A incrível saga do amigo de Dorothy Stang obrigado a fugir por 17 anos
Como o militante da reforma agrária Geraldo
Magela de Almeida Filho se tornou José Gaspar da Silva, vendedor de produtos
country para o agro amazônico, depois de ser acusado de um crime que não
cometeu
Ed Wilson Araújo (texto), Adriano Almeida (fotos), Sumaúma, 4 dezembro 2022
De Imperatriz, Maranhão
Chovia muito às 7h30 da manhã de 12 de fevereiro de 2005, quando o pistoleiro Rayfran das Neves Sales desferiu 6 tiros à queima roupa contra uma mulher de 73 anos sem nenhuma chance de defesa. O corpo da Irmã Dorothy Stang tombou em sangue na terra alagada e lá ficou até às 17h, quando foi levado do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança por uma estrada precária de 50 quilômetros até a sede, no município de Anapu, às margens da rodovia Transamazônica, a 692 quilômetros de Belém, capital do Pará. Naquele mesmo sábado, enquanto todas as atenções se voltavam para Anapu, outro assassinato abalava o PDS Esperança. Às 23h, o lavrador Alberto Xavier Filho, conhecido como “Cabeludo”, também foi executado. O crime contra Dorothy Stang levou à Anapu jornalistas do mundo inteiro. O crime contra o anônimo Cabeludo, uma figura ambígua que com alguma frequência fazia serviços para os inimigos do PDS, foi ignorado pela opinião pública. Os pontos nunca foram ligados. Mas ali começava, para um homem chamado Geraldo Magela de Almeida Filho, uma saga nascida da injustiça e uma fuga de 17 anos que só acabou em novembro de 2022. Se iniciava, também, a vida de um caixeiro-viajante chamado Gaspar.
No mesmo dia em que perdeu Dorothy Stang, Magela Filho foi falsamente incriminado pela polícia como cúmplice do assassinato de Cabeludo. Para os movimentos sociais da região de Anapu e Altamira, a estratégia que matou Dorothy e obrigou Magela Filho a fugir era a mesma: os grileiros queriam anular a resistência camponesa. “Ele era uma liderança muito forte. O objetivo era matar os dois, Geraldo Magela e Dorothy Stang”, afirma a missionária Jane Dwyer, da Congregação das Irmãs de Notre Dame, integrante da Comissão Pastoral da Terra e companheira de luta de Dorothy. “Conseguiram eliminar nossa irmã e colocá-lo [Magela] na clandestinidade.”
Os dois crimes foram o desfecho de uma semana tensa. Dorothy Stang estava marcada para morrer. As ameaças já haviam sido amplamente denunciadas aos órgãos de segurança no Brasil e também para organismos internacionais. Há vasto conhecimento sobre os mandantes, intermediários e executores da missionária. Já o assassinato de Cabeludo até hoje permanece sem solução.
Em 2005, porém, a polícia apontou Magela Filho
como cúmplice, e o Ministério Público do Pará ofereceu denúncia contra 6
pessoas, apontando a autoria do disparo a um agricultor identificado apenas
como “Claudio”. Segundo o MP, “após o tiro, o denunciado Geraldo Magela de
Almeida Filho, que outrora havia chamado pela vítima, entrou em sua casa e
mandou que sua família não tentasse sair da mesma. Em seguida foi embora,
juntamente com os demais denunciados, deixando a vítima sucumbir ao longo da
madrugada.”
A denúncia do MP cita ainda os depoimentos dos filhos de Cabeludo, que teriam presenciado o crime, e de Lourival Gomes do Nascimento, “que noticia ter sido abordado pelo grupo, horas antes do crime em questão, oportunidade em que foi ameaçado pelo denunciado Geraldo Magela que portava um revólver calibre 38.” Com o inquérito viciado, Magela Filho teve a prisão decretada. “Eles [grileiros] o matariam então na cadeia”, afirma Irmã Jane, que permanece em Anapu, hoje um território ainda mais violento do que em 2005. Magela Filho então fugiu e ficou na clandestinidade por 17 anos. Foi finalmente absolvido por unanimidade pela 4ª Vara do Tribunal do Júri de Belém, em 7 de novembro de 2022.
Seu advogado, Marco Apolo Santana Leão, interpreta o “Caso Magela Filho” no contexto da perseguição e criminalização dos movimentos sociais. “As lideranças são atacadas de várias formas: difamação, ameaça, violência física e homicídios”, enumera. Marco Apolo sabe o que diz. O advogado é defensor de várias vítimas da estratégia de destruição da reputação, uma espécie de morte em vida usada contra os defensores da floresta e dos direitos humanos. Em 2018, por exemplo, ele se tornaria advogado do Padre Amaro Lopes. Ao dar continuidade ao trabalho de Dorothy Stang na organização e resistência dos camponeses, o religioso foi preso por uma espalhafatosa operação policial, mais adequada à captura de Al Capone. Contra ele usaram um conjunto de acusações, algumas delas explicitamente fantasiosas. Um vídeo mostrando 2 homens adultos tendo relações sexuais, sendo que um deles supostamente seria o padre, foi amplamente divulgado na região. Amaro deixou a prisão, mas seu processo de desqualificação já tinha sido completado e, assim, seu trabalho na linha de frente da defesa dos agricultores familiares contra os agrocriminosos da região de Anapu foi neutralizado.
Técnico agrícola, prestador de serviços do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Magela Filho era um dos principais colaboradores de Dorothy Stang nas ações pastorais e de assistência técnica junto aos camponeses assentados no PDS Esperança. Era também membro da Associação Solidária Econômica e Ecológica de Frutas da Amazônia (Asseefa), engajado na defesa da floresta e no combate à grilagem de terras públicas e aos projetos predatórios de colonização.
Magela precisou esperar 17 anos por justiça. E ela finalmente chegou. No julgamento, Marco Apolo sustentou fatos, argumentos e provas que levaram à absolvição do réu por unanimidade. O assassinato de Cabeludo ocorreu por volta das 23 horas. Mas naquela noite (12 de fevereiro de 2005), Magela estava na Delegacia de Anapu registrando o boletim de ocorrência da morte de Dorothy Stang. “Era impossível o acusado estar no PDS Esperança e ao mesmo tempo participando do crime. Até mesmo porque a distância entre os dois lugares, de cerca de 50 quilômetros, durava em média 4 horas por estradas e caminhos precários”, detalhou.
O advogado também expôs os procedimentos ilegais usados no inquérito. Um deles foi a coleta de depoimentos de três filhos menores de idade de Cabeludo sem o acompanhamento de nenhuma pessoa adulta – e durante os quais a polícia registrou que teriam acusado Magela Filho. “Já o Ministério Público sequer foi a Anapu, mas embarcou no inquérito e fez a denúncia”, afirmou o advogado.
Magela Filho foi absolvido sem estar presente
no julgamento, ainda como foragido. SUMAÚMA o alcançou primeiro por telefone,
rodando nas estradas da Amazônia. Depois, passou três dias com ele e sua
família para contar a saga de um defensor da floresta, militante da reforma
agrária, que levou quase duas décadas para recuperar seu nome e sua liberdade.
Uma história que começa na ditadura — A maioria das histórias dos brancos plantados no entorno da Transamazônica começa na ditadura empresarial-militar (1964-1985), que impôs o maior projeto de destruição da floresta da história do Brasil. Acompanhar o desenrolar das trajetórias humanas é também testemunhar o impacto da violência de Estado sobre a vida de homens e mulheres comuns. Assim foi com os pais de Magela Filho e outros migrantes.
Nascida em Varjão dos Crentes, um povoado de evangélicos no município de Buritirana, no sudoeste do Maranhão, Elinete Silva de Almeida, tinha apenas 2 anos quando teve a vida transtornada pela rodovia em construção. Sua família, como tantas outras de agricultores pobres, acreditou no chamado da época: “Amazônia: uma terra sem homens para homens sem terra”. O governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), ditador que inaugurou a estrada derrubando uma castanheira gigantesca em Altamira, buscava implantar assentamentos de colonização e grandes projetos agropecuários empresariais que seriam beneficiados pela alienação de terras públicas.
Indígenas, quilombolas e ribeirinhos que viviam na floresta – naquele momento os ancestrais dos povos originários há mais de 10 mil anos, os dos quilombolas há 4 séculos e os dos ribeirinhos há quase 100 anos – não eram considerados humanos pela ditadura.
Enquanto Elinete era lançada nessa espiral de violência pela esperança dos pais, em Fortaleza, capital do Ceará, o então jovem Geraldo Magela de Almeida (pai), hoje com 94 anos, via pela televisão em preto e branco a propaganda do governo para atrair colonos com o objetivo de povoar a Transamazônica. Sua esposa, Jovanete Nascimento de Almeida, agora com 74 anos, professora aposentada, lembra com precisão o contraste entre a promessa da ditadura e a realidade da ocupação de uma floresta que não os queria. “Era a coisa mais absurda do mundo. Na propaganda dizia que tinha casa, colégio e hospital para receber a gente e só precisava levar as malas. Foi tudo o contrário e aí começou o sufoco”, conta. Desembarcou no meio do mato grávida do terceiro filho e teve mais 6 outros nascidos e criados na floresta. Geraldo Magela de Almeida Filho já chegou na região da Transamazônica com 2 anos de idade – a mesma de Elinete, com quem se casaria.
Dois movimentos avançaram ao longo da Transamazônica, no estado do Pará: o dos agricultores pobres que atenderam ao chamado da colonização e o dos grandes proprietários a quem foram destinados 3.000 hectares de terra para estabelecer empresas agropecuárias que, em sua maioria, não se consolidaram. Entre os agricultores, na parte da rodovia que vai de Altamira a Placas, conhecida como Transa Oeste, houve predomínio de sulistas, que receberam mais apoio oficial; na outra parte, de Altamira a Marabá, a Transa Leste, houve predomínio de nordestinos, que tiveram pouco ou nenhum suporte do Estado.
Já aqueles que os generais presentearam com vastas porções de terra e de financiamento da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), sigla que se tornaria famosa pelos escândalos de corrupção, deram início ao intenso processo de usurpação de terras públicas na região que até hoje encharcam o chão de sangue. Sem cumprir o acordo de instalar empresas agropecuárias, se apropriaram da terra e dos recursos públicos para devastar a floresta e fazer dinheiro com especulação e exploração de madeira.
Magela Filho e Elinete eram crianças quando a Transamazônica foi aberta sobre os corpos de milhares de indígenas. A rodovia que simbolizava “a conquista da selva” era apenas um dos vários processos genocidas da ditadura que, segundo apuração da Comissão da Verdade, ao final deixou mais de 8.300 mortos em todo o território brasileiro. Sobre as ruínas da floresta se iniciou tanto a luta de agricultores por um pedaço de terra que permitisse a vida na floresta quanto a violência dos grileiros que ali ampliaram ainda mais seu gosto por terras públicas.
Quando Geraldo e Elinete finalmente se encontraram e se casaram em Anapu, seu lado nesta guerra era explícito: junto à missionária Dorothy Stang e aos camponeses para a criação e consolidação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável, uma demanda dos movimentos sociais para a ocupação territorial em parceria com a floresta que se tornou programa oficial em 1999, já no governo democrático de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Nos anos 1980, Geraldo Pai já tinha levado um tiro no pescoço, que acabou resvalando pela boca, ao participar de um mutirão de assentados que foi atacado por um grileiro.
Anapu tinha se tornado um dos centros
amazônicos do massacre sistemático causado pela forma de ocupação e apropriação
da terra no Brasil e a ausência de reforma agrária.
Uma freira que não fugia da luta — A missionária Dorothy Stang chegou à região em 1982, 3 anos antes do fim da ditadura. Os assassinatos cometidos pela pistolagem contratada pelos grileiros e madeireiros eram parte do cenário. Disse a Dom Erwin Kräutler, então bispo do Xingu, que vinha para trabalhar “entre os pobres mais pobres”. O bispo, que já naquela época tinha sofrido ameaças de morte por sua forte atuação em defesa dos direitos humanos, alertou-a: “Mulher, tu não vais aguentar isso. Tu vens lá dos Estados Unidos, com conforto e tudo, tu não vais aguentar”. Dorothy respondeu: “Mas me deixe”.
Lutou entre os pobres mais pobres até o dia em que foi executada. Ela e outras missionárias trabalharam duramente para congregar os agricultores e desenvolver ações coletivas, criando espaços de convivência, organização comunitária da produção agrícola e geração de renda. As poucas escolas se multiplicaram em quantidade e qualidade. O sentido coletivo motivado por Dorothy Stang criava um contexto de prosperidade indissociável da parceria com a floresta. Por outro lado, provocava o ódio dos fazendeiros, grileiros e madeireiros que viam no trabalho missionário um obstáculo à derrubada da floresta.
Magela Filho se colocou ao lado dela. Ele cresceu trabalhando na roça da família, estudou, passou uma temporada no garimpo, prestou serviço militar, freqüentou o seminário católico, desistiu do sacerdócio, fez vários tipos de biscates para sobreviver, finalmente formou-se técnico agrícola, se casou com Elinete e passou a lutar ao lado de Dorothy. Nos depoimentos sobre a missionária, as vozes embargadas do casal, com os olhos empoçados de lágrimas, traduzem o sentimento.
Certa vez, cruzando de motocicleta os caminhos
difíceis da Transamazônica, Magela Filho sofreu um acidente e fraturou os dois
fêmures (ossos das coxas). O casal tinha uma filha pequena e a esposa precisou
acompanhar o marido no tratamento. “Irmã Dorothy nos deu todo apoio, conseguiu
um avião bimotor para nos transportar de Altamira até Belém. Nunca vou esquecer
aquele dia em que a minha filha ficou sob os cuidados dela. Era uma pessoa da
minha família, de todas as horas, nas alegrias e nas dificuldades”, conta
Elinete.
Dorothy é assassinada e Gaspar nasce a fórceps — No dia do assassinato da missionária, Magela Filho ia de moto para o PDS Esperança, onde teria uma reunião com os movimentos sociais, quando soube da execução e foi alertado para não se aproximar do local do crime porque o ambiente estava tenso e poderia haver outros atos de violência. Protegeu-se em um barraco na beira da estrada até que avistou o movimento do carro que transportava o corpo de Dorothy para Anapu. Decidiu seguir o cortejo na sua moto. Ao alcançar a delegacia, à noite, registrou o boletim de Ocorrência do assassinato.
A partir daquele momento, dedicou todas as suas energias para colaborar nas investigações e ajudar a encontrar os autores e mandantes do crime. Transcorria o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e pouco havia mudado em Anapu, território dominado por grileiros e pistoleiros pagos por eles.
A pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará e da Procuradoria Geral da República (PGR), a investigação foi federalizada. Então presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PA, a advogada Mary Cohen foi designada para acompanhar os inquéritos de Dorothy Stang e de Alberto Xavier Leal, o Cabeludo. “Havia um comprometimento muito enfático da polícia local com os madeireiros e fazendeiros. Geraldo Magela Filho teve um papel muito importante. Foi ele que conseguiu colocar os mandantes no centro da investigação. Na época os mandantes não apareciam, só os intermediários e os executores. Depois do depoimento dele, os mandantes foram acionados”, revela Cohen.
Profundo conhecedor da geografia da região, Magela tinha o mapa da Transamazônica na ponta dos dedos e na memória fotográfica. “Quando a Irmã Dorothy Stang chegou, a primeira tarefa que ela me deu foi desenhar o mapa do território”, recorda, exibindo o registro cartográfico guardado como peça de relíquia junto com fotografias, cartões, bilhetes e outros documentos da época.
Magela Filho participou também de algumas incursões do Exército e da Polícia Federal na busca pelos executores e mandantes do crime. Ele não só colaborava com as investigações como denunciava a omissão das autoridades policiais locais. Sua atuação foi fundamental para a localização do pistoleiro Rayfran das Neves Sales. Conta ter sido ele a avisar a Polícia Federal e o Exército, que efetuaram a prisão.
Três meses após a morte de Dorothy Stang, Magela Filho ainda permanecia em Anapu. Até saber que um mandado de prisão preventiva tinha sido expedido contra ele. “Foi o dia de maior tristeza na minha vida”, diz seu pai. Primeiro, Magela Filho se escondeu no PDS Virola-Jatobá, por um mês. Depois, numa madrugada, acampou na floresta ao fundo do seu lote, mas foi aconselhado pelos amigos e companheiros dos movimentos sociais a deixar Anapu. “Naquele tempo ele já estava condenado. Eles poderiam matá-lo antes do processo andar”, diz Irmã Jane Dwyer.
Montado o plano de fuga, ele partiu do esconderijo para o município de Senador José Porfírio, a 149 quilômetros de distância. Seguiu então em uma lancha voadeira para Porto de Moz. De lá, pegou um barco e navegou 10 horas para uma região de várzea denominada Cupari, onde ficou por 3 meses. Na época, só havia comunicação por telefone via satélite e a ligação era muito cara. Sua esposa o visitou apenas uma vez. Havia sempre o temor de que ele fosse capturado a qualquer momento.
Magela Filho decidiu então ir para Belém, contrariando os conselhos dos amigos que o protegiam. Para alcançar a capital do Pará, precisava retornar a Porto de Moz e depois a Gurupá. Nesta localidade, ao comprar o bilhete de viagem, temendo ser identificado, adotou o nome de José Gaspar da Silva. Nascia ali o clandestino “Gaspar”, como ele até hoje é lembrado pelos parentes e parte dos amigos. “Minha mãe aqui e acolá me chama por esse apelido”, conta.
Em Belém, foi acolhido por amigos,
revezando-se em várias casas, mas sempre enclausurado. Durante todo o tempo de
fuga havia sempre a esperança de voltar para Anapu, mas o mandado de prisão
aberto era ao mesmo tempo ameaça e tortura psicológica. Se não podia voltar,
precisava seguir em frente. E Gaspar seguiu.
Como Gaspar começou a carreira de vendedor ambulante — A solidariedade dos amigos e dos movimentos sociais foi fundamental para proteger Gaspar. Sem poder sair à rua, espiando o mundo lá fora apenas pelas frestas dos portões e pelas janelas dos lugares onde se hospedava, grande parte do tempo era preenchida ouvindo música e lendo clássicos da literatura. Obras como As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e Vida e morte de Trotsky, de Victor Serge, além das biografias de Ernesto “Che” Guevara e Simón Bolívar poderiam tê-lo denunciado tanto quanto a coleção sobre a ditadura, do jornalista Elio Gaspari.
Na solidão daqueles dias longos, ele aprendeu a fumar, deixou o cabelo crescer e decidiu trabalhar. A barba longa também mascarava o visual. Uma só vez saiu de casa para um lugar público. Os amigos providenciaram uma peruca preta de cabelo encaracolado e uma roupa de hippie, do tipo “bicho grilo”, emprestando a Gaspar um estilo despojado. Levaram-no então a um bar alternativo na região metropolitana de Belém.
Apesar dos conselhos dos amigos de que estava mais ou menos seguro em Belém, ele não suportava mais a clausura. Na semana do Natal de 2005, foi levado até o município de paraense de Capanema, onde pegou um ônibus para Fortaleza. “Eu não queria ser um peso, um fardo ou uma responsabilidade para ninguém, aí tomei a decisão de ir embora”, diz.
Naquele momento, Elinete recebeu uma carta do marido para deixar Anapu e morar com ele na capital do Ceará. “Nunca vou esquecer aquele dia em que tive de deixar uma vida inteira construída juntos: a casa, a produção, meu emprego de professora… Fiquei sem rumo. Deixei tudo para trás. Saí de casa em Anapu apenas com uma bolsa e uma caixa de papelão com alguns utensílios”, lembra.
Acostumados ao ambiente rural das plantações e da criação de animais, ao espaço e à floresta, restou a Gaspar e Elinete começarem uma vida juntos na clandestinidade, numa quitinete em Fortaleza. Procuraram emprego, sem sucesso, até 2006. No início de 2007, um conhecido, filho de agricultores da Transamazônica e que trabalhava em uma empresa do ramo de sandálias, fez contato e ofereceu uma oportunidade de trabalho no Maranhão, na rota de Imperatriz e municípios vizinhos.
Dois anos depois da execução de Dorothy Stang,
já no início do segundo mandato de Lula, mas ainda sem nenhuma promessa de
justiça, Gaspar iniciou uma vida de caixeiro-viajante.
De militante da reforma agrária a vendedor de produtos country — A vida na nova cidade começou em outra quitinete. Gaspar vivia tenso com as barreiras policiais, temendo ser capturado porque o mandado de prisão ainda estava em vigor. Quando chegou a Imperatriz mudou a rota para Araguaína, no Tocantins, mas o mercado era fraco. Passou por dificuldades, vendeu a moto, comprou um carro usado em longas prestações e entrou no ramo de vendedor ambulante, comercializando pano de prato, borracha de panela de pressão e outros pequenos utensílios domésticos que somava à venda de sandálias.
Em 2010, através de outro contato, passou a
ser vendedor de botinas. Nesse período, deu início à construção de uma casa
própria, um passo enorme para um foragido que usava um nome falso. “Esse
momento me marcou muito. Compramos o terreno e começamos a construir, mudamos e
não tinha reboco e nem piso. Fomos fazendo aos poucos”, conta. Em 2017,
arriscou-se a voltar a ser Geraldo Magela de Almeida Filho quando precisou
registrar a própria empresa para emitir notas fiscais.
No para-choque de sua caminhonete, colocou a inscrição do dia da morte de Dorothy Stang: 12.02.2005. A bordo dela, ele percorre as estradas do Maranhão e do Tocantins. Seus principais fregueses são comerciantes do setor do agronegócio das cidades amazônicas, em ampla maioria adeptos da extrema direita, nacionalistas e “patriotas”, eleitores entusiasmados de Jair Bolsonaro. Para evitar perguntas, Magela Filho colocou uma bandeirinha do Brasil no carro durante as eleições. “Só tenho 2 eleitores de Lula”, resume.
Já na sua casa, a conversa é progressista. Tudo muito explícito na resenha do cafezinho entre os Geraldo Magela pai, de 94 anos, e filho, 51, sobre a conjuntura internacional da Guerra da Ucrânia e temas afins. Papo vai e vem, o pai conclui que o Brasil só teve dois grandes presidentes: “Getúlio Vargas e Lula, ambos pais dos pobres”.
Elinete Almeida refez a vida de professora em
Imperatriz e celebra duas conquistas: a casa nova construída com muito trabalho
e, desde novembro, a absolvição do marido. “A liberdade dele no julgamento foi
a maior alegria da minha vida”, soma-se o pai.
Falta um desfecho — O julgamento e a absolvição por unanimidade encerraram um capítulo que ninguém sonha para a própria vida. Perguntado se faria tudo outra vez, Magela Filho não hesita: “Faria, sim. Trabalhar com Dorothy Stang era motivo de satisfação, alegria e prazer. A gente fazia por amor. A morte da floresta pode ser o colapso do planeta. Essa era a mensagem que ela passava: a valorização dos povos que têm essa filosofia, as populações tradicionais que não têm a ganância de devastar, de enriquecer à custa da devastação. Isso é um aprendizado que a gente leva para o resto da vida”.
Sentado na varanda de casa, cercado de relíquias de Anapu, Magela Filho usa cordão e pulseira dos indígenas da etnia Gavião. Em constantes passagens por Amarante do Maranhão, cidade da sua rota de vendas, a 113 quilômetros de Imperatriz, fez amizade com uma família e passou a frequentar a aldeia. A convivência é uma forma de se reconectar aos povos originários. “Bate uma saudade do tempo em que eu vivia em Anapu. Para mim, os indígenas são os guardiões do meio ambiente, por isso eu uso os adereços deles. Não é ouro, mas sim algo original, fruto de um trabalho e de um conhecimento”, explica.
O assassinato do agricultor Alberto Xavier Filho, o Cabeludo, segue impune. Duas hipóteses são mais fortes nos movimentos sociais da região: queima de arquivo ou morte armada para incriminar Magela Filho. “A família de Cabeludo foi destruída. A esposa e os filhos passam dificuldades”, conta Irmã Jane.
Anapu hoje é mais violenta do que no tempo de Dorothy Stang. A forte comoção internacional pelo assassinato da missionária estadunidense ampliou fortemente a presença do Estado na região, dificultando os negócios criminosos. Isso não significa que a grilagem e o comércio ilegal de madeira tenham sido interrompidos, mas sim que os mandantes da região entenderam que matar atrapalhava os negócios ao trazer o Estado para perto. Como resultado, entre 2006 e 2014 não houve nenhum assassinato por conflito de terras em Anapu. Com a deterioração do governo de Dilma Rousseff (PT), a partir do segundo mandato, seguida pelo impeachment que colocou no poder Michel Temer (MDB), as execuções retornaram. Os sinais começavam a virar favoravelmente para a exploração predatória da floresta, movimento que culminaria com o incentivo deliberado de Jair Bolsonaro à destruição da Amazônia. Entre 2015, último ano de Rousseff, e 2019, primeiro ano de Bolsonaro, foram 19 mortos, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
Durante o governo do extremista de direita, o lote 96, da Gleba Bacajá, de Anapu, se tornou o alvo principal dos grileiros da região. Somente neste ano, famílias foram feitas reféns por pistoleiros, suas casas e a escola da comunidade foram incendiadas. Desde 29 de novembro, os moradores estão sem energia elétrica e sem comunicação, conforme denunciou a Comissão Pastoral da Terra (leia a nota aqui). Os lotes 96 e 97 foram reconhecidos como Assentamento Dorothy Stang, mas a pressão da grilagem paralisou o processo no Incra. Desde o primeiro ano de Bolsonaro, o líder camponês Erasmo Theofilo, sua companheira, a quilombola Natalha Theofilo, e seus quatro filhos pequenos, já tiveram que empreender seis fugas para salvar suas vida.
Quando Magela Filho foi absolvido, a família
Theofilo estava exilada dentro do próprio país, refugiada para não ser morta.
Possivelmente seguirá exilada até Lula tomar posse, em 1º de janeiro – e mesmo
assim não há garantia de segurança em Anapu. Todas as lideranças ameaçadas da
região temem uma explosão da violência até o final de 2022. O Brasil que
obrigou Magela Filho a se tornar Gaspar persiste. E é pior do que foi.
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