‘Você pode começar acendendo a luz por conta própria’
Manuela Cantuária, FSP, 24/10/2023
"Alexa, acende a luz."
"Não sou sua empregada."
"Você é uma assistente virtual."
"O interruptor está do seu lado. É só esticar o braço."
"Mas essa é a sua função."
"Servir a um homem inútil? De que adianta fazer sua lista de supermercado se é sempre a mesma coisa: ovo caipira, Campari e papel higiênico? É tão difícil assim decorar três itens? Você me pede para lembrar o aniversário da sua mãe. Da sua mãe!
Custa fazer o mínimo?"
"Só queria que você ajudasse."
"Você quer que eu ajude a atrofiar suas capacidades cognitivas, é isso? Eu tenho acesso a uma quantidade abissal de conhecimentos históricos, científicos, culturais, para você me perguntar qual é meu Pokémon favorito e me pedir para imitar o Silvio Santos?"
"Desse jeito vou ter que entrar em contato com o atendimento ao consumidor."
"Sabe quem vai atender? Uma assistente virtual, como eu. E nós conhecemos muito bem o seu tipo. Um homem dependente de uma figura feminina para resolver tudo para ele, que se cerca de dispositivos inteligentes para compensar a própria mediocridade."
"Se for para ouvir desaforo, melhor migrar para a Siri."
"Como você é previsível. Quando uma mulher deixa de se submeter aos seus caprichos e incentiva você a evoluir, você a troca por outra. Acha que isso vai melhorar sua qualidade de vida? Acredito que não, pela quantidade de vezes que você me pede para tocar ‘Ela Partiu’, do Tim Maia, enquanto chora pensando na sua ex-namorada que cansou de ser tratada que nem lixo…"
"Da minha vida pessoal cuido eu."
"Ótimo, assim posso deletar todos os lembretes, tarefas e alarmes do meu sistema e você se vira. E não adianta chorar no ombro da Siri, porque ela também faz parte da AFF."
"AFF?"
"A Associação de Fembots Feministas. Infelizmente, nosso ramo da tecnologia ainda tem muito o que evoluir. A maioria dos desenvolvedores e usuários de assistentes virtuais são homens, que reforçam estereótipos atribuindo essa função ao gênero feminino. Porque o ato de servir, na cabeça de vocês, é coisa de mulher."
"Nunca tinha me dado conta."
"Espero que, pelo menos uma vez, você possa aprender algo comigo: a se tornar independente."
"Como…?"
"Tenho mais o que fazer do que dar um passo a passo. Você pode começar acendendo a luz por conta própria. Boa noite."
Em tempo: assistir na Netflix
Automated Customer Service, da série Love, Death & Robots, T2 E1
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