A luta de Tanaru supera sua morte
Enquanto esteve vivo, ‘Índio do
Buraco’ escapou da fúria dos brancos e protegeu a floresta; depois de
sepultado, pode ajudar a salvar outros povos
Catarina Barbosa, Sumaúma, 1 dezembro 2022
Há uma disputa pela Terra Indígena Tanaru – e
uma das partes interessadas já não pode se defender. O indígena Tanaru,
conhecido como “Índio do Buraco” e encontrado morto em sua casa no dia 23 de agosto de 2022, sobreviveu sozinho
durante 26 anos ao genocídio perpetrado contra seu povo. Enquanto esteve vivo,
fazendeiros e grileiros vizinhos esperavam que morresse para poder reivindicar
na justiça dos brancos os mais de 8 mil hectares da Amazônia protegidos por sua
existência. Depois de morto, Tanaru conquistou uma primeira vitória. Mas ela
ainda é provisória.
O indígena isolado partiu, mas há pessoas não
humanas como testemunhas de que a terra ancestral é ocupada por povos originários
que preferem não ter contato com brancos. A Terra Indígena Tanaru, no sul do
estado de Rondônia, na Amazônia brasileira, é um lugar onde rios ainda
percorrem o curso natural da vida, pássaros cantam livremente e porcos-do-mato,
antas e tatus não estão ameaçados de extinção.
A floresta está conservada, porque nos últimos
26 anos Tanaru cuidou de si e de todos que habitam aquele espaço. O nome
atribuído ao indígena é uma homenagem a um dos rios que fazem pulsar o
território em que ele – o único sobrevivente de um genocídio – existiu,
protegido por uma portaria da Funai que restringia o uso da terra e respeitava
sua vontade de não fazer contato. Com sua morte, porém, todos aqueles que
defendem a floresta e seus povos temiam o fim da proteção, ainda que ela tenha
validade até 2025.
Tanaru era um homem de cabelos lisos, olhos
puxados e bigode, o que chamava a atenção, já que é incomum ver indígenas com
pelos no rosto. O trabalho na roça, as casas que construiu para si mesmo e os
quilômetros que percorreu ao longo da vida deram ao seu corpo uma constituição
atlética. Apesar da companhia diária de pessoas não humanas, ele viveu apartado
de outros indígenas e, principalmente, dos brancos.
Não é possível afirmar quantas pessoas do povo
de Tanaru estavam vivas nos anos 1990. Essa falta de precisão tem
justificativa. Os indígenas só passaram a ser percebidos como seres dotados de
direitos a partir da Constituição de 1988. Na ditadura empresarial-militar
(1964-1985), o extermínio de indígenas era normalizado em nome do
desenvolvimento econômico – ou do “progresso”. Dados da Comissão Nacional da
Verdade (CNV) apontam que ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres,
remoções forçadas de seus territórios, doenças infecto-contagiosas, prisões,
torturas e extermínios, todos vítimas dos governos militares. Tudo indica,
porém, que o número de mortos é muito maior.
Há outras lacunas, a exemplo de quando e como
os parentes de Tanaru morreram. O que se sabe é que esses familiares existiram,
porque, em 1995, foram achados vestígios de casas, roças e utensílios em maior
quantidade do que os que seriam vistos com ele nos anos seguintes. Até então,
segundo os pesquisadores, Tanaru vivia cercado por no máximo 5 pessoas de uma
mesma etnia.
Em 1995, uma equipe da Frente de Proteção
Etnoambiental Guaporé, da Fundação Nacional do Índio (Funai), acompanhava o
cineasta Vincent Carelli – autor do documentário Corumbiara –, quando encontrou
um novo desmatamento em uma área de Rondônia ameaçada pela grilagem. Em um
espaço de mais ou menos 1 quilômetro quadrado, havia uma plantação de banana
destruída, uma casa que media 4 por 5 metros e, dentro dela, um grande buraco.
Ao redor da roça, que aparentava ter entre de
3 a 4 anos, havia vários outros buracos, muitos escondidos por folhagem seca ou
troncos de árvore. O lugar tinha aspecto de terra arrasada, atacada com
violência. Em meio aos vestígios do crime, restavam madeiras queimadas e
fragmentos do cotidiano.
Foram encontrados utensílios do dia a dia e
até uma flauta deixada para trás na urgência de abandonar o local onde aquelas
pessoas plantavam, dormiam, amavam e entoavam suas músicas. Depois dessa
descoberta, os funcionários da Funai procuraram os indígenas por anos, mas
somente um foi encontrado. Tanaru. O único sinal de que ele não estava sozinho
no mundo – até então – era a casa grande que media 4 por 5 metros. Todas as
outras eram menores, mostrando que, daquele povo, só restava um.
Há suspeitas de que uma parte dos indígenas
tenha sido envenenada com uma mistura de chumbinho e açúcar, mas nunca foi
possível provar que os familiares diretos de Tanaru foram vítimas dessa
atrocidade. O homem que sobreviveu possivelmente guardou na memória a lembrança
da casa destruída pelos brancos, o que o fez decidir viver ao lado somente dos
que confiava: as pessoas não humanas, que, como ele, eram natureza.
O primeiro contato de Tanaru com a equipe da
Funai, registrado no documentário Corumbiara, foi tenso. Além de tentar se
proteger com uma flecha, ele negou qualquer contato visual. Em uma das imagens,
ele deu sinais explícitos de que não queria proximidade. Depois de ver seu povo
inteiro ser exterminado, essa reação aos brancos era mais do que previsível.
O buraco que Tanaru cavava em suas casas, e
que acabou por nomeá-lo, era o ponto central da construção. Antes mesmo de
paredes ou portas, havia um buraco. Com o passar dos anos, os funcionários da
Funai descartaram um sentido prático – como o de se proteger de um inimigo ou
guardar coisas. Existe a hipótese de um significado espiritual ou religioso,
mas não há como saber. Tanaru se recusou a contar o que sentia, acreditava e
vivia aos autores do genocídio de seu povo.
Durante os 26 anos em que foi acompanhado pela
Funai, o indígena isolado construiu 53 casas – estas foram as monitoradas; é
possível que ele tenha erguido muitas outras. Além do buraco, as moradias –
feitas de palha e madeira – tinham uma única porta e eram habitadas por até 3
anos. Depois, se deterioravam. Nos períodos de conflito com grileiros que
ameaçavam sua vida, Tanaru chegou a manter até 3 casas simultaneamente. Ele
costumava construir e, ao terminar, se mudava com suas ferramentas, a rede, 2
panelas, o arco e a flecha. Nos últimos anos, passou também a transportar um
pilão.
Plantava mamão, milho e, às vezes, mandioca,
cará e até amendoim. Na caça, priorizava animais de pequeno porte, a exemplo de
queixada (porco-do-mato), tatu e aves, como mutum e jacu. Para saciar a sede, o
rio lhe cedia um pouco de suas águas. Da semente e da polpa do jatobá, uma
árvore que tem em média 40 metros de altura, e que, na Amazônia brasileira, já
alcançou os 95 metros, Tanaru fazia suco.
Por viver sem a companhia de seu povo, foi
preciso se reinventar e aprimorar técnicas. A rede, essa cama suspensa feita de
diversos tipos de fibra, em muitas comunidades indígenas é tecida por mulheres.
A de Tanaru era de embira, um material resistente obtido da casca de algumas
árvores. Depois de extraída, a casca é desfiada e tecida para dar corpo a
cordas grossas e finas, que, entrelaçadas, se transformam em várias coisas,
entre elas, uma rede.
Nas primeiras habitações analisadas pela
equipe da Funai, era possível identificar a pouca habilidade de Tanaru para
trabalhar o material. No início, ele só extraía a embira, sem transformá-la em
cordas – estendia as fibras e dormia sobre elas. Depois, passou a tecê-las e,
por fim, deitou-se para morrer em uma rede fabricada por ele mesmo.
Terra Indígena Tanaru vista de cima vídeo
Enquanto viveu, Tanaru conseguiu escapar da
fúria dos brancos. E resistiu na floresta de seus ancestrais. A disputa
judicial pela Terra Indígena Tanaru, que chegou ao Supremo Tribunal Federal,
tem também como testemunha o passado genocida do Brasil contra os povos
originários.
Desde a época da invasão dos europeus às
terras que chamariam de Brasil, centenas de povos indígenas desapareceram,
vítimas do genocídio praticado pelo Estado e por invasores, em especial
grileiros, madeireiros e garimpeiros. Entre 1500 e 1957, foram exterminados 97%
dos indígenas que viviam no território usurpado. Hoje há mais de 300 povos, que
falam mais de 270 línguas diferentes, e são alvo constante de ataques, do
agronegócio predatório a uma Funai comandada por anti-indígenas, como no atual
governo.
Tanaru e seu povo foram vítimas desse processo que, ao longo dos últimos 5 séculos, oscilou entre políticas de assimilação e de extermínio físico. Ao conseguir morrer em vez de ser morto, o “Índio do Buraco” se tornou um símbolo de resistência.
Analisando as fotos feitas por câmeras de
monitoramento da Funai é possível ver Tanaru perdendo as forças, talvez por um
processo de adoecimento. Durante 2 meses, o homem vigoroso mudou seus hábitos:
o arco, usado para caça, foi encontrado coberto de fuligem. Algumas flechas já
tinham sido guardadas. Nos últimos tempos, ele caçava somente com armadilhas.
Tanaru sabia que a morte estava à espreita e,
para esperar, pôs na cabeça um chapéu amarrado com cordas de embira. Sobre o
corpo, usou um singelo feixe de plumas de arara. Ele também sabia que era
monitorado e seria encontrado. Pelo estado de decomposição do corpo, calcula-se
que estivesse morto há quase 40 dias.
A última vez que foi visto com vida, em abril
de 2020, a expedição de monitoramento da Funai constatou que Tanaru estava bem
de saúde, porque construía uma casa. Mais de 2 anos depois, porém, em 23 de
agosto de 2022, uma nova inspeção encontrou mato alto na roça – sinal de que há
pelo menos 1 mês ela não era trabalhada. Ao cruzarem um igarapé, os servidores
passaram por uma plantação de mamão e, na sequência, viram um machado jogado no
chão. Tanaru nunca largava uma ferramenta para trás. A porta da casa aberta e o
entra e sai de moscas e abelhas fizeram com que os funcionários se
aproximassem.
Tanaru foi descoberto pouco mais de 1 mês
antes do primeiro turno da eleição presidencial mais importante para o futuro
dos povos originários. A notícia de sua morte repercutiu no mundo todo. O
destino de seu corpo se tornou o centro de uma disputa pela sua terra. A data
inicial prevista para o enterro era 14 de outubro de 2022, mas ela foi adiada,
a mando do coordenador da Funai, Marcelo Xavier, sem qualquer justificativa
plausível. Xavier é notório por colecionar posições contra os indígenas e a
favor dos ruralistas.
Entre as alegações para a postergação, estava
a necessidade de coleta de material genético, a exemplo de uma mecha de cabelo,
para que pudesse ser feita uma análise do grupo étnico ao qual Tanaru
pertencia. Mas a conclusão é que a identificação não seria possível porque o
acervo genético de indígenas de posse da Polícia Federal é reduzido.
Suspeita-se que Xavier tinha a intenção de atrasar o sepultamento de Tanaru em
sua terra ancestral para dar tempo de ela ser invadida pelos grileiros e
fazendeiros que a disputam. Procurado por meio da assessoria de imprensa, o
coordenador da Funai não deu resposta até a publicação desta reportagem.
SUMAÚMA se mantém aberta para sua manifestação.
Foi preciso atuar rápido para desmascarar a manobra de Xavier e garantir que o corpo de Tanaru fosse acolhido pela terra que ele ajudou a manter viva. O desejo do indígena de ser sepultado no espaço em que viveu, manifestado pela forma como se preparou para morrer, só foi respeitado mais de 3 meses depois, por determinação da Justiça Federal, após um pedido urgente do Ministério Público Federal. Por 3 meses, seus restos mortais ficaram amontoados em 2 caixas guardadas pela Polícia Federal, em Brasília, o que violenta o ritual fúnebre de todos os povos originários conhecidos.
Depois de finalmente ser liberado, o
sepultamento foi planejado por indígenas de etnias que acompanharam Tanaru de
longe enquanto vivia, como os Kanoé, os Sabanê, os Aikanã, os Tupari e os
Akuntsu, da Terra Indígena Rio Omerê, e também pelos próprios funcionários da
Funai. Houve muito diálogo, porque, apesar de eventuais semelhanças, o ritual
funerário é um ato muito próprio de cada povo, em geral conduzido por pessoas
próximas ao morto.
Tanaru foi homenageado seguindo o rito
tradicional de povos da região. Houve, porém, um impasse em relação a seus
pertences. Para os Kanoé, os objetos devem ser enterrados junto ao corpo. Entre
os Akuntsu, uma única peça é guardada pelos parentes e o restante é queimado
antes do sepultamento. Ao final, todos concordaram que os itens fossem levados
a um museu, como prova de que Tanaru existiu – e de que seu povo foi extinto
pela violência dos brancos.
O indígena Purá Kanoé foi escolhido para
conduzir a cerimônia. Nos últimos 26 anos, ele acompanhou muitas expedições de
monitoramento da Funai e, no início, chegou a sugerir que Tanaru fosse
“resgatado”. Mas logo percebeu que o desejo daquele homem era viver sem a
presença humana, e isso foi respeitado por todos os povos. Em 4 de novembro de
2022, uma cova foi feita em sua casa e o corpo de Tanaru, da mesma forma em que
foi encontrado, de peito para cima, foi coberto com terra. Sobre a sepultura
fez-se o fogo. O ritual funerário se completou 74 dias depois de o corpo ter
sido encontrado.
Em 21 de novembro, Tanaru conquistou outra vitória na justiça dos brancos. O ministro Edson Fachin determinou que as restrições de acesso à Terra Indígena Tanaru sejam mantidas, assim como a proteção de territórios onde vivem índios isolados em todo o Brasil. Fachin julgou a ação movida pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que chegou a ser contestada pela presidência de Jair Bolsonaro. O ministro ficou ao lado dos indígenas, da floresta e da justiça. Ainda não é uma decisão definitiva, mas é uma vitória tardia depois de um massacre que custou a extinção de um povo. Tanaru, o último homem, se tornou um símbolo da capacidade de destruição que colocou o planeta em colapso climático. O que acontecer com a floresta de Tanaru determinará o futuro de todos nós.
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João Gabriel, FSP, 29.jan.2023
No mesmo dia em que o indígena tanaru conhecido como Índio do Buraco foi enterrado, fazendeiros invadiram o seu território e a sua palhoça, onde ele foi sepultado, em Rondônia. A Folha obteve fotos, tiradas por uma câmera escondida instalada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), que mostram os invasores perambulando pelo lugar na tarde daquela mesma sexta-feira, 4 de novembro.
O corpo foi sepultado durante a manhã. A cerimônia foi conduzida por indígenas kanoé, que também vivem no sul de Rondônia, seguindo ritos dos povos locais e dos tanaru. Servidores da Funai estavam presentes.
As imagens da câmera instalada do lado de fora da palhoça registram que os fazendeiros estiveram no local pouco depois das 14h. As imagens mostram dois homens circulando o exterior da casa e olhando para o interior, pela porta. Um está de chapéu e o outro de boné, facão na cintura e por vezes aparece com o celular na mão.
A reportagem não conseguiu identificar os invasores.
Cerca de um mês depois, o MPF (Ministério Público Federal) publicou uma nota informando que havia notificado fazendeiros e que os alertou a não entrar na Terra Indígena Tanaru.
"Invasores podem responder pelos crimes de dano qualificado, dano em coisa de valor arqueológico e histórico e vilipêndio a cadáver. Na área está a maloca em que o índio do buraco foi sepultado e outros locais sagrados, além de sítios de valor histórico, cultural e ambiental", afirmou o MPF.
Em 27 de dezembro de 2022, a Procuradoria ainda entrou com uma ação civil pública pedindo que a Funai garanta a preservação do território, tendo em vista que "pessoas foram vistas perambulando pela Terra Indígena, o que motivou o Ministério Público Federal a notificar os possuidores/proprietários lindeiros à Terra Indígena".
Os restos mortais do Índio do Buraco https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/08/ultimo-representante-de-seu-povo-indio-do-buraco-e-encontrado-morto-em-ro.shtml foram enterrados na mesma palhoça onde ele foi encontrado morto somente após uma disputa judicial com a fundação.
O corpo foi encontrado em 23 de agosto. O óbito ocorreu de 30 a 40 dias antes, segundo análise feita.
Quando o corpo foi encontrado, estava com um "chapéu" na cabeça e plumagens de penas de arara na nuca, "fatos que indicam consciência e preparativos para a morte ou pós-morte", conforme o MPF. O enterro foi postergado por ação do então presidente da Funai https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/10/presidente-da-funai-barra-enterro-de-indio-do-buraco-mesmo-com-conclusao-de-exames-por-pf.shtmlMarcelo Augusto Xavier da Silva, que barrou a cerimônia na véspera do dia previsto para ocorrer, 14 de outubro.
Ele enviou um ofício à Polícia Federal em Vilhena barrando os procedimentos sob a alegação de que era necessário aguardar a conclusão dos laudos dos exames nos restos mortais do indígena —mesmo diante do fato de que todos os testes a partir da coleta de material pela PF já haviam sido feitos.
Fazendeiros que circundam o território ingressaram na Funai com pedidos para exploração da área preservada. Eles alegaram ser donos da área de 8.070 hectares.
O sepultamento só foi possível porque o MPF ingressou com uma ação civil pública para que a Justiça Federal obrigasse a realização da cerimônia na mesma palhoça onde o indígena morreu.
Ele era o último de seu povo, dizimado pela ação de madeireiros na região na década de 1990. Viveu sozinho e isolado por 26 anos. Segundo a Funai, o grupo tinha seis pessoas e existiu até 1995. O órgão passou a monitorá-lo, e a respeitar seu modo de vida, a partir de 1996.
A Terra Indígena Tanaru não é demarcada. Por haver incidência de um indígena isolado, o território conta com uma restrição de uso, definida em portaria da própria Funai. Ela vigora até 2025. É esta portaria que os fazendeiros tentam derrubar, a partir da morte do indígena.
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