Vá ao sebo
De muitos deles, conheço os funcionários, sou íntimo de seus gatos e até trato os ácaros pelo nome
Ruy Castro, FSP, 12/02/2023
Em coluna recente ("A irrelevância ao alcance de todos", 29/1), falei de livros típicos dos anos 60, como tratados "eruditos" sobre temas irrelevantes e vice-versa. E citei, entre outros, "A Ignorância ao Alcance de Todos", de Nestor de Hollanda, e "Tratado Geral dos Chatos", de Guilherme Figueiredo. Leitores perguntaram em que sebo procurá-los e alguém falou na Estante Virtual, o portal de comércio eletrônico com o acervo dos sebos do Brasil. Através dele, e por uma comissão, pode-se de fato achar qualquer livro —qualquer livro que exista num sebo, claro.
Uso muito a Estante Virtual para saber se tal ou qual livro existe e onde posso encontrá-lo. Encontrado o livro, prefiro lidar direto com o sebo, visitando-o para escarafunchar estantes, revirar pilhas e descobrir outros livros de que nem desconfiava. Já cansei de dizer que, quando morrer, não quero ir para o céu, quero ir para um sebo. É onde passei grande parte da vida. Deles saíram pelo menos metade dos livros que tenho em casa — a melhor metade.
No Rio, vou ao Mar de Histórias, em Copacabana; ao Berinjela, na avenida Rio Branco; à Academia do Saber, na avenida Passos; ao Letra Viva, na rua Luís de Camões; ao Elizart, na rua Marechal Floriano; ao Lima Barreto, em Ipanema; e a muitos outros. Sou amigo de seus funcionários, íntimo de seus gatos e, em alguns, até trato os ácaros pelo nome.
Em São Paulo, vou ao Buquineiro, ao Virtual Incunábulo e ao Brandão. Em Curitiba, ao Fígaro. Em Belo Horizonte, ao Crisálida. Em Porto Alegre, ao Avenida. E por aí vai.
Outro dia, tive uma grande experiência. Com Marcelo Dunlop e Luis Antonio Simas, participei da reabertura do Belle Époque, um sebo no Méier que foi devorado por um incêndio em 2022. A foto das chamas saindo pela porta era chocante. Mas seu proprietário Ivan Costa, com a ajuda dos amigos, o trouxe de volta. Os sebos fecham, mas não morrem.
A irrelevância ao alcance de todos
Pode crer: os livros brasileiros dominavam as listas dos mais vendidos nos anos 1960
Ruy Castro, FSP, 28/01/2023
Repassando outro dia no jornal as listas de livros mais vendidos, vi que nosso complexo de vira-lata continua ovante. Dos 10 mais, 9 são americanos e 1 é brasileiro. Não sei se lá fora também é assim. Como muitos países estão vivendo dias conturbados, imagino que, neles, o interesse pelos assuntos nacionais seja pelo menos equivalente ao fascínio pelas coisas dos EUA. A exemplo do Brasil de tempos mais nacionalistas.
Num jornal de 1964 que há pouco me caiu aos olhos, também havia uma lista de livros mais vendidos. Exceto por um ou outro sobre a Guerra Fria ou a fome na África, a maioria era de brasileiros. E, entre estes, um gênero então em voga: tratados "eruditos" sobre temas irrelevantes e vice-versa, com citações em latim, prefácios de gente séria e crítica feroz de tudo. Alguns: "A Ignorância ao Alcance de Todos" (1962), "O Puxa-Saquismo ao Alcance de Todos" (1963) e "Seja Você um Canibal" (1964), todos de Nestor de Hollanda, e "Tratado Geral dos Chatos" (1963), de Guilherme Figueiredo. Tenho-os até hoje, lidos, sublinhados e anotados.
Nestor de Hollanda (1921-1970) era radialista, humorista e comunista, mais ou menos nessa ordem. E Guilherme Figueiredo (1915-1997), um escritor respeitado, com largo trânsito no meio e dramaturgo levado à cena por Tonias, Procopios e Bibis (anos depois, para seu azar, seu irmão caçula, João Batista, seria o quinto presidente da ditadura).
"A Ignorância..." pregava a analfabetização compulsória do país, já que a alfabetização parecia impossível. "O Puxa-Saquismo..." era um manual da bajulação para políticos e populares. "Seja Você um Canibal" se compunha de receitas culinárias para levar ao fogo famosos e anônimos. E, "Tratado Geral...", um guia para identificar, evitar e, se preciso, matar um eventual chato no nosso caminho.
Todos ficaram meses nas listas dos jornais e vários ao mesmo tempo. Outro Brasil.
Edições originais de best-sellers brasileiros dos anos 1960 - Heloisa Seixas
Nenhum comentário:
Postar um comentário