Assim, minhas últimas semanas na América foram semanas serenasa e cheias de amor: uma colmeia com favos de ouro repletos de mel. O mês de maio passou. Chegou o verão. E as primeiras notícias da Europa iam, neste meio tempo, chegando. Era como se se levantasse o tampo de um sepulcro cimentado há longos anos. Antes, evitava tomar conecimento das notícias de lá, ou então, mesmo sabendo-as, só permitiam que me aflorassem superficialmente à consciência, para que não me magoassem mais. Agora acontecia o contrário. Conhece-las todas e a fundo fazia parte de meu plano obsessivo, desse plano que agora me doía como parte enterrada na carne viva - partir! Estava cego e surdo para tudo o mais.
- Quando é que viajas? perguntou-me Natascha, de repente.
Esperei um minuto em silêncio, antes de responder.
- No começo de julho. Mas como soubeste?
- Não foi por ti. E por que não me disseste pessoalmente?
- Só o decidi ontem.
- Mentira
- Sim - reruquei. - É mentira. Mas eu não queria te contar.
- Por que não?
Fiquei calado. E murmurei finalmente:
- Achava difícil.
Natasha deu uma risada.
- Difícil por que? Vivemos tanto tempo juntos e nunca nos escondiamos nada. Cada um de nós apenas se utilizou do outro. E agora nos separamos. Que há demais nisto?
- Eu não me utilizei de você.
- Mas eu me utilizei de você, sim. E você também de mim, ora essa! Para que mentir? Não há necessidade.
- Eu sei
- Seria ótimo se não continuasse mentindo. Pelo menos nesses momentos finais.
- Vou tentar.
Olhou-me, agora mais séria.
- Concorda então, que, mentiste?
- Como posso admiti-lo? Mas também como posso negar? Olha, acredite, se quiser.
- Simples, não?
- Não. Não é simples. Vou-me embora daqui - eis a verdade. Não posso te explicar por quê. Tudo o que posso dizer é que assim é. É como quando a gente tem que partir para a guerra.
- Tem que partir? - perguntou.
Calei-me, de novo, sofrendo. Eu tinha de vencer a parada.
- Nada posso dizer-te - prossegui. - Você tem razão. Se é que a razão entra de alguma maneira em tudo isto. Sou tudo o que você diz: mentiroso, caloteiro, egoista. Sou e também não sou. Quem é que pode discernir uma coisa da outra, numa situação em que o certo é errado e o errado é certo?
- E o que é mais importante?
- O mais importante de tudo é que eu te amo - disse, já cansado. E esta não é hora de te dizer isto.
- Não - interveio, agora mais suave. - Esta não é a hora Robert.
- Sim. Toda hora é hora para dizê-lo.
Eu sofria, fazendo-a sofrer desta maneira. Era como se me ferisse a mão com uma faca afiada. Bem poderia agir de outro modo, mas sabia que seria apenas um egoismo, mais confortável, por certo, porém mais lastimável também.
- Não faz mal - disse ela. - Éramos um para o outro muito menos do que pensávamos. Éramos ambos mentirosos.
- Sim - concordei
- Durante o tempo em que éramos amantes, eu tive relações também com outros homens. Não eras o único.
- Eu sei, Natasha.
- Sabias?
- Não - respondi-lhe, seco. - Nunca soube. E, se me dissessem, não o teria acreditado.
- Podes acreditar. É a pura verdade.
Sabia que aquilo era uma saida para o seu orgulho. Neste exato momento, não acreditei no que estava dizendo.
- Acredito no que você diz - menti-lhe. - Eu nunca pensei que você me fizesse uma coisa dessas.
Ela ergueu a cabeça. Adorava contemplá-la nesta posição. Senti-me desesperado, mas vi que mais desesperada estava ela ainda. Num caso desses, quem fica na retaguarda, mesmo que o outro lhe entrgue as armas, está sempre prestes a desferir o golpe.
- Eu te amo, Natasha. Gostaria que entendesses. Não por mim. Mas por ti.
- Não por ti?
Notei que tinha cometido um erre tático.
- Sou uma pessoa a quem ninguém pode ajudar - expliquei. - Será que não o percebes?
- Separamo-nos como duas pessoas desconhecidas e indiferentes que, por mera casualidade, fizeram juntas, lado a lado, o mesmo trecho da viagem. Sem nunca se entenderem. E como poderíamos entender-nos?
Esperei que ela fosse aludir agora ao meu caráter de alemão. Mas também notei, logo, que ela percebeu que eu o esperava. O que Natasha não percebeu foi que, se o fizesse, eu não a ia contradizer. Por isso desistiu.
- Foi até bom ter sido assim - continuou. - Eu queria te abandonar. Apenas hesitava, não sabendo como deveria te dizer isto.
Eu sabia qual devia ser a minha resposta exata. Mas não podia dizê-la
- Querias abandonar-me? - perguntei-lhe, finalmente.
- Sim. Há muito tempo. Nossa convivência de amantes foi longa demais. Affaires desse tipo têm de ser mais breves.
- Sim - respondi. - E te agradeço por teres esperado tanto tempo. Do contrário, que seria de mim?
Pareceu assustar-se.
- Por que mentes de novo?
- Não estou mentindo.
- Que nada! Palavras e palavras! Tens sempre palavras para tudo. E sempre as mais bonitas.
- Não agora.
- Agora não?
- Não, Natasha. Não são só palavras. Sou um homem triste. E sem possibilidades de consolo.
- Mais uma vez - palavras!
Levantou-se decidida e foi apanhar suas roupas.
- Não olhe para cá - protestou. - Não quero mais que me veja nua.
Vestia-se. Percebi quando calçou as meias e os sapatos. Eu olhava para a janela. Fazia calor. Chegava aos meus ouvidos o sum de um piano. Alguém tocava "La Paloma". Um principiante, pois cometia sempre os mesmos erros e repetia e repetia os oito primeiros compassos, sem êxito. Sentia-me a criatura mais desgraçada do mundo e nada mais entendia. Só uma coisa era certa: mesmo que eu ficasse, estava tudo acabado. Percebi que, em pé atrás de mim, Natasha estava pronta para sair.
Ao sentir que ela abria a porta, voltei-me e caminhei na sua direção.
- Não me acompanhe - disse sem me olhar. - Fique aqui. Quero ir embora sozinha. E não voltes mais. Nunca. Nunca mais.
Fiquei de pé, no meio do quarto. Ainda a olhei, estarrecido. Seu rosto inexpressivo e pálido, os olhos que ainda pareciam me ver sem me olhar. E a boca. E as mãos. Não esboçou o menor gesto. E ia já no corredor, quando a porta se fechou, quase por si.
Não corri atrás dela. Apenas não sabia o que fazer. Continuei de pé, no meio do quarto. Os olhos perdidos na distância.
[Remarque, Erich Maria, Sombras no Paraiso, pp. 439 - 442, Tradução de Belchior Cornelio da Silva, Record, 1971]
(...) Nunca mais vi Natasha. É provável que ambos ficássemos esperando um pelo outro, aguardando que o outro chamasse. Muitas vezes, eu quis fazê-lo. Mas logo me dava conta de que seria inútil. Não conseguia libertar-me das sombras - minhas companheiras de todas as horas. E cada vez me repetia que melhor manter alguma coisa oculta, sem no-la dizer. Como estava acontecendo. Melhor do que continuar a nos ferir, pois ferir-nos era só o que sabíamos fazer uma ao outro. Daí não saíamos. (...) Procurei Natasha, quando andava, pelas ruas de Nova Iorque. Mas nunca a reencontrei. [Idem, p. 445]
(...) Não sei mais o que fiz, durante todos esses anos. Nem faz parte do escopo desses meus apontamentos. O curioso é que, pouco a pouco, foi crescendo em mim e se tornando mais forte a lembrança de Natasha. Não era uma desculpa. Não era arrependimento. Mas só agora percebi o que ela significou para mim. (...) Natasha tinha sido, sem eu perceber, o acontecimento mais importante da minha vida. [Ibidem, p. 447]
Sobre o livro
'Sombras no paraiso' trata da convivência de uma comunidade de emigrantes, predominantemente alemães ant-nazistas, em Nova Iorque, durante a 2ª Guerra Mundial. Ironia e nostalgia se misturam em estórias de vida em que os sofrimentos do passado estão presentes, mas de forma até alegre se divertem da própria desgraça. Destaco a relação de Robert Ross, narrador, com Natascha Petrowna e sua comovente separação. Durante a trama Ross me pareceu um alemão racional no affair com Natasha, um anti-Werther, mas no final ele se mostrou um parceiro de “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe (conterrâneo de Ross).
Personagens por ordem de aparecimento
O narrador, Robert Ross: emigrante alemão que "morrera" oficialmente em 1933. Trabalhou em Nova Iorque: orientador na compra e venda de quadros duvidosos e de antiguidades falsas. Robert Ross é o nome de um estadunidense falecido na guerra. O alemão herdou seu passaporte. Ross era apaixonado por Natsaha.
Wladimir Melikow, antigo emigrante russo, que falava alemão, trabalhava no Hotel Reuen e gostava do vodka.
Kurt Lachmann, emigrante alemão, coxo e falseador de coisas vendáveis.
Natsaha Petrowna, russa nascida em Paris. Manequim, "Mulher alta, magra, de rosto pequeno. Era pálida e tinha olhos azuis e cabelos castanhos-escuros, dando a impressão de terem sido tingidos." De Natasha para Ross: "Adoro estas conversas noturnas sobre tudo e sobre nada. Naturalmente, nada do que eu lhe disse é verdade." Não sou toda humana ainda. Mas sou uma estátua que já começa a andar.
Irmãos Lowy, gêmeos, mas de signos diferentes, porque o mais velho nasceu três horas antes. Um Gêmeos e o outro Câncer: tinham uma loja de antiguidades.
Harry Kahn: passaporte espanhol. "Portava-se com ternos elegantes e era de um sangue-frio de pasmar. Kahn sabia muito bem que a melhor maneira de se impor autoridade a um subalterno alemão é gritar com ele. E isto era facílimo fazer. Espanha e Franco eram amigos de Hitler. Toda ditadura gera o medo e a insegurança nas pessoas, espacialmente nas classes subalternas... "
Betty Stein: alemã nostalgica. "A mãe dos emigrntes."
Silvers: vendedor de quadros e patrão de Robert Ross. "A época do colecionador, que era um doublê de expert, terminou após a guerra de 1918. Com as reviravoltas políticas e econômicas, houve também transformações nas fortunas. Estas mudaram. Umas desapareceram, outras surgiram. Os velhos colecionadores têm de comprar, de se renovar. Muitas vezes têm dinheiro, mas não são peritos."
Grafenheim: emigrante alemão, médico, judeu e colecionadro de selos.
Vrieslander: alemão naturalizado estadunidense de antes da guerra. Alta classe. Todos gostavam do gulache dos Vrieslanders.
Carmen: "É Greta Garbo e Dolores del Rio numa só pessoa." (Um Khan apaixonado por Carmen). Uma beleza trágica.
As gêmeas Koller: "São vivas e inteligentes. E húngaras! Enquadram-se no velho esquema: pimentão no sangue!" (Kahn)
Mrs. Whymper: Compradora de quadros. "Seus sessenta anos podiam, sem esforço, ser abatidos para cincoenta. No pescoço, aliás, um grande colar de pérolas, de muitas voltas, dissimulava-lhe bastante as primaveras e tornava aquela mulher ainda mais elegante e imponente." Whymper tomava, e muito, martini e gim com uma gotinha de vermute. Ross, o vodka com martini.
Tannenbaum: alemão ant-nazista. Ator, em Hollywood, que interpretava pequenos papeis de oficial da Gestapo.
Holt: produtor e diretor de Hollywood com quem Ross se meteu, a contragosto, em ajudar no script de filme sobre nazistas.
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