quinta-feira, 12 de outubro de 2023

'A última crônica', Fernando Sabino 100

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você…”. Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Elenco de cronistas modernos, 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.


É preciso descancelar Fernando Sabino

O mineiro Fernando Sabino completaria 100 anos no próximo dia 12 e estava sentado à mão direita de Rubem Braga, o Deus supremo dos cronistas, quando em 1991 publicou “Zélia, uma paixão”

Por Joaquim Ferreira dos Santos, 09/10/2023, O Globo

Fernando Sabino e Lygia Marina, nos anos 1980 — Foto: Internet

Sim, é verdade, ele disse que Zélia Cardoso de Mello, a ministra da Economia do governo Collor, era a personalidade pública mais fascinante que havia surgido no país desde Juscelino Kubitschek, e, não satisfeito, escreveu uma biografia autorizada em que 143 das 267 páginas eram dedicadas aos detalhes do envolvimento amoroso que a referida senhora manteve com outro ministro, um affair iniciado num evento público, diante de jornalistas, com o casal dançando “Bésame Mucho”.

O mineiro Fernando Sabino, morto em 2004, completaria 100 anos no próximo dia 12 e estava sentado à mão direita de Rubem Braga, o Deus supremo dos cronistas, quando em 1991 publicou “Zélia, uma paixão”. Tinha um currículo monumental. O romance “Encontro marcado” era um dos marcos da literatura brasileira, assim como a coleção de 20 livros (“Homem nu” chegou ao cinema) com textos às vezes bem-humorados, outras, filosóficos, que costumam ser rotulados de crônicas. Ao final das 267 páginas de “Zélia”, aquele monumento da mais fina, elegante e acessível prosa nacional estava ao chão. Foi, como se diz em mineirês, um trompaço.

No primeiro dia do governo Collor, a ministra boquiabrira o país com o confisco da poupança e aquilo era só o início de uma tragédia que culminaria com o impeachment do presidente. Em outubro de 91, quando o livro foi lançado, Zélia já estava fora do governo caótico, mas nem isso impediu que Sabino a definisse como uma nova Madame Bovary, a heroína de Flaubert.

A revista Veja classificou o livro como “escandalosamente ruim”, enquanto Millôr Fernandes preferiu perder a amizade, mas não a piada, e, no Jornal do Brasil, desenhou Sabino, seu parça de frescobol no Arpoador, carregando uma mala estufada de dinheiro. Em pânico com a unanimidade adversa, o biógrafo de Zélia trancou-se em casa.

Neste centenário a grande comemoração seria tornar prescrito o trompaço intelectual e descancelar Fernando Sabino, suspender o confisco de sua reputação literária. Devolver-lhe as merecidas glórias.

Aos que não perdoam, que ainda se ressentem da cumplicidade com a era Collor, recomenda-se a leitura de “A última crônica”, um comovente e solidário texto a respeito da desigualdade entre as famílias brasileiras. Num canto de bar, pai, mãe e filha, todos pretos, cantam parabéns para a menina, que assopra a velinha posta não no alto do bolo, mas num único e raquítico pedaço dele.

Mesmo trancado em casa, os fantasmas de “Zélia” – mais de 200 mil almas penadas, digo, livros vendidos – assombravam Sabino, e em seguida, radicalizando a vontade de ficar sozinho, os grandes amigos já todos mortos, ele separa-se de sua mulher há 17 anos, Lygia, a belíssima musa da canção de Tom Jobim. Pior. Revisa novas edições dos livros antigos, apagando o nome dela de todas as dedicatórias e das crônicas em que era musa – o que embaçou sua imagem de cavalheiro. O homem estava nu.

Tudo isso é triste, mas a obra deliciosa de Fernando Sabino paira acima de todos esses trompaços, e neste centenário é preciso resgatá-la. Saudá-la mais uma vez com a mesma alegria que proporciona. A madame Bovary agora mora em Nova Iorque, esquecida. Ficou, e para sempre ficarão, “A inglesa deslumbrada”, “A mulher do vizinho” e a amiga Clarice Lispector, a quem ele escrevia lindas, todas já publicadas, cartas de paquera-existencial. Sim, é preciso vestir Fernando Sabino

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Fernando Sabino, 100, ergueu sua literatura popular da crônica

Escritos do mineiro, que foram façanhas de popularidade, são marcados por simplicidade que custa muito a se conseguir 

Alvaro Costa e Silva, 11.out.2023, Folha de São Paulo

O escritor Fernando Sabino Acervo do autor 



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