la o mais realisticamente possível, diversos cavalos foram atingidos por explosivos, muitos vindo a morrer. A partir das denúncias do sofrimento e sacrifício dos animais a legislação específica passou a exigir que em todos os filmes que envolvessem animais expostos a perigo houvesse a presença da fiscalização por parte daquele órgão. Uma sequência importante para o filme, como a morte de Nat D. Champion, chega a provocar risos. Nela o personagem de Christopher Walken inalando fumaça dentro de um casebre em chamas se mantém calmo o suficiente para escrever um bilhete completo. Tão completo que é assinado com o nome inteiro não faltando nem mesmo o ‘D.’ enquanto as chamas devoram o local em que Champion está. E a sequência final do tiroteio entre Averill, Bridges (Jeff Bridges) e Ella contra os homens de Canton é fraca, beirando a pieguice quando Averill ergue lentamente Ella nos braços. A moça veste um apropriado vestido branco para melhor destacar as manchas de sangue.

Talento sem inspiração – Em 1979 Jeff Bridges já havia demonstrado em inúmeros filmes seu talento como ator, no entanto após ser dirigido três vezes por Sam Peckinpah, Kris Kristofferson parecia ter mais prestígio que Bridges naquele momento. A escolha de Kristofferson foi um erro pois, embora ele tenha tido atuação razoável em “O Portal do Paraíso”, Jeff Bridges teria dado uma dimensão infinitamente maior ao personagem ‘James Averill’. A descontinuidade das sequências e a pobreza de muitos diálogos impediram que bons atores como Brad Dourif e Christopher Walken tivessem melhor presença. John Hurt, Sam Waterston, Geoffrey Lewis e Mickey Rourke estão positivamente caricatos. Estréia no cinema de Ronnie ‘The Hawk’ Hawkins que também não disse a que veio num filme em que a inconvincente Isabelle Huppert foi o maior dos equívocos do elenco formado por Cimino. Decididamente, rotular “O Portal do Paraíso” como obra-prima é um exagero, assim como exagero é taxá-lo de filme ruim. O western de Cimino é uma lição de cinema, lição que ensina que a busca da arte é um caminho difícil quando não são combinados talento e inspiração, mesmo adicionando-se muito dinheiro. 

O Portal do Paraíso’: ponto final da Nova Hollywood merece ser redescoberto 

Ivanildo Pereira | jul 8, 2016  

16/09/23
A Ilha das Maldições, Island of Doomed Men, 1940, Charles Barton

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O agente secreto Mark Sheldon vai para uma prisão em uma remota ilha para construir um caso contra seu diretor corrupto e sádico.


19/09/23
O Siciliano, The Sicilian, 1987, Michael Cimino

Sicília, Itália, final dos anos 1940. Salvatore Giuliano (Christopher Lambert) é uma figura de liderança na região, uma espécie de Robin Hood, que rouba dos mais ricos para dar para os miseráveis. À medida que ganha respeito e admiração das camadas populares, Salvatore passa a se tornar mais prepotente e cheio de si. Só que seu ego não é seu único inimigo. Para lutar pelo que acha justo, Salvatore terá de enfrentar a Igreja e o chefão da máfia, Don Masino Croce (Joss Ackland), que deseja riscá-lo do mapa.

20/09/23
Napoleão, Napoléon, 2002, Yves Simoneau

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Em 1795, ele era um general cheio de ambição. Em 1816 estava exilado na remota Ilha de Srtª Helena. Nesse intervalo de tempo, Napoleão foi o homem mais poderoso do mundo. Desde a campanha que transformou o desconhecido Corsego no herói francês até à sua última derrota em Waterloo. Napoleão traçou o caminho de um homem que desafiou séculos de tradição. Adaptado por Didier Decoin do Best Seller de Max Gallo's, esta aventura épica explora as lutas privadas, as intrigas políticas e as sangrentas batalhas que marcaram o surgimento e o desaparecimento de Napoleão. Esta excelente obra mostra o retrato de Napoleão, evidenciando os fatos e definindo-os como um homem cuja vida ainda move e inspira muitos de nós.

22/09/23
Pistoleiro da Justiça, The Master Gunfighter, 1975, Tom Laughlin

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The Master Gunfighter, Roger Ebert, January 01, 1975

A film archeologist could have fun with "The Master Gunfighter," sifting among its fragments of plot and trying to figure out what the hell happened to this movie on the way to the theater. The movie opens with a longwinded narration, in a hapless attempt to orient us, but not long afterward the narrator has to break in again—we're lost already. It's all to little avail. I don't think there's any way an intelligent moviegoer could sit through this mess and accurately describe the plot afterward.

On the basis of the available evidence, I'd say the director and star, Tom Laughlin, began with a badly confused screenplay (one that never did clearly establish the characters and the main story line) and then shot so much film that he had to cut out key scenes in order to edit everything down to a reasonable playing time.
The movie opens, for example, with Laughlin leaving the California hacienda of his wife, for obscure reasons (and not only the reasons are obscure — I had to read the synopsis to figure out the woman was his wife). Then there's a title card "Three Years Later" and he decides to go BACK to the hacienda, for more compelling reasons. This is pretty dizzying exposition.

The movie has ambitions to look like one of Sergio Leone's Italian Westerns’s has the eerie music and the vast landscapes and the irritating habit of opening and closing scenes with zooms as dramatic as they're arbitrary. Watching it, we reflect that Leone was never too strong on plotting either (what actually happened in "The Good, the Bad and the Ugly"r emains a matter of great controversy). But Leone at least was the master of great momentsÑstretches of film that worked, even if they meant nothing.

Laughlin has moments, too, but he has no flair for timing or development or surprise. We leave "The Master Gunfighter" remembering very long, very pointless conversations in which the characters seemed to be referring to events in another film. These yawninducing dialogs are occasionally interrupted by swordplay, so badly staged and photographed we're not even sure Laughlin could handle a steak knife. In one of his predicaments, he is surrounded by enemy swordsmenÑso he backs up against an old shed. But wait a minute, you're thinking: If he's surrounded, how does he back up against that shed? What about the guys behind him? Aha!

The opening narration provides some nonsense about samurai training that's supposed to explain the sword, as well as the MG's revolver, which can fire 12 shots. After we've seen the MG nail all kinds of bad guys with the pistol, only to use the sword in his next emergency, we're reminded of John Carter of Mars, the Edgar Rice Burroughs hero who kept getting sliced up in swordplay when he could have just pulled out his atomic ray gun But no matter. Nothing as simple as logic is going to explain this movie.

Roger Ebert was the film critic of the Chicago Sun-Times from 1967 until his death in 2013. In 1975, he won the Pulitzer Prize for distinguished criticism.

25/09/23
Era uma Vez em Tóquio, Tôkyô monogatari, 1953, Yasujirô Ozu

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Era uma Vez em Tóquio, por Luiz Santiago, 9 de junho de 2019

Encerrando a Trilogia Noriko, Era uma Vez em Tóquio (1953) explora uma questão bastante cara ao diretor Yasujiro Ozu, que era a relação entre pais e filhos, pautada pela negligência natural que as novas gerações têm em relação aos pais, uma postura que em boa parte dos casos muda ao longo dos anos, mas em outros, permanece como uma grande marca de ingratidão somada a um sentimento de culpa. Tendo como base o enredo de A Cruz dos Anos (1937), de Leo McCarey, o diretor já havia trabalhado esse tema em Os Irmãos e Irmãs Toda (1941), mas volta para ele aqui de maneira mais madura e com reflexões mais amplas em torno dessa principal questão familiar.

A premissa aqui é bastante simples. Shukichi (Chishû Ryû) e Tomi (Chieko Higashiyama) são um velho casal prestes a fazer uma viagem de sua vila no interior do Japão até Tóquio, onde mora a maioria de seus filhos. Como é de se esperar em um filme de Ozu, nós começamos e terminamos o longa em um tipo de contemplação e reflexão de distintos níveis sobre o ambiente e os indivíduos que vemos na tela. Ao longo de suas 2h16 de duração, a película nos dá a oportunidade de conhecer este casal e mergulhar em sua visão de mundo, muitas vezes apenas através de expressões ou pela forma como se comportam diante dos filhos em momentos que claramente não são bem-vindos.

Sem levantar uma crítica explícita ou didática — mas a crítica ela está lá o tempo inteiro — o diretor e seu parceiro na escrita do texto, Kôgo Noda, mostram para o espectador o peso dos anos para um pai e uma mãe através do desencontro que em relação aos filhos e aos netos, a partir de determinado momento de suas vidas. O roteiro considera, em um pequeno diálogo, que esta não é necessariamente a realidade para todas as famílias, mas certamente é para a maioria: as responsabilidades e ritmo de vida dos filhos os afastarão consideravelmente dos pais na vida adulta. A frase tem um quê de dilema moral e ao longo do filme nós nos vemos repreendendo ou tentando compreender a atitude deste ou daquele filho diante dos pais.

O roteiro nos dá essa oportunidade de colher informações sobre todos os personagens e, como já disse, de entender o comportamento dos pais. A câmera no tatame, a fotografia com leves contrastes e ângulos perfeitos nos coloca também como parte dessa família, que tenta divertir, dar atenção ou se livrar dos pais, dependendo da ocasião. E em cada um desses momentos, o texto e a direção fazem um jogo de ação-e-reação pelos diálogos (sim, os pais reagem pouco, mas não estão alheios ao que acontece) e pelas atitudes e forma como a câmera os filma, em cenas que vão da mais trivial contemplação do teto até os diálogos mais tocantes e filosóficos, como os que temos no final da fita, depois de um importante evento.
A morte da mãe é a grande marca deste drama, porque coloca as ocupações, as frases, as exigências e todas as outras coisas dos filhos em perspectiva, um jogo do qual também participamos, por contemplação ou por identificação com a dor da família que perde um ente querido. E é nesse estágio de coisas em perspectiva, através da morte, que o valor à mãe falecida e às memórias dela se manifesta, juntamente com o proverbial “é tarde demais“.

Algumas vozes que destacam pontos negativos neste filme falam de sua lentidão exagerada, mas isso é um ponto delicado em se tratando de Ozu. O que posso dizer é que na parte final do filme, o ritmo começa a cobrar um pequeno preço e fica difícil para o espectador não comparar a velocidade com que as coisas acontecem aí e o tempo de contemplação “gasto” ao longo de toda a projeção. Também me incomodaram um pouco as elipses na segunda metade da obra, e este é igualmente um ponto delicado para se falar de Ozu, já que esta é uma de suas marcas narrativas, especialmente no pós-Guerra. E novamente, o preço cobrado pelo lento ritmo vem à tona quando julgamos a necessidade e o impacto dessas elipses. Mas nenhuma dessas coisas foram grandes o bastante para me fazer tirar algo da obra. O que me incomodou a ponto de vê-la um pouco menos incrível desta segunda vez foi o diálogo final entre Noriko (Setsuko Hara) e Shukichi.

Me incomodou tremendamente o comportamento da personagem nesse diálogo, algo bem diferente do que havia sido apresentado antes para ela. E aqui, algo característico das atuações nos filmes de Ozu (ou em clássicos japoneses, em geral), que é a marca mais afetada herdada do kabuki, acabou tendo um impacto negativo para mim em relação à interpretação da atriz, algo que não havia acontecido antes. Colocado de lado esse pequeno impasse do final, Era Uma Vez em Tóquio mantém-se como um daqueles filmes sobre a vida que impressiona pela crueza e realismo com que expõe sua problemática. Algo que todos nós conhecemos muito bem e que, depois de uma sessão dessas, nos pegamos novamente pensando a respeito.

4/10/23
Kruty 1918, 2019, Aleksey Shaparev

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O filme remeter-se ao fatos histórico ocorridos na "Batalha de Kruty" (no vilarejo de Kruty aos arredores de Kiev) e na morte de 500 cadetes do exército ucraniano nos dias 29 e 30 de janeiro de 1918, quando tentavam defender a cidade de Kiev do avanço do Exército Vermelho Bolchevique. Alguns destes cadetes, entre eles Gregory Pipskyy (Gregory foi o cadete que começou a cantar "A Ucrânia ainda não morreu" antes da sua execução), foram executados na estação ferroviária de Kruty na noite de 29 de janeiro de 1918. Wiki

4/10/23
Camaleões, Reptile, 2023, Grant Singer

Camaleões – Benicio Del Toro lidera MORNA Investigação Policial com Justin Timberlake
Letícia Alassë, 27 de setembro de 2023

Cenas de um casal em crise se desenrolam nos primeiros minutos de Camaleões (Reptile), primeiro longa-metragem do estadunidense Grant Singer, conhecido por conduzir videoclipes de celebridades do mundo pop. O diálogo entre o casal não existe, Will Grant (Justin Timberlake) tenta em vão aproximar-se de Summer (Matilda Lutz), mas a frieza, as camas separadas e as ausências mostram que algo não está dentro dos conformes. Ambos são corretores de imóveis e as residências vazias são esconderijos dos segredos e a metáfora do vácuo entre eles até um crime acontecer.

Antes de tornar-se vítima numa investigação policial, Summer encontra uma casca de serpente no domicílio à venda, entre o literal e a metáfora, o roteiro — escrito a seis mãos: Grant Singer, Benjamin Brewer e Benicio Del Toro — coloca em evidência um perigo iminente para a jovem. Como esperado, o “réptil” do título é o suspeito do assassinado. Com 13 facadas, vestígios de sêmen e lesões pelo corpo, o crime parece ser um caso passional, ou seja, realizado por um parceiro sexual.
Para resolver o mistério e encontrar o culpado, o capitão da polícia de Scarborough Robert Allen (Eric Bogosian), designa o sério detetive Tom Nichols (Benicio Del Toro) e o ajudante Dan Cleary (Ato Essandoh) para a investigação. Aparentemente abalado, Will confessa ter tido brigas com a namorada, ainda casada legalmente com o ex-marido Sam Gifford (Karl Glusman) e, portanto, um dos principais suspeitos. 

Para dar gás à narrativa, Michael Pitt (Os Sonhadores) incorpora um vizinho alucinado, vingativo e traumatizado pela família de Grant. Em uma interpretação exótica, o personagem serve de despistagem e, posteriormente, pontes para a solução dos mistérios. Em um percurso de desenganos, falsas interpretações e mortes por conta da ganância, Camaleões tem uma condução lenta e contemplativa.
O detetive Nichols é pintado como homem de virtude, apaixonado pela esposa Judy Nichols (Alicia Silverstone) e incapaz de traí-la mesmo quando a oportunidade bate à porta. Já os seus companheiros de profissão apresentam caráter mais duvidoso, seja pelas falas, seja pelas atitudes. De forma bem dualista, o roteiro desenha condutas de mocinhos e vilões.
Com algumas descobertas fáceis, outras forçadas e pistas bastante chamativas, Grant Singer deseja criar uma trama com a marca de David Fincher, porém acerta nos romances policiais de bancas de jornais. Desse modo, o longa apresentado no TIFF 2023, e distribuído pela Netflix, consegue manter o espectador interessado nas ações do seu protagonista de impecável reputação, porém não apresenta cenas marcantes ou momentos surpreendentes. 

Como uma produção inicial, Camaleões pode ser considerado uma boa tentativa de filmes de gênero, contudo poderia ter uma cena de confronto final melhor trabalhada e um roteiro menos mastigado. Sendo um lançamento Netflix, é possível compará-lo com o insosso suspense tragicômico Sorte de Quem? (2022), de Charlie McDowell, que mesmo com um bom elenco [Jesse Plemons, por exemplo], não consegue empolgar e torna-se uma experiência deletável.
Apesar da presença de Benicio Del Toro e um apagado Justin Timberlake, Camaleões é um filme básico de detetives envolvidos em traições e reviravoltas dentro de uma pequena atmosfera da classe média suburbana norte-americana.

Uma pena que a talentosa atriz italiana Matilda Lutz — do maravilhoso filme Vingança (2017), de Coralie Fargeat, — tenha apenas segundos de tela. O crime inicial torna-se pano de fundo para dar espaço a uma investigação sobre a conduta nada ilibada da polícia estadunidense e dos seus cidadãos de bens da classe média, os camaleões. 


5/10/23
Na Solidão do Inferno, The Capture, 1950, John Sturges

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O Inspetor Campos, da Polícia Federal argentina, narra a um repórter três casos complicados que investigou. O primeiro envolve um grupo de trapaceiros que arma uma grande farsa para limpar suas vítimas no pôquer. O segundo é o cerco a uma quadrilha de traficantes de drogas que usa os métodos mais criativos para esconder a cocaína. O terceiro mostra a caçada sem tréguas a um assaltante sádico que não deixa testemunhas. Filmow

07/10/23 

Cavaleiros de Ferro, Aleksandr Nevskiy, 1938, Sergei Eisenstein & Dmitriy Vasilev

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Cavaleiros de Ferro (Aleksander Nevsky, 1938), por Matheus Carvalho, 14/08/2020

Que Sergei Eisenstein foi o maior nome do cinema soviético durante o regime stalinista não é novidade para ninguém. O diretor de A Greve, O Encouraçado Potemkin e Outubro ajudou a construir o cinema como conhecemos hoje e sua contribuição para o desenvolvimento da teoria cinematográfica, sobretudo em relação à arte da montagem, faz com que seu nome seja reconhecido e estudado até hoje. Sua importância se coloca como um feito extraordinário para uma cultura ocidental que historicamente tende a ignorar tudo aquilo que não nasce em seus próprios domínios, seja em relação à arte, ciência ou religião.

A genialidade de Eisenstein se sobressai ainda mais quando consideramos as limitações impostas pelo regime soviético, que enxergava o cinema e qualquer manifestação artística como um instrumento de propaganda política e de afirmação dos valores revolucionários. A verdade é que por muito pouco não tivemos a possibilidade de ver Eisenstein dirigindo filmes de grandes estúdios americanos, mas sua temporada na América foi frustrada. Não que o pragmatismo de Hollywood não fosse um fator igualmente limitante a um artista desse nível, mas certamente teríamos à disposição uma obra muito mais vasta e eclética à disposição.

Entre atritos com as amarras soviéticas e suas fracassadas experiências nos Estados Unidos e no México, Eisenstein passou praticamente dez anos sem dirigir um filme completo. Em sua volta à União Soviética, ainda era visto com muita desconfiança pelos líderes soviéticos e pela imprensa por sua aventura capitalista. Seu retorno à direção com Cavaleiros de Ferro, em 1938, veio em forma de reconciliação com o regime e ainda representou a estreia do diretor em um longa-metragem sonoro.
Enquanto a Europa era assombrada pela ameaça nazista de Hitler e marchava acelerada rumo a mais uma guerra, nada mais assertivo do que uma história sobre um grande líder russo que lidera a reação de seu povo contra uma invasão alemã. Claro que não era coincidência. O episódio a ser retratado havia se passado durante a Idade Média, mais precisamente no século XIII, quando os alemães da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos ameaçavam os domínios russos. Enquanto os invasores destruíam cada cidade por onde passavam, a esperança russa estava nas mãos de Alexander Nesvky, que já havia liderado o exército russo em grandes batalhas.

Para a realização da obra, Eisenstein contou mais uma vez com a fotografia de Eduard Tisse, que havia acompanhado o diretor em todos os seus filmes, e com a composição de Sergei Prokofiev, considerado um dos maiores compositores do século XX. O ator escolhido para interpretar Alexander Nevsky no papel principal foi um dos queridinhos de Stalin, Nikolay Cherkasov, que repetiria a parceria com o diretor nas duas partes do épico Ivan, o Terrível.

Por todo o contexto envolvido, Cavaleiros de Ferro passa longe de figurar entre as obras mais experimentais de Eisenstein. A pressão de Stalin obrigava o diretor a ser o mais pragmático possível. Dessa forma, a narrativa é bem simples e logo na primeira sequência do filme o espectador já é apresentado ao grande Alexander e se torna ciente da ameaça alemã. A partir daí, o roteiro escrito pelo diretor em colaboração com Pyotr Pavlenko se dedica a mostrar, paralelamente, o avanço alemão e a preparação russa em direção ao inevitável confronto.

E é justamente com a Batalha no Gelo que o filme atinge todo o seu potencial artístico. A trilha de Prokofiev dá à a batalha o carácter de épico e dita o ritmo do que se vê em tela, alternando com maestria os momentos em que a música se sobrepõe e os momentos de absoluta ausência, onde se escuta somente o som das espadas, dos gritos e dos cavalos. Eisenstein dá mais um espetáculo de montagem ao alternar planos abertos e fechados, dosando a imensidão da guerra e do gelo com as micro batalhas travadas pelos heróis russos. Tudo isso sem a espetacularização comum a tantos filmes de guerra atuais, em que diretores exageram muitas vezes no uso de efeitos especiais e da câmera lenta.

Mas, deixando um pouco de lado o mérito artístico da obra, a mensagem propagandista é qualquer coisa menos sutil. Além de todo o pano de fundo da história, há vários momentos no filme em que alguns diálogos e canções são colocados para reforçar o viés atemporal da necessidade de lutar e, se necessário, morrer para defender o país. Na última sequência do longa, um plano fechado no rosto de Alexander faz com que ele praticamente quebre a quarta parede e se dirija ao espectador, deixando a mensagem de que um dia ele morrerá, mas a Rússia sempre poderá contar com seu povo fiel e corajoso. A ironia é lembrar que no ano seguinte, em 1939, Rússia e Alemanha assinaram o Pacto de Não Agressão e o filme foi proibido, até que em 1941 a Alemanha invadiu a Rússia e o filme ressurgiu e foi aclamado pela crítica soviética.

Cavaleiros de Ferro não é a obra mais experimental de Eisenstein e tampouco é seu melhor filme — O Encouraçado Potemkin não divide esse rótulo com mais ninguém –, mas seu valor é inquestionável. Em meio às limitações do regime soviético, o diretor conseguiu fazer sua arte triunfar sobre a propaganda de guerra para entregar um épico capaz de influenciar gerações de cineastas e de batalhas clássicas vistas ao longo de décadas nas telonas.   

08/10/23
Ricardo: Coração de Leão, Richard the Lionheart, 2013, Stefano Milla

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O Rei Henrique II (Malcom McDowell) escolhe seu filho Ricardo (Gregory Chandler) para liderar a Inglaterra na guerra contra a França que está por vir. Para testar a lealdade, honra e habilidade do filho, o rei o envia para uma prisão infernal na qual os prisioneiros devem enfrentar uma série de inimigos para sobreviver. Assim que Ricardo vai superando os obstáculos, ficam provados sua força e caráter, e a lenda Ricardo Coração de Leão surge. Adorocinema

09/10/23
Retour à Séoul, 2022, Davy Chou

Em Return to Seoul , uma jovem coreana é adotada por um casal francês, e vinte e cinco anos depois, decide retornar à Coreia. Visitando seu país de origem pela primeira vez após sua adoção, ela pretende rastrear o paradeiro de seus pais biológicos. Mas, a jornada da jovem toma rumos inesperados, e essa viagem pode ser ainda mais transformadora para sua vida. Adorocinema

12/10/23
A World of Calm, Série de TV, 2020, Ben Devlin&Karen McGann&Daniel M. Smith&Nic&Stacey&Emma Webster 

World of Calm vídeo

The Unsettling Anti-Entertainment of “A World of Calm”
By Carrie Battan, October 27, 2020

In the streaming era, television has become increasingly split into categories that serve specific moods or contexts. Looking for a jolt of adrenaline? Try “Tehran,” a geopolitical spy thriller about the Iran-Israel conflict, from the head writer of “Fauda.” Want to be entertained yet slightly exasperated? Watch “Emily in Paris,” the endlessly riffable Netflix series about a young American who accidentally becomes an influencer in France. If you need to be cocooned in nostalgia—and slightly repulsed by adolescence—there’s the middle-school comedy “Pen15,” which is set in the early two-thousands. And, for anyone looking to escape the news cycle, there’s the burgeoning genre of apolitical, ahistorical comfort television, exemplified by “The Great British Baking Show” and “The Great Pottery Throw Down.”

A new show, HBO Max’s “A World of Calm,” takes this last category to an extreme. The show is an outgrowth of the meditation app Calm, which is trying to adapt its vast library of audio material for TV. The series débuted in October, and it doesn’t just service a viewer’s mood or desire; it seeks to induce a new state of mind — namely, a deep state of relaxation, or even a good, long nap. The first episode whisks us to the coral reefs of Indonesia’s Raja Ampat archipelago. Narrated by the actress Lucy Liu—whose voice, in this context, becomes so gentle and measured as to be unrecognizable—the episode zooms in, in ultra-high definition, on the details of the archipelago’s exotic, flourishing habitat. We aren’t meant to absorb the animals and vegetation with shock and delight, as with traditional nature documentaries. Instead, they’re presented as our harmonious proxies. The show’s climax, if there is one, involves a sea turtle visiting the archipelago, as it has done for “over one hundred million years . . . to rest and relax.” The turtle is shown settling onto the floor of the ocean, its own “underwater spa,” and waiting for fish to gently “polish his shell” by nibbling on it. Liu goes on to explain that nine minutes pass between each beat of the turtle’s heart—a description so evocative that I could imagine my own pulse slowing as I watched.

“A World of Calm” is Calm’s latest attempt to transform itself into a media empire. Launched in 2012 by a pair of entrepreneurs, the app serves the many, many people who are newly intrigued by the potential benefits of meditation and mindfulness. In its early days, the app’s small library of recordings—guided meditations that were designed to help users fall asleep, relieve anxiety, or focus at work—was mostly narrated by Tamara Levitt, a Canadian mindfulness instructor with an especially humane and lucid voice. By 2017, the company was reporting twenty-two million dollars in revenue, earned from the app’s subscription-based model and merchandise such as an aromatherapy spray; now it has raised more than a hundred million in venture capital and been valued at a billion dollars. At some point, flush with cash, the company began recruiting stars to do voice-overs and narrations.After a long hiatus from the app, I was shocked to open it and find a tabloid’s worth of celebrity names: I could choose a bedtime story read by Matthew McConaughey (one of the app’s more popular pieces), another recited by Harry Styles, or a multipart series from LeBron James about how his personal meditation journey has helped his success on the court. In addition to Liu, “A World of Calm” will feature narrations from stars with conveniently dulcet voices, among them Nicole Kidman, Mahershala Ali, Keanu Reeves, and Idris Elba. One episode even includes Oscar Isaac, who narrates a story about a noodle recipe passed down from generation to generation.

There is, of course, a deep contradiction running through phrases such as “star-studded meditation content” or “venture-funded meditation service.” Insofar as meditation is about solitude, peace, and the private tensions of an individual, it was never meant to be sold, let alone scaled. And there’s something especially perverse about how the world of corporate wellness has appropriated the practice; it’s turned mindfulness upside down, into a tool not just for self-discovery but for superhuman levels of productivity.

And yet, despite this broader, unsettling repackaging of meditation, “A World of Calm” demonstrates a great deal of restraint. There is absolutely nothing entertaining or titillating about it, by design. It will not make you better at your job, or less lonely, or more inclined to support LeBron James. The show has hints of A.S.M.R., the vast genre of Internet content designed to provoke a soothing sensation of “brain tingling.” (A closeup shot of coral reefs, in which tiny bubbles pop off the reef’s structure and into the open water, does, in fact, give one a pleasant buzz in the head.) “Calm” shares some DNA with canonical nature documentaries—“Planet Earth” or its Netflix spinoff, “Our Planet”— mostly in its astonishing cinematography, and in the way it moves from the small and the particular to the panoramic. But those documentaries delight in narrative tension, in underscoring the drama and grandeur of the wild. Violent death and extinction are a constant presence, as is environmental decay, which such series have begun to invoke with increasing urgency. “A World of Calm” skips over those sorts of menaces altogether. They are, after all, the kinds of things one loses sleep over.

Carrie Battan began contributing to The New Yorker in 2015 and became a staff writer in 2018.

T1.E1 ∙ The Coral City
qui., 1 de out. de 2020
This film transports us to the heart of the Coral Triangle, a place where evolution has run wild. Entering a magical underwater world, we explore the magnificent life that calls the coral neighbourhood home. Narrated by Lucy Liu.
T1.E2 ∙ The Glassmaker
qui., 1 de out. de 2020
This factual fairy tale follows the mesmerising process of glassmaker Bibi Smit as she attempts to sculpt a piece that can capture the movement of the wind in glass. Narrated by Zoe Kravitz.
T1.E3 ∙ The Bird's Journey
qui., 1 de out. de 2020
This film was inspired by the breathtaking footage from John Downer Productions and the BBC series Earthflight. It follows the epic migrations of birds across the globe. Narrated by Nicole Kidman.
T1.E4 ∙ Snowfall
qui., 1 de out. de 2020
An enchanting film that invites us into a winter wonderland. Starting with the birth of a single snowflake, we journey through a spectrum of snowscapes. Narrated by Cillian Murphy.
T1.E5 ∙ Living Among Trees
qui., 1 de out. de 2020
Master woodworker Rihards Vidzickis fulfills his boyhood dream, carving a dugout canoe from a single piece of wood. Set in Latvia, the beautiful and meditative process of building a canoe unfolds over many months. Narrated by Keanu Reeves.
T1.E6 ∙ The Great Beyond
qui., 1 de out. de 2020
A serene and spiritual journey from Earth to the outer reaches of the universe. From the first outpost on our voyage, the International Space Station, to the strange worlds of our solar system and far beyond. Narrated by Idris Elba.
T1.E7 ∙ Noodles
qui., 1 de out. de 2020
At the artful hands of Seattle resident and Japanese chef Mutsuko Soma, we watch the creation of a culinary gift - hand crafted soba noodles. Narrated by Oscar Isaac.
T1.E8 ∙ A Horse's Tale
qui., 1 de out. de 2020
This film transports us into the fascinating world of horses using footage from anthropologist turned filmmaker Niobe Thompson, and film director Richard Mullane. Narrated by Kate Winslet.
T1.E9 ∙ The Gift of Chocolate
qui., 1 de out. de 2020
Inspired by the ancient traditions of Central America, we capture the alluring alchemy of chocolate and its metamorphosis from tropical fruit to global delicacy. Narrated by Priyanka Chopra Jonas.
T1.E10 ∙ Water, Giver of Life
qui., 1 de out. de 2020
This film begins with rain and follows the course of water as it brings life to people, plants and animals across Africa, before returning to the sea. Narrated by Mahershala Ali.

14/10/23
Maomé - O Mensageiro de Alá, The Message, 1976, Moustapha Akkad

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The Message (filme) wiki

Enredo

O filme se inicia com os primeiros anos de Maomé como profeta de Alá, na cidade de Meca. Pelos insultos aos ídolos da Caaba e pelos seus ensinamentos, ele e os seus seguidores (os muçulmanos) são perseguidos, o que os faz imigraram para a cidade de Medina e, depois de conflitos e guerras, os muçulmanos retornam à Meca com trinfo. São descritos séries de acontecimentos, como a Batalha de Badr e a Batalha de Uude, e os personagens principais do filme são Hâmeza ibne Abdal Mutalibe (o tio de Maomé), Abu Sufiane (líder de Meca e patriarca do coraixitas) e sua esposa Hinde binte Utba (inimiga do Islão que, mais tarde, tornou-se muçulmana).

Produção

O diretor Mustafah Akkad enfrentou Hollywood para fazer um filme sobre as origens do Islão e teve que ir para fora do Estados Unidos para levantar o dinheiro da produção para o filme. Falta de dinheiro para a produção quase encerrou a produção do filme, até que o financiamento foi finalmente fornecido pelo, na época, chefe do Estado Líbio, Muammar al-Gaddafi. O filme foi feito na Líbia e em Marrocos e a produção teve quatro meses e meio para construir as cidades de Meca e Medina, como eram no tempo de Maomé.

O diretor do filme, Mustafah Akkad, viu o filme como uma forma de ponte entre o mundo ocidental e islâmico, declarando em uma entrevista de 1976:
“Eu fiz o filme porque é uma coisa pessoal para mim. Além de sua produção de valores como um filme, que tem a sua história, a sua intriga, o seu drama. Além de tudo isso, eu acho que foi algo pessoal, mesmo sendo sobre muçulmanos que viveram no Oriente, eu senti que era minha obrigação, meu dever, de dizer a verdade sobre o Islã. É uma religião que tem 700 milhões de seguidores, mas ainda é tão pouco conhecida e é isso que me surpreende. Achei que deveria contar a história que irá fazer esta abertura para o Ocidente.”

Akkad filmou uma versão árabe do filme (em que Muna Wassef interpreta Hinde binte Utba) com um elenco formado por atores árabes do Oriente Médio. Ele achava que a versão em inglês com uma dublagem em árabe não seria suficiente, sendo que os árabes agem diferente do estilo de Hollywood. Alguns atores fazem a versão inglesa e árabe, em algumas cenas. Tanto a versão inglesa quanto a versão árabe agora são vendidas em conjunto em alguns DVDs dos Estados Unidos da América.

Representação de Maomé

De acordo com as crenças muçulmanas sobre representações de Maomé, ele não foi retratado, nem sua voz foi ouvida. Esta regra foi também obedecida em relação às suas esposas, suas filhas, seus filhos (adotivos) e seus califas (Abacar, Ali, Omar e Otomão). Isso deixou o tio de Maomé, Hâmeza (Anthony Quinn/Abdullah Gaith) e seu filho adotivo Zaíde (Damien Thomas/Ahmed Marey) como personagens centrais. Durante as batalhas de Badr e Uude retratada no filme, Hâmeza estava no comando nominal, embora a luta de verdade foi liderada por Maomé.

Sempre que Maomé estava presente ou muito perto, sua presença foi indicada pela música de órgão. Suas palavras, como ele falou delas, foram repetidas por outras pessoas, como Hâmeza, Zaíde e Bilal (um escravo abissínio). Quando uma cena chamou para ele estar presente, a ação foi filmada de seu ponto de vista e outros estavam em cena para um diálogo inédito.

O mais próximo que o filme chegou a uma representação de Maomé ou de sua família imediata foi a opinião da espada de Ali "Zulfiqar" durante cenas de batalha, assim como o pessoal nas cenas na Caaba ou em Medina. 

16/10/23
Baile perfumado, 1996, Paulo Caldas & Lírio Ferreira

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Baile perfumado, Crítica, Eduardo Kaneco

O cinema revisita o cangaço em O Baile Perfumado.

O filme faz parte dos docudramas da Retomada do Cinema Brasileiro nos anos 1990. Tal subgênero teve Lamarca (1994) e Carlota Joaquina, a Princesa do Brasil (1995), como principais expoentes dessa fase. São filmes que reconstituem algum fato histórico com liberdades ficcionais.
Nesse sentido, Baile Perfumado conta a história de Benjamin Abrahão nos anos 1930. O negociante libanês foi a única pessoa que conseguiu filmar o cangaceiro Lampião. Com essa empreitada arriscada, ele pretendia ganhar dinheiro vendendo esse material exclusivo. Porém, o governo ditatorial de Getúlio Vargas proibiu a exibição dessas filmagens. Afinal, era uma humilhação mostrar que uma pessoa sozinha tinha conseguido localizar Lampião, enquanto centenas de soldados estavam à sua procura.

Lampião e Padre Cícero

Na verdade, Benjamin Abrahão abriu suas portas para esse feito porque havia sido secretário do famoso Padre Cícero. Assim, registrara uma foto do histórico encontro dessas duas figuras marcantes do cenário nordestino. Além de acompanhar o protagonista libanês, Baile Perfumado se preocupa em humanizar Lampião. Interpretado por Luiz Carlos Vasconcelos, o filme não mostra apenas o cangaceiro violento e impiedoso com os inimigos. Conhecemos o Virgulino Ferreira da Silva como pessoa, e que gosta de dançar e de perfumes, e que até acompanha sua Maria Bonita em uma sessão de cinema em Recife. Aliás, essa abordagem coincide com a faceta que Lampião quer que Benjamin Abrahão filme. Por isso, se nega a permitir que registrem o seu pelotão em ação.

Direção

Baile Perfumado impressiona no estilo de filmagem de Paulo Caldas e Lírio Ferreira. Principalmente, no plano filmado do alto de um helicóptero acompanhando um rio no sertão nordestino. Ademais, a visão rejuvenescida dessa paisagem pela nova safra de realizadores pernambucanos, se alinha com a trilha sonora. A música que ouvimos nesse trecho é um rock pesado, do subgênero mangue beat, que também surgia na época.

Além disso, alguns planos fogem do enquadramento tradicional. Por exemplo, quando Benjamin Abrahão conversa com o investidor do seu projeto, a câmera filma de baixo para cima, dando uma impressão grotesca desses personagens. No mesmo sentido, numa das cenas finais, há um banho de sangue na morte do negociante libanês que exala mais violência que aquela vista quando Lampião executa suas vítimas. E, ainda preserva a incógnita sobre esse fim trágico desse inusitado empreendedor.

De forma similar, o filme foge da narrativa clássica. A intercalação dos pensamentos poéticos que Benjamin Abrahão escreve em seu caderno de anotações e a intercalação de vários trechos de flashback colaboram na construção de um longa com apenas um tom. A história não caminha para uma conclusão com um clímax dramático, dando a impressão que não sabemos para onde a trama nos levará. Nesse aspecto, fala mais alto o teor documental, que procura registrar os fatos, sem buscar a emoção do espectador. Aliás, tal qual os trechos filmados por Benjamin Abrahão.

Por fim, Baile Perfumado marca a estreia em longa de dois cineastas importantes para o cinema brasileiro. De um lado, o paraibano Paulo Caldas faria Deserto Feliz (2007) e País do Desejo (2012). Já, de outro, o pernambucano Lírio Ferreira dirigiria Árido Movie (2005) e o recente Acqua Movie (2019).

Chico Science & Nação Zumbi - Sangue de Bairro

Central do Brasil, 1998, Walter Salles

Central do Brasil 25 anos: A história real que inspirou o filme
Longa-metragem estrelado por Fernanda Montenegro, e que concorreu ao Oscar, estreou em 3 de abril de 1998 — há exatos 25 anos

Isabela Barreiros, 16/10/2019

Há exatos 25 anos, em 3 de abril de 1998, estreava o longa-metragem 'Central do Brasil', de Walter Salles. Estrelado por Fernanda Montenegro, a trama conta a história de Dora, uma professora aposentada que escrevia cartas ditadas por pessoas analfabetas.

O filme foi indicado ao Oscar na categoria de 'Melhor Filme Estrangeiro' no ano de 1999. Naquele ano, Montenegro também foi indicada como melhor atriz, mas perdeu a estatueta para Gwyneth Paltrow, que concorria pelo filme 'Shakespeare Apaixonado'. Ainda assim, Central do Brasil recebeu inúmeros outros prêmios internacionais como o Globo de Ouro e o BAFTA.
A produção teve e ainda tem um impacto enorme na cena audiovisual brasileira. "Em sua trajetória única, — mas longe de ter sido unânime —, Central do Brasil exerceu um papel fundamental no processo de reinserção do cinema no coração da sociedade brasileira. Com ele, o cinema brasileiro voltou a ser motivo de celebração", diz Pedro Butcher no livro 'Folha Explica— Cinema Brasileiro Hoje'.

Socorro Nobre

O primeiro rosto filmado em Central do Brasil é o de Socorro Nobre. Ela aparece ditando uma carta para Dora, a professora que se coloca como intermediária entre pessoas analfabetas e os destinatários das cartas. Mas a personagem de Fernanda Montenegro, na verdade, é a própria Socorro na vida real.
A mulher foi presa em 1986 e permaneceu sete anos na cadeia, condenada como cúmplice no assassinato do seu próprio irmão. Durante seu tempo no cárcere, Socorro ajudava detentas que não sabiam escrever a redigir suas próprias cartas.

"Na prisão, preenchia meu tempo trabalhando na cozinha e fazendo cursos profissionalizantes. Quando sobrava um tempinho, escrevia as cartas das colegas. Minha mãe era analfabeta e sempre me pedia para escrever cartas para nossos parentes", disse ela, como repercutido pela Folha de S.Paulo em 1999."
Em 1993, ao ler uma revista, ela encontrou uma reportagem sobre o escultor polonês Frans Krajcberg, que se naturalizou brasileiro durante sua estadia no país. Interessou-se por sua história e enviou-lhe uma carta. Ele respondeu. Os dois passaram a trocar correspondências por muito tempo e um dos bilhetes foi parar nas mãos do cineasta.
O contato de Salles com a história de Socorro transformou-se em um documentário, que leva o nome da mulher que escrevia cartas para as detentas: 'Socorro Nobre', lançado em 1995. E é aí que está a gênese de Central do Brasil.

"Foi uma homenagem a Socorro", diz o diretor do longa. A inspiração da personagem Dora está exatamente na ex-detenta. "Minha carta criou asas. Uma simples carta teve o valor de um bilhete premiado na Mega-Sena. Fico até assustada em perceber tudo o que essa carta fez. Ela abriu minhas portas, salvou minha vida — o Walter diz que mudou a vida dele também", revela Socorro, conforme repercutido pela Revista Época em 2010. 

Outras histórias de Central do Brasil

O filme conta com outras histórias que, como a de Socorro, fazem parte de acontecimentos da vida real. Muitas pessoas narraram seus depoimentos a Dora, mas foi Salles quem levou as cartas aos correios tentando, de fato, entregar as palavras aos seus destinatários.
Em uma dessas correspondências, o diretor colaborou para um encontro de pai e filho. José Ferreira da Silva contou como seu filho havia sumido depois da sua mudança de Arcoverde, em Pernambuco, para Castanhal, no Pará. "Já faz quatro anos que ele saiu", diz o homem. "E não tem notícias, é isso?", pergunta Dora. "Não tem notícias", conclui Silva. 

O depoimento, através de Central do Brasil, chegou até o único cinema da cidade em que o garoto morava — e a carta enviada por Salles também. Reconhecendo o pai nas telonas e emocionado com o bilhete, o menino resolveu visitar o pai. O caso tornou-se reportagem na Revista Época naquele período.

18/10/23
A Arma Divina, Diamante Lobo, 1976, Gianfranco Parolini

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Sam Clayton (Jack Palance) e sua gangue dominam uma pequena cidade. Johnny (Leif Garret) e o padre John (Lee Van Cleef) enfrentam os criminosos e o padre é assassinado. Johnny parte a procura do irmão gêmeo do padre, um pistoleiro também interpretado por Van Cleef. Eles voltam com a missão de derrotar os bandidos, e, assim, vingar a morte do sacerdote divino.


19/10/23
A Bailarina, Ballerina, 2023, Chung-Hyun Lee (Netflix)

A Bailarina (2023), Uma balé de violência estilizada, por Ritter Fan, 13 de outubro de 2023

Filmes de sobrevivência e filmes de vingança têm a vantagem de poder ter elencos e durações enxutas e, mais importante do que isso, orçamentos diminutos. Não é uma regra absoluta, mas é nessa linha. E A Bailarina é mais um exemplar do segundo subgênero, desta vez vindo da Coréia do Sul, país que já há muitos anos vem oferecendo obras que retrabalham com muita originalidade e energia padrões hollywoodianos, algo que se tornou mais frequente com o surgimento dos serviços de streaming.

O grande problema da proliferação desses tipos de filme é que, como a premissa normalmente é básica e, via de regra, ganha pouco ou nenhum verdadeiro desenvolvimento dramático pelo roteiro, que prefere focar na pancadaria e na contagem de corpos, quase todo o atrativo da obra repousa sobre seus artifícios visuais, levando as categorias a serem eminentemente estilo sobre substância. E, vejam bem, não há nada de intrinsecamente errado nessa composição, pois volta e meio estilo é tudo o que é necessário para trazer frescor narrativo, vide a franquia John Wick. Mas, claro, há uma tendência a se criar belíssimos vazios que resultam naquele bom e velho entretenimento descartável.

A Bailarina é um desses casos de estilo sobre substância que bebe de diversas fontes visuais, talvez especialmente o estilo economicamente selvagem de Oldboy (o original, obviamente) e a pegada neon-noir do cinema sensorial de Nicolas Winding Refn. No longa, uma ex-guarda-costas recebe uma ligação de sua melhor amiga, uma bailarina, e, ao chegar para visitá-la, encontra-a morta em uma banheira, com um críptico recado manuscrito pedindo que ela seja vingada. Começa, então, a investigação de uma silenciosa e raivosa Jang Ok-ju (Jeon Jong-seo ou Rachel Sun na ocidentalização do nome que faz bem o papel mesmo que ele não exija quase nada dela) que não demora a localizar uma rede de escravização sexual de mulheres.

Não existe nada de particularmente sofisticado na forma como a protagonista vai do ponto A ao ponto B e assim por diante. Aliás, muito ao contrário, tudo é um pouco simples e direto demais, com Jang basicamente acertando logo de primeira, sem que o roteiro invista em rodeios para chegar logo ao ponto. Mesmo assim, curiosamente, entre uma cena de ação e outra, cenas essas que, mesmo em um filme curto como esse, são bem poucas para a média do que vemos por aí, o tal do “vazio” que mencionei mais acima se manifesta como barrigas narrativas que freiam o ritmo narrativo por vezes demais sem haver boas justificativas para isso. Claro que a relativa lentidão desses momentos mais, digamos, contemplativos, contribui para o fortalecimento da atmosfera da fita, algo que é amplificado e contrastado pelos flashbacks claros e alegres de Jang com sua amiga em um artifício para lá de clichê, mas que não deixa de ser simpático, só que há um descompasso sensível demais que atravanca a fluidez e, por vezes até, tenta complicar o que deveria ser simples, inclusive com a adição de uma segunda personagem na missão de vingança que quase nada acrescenta ao todo.

Por outro lado, as cenas de ação, apesar de curtas, são muito boas e diferentonas, além de variada. Logo no começo, na loja de conveniência em que somos apresentados à letalidade da protagonista e, depois, em toda a sequência do motel que, diria, é o money shot da fita, o trabalho de câmera da direção, que acompanha os movimentos de Jang em uma escolha que inicialmente desnorteia, mas depois diverte muito, é excelente, com a fotografia e a trilha sonora envolvendo as cenas em uma tecitura audiovisual que mais parece uma daquelas embalagens extravagantes de lojas caras.

E, quando digo que as escolhas são variadas, quero dizer que o diretor e roteirista Lee Chung-hyun faz esforço para não simplesmente repetir suas fórmulas. Sim, ele obviamente mantém uma assinatura estilística firme, característica e una, não poderia esperar diferente, mas ele procura mudar, escalando a pancadaria como é o “padrão da indústria”, mas sem fazer só o mais do mesmo. Isso fica evidente na grande sequência final no haras que faz vezes de fábrica de drogas (ou seria o contrário?), em que o visual muda completamente com um cenário mais amplo, com iluminação azulada e até mesmo o frenesi da câmera acompanhando os movimentos da protagonista ganha mais suavidade, mas sem perder o vigor.

Um passatempo ligeiro e descompromissado que consegue oferecer belos visuais e sequências de ação de qualidade, A Bailarina é mais um bom exemplar da ultra explorada subcategoria de filmes de vingança. Lee Chung-hyun floreia competentemente o básico e navega a premissa batida diligentemente, mesmo que peque aqui e ali com uma claudicância narrativa que cria vazios narrativos entre as sequências de ação repletas de energia.

20/10/23
Lydia Bailey, A Feiticeira do Haiti, Lydia Bailey, 1952, Jean Negulesco

No iutubi aqui  

Um jovem advogado americano viaja para o Haiti para tratar sobre a herança da bela Lydia Bailey. A ilha está devastada pelo conflito entre o presidente negro e os franceses, que tentam novamente apoderar-se do país. Para se disfarçar entre os nativos, o advogado e Lydia usam um corante marrom. É grande o conflito entre negros e brancos enquanto a guerra acontece.

REVOLUÇÃO HAITIANA

Hollywood Imagines Revolutionary Haiti: the Forgotten Film Lydia Bailey (1952)

Lydia Bailey wiki

21/10/23
O Espião que Saiu do Frio, The Spy Who Came in from the Cold, 1965, Martin Ritt

“O Espião Que Saiu do Frio”, de Martin Ritt

Por Octavio Caruso, 14 de abril de 2023

O Espião Que Saiu do Frio (The Spy Who Came in from the Cold – 1965)
Durante a Guerra Fria, o espião britânico Alec Leamas (Richard Burton) é enviado à Alemanha Oriental para servir como agente duplo. Mas à medida que ele avança no círculo de espionagem alemão, começa a suspeitar que está sendo manipulado pelos companheiros.
O livro original de John Le Carré, na edição de capa branca, da coleção “Grandes Sucessos”, da Abril Cultural, fez parte da minha infância, pegava frequentemente na estante, tentava ler, mas só fui realmente aproveitar a experiência plenamente na adolescência, quando levei na mochila para me fazer companhia na hora do recreio da escola.

Eu reli recentemente e, para a minha surpresa, gostei ainda mais, o livro é verdadeiramente um page-turner, terminei as primeiras 100 páginas nas primeiras horas da manhã e devorei o restante no final do dia. O autor ainda trabalhava na época para o MI6 como oficial de inteligência, logo, a autenticidade na abordagem do tema da espionagem é palpável, por conseguinte, há real senso de perigo. E, sim, os diálogos contribuem mais neste sentido do que qualquer sequência de ação.
“- (sobre a mentalidade esquerdista) Esta ideologia justifica o roubo de vidas humanas? Justifica a bomba num restaurante cheio de gente? … 

– Para nós sim, eu próprio mandaria pôr uma bomba num restaurante se soubesse que isso nos permitiria avançar na estrada que percorremos. Depois faria o balanço: tantas mulheres, tantas crianças e tantos metros de avanço na estrada. Mas os cristãos – e a sua, Leamas, é uma sociedade de cristãos – não fariam tal balanço… Vocês acreditam na santidade da vida humana, acreditam que todos os homens possuem uma alma que pode ser salva, acreditam no sacrifício.”  (Trecho do capítulo 13 da obra)
A adaptação cinematográfica, dirigida com extrema segurança por Martin Ritt, roteirizada por Paul Dehn e Guy Trosper, é bastante fiel em letra e espírito, auxiliada pela entrega sempre competente de Richard Burton e pela fotografia de Oswald Morris que, realçando os tons de cinza da amoralidade neste jogo sujo, capta com precisão cirúrgica o tom deste denso thriller.

O desafio da obra era facilitar para o espectador a imersão emocional, impedir que a trama complicada, envolvendo personagens que você não consegue definir se são leais, já que não se sabe exatamente para qual lado trabalham, causasse repulsa ao invés de fascínio. Graças ao desempenho de Burton, inteligentemente minimalista, o esforço é bem-sucedido.
“O que diabos você acha que são os espiões? Filósofos morais medindo tudo o que fazem contra a palavra de Deus ou Karl Marx? Nada disto! Eles são apenas um bando de bastardos miseráveis ​​e esquálidos como eu: homenzinhos, bêbados, maridos dominadores, funcionários públicos brincando de cowboys e índios para alegrar suas vidinhas podres. Você acha que eles se sentam como monges, equilibrando o certo contra o errado?”

“O Espião Que Saiu do Frio” é simplesmente um dos filmes mais importantes da década de 60.

22/10/23
Raymond & Ray, 2022, Rodrigo García


Os últimos 40 minutos é de doer de bom. A cenas do cemitério são inspiradíssimas. "Algo que meu irmão fazia para se manter sóbrio era encontrar novas fontes de prazer, pois, pro bem ou pro mal as drogas eram prazerosas." Kiera (Sophie Okonedo). Filme dirigido por Rodrigo Garcia, filho do Gabriel, aquele Garcia Marquez.

Raymond e Ray – Ethan Hawke e Ewan McGregor em Ácida Comédia Dramática na AppleTV+
Janda Montenegro, 13 De Novembro De 2022

Muitas culturas buscam o encerramento – uma cerimônia, um gesto, um acontecimento que possa, de alguma forma, marcar e dar fim a um período, e, consequentemente, dar início a uma nova fase. O ser humano precisa desses rituais para conseguir seguir em frente, emocional e psicologicamente, sendo este um recurso bastante utilizado, inclusive, em tratamentos psiquiátricos e terapias para superação de traumas. Entretanto, é difícil assumir a necessidade de se precisar desse encerramento, pois nem sempre é fácil falar disso em voz alta. Essa é o tema de ‘Raymond e Ray’, nova comédia dramática que teve sua estreia antecipada durante o Festival do Rio esse ano e que chegou recentemente aos assinantes da AppleTV+.

Raymond (Ewan McGregor) é um homem separado da esposa e cujo filho está longe, no exército estadunidense. Ele recebe a notícia de que seu pai, Harris (Tom Bower) acaba de falecer, e, como seu último desejo, gostaria que seus filhos atendessem ao seu funeral e o enterrassem pessoalmente, cavando sua cova. Por isso Raymond vai até a casa de seu meio-irmão Ray (Ethan Hawke), um ex-músico meio falido a quem não vê há muito tempo e com quem passou parte de sua infância quando o pai violento não estava batendo neles. Então, Raymond e Ray partem de carro numa viagem amarga até a cidade onde o pai morava para enterrá-lo, mas, uma vez lá, descobrirão que o homem a quem costumavam odiar era uma pessoa bem diferente diante dos olhos dos moradores locais. E, nesse dia, muitos segredos serão revelados, ao mesmo tempo em que, mesmo morto, o pai continua conseguindo desestruturá-los emocionalmente.

Em uma hora e quarenta e cinco de duração, ‘Raymond e Ray’ busca fazer um retrato sobre as frustrações humanas diante da vida e da morte – e, especialmente, as frustrações diante do mau caratismo do ser humano, afinal nem todo mundo é boa gente. Escrito e dirigido por Rodrigo García, o roteiro parte da morte para inserir uma série de elementos que comprovam que ninguém conhece ninguém a fundo de verdade, e nem mesmo a morte é capaz de suavizar os mais profundos rancores. Nesse viés, mesmo as situações cerimoniais, vistas com bastante deferência socialmente, são incontroláveis quando os verdadeiros sentimentos vêm à tona, dando liberdade à obrigatoriedade do luto às pessoas que decidem não perdoar.

Com maestria e acidez, ‘Raymond e Ray’ retira as máscaras convencionais às quais todos confortavelmente adequam-se para conviver com as pessoas – as boas e as ruins. Isso inclui as novas companhias que ganhamos no caminho e velhos conhecidos que, de uma hora para outra, podem se transformar em desconhecidos. Produzido por ninguém menos que o oscarizado Alfonso Cuarón e numa vibe meio Irmãos Coen, Rodrigo García explora o talento de Ethan Hawke, como um galanteador decadente, e de Ewan McGregor, obrigado a esconder suas emoções até o quarto final do longa, para dar rosto ao fracasso humano de tentar só ver o lado bom das coisas o tempo todo, mesmo quando referido às pessoas odiáveis.

Encabeçado por dois grandes talentos hollywoodianos e com uma história ácida-provocativa em um humor dramático que conduz os personagens ao limite das performances cotidianas em prol da sobrevivência, ‘Raymond e Ray’ é um filme único, hilário a seu modo, que tensiona os nervos e flerta com o absurdo até sua catarse final. Tal como a vida, incontrolável e imprevisível.

22/10/23
Arroz Amargo, Riso amaro, 1949, Giuseppe De Santis

Calvino, 100 e Arroz amargo, o filme

Arroz Amargo, 1949

Sinopse:
Todos os anos, na Primavera, no norte de Itália, milhares de mulheres se reúnem para a sazonal apanha do arroz. Num desses campos Silvana (Silvana Mangano) vê juntar-se-lhe como companhia, Francesca (Doris Dowling), uma mulher em fuga após um roubo de jóias que perpretou com o seu cúmplice Walter (Vittorio Gassman). Silvana começa por não compreender Francesca, pensando denunciá-la, mas acaba seduzida por Walter que lhe promete as jóias, se esta o ajudar. A luta de vontades entre Silvana e Francesca vai então confundir-se na labuta diária dos campos de arroz

Análise:
“Arroz Amargo” (em italiano “Riso Amaro”, que também pode significar “Riso Amargo”) foi o terceiro filme de Giuseppe De Santis. Tal como o seu “Caccia Tragica”, mostrou a propensão do autor em filmar temas relacionados com a ruralidade italiana. Depois da reforma agrária era a vez dos campos de arroz, numa história de maior cariz dramático e pessoal.
De facto, De Santis, com argumento escrito em colaboração com Carlo Lizzani e Gianni Puccini, construiu um filme que, apesar de seguir a regra máxima do Neo-realismo, que é o olhar comprometido com a consciência social, torna essa realidade rural um pano de fundo sobre o qual decorre uma história de pessoas singulares. E esta é uma história de paixões, cobiças, e lutas pela redescoberta e redefinição pessoais.

Tudo se passa durante a sazonal apanha do arroz, que, como nos é narrado em voz off, todos os anos, na Primavera, atrai mulheres de todos os pontos do norte de Itália. Estas são agricultoras, operárias em fábricas, costureiras, ou simples domésticas, que durante algumas semanas se sujeitam a um trabalho mais pesado em troca de um salário extra, no geral pago em arroz.
É um trabalho exclusivamente de mulheres, pela necessidade da delicadeza das mãos femininas no tratamento de uma planta sensível. Tal coloca a ênfase no papel da mulher, símbolo de vida e nascimento, símbolo de uma luta primordial e de alegria interna. Por isso, o filme, visto pela perspectiva feminina dos ritmos do trabalho, pautados pelos cantares, que marcam os bons e maus momentos, numa linguagem e beleza muito próprias.

Símbolo de vida, de alegria (mostrada na dança, quase num paralelo de antigas danças rituais de sagração da Primavera) e de feminilidade, é Silvana (Silvana Mangano). Exalando sensualidade a cada movimento, Silvana é o pólo de atracção que define os acontecimentos. É ela quem marca os estados de espírito no campo (por exemplo a luta entre as “regulares” e aquelas que surgiram sem contrato), quem põe a ladra Francesca (Doris Dowling) a repensar a sua vida, e quem é o alvo da atenção dos dois homens, Marco (Raf Vallone) e Walter (Vittorio Gassman).

Começando como uma história de crime (a fuga de dois ladrões após um roubo de jóias no Grand Hotel), o filme é absorvido pela força de Silvana. O filme torna-se então quase um veículo para Silvana Mangano. Sedutora nas suas danças (repare-se como marcam os dois encontros com Walter, que definem as mudanças no rumo da história), inocente de um modo juvenil nas ideias e sonhos, confusa com a realidade que tem perante a si (por exemplo no destino a dar a Francesca), fácil de seduzir e de ludibriar, são sempre os seus passos que conduzem cada novo desenvolvimento.

Francesca (Doris Dowling, com dobragem de voz de Andreina Pagnani) é o contraponto de Silvana, a mulher de passado duvidoso, que busca a redenção. É no vigor do trabalho e no companheirismo do campo que Francesca procura merecer a sua redenção. Pelos olhos de Silvana, Francesca vê os erros passados, e decide a mudança, que se concretiza ao mudar o seu afecto de Walter para Marco.

Num mundo de mulheres, são as acções dos homens que acabam por ditar o destino de cada uma. Como se cada mulher (Silvana e Francesca) fossem marcadas pelo homem que escolheram. Neste sentido, Marco (o ex-militar, de boa consciência) é o homem leal, capaz de trazer a felicidade, e Walter a promessa de sonhos impossíveis, escondidos em desilusão, e catalizadores da desgraça.

Com um filme todo ele filmado em cenários naturais, Giuseppe De Santis presta homenagem às mulheres, e ao trabalho rural, não dispensando a caracterização das condições (por vezes trágicas) por elas vividas. Seja nos cantares, nas danças de campo, no ritmo de trabalho, ou nas suas preocupações diárias, a história é uma explosão de vitalidade e feminilidade pura, sem sofisticações artificiais.
Pelo seu enredo de conflitos passionais mesclados com uma história de crime, o filme foi um dos maiores sucessos internacionais do cinema italiano da época, e o primeiro filme neo-realista a ser verdadeiramente aclamado em Itália. Apresentado no Festival de Cannes, “Arroz Amargo” foi ainda nomeado aos Oscars de Hollywood.

Curiosamente, Silvana Mangano, que De Santis considerava a Rita Hayworth italiana, não usa a sua própria voz no filme, sendo dobrada por Lydia Simoneschi, que no total a dobraria em 10 filmes. A verdadeira voz de Silvana Mangano pode no entanto ser ouvida nas sequências de canto. Na versão inglesa, a actriz é dobrada por Bettina Dickson.

23/10/23
O Túnel de Pombos, The Pigeon Tunnel, 2023, Errol Morris

John le Carré (1931-2020) 

John le Carré wiki

Documentário (Apple TV +) ótimo sobre John le Carre. Ele narrando sobre sua vida de espião e escritor. Sobre sua relação com o pai, Ronnie.
" Você amava Ronnie? Eu não sei o que é amor. Devo ter amado quando eu era criança. Mas as consequências da vida dele ficaram clara para mim. Mais tarde, quando ele queria tudo o que eu tinha, como o meu dinheiro, eu consegui encerrar esta relação. Eu conseguia sentir carinho por ele, ser indiferente e, secretamente odiá-lo.
Essas coisas existem, na verdade, entre todas as relações entre pai e filho. São como estações. Eu precisei reunir todo o ódio para escapar dele."
‘O Túnel dos Pombos’: as confissões de John Le Carré, espião que virou pop
Novo documentário acompanha a surpreendente vida do escritor que narrou os absurdos da Guerra Fria e suas consequências

Por Raquel Carneiro, Veja, 20 out 2023 

Mestre do romance de espionagem, o inglês John le Carré — pseudônimo de David Cornwell — foi um caso célebre de escritor com conhecimento de causa. No início da Guerra Fria, e antes de se tornar um autor mundialmente conhecido, ele foi espião do MI5 e do MI6, agências do serviço secreto britânico. Nas experiências que viveu no ofício, as consequências da mentira nas relações humanas o marcaram profundamente — seja na pele do impostor ou de quem é traído. No início dos anos 1950, na caça às bruxas contra comunistas, ele se infiltrou entre estudantes de Oxford e dedurou os “amigos” que flertavam com o marxismo. (...)

23/10/23
Surrounded, 2023, Anthony Mandler (Prime vídeo)


Surrounded, by Peyton Robinson, June 19, 2023 

Mo Washington (Letitia Wright) is a freedwoman. She has been free for five years since the end of the Civil War, even if she has nowhere to exercise that freedom. She has a deed for land in Colorado, but when her stagecoach is ambushed by marauders, her plan and property are stuck in limbo. Posing as a man, the only power she has to mobilize is that she’s in possession of a wanted outlaw named Tommy Walsh (Jamie Bell), whom she holds hostage as leverage on her path West.
Washington's story unfolds on a landscape that becomes an integral character in director Anthony Mandler’s “Surrounded.” The expanse of open plains and mountainous terrain promises possibility and lawlessness alike. Gunfire reverberates, and the earth itself swirls in the air—dirt and dust permanently kicked into view. The hazy horizons and warmth of the Wild West lend to stunning cinematography, but the bones of the visuals are not enough to support the film. Mandler’s direction is effective for the genre, but there’s a fatiguing number of posed cowboy-against-the-horizon shots that begin to feel kitschy on account of their frequency.

Debut feature writers Andrew Pagana and Justin Thomas are ambitious in taking on a poignant story in “Surrounded,” but ultimately fail the character of Mo Washington. There is a characterless quality that occurs from boiling down her identity to her plight alone. Her ambitions, and obstacles in achieving them, are no doubt empathetic, but the writers fail to align enough background to make her character feel deep. We’re given crumbs as to how she arrived, dressed as a man, on the back of stagecoach out west, but not nearly enough to consider Mo a fully-realized person.
Tommy is afforded a greater depth of character than the film’s hero, and consequently, is much more interesting. Mo Washington is mostly wordless, acting on moments of stiffened apprehension and tough-as-nails sharpshooting defense. Bell’s Tommy is the one with the running jaw, bouncing between big shows of ego, waxing poetic on the realities of life on the fringe, and crafting laser focused schemes to try and get Mo on his side.

Wright and Bell have good rapport as performers, but Bell takes too much of the spotlight. Where Wright fails to maintain consistency in her performance, hopscotching believability, Bell maneuvers the spectrum of Tommy’s dispositions gracefully. This may partly be due to more thorough writing on his end, but Wright also never truly feels like she’s committing and tends to lose momentum when her scene partner isn’t steering the ship.

“Surrounded” is much like a play, monologues and all, but lacks narrative drive to keep the film trucking along. The pacing sputters in cycles, with a few minutes of intense action devolving into dialogue-heavy droning and then back again. However, the film’s most effective sequence is a nail biter. In his final role, the late great scene-stealing Michael K. Williams approaches Mo and Tommy in the nighttime, and whether or not he can be trusted is as much of a mystery to them as it is to the viewer.
The film builds tension and executes effective action sequences, but these moments are fleeting. The meat of the film is meant to be a battle of wits (and brawn) between Mo and Tommy. The looming threat of his henchmen is mentioned, but not felt. The thesis of “Surrounded” is most confusing. A sizable chunk of the script is dedicated to collating Mo’s social exile as a Black freedwoman to Tommy’s banishment on account of a life of crime and spuriously included detail that his wife and child were Native. As a viewer, we recognize the inequity of these comparisons, but the film’s stance doesn’t feel as clear. 

“Surrounded” values resilience and honors the realities of what being “free” meant in the time of freedmen, yet its value is diluted by the film’s incessant practice of reiterating its takeaways through dialogue. The visuals are often stunning, and the performances of the supporting cast uplift its entertainment value. But emotional intricacies are simply not there, and in a narrative that relies so heavily on support for its hero, they’re greatly missed. Base human empathy is not enough to inspire investment, and the “we’re more alike than we think” position negates much of the film’s emotional credibility. Mo is a motivating hero, but she winds up an accessory to her own story.

Peyton Robinson is a freelance film writer based in Chicago, IL.