Fest Aruanda 2022: A força de Paterno e Lupicínio Rodrigues
Luiz Zanin, O Estado, 07/12/2022
JOÃO PESSOA - Ontem foram apresentados os últimos concorrentes do 17º Fest Aruanda e hoje à noite serão conhecidos os vencedores. Numa noite em que haverá homenagem ao ator e cantor Toni Tornado e exibição, fora de concurso, do doc Belchior: apenas um coração selvagem. À tarde ainda haverá uma sessão especial de Os Doces Bárbaros, de Jom Tob Azulay, homenagem à cantora Gal Costa, recentemente falecida.
Já havia visto os longas de ontem - Paterno, de Marcelo Lordello, e Lupicínio Rodrigues: Confissões de um sofredor, de Alfredo Manevy - em outras ocasiões. Revi-os e não mudei de opinião. Antes, na releitura, ressaltaram-se suas qualidades. Em particular, sua força, tanto na denúncia da burguesia predatória em seu ramo imobiliário e no destaque a um dos mais importantes compositores brasileiros, que, no entanto, ocupa uma posição um tanto excêntrica na história da nossa música popular.
Seguem os textos, escritos quando vimos os filmes pela primeira vez.
Paterno, de Marcelo Lordello, escava em território pouco explorado pelo cinema brasileiro - a classe alta. Tudo gira em torno do personagem principal, Sérgio, vivido por um extraordinário Marco Ricca. Ele, junto com o irmão, é sócio de uma incorporadora imobiliária. Tocam o projeto de uma incorporação imobiliária numa área de preservação. Têm dois desafios pela frente. Um, comprar a preço de banana as pequenas propriedades espalhadas pelo terreno. Dois, "trabalhar" junto à câmara dos vereadores para que a legislação seja alterada e possibilite a construção de edifícios altos no local. Como se sabe, o poder de convencimento das construtoras é muito grande. Sua "retórica" é poderosa, como atestam as metrópoles brasileiras, sistematicamente destruídas pela especulação imobiliária.
Marco RiccaAcontece que Sérgio pouco tem de um incorporador típico. Quer dizer, tem e não tem. É um pouco predador e autoritário, como convém ao modelo. Porém, é também cheio de dúvidas e insegurança. O filho quer seguir a carreira de arquiteto, mas à sua maneira. O pai, que ergueu a empresa, encontra-se à morte, no hospital. Seu irmão (Nelson Baskerville) considera-se o chefe da empresa, pois foi designado pelo pai.
E há a questão das casas a serem compradas e depois derrubadas para que o condomínio seja erguido. Cada negociação é difícil. E, para isso, um dos moradores (Thomás Aquino) se oferece como "infiltrado" para convencer os recalcitrantes. A troco de uma gorda porcentagem, claro.
Tudo vai empurrando Sérgio para uma crise profunda. Que, porém, não explode. Ou tarda a explodir, pelo menos da maneira convencional.
Há aí algo a ser notado e que não está propriamente no enredo, mas na maneira como ele é transformado em filme. É uma questão do tempo. Da mise-en-scène. Tudo se desenvolve sem pressa, com um senso de detalhismo muito profundo. Por exemplo, na sequência inicial, Sérgio chega de carro ao Bairro de Brasília Formosa, onde pretende edificar sua obra. Entra num imóvel, como se fosse um comprador comum, em busca de uma casa para morar. O proprietário (Wilson Rabelo) começa a lhe contar como construiu aquele lar, por etapas, erguendo mais quartos à medida que a família crescia. Como lá criou filhos, netos. Aquilo lá é um lar, com história, com gente de carne e osso, lá vivendo, geração após geração. Para o incorporador é apenas um estorvo, uma coisa sem alma, paredes a serem derrubadas para abrir mais um espaço para a futura construção. Tudo demora - ou melhor - tem o tempo justo para que essa duplicidade se instale na percepção do espectador. A força destruidora do capital x a história humana depositada numa moradia.
À medida que a trama se desenvolve mais questões vão surgindo. E mais pontas soltas vão sendo deixadas, fazendo que quem assiste ao filme se pergunte: "mas como ele (o personagem, o diretor) conseguirá atá-las até o final? Pergunta vã porque a estratégia é essa mesma, apresentar uma crise, aprofundá-la e deixá-la em suspenso.
Essas crises vão se alargando. Sérgio indispõe-se com a mulher, com o filho, com o irmão. Assiste à agonia do pai e se pergunta sobre o legado daquele homem. Após sua morte, tenta resolver uma questão pendente do passado do pai e também sai chamuscado. Mas a descoberta o ilumina, embora não o suficiente para induzir uma transformação radical e duradoura. Tudo o que era impasse assim permanece.
Inclusive na cabeça do espectador, ou, pelo menos, na do espectador que escreve estas linhas. Saí do cinema com a sensação de ter visto um grande filme, mas também um pouco incomodado, e sem saber exatamente por quê.
De certa forma, ao vermos Paterno, o ligamos a outro grande filme do cinema brasileiro, O Invasor, de Beto Brant. E essa ligação tem sua razão de ser. Também em O Invasor era questão da especulação imobiliária, também Marco Ricca era um dos sócios da incorporadora, também havia um "alienígena" que se plantava na trama (Paulo Miklos) e tudo transtornava. Mas as semelhanças, se existem, são de superfície, de conteúdo manifesto, porque o espírito das obras é diferente em essência. O Invasor é mais explosivo, direto, à sua maneira catártico. Paterno nega-se a catarse de maneira sistemática. Mantém-se e mantém-nos em suspenso.
Essa suspensão é fruto do trabalho com o tempo. Tempo para que todas as sequências sejam expostas, sem necessariamente se completar. Tempo para que os fios sejam soltos e assim permaneçam. Tempo para que tudo seja impasse e inconclusão. Sem catarse. Sem alívio. Sem lição de moral. Sem exemplo regenerador. No impasse, porque o "punctum" do filme é a cegueira do personagem. Em relação à vida e a si mesmo.
Dessa forma, tudo fica em aberto, e as conclusões, se as houver, são por conta do espectador. A mim, pareceu um filme ideal sobre o Brasil contemporâneo, em que tudo é impasse, tudo encontra-se aberto e sem solução à vista. Entramos num túnel do tempo paradoxal, que dá tanto para o passado como para o futuro, em que o governo atual representa apenas sua versão mais mórbida, porque atrelada ao instinto de morte mais primitivo do capitalismo.
De resto, o que buscamos, sem necessariamente encontrar, é a face humana de Sérgio, esse "homem sem qualidades" (para lembrar o romance de Musil). Sérgio (talvez não por acaso) tem o mesmo nome do personagem de Sergio Corrieri na obra-prima do cinema latino-americano Memórias do Subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea, um burguês órfão de sua classe na voragem da revolução.
No plano final de Paterno, a câmera busca o olhar de Marco Ricca, na situação simbólica em que se encontra encalacrado. Lembra, pelo menos para mim, o olhar de Jean-Louis Trintignant no plano final de O Conformista, de Bernardo Bertolucci. O homem sem qualidades, fascista quando a ordem for fascista, antifascista quando a maré virar. Um olhar para a câmera, para o olhar do espectador e que desafia: "Decifra-me".
Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor
A certa altura do filme, discute-se se o rei da dor-de-cotovelo, Lupicínio Rodrigues, poderia ser hoje "cancelado" em razão de suas letras consideradas machistas. Sem dúvida, desde que se ignorasse o tempo em que viveu e seu respectivo contexto histórico. Ou seja, colocado em prática o procedimento do anacronismo (julgar tempos passados pelos valores do presente), seria bem possível que o velho Lupi fosse mesmo colocado no índex e no pelourinho das redes sociais. Por sorte, existe sempre a possibilidade da contextualização, o que permite "salvar" uma das grandes obras da música popular brasileira, apesar de alguns versos impossíveis de serem escritos hoje em dia. A passagem faz parte do excelente documentário Lupicínio Rodrigues: Confissões de um Sofredor, de Alfredo Manevy, com pesquisa de Lucas Nobile.
Cito esse trecho porque me parece resumir o projeto em seu todo, um documentário de ideias, pensado com atenção ao trabalho do artista, mas também ao quadro histórico em que ele se dá, com sua originalidade e também suas limitações. Esse pensamento por trás do filme em nada retira o que ele tem de melhor, a emoção de reencontrar um compositor ímpar da nossa mais significativa manifestação artística, a música popular.
Gaúcho de Porto Alegre, Lupicínio cresceu em bairro pobre, porém muito criativo e musical. Foi influenciado tanto pelo samba como pelo tango da vizinha Argentina. Expressou-se em diversos ritmos, e ficou mesmo famoso como o grande vate da dor de cotovelo, dos males de amor incuráveis e severos. Foi um samba bastante ritmado que o lançou em escala nacional, Se Acaso Você Chegasse, na voz de Ciro Monteiro e depois na de Elza Soares. O curioso é que canção foi usada, sem crédito, num filme americano, Dançarina Loura, que chegou a concorrer ao Oscar em 1945. Claro, Lupi nem foi consultado sobre a utilização da obra e nem viu a cor de um centavo. Mesmo assim, comemorou que uma composição sua tenha chegado a Hollywood, mesmo sob a forma de uma apropriação indébita.
No seu cantinho porto-alegrense e depois no Rio de Janeiro, Lupicínio nem se importava muito. Foi um boêmio clássico, daqueles de virar noites seguidas em torno das mesas de um bar. Dos então meninos da tropicália, que o adoravam, Caetano Veloso e Gilberto Gil, dizia que eram frouxos e não conseguiam acompanhá-lo. "Meia-noite e já estão cansados, ou têm algum compromisso para o dia seguinte. Eu vou até as 9 ou 10h da manhã seguinte". Era representante da velha boemia dos anos 1940 e 1950, do culto ao copo, aos companheiros de bar, à mulher amada, em geral esquiva e traidora.
O contexto é também o que traz Lupicínio para dentro da realidade brasileira, discriminado em um restaurante por ser negro. Não quiseram servi-lo e o caso foi parar numa delegacia. "Não sabia que Lupicínio Rodrigues era negro", excusou-se o dono do estabelecimento. Foi também o que levou Lupicínio a ser autor do hino do Grêmio, primeiro clube gaúcho a admitir jogadores negros em seu time. Também é ele, o contexto histórico, que torna tão difícil estabelecer a genealogia desse descendente de pessoas escravizadas. Tudo isso está no filme.
Assim como a grandeza do compositor e do intérprete. Em especial, do intérprete de si mesmo, talvez o ideal (embora o LP de Jamelão seja uma obra-prima). Com voz pequena, afinada e serena, acompanhado de pequeno conjunto, Lupi interpreta como ninguém seu repertório. Há um disco despretensioso, segundo ele gravado apenas para apresentar suas composições a possíveis intérpretes e que se transformou numa joia de despojamento e simplicidade. Ele próprio dizia se inspirar em Mário Reis, o pioneiro desse canto próximo da fala que seria a característica do estilo bossa-novista.
Aliás, a bossa-nova foi esse divisor de águas que, por paradoxo, deixou Lupicínio sem lugar na música popular brasileira. Sua música passou a ser vista como coisa antiga, com seus versos desmedidos, uma velharia já sem lugar num país que aspirava à modernidade, e adotava o novo como adjetivo obsessivo - nova capital, bossa nova, cinema novo, etc.
Já nos anos 1960, Augusto de Campos, detectava que Lupicínio ficara sem lugar no mundo da cultura musical brasileira. Aproximando-o a Nelson Rodrigues, o poeta e ensaísta escreve que "Lupicínio se dedicou, afincadamente, por toda a vida, a virar pelo avesso a dor-de-cotovelo amorosa. E assim como Shakespeare formulou em termos arquetípicos o sentimento do ciúme em Otelo, Lupicínio - o criador da dor-de-cotovelo, na definição eufemística de Blota Jr. - com menos armas, ou se quiserem até praticamente desarmado, só com a força da sua verdade e do 'pensamento bruto' consegue formular como ninguém aquilo que se poderia chamar, parodiando a requintada terminologia sartriana, de sentimento da 'cornitude'. (Balanço da Bossa, p. 222).
Bingo. Melhor que isso, só vendo o filme. E ouvindo Lupicínio Rodrigues, cantor maior dos males de amor nesse país fraturado chamado Brasil.
No dia anterior, foram apresentados os longas Manguebit, pela mostra Sob o Céu Nordestino, e Propriedade, na mostra nacional. Ainda vou escrever sobre eles, possivelmente no balanço geral que farei do Fest Aruanda 2022. Um Festival com uma seleção de filmes muito forte, já adianto.
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