sexta-feira, 7 de maio de 2021

Indiferentes

Antonio Gramsci

Odeio os indiferentes. Creio, como Friederich Hebbel, acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão, e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.

A indiferença é o peso morto da história. É a bola de chumbo dos o inovadores, é a matéria inerte na qual afundam rapidamente os entusiasmos mais esplêndidos, é o pântano que cerca a velha cidade e a defende melhor que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole em seus vórtices lodosos os agressores, dizimando-os e desencorajando-os até que desistam do empreendimento heroico.

A indiferença opera com força na história. Opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com o que não se pode contar; é aquilo que interrompe os programas, subverte os melhores planos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a sufoca. O que vem em seguida, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heroico (de valor universal) pode desencadear, não se deve tanto à iniciativa dos poucos, quanto à indiferença, ao absenteísmo dos muitos. O que se passa não resulta tanto dos desejos de alguns como da massa dos homens que abdicam de sua vontade, deixam acontecer, permitem o entrelaçamento de nós que posteriormente apenas a espada pode romper, aceitam a promulgação de leis que depois só a revolta pode revogar, deixam subir ao poder homens que apenas os motins poderão derrubar.

A fatalidade, que parece dominar a história, não senão a aparência ilusória desta indiferença, do absentismo. Os fatos amadurecem na sombra, não submetidas a qualquer controle, tecem a trama da vida coletiva, e a massa ignora pois não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados segundo visões restritas, interesses imediatos, ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens ignora pois não se preocupa. Mas os fatos que amadurecidos dão seus resultados; a trama tecida na sombra alcança seu limite: então a fatalidade oprime tudo e todos, a história se assemelha a um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, que a  todos vítima, os desejantes e não desejantes, os que sabiam e os que ignoravam, os ativos e os indiferentes. Estes últimos se irritam, gostariam de poder escapar às consequências, deixando claro que não desejavam os fatos e que são responsáveis por eles. 

Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos se perguntam: "Tivesse eu cumprido o meu dever, buscado valer a minha vontade, o meu conselho, o curso das coisas teria sido o mesmo?". Nenhum ou poucos assumem a culpa pela própria indiferença, pelo ascetismo, por não terem oferecido os próprios braços e atividade aos grupos de cidadãos que combatiam para evitar aquele mal e conquistar o bem ao qual se propunham.

A maioria, ao contrário, prefere falar de fracassos ideais em vez de reconhecer os acontecimentos alcançados, de programas definitivamente arruinados e de outras amenidades similares. Restituem, assim, a ausência de responsabilidade própria. Não é que não possam ver as coisas de maneira clara, e que não sejam às vezes capazes de prospectar soluções  belíssimas os problemas urgentes ou aqueles que, embora exijam tempo, e ampla preparação, urgem. Mas essas soluções permanecem belamente infecundas, essa contribuição para a vida coletiva não é impulsionada por alguma luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não de um sentido pungente de responsabilidade histórica que deseja ativar a todos para a vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de qualquer tipo.

Odeio os indiferentes também, porque me irrita o seu choromingar de eternos inocentes. Pergunto a qualquer um desses como cumpriu a tarefa que a vida propôs e propõe cotidianamente, daquilo que realizou e especialmente daquilo que não realizou. Sinto que posso ser inexorável, que não preciso desperdiçar a minha piedade ou compartilhar minhas lágrimas. 

Sou resistente, vivo, sinto na virilidade da minha consciência pulsar a atividade da cidade futura que estou ajudando a construir. Nela a cadeia social não pesa sobre poucos, cada acontecimento não é devido ao acaso, à fatalidade, mas obra inteligente dos cidadãos. Não há ninguém na janela contemplando enquanto alguns se sacrificam, se esvaem em sacrifício; aquele que permanece de plantão na janela para aproveitar daquilo que a atividade desses poucos alcança - ou para desafogar a própria desilusão vituperando o sacrificado - desfalece sem conseguir o que pretende. 

Vivo, sou militante. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

Gramsci. Odeio os indiferentes, escritos de 1917. pp. 31-33. Boitempo, 2020.

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