Americana que lutou contra tabu da morte chama reportagem para acompanhar seus últimos dias. Shatzi Weisberger fez parte de movimento que tenta desfazer o silêncio e o medo sobre o tema
John Leland, FSP, 15/12/2022
Muitas pessoas têm a esperança de ter uma morte boa, até a planejam, mas poucas pessoas se preparam para a morte tão completamente e com tanta alegria quanto Shatzi Weisberger. Ela tinha um certificado da Arte de Morrer que recebeu do Open Center, em Nova York, e ajudava a organizar um grupo de discussão sobre o tema que se reunia mensalmente no Brooklyn, além de outro grupo cujos encontros aconteciam em seu próprio pequeno apartamento em Manhattan.
Em junho de 2018 Shatzi promoveu um "FUN-eral" [funeral divertido] para si mesma, em que seus amigos enfeitaram um féretro de papelão em tamanho natural, inscrevendo sobre ele mensagens como "vá em frente, Shatzi! (mas não literalmente)". Ela vestiu uma blusa de estampa floral colorida para a ocasião.
Na ocasião do "FUN-eral", ela disse: "Quero vivenciar realmente minha morte. Não quero morrer num acidente de carro nem ficar inconsciente. Quero estar em casa, na minha cama e quero compartilhar a experiência com qualquer pessoa que esteja interessada."
Em outubro, aos 92 anos, Shatzi recebeu um diagnóstico de câncer pancreático intratável. Em novembro ela ligou do hospital para convidar o jornal New York Times a acompanhá-la na derradeira fase da vida. "Meu desejo se realizou", ela disse naquele primeiro telefonema, em 18 de novembro. "Eu não queria morrer de repente. Queria vivenciar o processo de morte. E o estou vivenciando. Já tive algumas experiências espantosas, absolutamente incríveis."
Shatzi fez parte de um movimento descrito como de "morte positiva", que agrupa Death Cafes [encontros periódicos regulares, geralmente acompanhados de chá, café e bolinhos, em que os participantes trocam ideias sobre a morte], programas acadêmicos, livros, vídeos no YouTube e palestras. O movimento emergiu nas duas últimas décadas e visa desfazer o silêncio e o medo em torno da morte.
Ela passou anos estudando a morte como abstração e exortando outras pessoas a abordar a morte com alegria e curiosidade. Agora se via diante de um câncer que é implacavelmente concreto e um sistema de saúde fraturado e que desde a Covid sofre os efeitos de uma escassez grave de profissionais. Shatzi disse que o oncologista lhe dera um mês de vida, possivelmente dois ou três. No final, ela teria menos de duas semanas.
A americana já tinha um lote onde seria sepultada, uma agente funerária escolhida, uma mortalha e instruções sobre como queria que seu corpo fosse manuseado após sua morte. Uma amiga da turma da Arte de Morrer prometeu ficar com ela quando chegasse perto do fim.
"Shatzi escolheu certas pessoas com antecedência para desempenharem determinados papéis", disse o amigo David Belmont. Ela tinha uma lista (modificada constantemente) de pessoas a quem deixaria suas posses. Colou etiquetas sobre tudo, mostrando quem deveria ficar com o quê.
Shatzi havia sido enfermeira por 47 anos, tendo inclusive cuidado de pacientes com Aids, de modo que não desconhecia o fim da vida. Estava tão preparada quanto podia estar. No hospital, em 18 de novembro, ela falou da vida após o diagnóstico terminal. Agora que sua morte já deixara de ser algo hipotético, no futuro distante, será que estava correspondendo às suas expectativas?
Ela disse que estava sofrendo dor muito forte e que estava enfraquecida por ter passado uma noite sem dormir. Mas estava sorridente, mais à vontade do que eu jamais a vira antes, mais até que em seu "FUN-eral". Todos os anos de trabalho estavam dando frutos. "Estou vivendo o melhor momento da minha vida".
Shatzi compartilhou algo que descreveu como "uma experiência transcendental". Uma amiga da organização Jewish Voice for Peace, que tinha sido importantíssima em sua vida, viera ao hospital recentemente e massageara seus pés e suas costas. Citando traumas de infância, ela contou que durante toda a vida havia evitado a intimidade física. Mas quando foi massageada por sua amiga, baixou sua guarda. "Pela primeira vez, me abri para a intimidade. E acho que foi a experiência mais maravilhosa que já tive."
Shatzi entrou em contato com seu filho, de quem estivera distanciada havia 50 anos. Como ela própria nunca recebera amor e carinho de seus pais, não soube como dar isso a seus filhos. "Ele e sua irmã mereciam muito mais", disse Shatzi. Ela não pediu que seu filho a perdoasse. "Espero que ele consiga esquecer qualquer ressentimento e compreenda, como eu compreendo agora, que eu fiz o melhor que pude." Sua filha rejeitou sua tentativa de entrar em contato.
Mas, tirando esses momentos breves, o fato de estar com uma doença terminal não a levou a reavaliar sua vida. Em vez disso, Shatzi falava do que estava por vir, contou Gina Colombatto, que ficou com ela no final. "Em vez de olhar para trás, ela estava curiosa em saber: o que é a morte?", disse Colombatto, que se descreve como educadora sobre a morte. "O conflito era: ainda tenho coisas a fazer e não sei como será a morte. Não sei se quero realmente ir para lá, mas também estou empolgada porque vou."
Shatzi estava determinada a enfrentar a morte sem analgésicos. Pensava que os cuidados paliativos frequentemente envolviam um estado de torpor induzido por medicamentos, deixando o paciente demasiado entorpecido para apreciar a experiência da morte. Ela queria vivenciar a experiência completa. Aquela foi a primeira ilusão da qual ela teve que abrir mão. Houve outras.
Após duas semanas no hospital, Shatzi quis voltar para casa e receber cuidados paliativos ali. Achou que era um pedido simples. Mas Belmont ouviu do hospital que, em função da escassez de profissionais, as organizações que prestavam assistência paliativa tinham uma lista de espera de duas semanas.
Amigos de Shatzi lançaram uma campanha de financiamento coletivo para pagar por atendimento particular para ela – outra coisa que Shatzi não poderia ter feito para si mesma.
Em casa, seu corpo estava deteriorando mais rapidamente do que ela previra. Ela não conseguia mover as pernas para passar da cama para uma cadeira. Não conseguia passar muito tempo na cama ou na cadeira sem sentir dor extrema. Comia pouco mais do que pudim de chocolate, iogurte e creme de maçã. "Estou decepcionada com a rapidez com que meu corpo está deteriorando, mas fico lembrando que não tenho controle sobre isso. Então, aconteça o que acontecer, eu vou enfrentar", disse Shatzi.
Shatzi tinha um elixir de morfina para o caso de a dor ficar excessiva, mas ainda não o tomara. Ela estava de bom humor. "Não estou sentindo medo", disse.
Falei a Shatzi que eu ia sair da cidade depois do Dia de Ação de Graças e que contava com ela resistir até minha volta. A última palavra que ela me disse foi: "Curta".
No dia seguinte ao Dia de Ação de Graças, Shatzi sofreu o que descreveu como "uma emergência de dor" e pediu ao médico de cuidados paliativos que aumentasse sua dose de remédios. Pela primeira vez, ela soou confusa ao telefone. Mesmo assim, amigos disseram que ela teve bons momentos. Amy Cunningham, sua agente funerária, a visitou dois dias mais tarde e a encontrou "bela, com aparência corada". "Saí pensando que a morte aconteceria em janeiro", disse.
Três dias mais tarde, Shatzi disse a Colombatto que não queria receber visitas. Ela aumentou sua dose de analgésicos. Pediu para apagarem as luzes. A energia que a conduzira até agora dera lugar à dor extrema. "Ela estava começando a se voltar para dentro e sofrendo muito mais com o corpo", falou Colombatto. "Ela disse ‘já cansei disso, só quero que acabe’. E eu dizia: ‘Não dá para acabar enquanto não chegar a hora de acabar’. Falei em tom leve e divertido, mas acho que isso a chocou."
Ela acrescentou: "Houve um momento em que o câncer pancreático começou a ganhar. O câncer pancreático vence. Foi a morte mais árdua que já vi. Shatzi estava lutando para sair de seu corpo."
Às 0h40 do dia 1º de dezembro, sua luta chegou ao fim.
Não foi a morte que Shatzi quis –sem medicamentos, dando seu último suspiro pacificamente, com seus amigos à sua volta, compartilhando seus últimos pensamentos. Naquelas horas derradeiras, a revelação derradeira foi como sua morte foi dolorosa, quão essenciais foram as drogas.
A revelação que Shatzi teve nas semanas antes foi mais significativa, disse Emily Eliot Miller, que discutia frequentemente com Shatzi sobre sua fixação abstrata sobre uma "boa morte". "Acho que Shatzi sabia que o que ela mais precisava era de amor e testemunho", disse.
Nesse sentido, Shatzi foi bem-sucedida. "Ela teve a morte que desejou: cheia de amor".
Quando seu corpo deixou o apartamento, às 5h do dia 1º de dezembro, Colombatto escolheu a música que acompanhou o momento: "My Way", de Frank Sinatra, tocada em alto volume.
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