sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Carlos Saura (1932 - 2023)

Carlos Saura, respeitado por Buñuel, teve uma obra feroz contra Franco

Diretor espanhol subestimado ainda ficou célebre por destacar a música e a dança, com ritmos como o flamenco e o tango

Sérgio Alpendre, FSP, 10/02/2023

A morte, essa sombria entidade, continua levando gente das artes, e do cinema em particular. Desta vez foi Carlos Saura (4 de janeiro de 1932 - 10 de fevereiro de 2023), cineasta espanhol que nos deixa aos 91 anos. Não era um mestre do nível de Luís Buñuel, e talvez nem fosse possível, pois estamos falando de um deus do cinema.

Nem tinha o apelo comercial de Pedro Almodóvar. Durante muitos anos, foi injustamente subestimado. Nunca um gênio, sempre um diretor interessante, com tráfego livre por diversos tipos de filmes.


A atriz Geraldine Chaplin e o diretor espanhol Carlos Saura no Festival de Cannes de 1978 - Ralph Gatti/AFP

Conhecido sobretudo por aqueles que enveredam pela música — flamenco, principalmente, mas também o fado e o tango —, Saura teve sua melhor fase ainda sob o regime franquista, quando realizou obras de forte cunho político e alegórico como "A Caça", de 1965, "O Jardim das Delícias", de 1970, "Ana e os Lobos", de 1972, "A Prima Angélica", de 1973, e "Cria Corvos", de 1976.

Saura lançou seu primeiro longa, "Los Golfos", em 1960. Compôs, logo em seguida, com Juan Antonio Bardem e Luis García Berlanga, uma trilogia de grandes diretores do cinema moderno espanhol, cujo período áureo se deu entre 1963 e 1967.

Bardem é mais conhecido por "A Morte de um Ciclista", de 1955. Berlanga tornou-se mundialmente conhecido por "O Carrasco", de 1963. Nesse mesmo ano, Saura realizou seu segundo longa, "Llanto por um Bandido", protagonizado por Francisco Rabal e com participação afetiva de Luis Buñuel.

Foi com "A Caça", seu terceiro longa, que Saura tornou-se diretor de primeira grandeza do cinema espanhol, merecendo a companhia de Bardem e Berlanga. Talvez seja mesmo seu maior filme, um conto de crueldade humana bem influenciado por Buñuel, com toques de Jean Renoir, em que a natureza perversa dos homens é desnudada sem meias tintas.

Seu amigo Buñuel, por sinal, gostava muito de "A Caça" e "A Prima Angélica", e dizia ser muito sensível aos filmes de Saura, aragonês como ele, com exceção de "Cria Corvos". Não explica por que essa distância com um dos filmes mais famosos de Saura. Podemos tentar entendê-la por uma diferença geracional: Saura nasceu em 1932, Buñuel em 1900. Mas há também o fator crítico. Embora se apresente como uma continuidade do que veio antes, "Cria Corvos" traz também um ar de esperança talvez inédito no cinema de Saura.

Após a morte do caudilho Francisco Franco em 1975, inicia-se um processo de redemocratização da Espanha, com a volta da monarquia e a nomeação do rei Juan Carlos. Saura deixa que seu filme seja parcialmente contaminado por esses novos ares, perdendo assim parte da contundência das alegorias políticas que havia realizado anteriormente.

Seus filmes passam a enfrentar críticas mais duras, apesar da beleza poética de "Elisa, Vida Minha", de 1977, da contundência de "Olhos Vendados", de 1978, uma espécie de acerto de contas com a ditadura, e da melancolia de "Mamãe Faz Cem Anos", de 1979, com a matriarca simbolizando a Espanha, ameaçada pelos herdeiros de um sistema político incerto.

Quase todos esses filmes tiveram como protagonista, ou vivendo personagem muito importante na trama, a atriz Geraldine Chaplin, filha de Charles Chaplin, com quem Saura teve relacionamento por muitos anos e um filho em 1974, Shane Saura Chaplin. Geraldine Chaplin deu rosto às inquietações do autor, sendo de grande importância no processo criativo de seus filmes até então.

Nos anos 1980, sem Geraldine Chaplin, Saura sentiu a necessidade de se renovar. Realiza então a famosa trilogia flamenca, composta por "Bodas de Sangue", de 1981, "Carmen", de 1983, e "Amor Bruxo", de 1986, o mais belo e injustiçado dos três.

O motivo flamenco voltaria anos depois, em "Sevillanas", de 1992, "Flamenco", de 1995, e "Flamenco, Flamenco", de 2010. A pobreza dos títulos poderia sugerir uma abordagem mais direta, o que também acontece, embora seja mais um sinal de que algo se perdeu nos anos 1990. Há um tanto de verdade nesse testemunho da decadência, mas também uma grande injustiça. Saura pode ter se acomodado em alguns filmes, principalmente dos anos 1980 em diante.

Mas em outros costumava ousar bastante, como no grandioso e ao mesmo tempo intimista "El Dorado", de 1988, uma resposta a "Aguirre, a Cólera dos Deuses", longa que desagradou Saura, realizado por Werner Herzog em 1972, ou em telefilmes como o memorável "A Noite Escura", de 1989, sobre o poeta San Juan de la Cruz e seu confinamento em Toledo.

Conforme escreveu o historiador Marvin D’Lugo, autor de um importante livro sobre os filmes de Carlos Saura até 1989, o cineasta, nos anos 1980, passou a se concentrar em temas que envolvessem rebelião social, com personagens que instintivamente desafiam as normas estabelecidas. Segundo D’Lugo, isso já fica evidente no primeiro filme oitentista, o irregular "Depressa, Depressa", de 1981, mas também em toda a trilogia flamenca, encontrando sua exacerbação em "El Dorado" e "A Noite Escura".

Estes dois últimos sugerem uma retomada da melhor forma por Saura. O que se deu a seguir, contudo, foi um retrocesso simbolizado por uma comédia simpática, mas limitada, chamada "Ay, Carmela!", de 1990. A partir daí se tornaria mais difícil não reconhecer uma certa decadência do autor, e uma franca desigualdade nos filmes posteriores.

De fato, desde a trilogia flamenca original dos anos 1980, Saura alternou projetos musicais pouco ambiciosos, embora nunca desprezíveis, com uma obra extremamente ousada, que dividiu a crítica internacional violentamente. No meio desses projetos musicais, um notável deslumbramento com a música argentina no plasticamente belo "Tango", de 1998.

Em 2001, homenageou o amigo e pai cinematográfico em "Buñuel e a Mesa do Rei Salomão", mas o resultado foi um de seus longas mais frágeis. Com seu último longa, o elogiado documentário "Las Paredes Hablan", de 2022, procura investigar em imagens as origens da arte.

Incansável, Saura sempre realizou filmes com frequência invejável, deixando que o tempo separasse os melhores dos menos afortunados.

Seu trabalho mais audacioso dos últimos 30 anos é "Goya", de 1999, no qual procura recriar o ocaso do famoso pintor espanhol por meio de imagens febris e maneiristas. A fotografia de Vittorio Storaro é tão determinante para a beleza plástica do filme, que muitas vezes ele é considerado codiretor.

No papel do pintor em seus últimos momentos de vida, um ator emblemático do cinema espanhol e do cinema de Saura: Francisco Rabal, que morreria dois anos depois nas proximidades de Bordeaux, como Goya.

E as ironias do destino não param aí. Neste dia 11 de fevereiro, Saura receberia um prêmio Goya honorário por sua carreira. Goya é conhecido como o "Oscar espanhol", o prêmio mais importante do cinema no país.

Cineasta Carlos Saura - AFP

NB: os liks imdb ocultos foram inseridos por este que vos fala


Os corvos e a memória do trauma: um olhar para o cinema de Carlos Saura 

Julián Fuks*, UOL, 16/02/2023

A morte de um grande artista sempre convida a multiplicar olhares sobre sua obra, a tentar observar enfim o que nos escapava. Diante da perda de Carlos Saura, senti uma vontade de retornar aos seus filmes e sobretudo de ouvir aqueles que os conheciam em profundidade. Como não quis guardar só para mim esse aprendizado, chamei o escritor e crítico de cinema Ignacio del Valle Dávila a ocupar esta página, recuperando com precisão e encantamento a trajetória desse cineasta indispensável. 

Texto por Ignacio del Valle Dávila:

"Crie corvos e eles comerão seus olhos", o provérbio é tão popular na Espanha que quase ninguém o diz inteiro, basta pronunciar as duas primeiras palavras. Usa-se para se queixar ante a ingratidão e também se pode aplicar a atitudes que, em longo prazo, têm consequências nefastas. Neste último sentido o empregou Carlos Saura em seu filme mais célebre, Cría Cuervos (1976), embora o título pudesse servir para boa parte de sua filmografia.

Saura faleceu sexta-feira passada aos 91 anos. Nasceu em Huesca, cidade próxima aos Pirineus, em um frio janeiro de 1932, menos de um ano após o início da Segunda República Espanhola. Como toda sua geração, viveu uma infância marcada pela violência fratricida da Guerra Civil (1936-1939) e, depois, causada pelo revanchismo e a mediocridade intelectual dos vencedores. Cresceu sob o discurso nacionalista e ultracatólico do franquismo, enquanto a Espanha afundava em uma cotidianidade cinza, isolada da Europa. Esse é o trauma pessoal e coletivo cujas consequências explorou em seus filmes dos anos 1960 e 1970, com uma agudeza que escapou da censura.

A caça (1966), seu terceiro longa-metragem, o lançou à fama internacional ao receber o prêmio de mise-en-scène do Festival de Berlim. O filme é um dos primeiros marcos do Novo Cinema Espanhol e fez de Saura um dos grandes expoentes da renovação formal e temática que alguns cineastas tratavam de efetivar naquele período. Até o fim dos anos 1970, realizou uma série de obras fundamentais, frutos da colaboração com o produtor Elías Querejeta e protagonizadas por Geraldine Chaplin, companheira de Saura durante mais de uma década. Surgiram filmes como Peppermint frappé (1967), A Colméia (1969), Ana e os lobos (1973), Cría cuervos (1976) e Elisa, vida minha (1977). As alusões ao mundo animal são frequentes em muitos dos títulos daqueles anos, quando Saura abordou o recalque sistemático dos impulsos de vida e morte na alta burguesia do último franquismo. Trata-se de um cinema simbolista, com personagens que levam uma existência marcada por obsessões edípicas, atritos intergeracionais, amnésias e memórias em conflito. Costumam habitar casas abandonadas ou em ruínas e experimentam uma confusão temporal que torna indistinguível o hoje do ontem. Parecem condenados à repetição constante de um trauma que paira sobre eles como um manto descarnado.

Após se separar de Geraldine Chaplin e se afastar progressivamente de Querejeta, a obra de Saura experimentou uma guinada. A partir dos anos 1980, abandonou as referências psicanalíticas e se interessou por uma ampla gama de gêneros, convertendo-se em um dos autores espanhóis mais versáteis (mais que Pedro Almodóvar, Luis García Berlanga, Juan Antonio Bardem e, talvez, mais que Luis Buñuel, por quem declarava franca admiração). Em 1980, aproximou-se da moda do cine quinqui - filmes sobre delinquentes juvenis das novas periferias urbanas - com Depressa, depressa (1981), um de seus melhores longas-metragens. Nele, abordou com um realismo sujo o vício pelas drogas e a exclusão social ("cria corvos") na jovem democracia espanhola. Explorou o cinema histórico com filmes como El Dorado (1988) - uma das produções mais caras do cinema espanhol -, A noite escura (1989) e Goya (1999). Voltou à Guerra Civil em uma comédia dilacerante, Ai, Carmela! (1990), na qual brilha uma inesquecível Carmen Maura. Esse filme acabaria sendo seu maior sucesso na Espanha.

Saura teve uma agudíssima sensibilidade musical que se percebe nas composições que acompanham seus filmes. Curiosamente, em boa parte deles, a música provém do interior da história, ou seja, ouvimos o que escutam (e cantam) os personagens. É o caso de Porque te vas, de Jeanette, em Cría Cuervos; Me quedo contigo, de Los Chunguitos, em Depressa, depressa; ¡Ay Carmela! no filme homônimo. A música de seus melhores filmes ganhou uma dimensão tão forte que se tornou uma peça fundamental da memória de mais de uma geração de espanhóis.

A música e a dança marcaram sua obra a partir dos anos 1980. Nenhum cineasta fez tanto pela reivindicação cultural do flamenco como Saura nos filmes que realizou junto ao coreográfico Antonio Gades: Bodas de sangue (1981), Carmen (1983), Amor bruxo (1986). Esta trilogia essencial foi sucedida por uma longa série de filmes sobre dança. Não apenas ritmos espanhóis despertaram sua atenção, também outros estrangeiros, como se pode apreciar em Fados (2007), Tangos (1998) e Zonda: folclore argentino (2015).

Saura nunca quis se aposentar, seu último filme estreou no ano passado. Morreu um dia antes de receber o Goya Honorífico, um dos prêmios mais prestigiosos do cinema espanhol. "Chegamos a pensar que era imortal", comentou nas redes sociais a francesa Nancy Berthier, diretora da Casa de Velázquez em Madri. Não era imortal, mas levava mais de meio século sendo indispensável. Ante o auge da ultradireita na Espanha e em tantos outros lugares (basta olhar para o Brasil), voltar aos filmes de Saura é um exercício que nos sana, uma forma de educação democrática para não seguir criando corvos.

*Ignacio del Valle Dávila é doutor em Cinema, professor permanente da pós-graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


Nenhum comentário:

Postar um comentário