quarta-feira, 12 de maio de 2021

O trabalho docente na pandemia do coronavirus

Entrevista com Gaudêncio Frigotto* (outubro de 2020)

O trabalho docente articula dimensões políticas, pedagógicas, éticas e profissionais, objetos de distintas elaborações teóricas e disputas sobre a própria constituição subjetiva e objetiva da identidade deste trabalhador que atua em diferentes níveis e modalidades de ensino. Considerando sua atuação e os princípios teóricos ético-políticos que o orientam, qual a sua concepção sobre o trabalho docente? Quais aspectos gerais e específicos caracterizam ou deveriam caracterizar a identidade profissional do professor no contexto atual? 

Desde o mundo grego, podemos perceber uma desconfiança e preocupação da classe dominante em relação ao trabalho docente, particularmente por sua relação com a formação das novas gerações. Os sofistas, que eram pensadores autônomos que não seguiam as ideias dominantes ao educar os jovens para o embate político, eram vistos por Platão e Aristóteles como falsificadores da verdade. Na idade média, com o domínio da Igreja, qualquer ensinamento que não se subordinasse à metafísica era considerado herético, sendo duramente condenado e castigado. A inquisição foi a face que precedeu formas fascistas de anular o pensamento divergente.

Na sociedade capitalista, a escola surge dentro do ideário iluminista de liberdade, igualdade e fraternidade e como uma instituição universal, pública, gratuita e laica, uma concepção que se forjou pelos intelectuais da burguesia no embate com o Estado absolutista e a doutrina da Igreja. Esse caráter revolucionário, porém, não pôde ao longo da história ser cumprido pelo fato de que a burguesia não rompeu com a sociedade de classe, mas constituiu uma nova sociedade classista. Desse modo, a burguesia não apenas estruturalmente não pôde cumprir essa promessa, como buscou e busca subordinar a escola e o trabalho docente aos conhecimentos e valores que afirmam e reproduzem seus interesses. 

Mas a história também nos mostra que, por ter-se forjado até o presente em sociedades cindidas em classes com interesses antagônicos, as relações sociais não se pautam pela harmonia, mas por conflitos e lutas. Do ponto de vista da burguesia, o trabalho docente tem como função socializar os conhecimentos científicos, concebidos como neutros, e afirmar os valores fundados numa concepção de natureza humana a-histórica que todos herdamos e que tende ao bom e ao útil, visão esta que busca consolidar a crença de que cada um tem, por essa via, a plena liberdade de suas escolhas e responsabilidade por suas consequências. 

A desigualdade, nessa concepção, seria fruto de decisões individuais inadequadas e não de relações de poder assimétricas entre a classe dominante e as classes dominadas. A condição de escravos na sociedade antiga, servos na idade média e assalariados vendedores de sua força de trabalho ou subempregados e desempregados sob o capitalismo seria fruto de escolhas erradas. Nisto consiste a base do credo ou da ideologia da meritocracia fortemente propalada pelo Governo Bolsonaro, mas que tem raízes mais amplas desde a gênese da doutrina liberal. Na perspectiva de uma análise histórica, ou seja, da que busca entender como a realidade humana se produz, a desigualdade resulta das relações de dominação da classe dominante sobre as demais e, como tal, a concepção da função da escola e do trabalho docente é de ensinar e educar para a superação das relações de classe.

O grifo em ensinar e educar deve-se ao fato de que a tese dos profetas do neoliberalismo da década de 1990, no Brasil, e os atuais ultraconservadores é a de que à professora e ao professor, cabe-lhes ensinar os conhecimentos neutros, mas não educar. Voltamos às teses de Platão e Aristóteles contra os sofistas, agora com a acusação de que muitos professores doutrinam e se metem em temas “ideológicos”, como o da escravidão, do racismo, da desigualdade social, de gênero e da discriminação contra grupos LGBT, ou econômicos e políticos. Esses seriam mercado de reserva dos “especialistas” oficiais. Assim, as características gerais da identidade profissional do professor que busca transformar as relações sociais de dominação e, portanto, formar a mulher e o homem novos para relações sociais de solidariedade e de igualdade efetiva são as de ensinar e educar. Isso no sentido que Florestan Fernandes sublinha em O dilema educacional (2020), ao abordar a dupla função docente: científica e política.  

No plano científico, ensinar é, sobretudo, desenvolver na criança e no jovem o espírito científico da curiosidade, levando-os a duvidar e pesquisar. No plano político, para ele em nossa realidade tão ou mais importante que o primeiro, é o movimento de permitir o desenvolvimento do eu, da pessoa da criança e do jovem para que sejam sujeitos na história. Mas, como nos lembra Florestan, esse professor só poderá exercer esse papel fundamental se ele mesmo for politizado. Essa dupla função que define socialmente o professor é adquirida em seu processo de formação, tanto científica, quanto política. Científica, depois da graduação, mediante cursos de especialização ou mestrado e doutoramento. Mas, também, pertencendo a grupos de estudo ou pesquisa. No Brasil, existem centenas de grupos articulados, por exemplo, que estudam a pedagogia histórico-crítica ou grupos como o dos organizadores desta coletânea. 

A formação política que torna o professor um intelectual militante se dá pertencendo a grupos que lutam por direitos negados ou a sindicatos e partidos que defendem os interesses da classe trabalhadora.  No contexto da ideologia e pedagogia do ódio ao diferente, ao pensamento divergente e à análise de como se produz nossa história pautadas pelos adeptos do Movimento Escola Sem Partido e do atual governo, essa vinculação do professor é fundamental e imprescindível. Trata-se de defender a identidade de que nosso trabalho é científico e político e que, portanto, o ensinar e educar é uma unidade do diverso.

A função social da escola e do trabalho docente tem sido tensionada por mudanças sociais, culturais, políticas e econômicas que imprimem novas configurações para a educação escolar. A pandemia do Coronavírus e a necessária suspensão do ensino presencial fizeram emergir debates e práticas que incidem diretamente nas concepções sobre a função da escola e na especificidade do trabalho docente. Quais tendências e embates você observa emergirem desse contexto? Qual a sua apreciação crítica sobre eles? Na sua concepção, que princípios, aspectos e condições objetivas do trabalho docente estão sob risco e quais devem se constituir como uma pauta de luta e de resistência para os trabalhadores  da educação? 

A nova configuração da escola e do trabalho docente tem suas raízes na forma que assumem as relações sociais capitalistas frente às contradições e crises que lhes são inerentes e às ideias que buscam legitimá-las. No atual contexto histórico, essas ideias se expressam pela doutrina neoliberal ou neoconservadora. Doutrina que no plano político foi expressa de forma fria por Margaret Thatcher, primeira-ministra do Reino Unido durante uma década, ao dizer que não havia sociedade, mas sim indivíduos e, portanto, a sociedade não existe. A derivação disso na literatura política, social, econômica e educacional conservadora é de que o que existe é o mercado e tudo a ele deve se submeter. Foi nesse contexto de  final do século XX que a Organização Mundial do Comércio (OMC) assinalou que um dos espaços para lucros fáceis era o da educação. 

O Banco Mundial (BM) se constituiu, especialmente desde esse contexto, no intelectual coletivo não só do negócio da educação, mas da tese de que cabe ao professor apenas ensinar. Por sermos uma sociedade cuja classe burguesa optou por um projeto de capitalismo dependente, portanto, subordinado aos centros hegemônicos do capital, o investimento em ciência e educação de qualidade não são prioritários. A opção é pela cópia e por tomar, para a educação, as fórmulas das orientações dos organismos internacionais que defendem os grandes grupos e corporações do capital mundial. 

E o BM, assim que a pandemia se mostrou uma guerra longa e confinou bilhões de pessoas em casa, deu a senha de que a gestão digital e o ensino por meio remoto vieram para ficar. O termo que passa a ser incorporado nos meios de comunicação e nos institutos privados que vendem pacotes de ensino é “ensino híbrido”. Isso significa que se trata de uma estratégia para maximizar tanto o negócio da educação privada, quanto para retirar dinheiro da educação pública, para que o fundo público se amplie na garantia dos negócios do capital, mormente o financeiro. Para se ter uma ideia desse assalto legalizado neste ano [2020] no Brasil, dos três trilhões e oitocentos bilhões do orçamento público, a dívida pública vai pagar em juros e amortizações um trilhão e novecentos bilhões. Vale dizer, mais de 50% do orçamento. Mas, ao mesmo tempo, vai ser um instrumento poderoso de controle sobre o professor para enquadrá-lo, quer à distância, quer em sala, a “ensinar” o conteúdo prescrito e comprado pelos municípios e estados de institutos privados ou de órgãos “oficiais” do poder de plantão. A consequência mais grave é a perda da autonomia docente para cumprir sua função de ensinar e educar. Um controle ideológico, portanto, permanente e, com ele, a aplicação ao professorado da pedagogia da ameaça e do medo para que se enquadre no prescrito. 

Outra consequência diz respeito à sobrecarga de trabalho, pois o BM já disse que um dos meios para poupar dinheiro na escola pública é não repor as aposentadorias e aumentar o número de alunos por professor. Mas, também, ao fazer da sala de jantar a sala de aula, significa, além de misturar o mundo privado da família ao que é dever do Estado, aliviar para este último custos de internet, luz, água, transporte etc. A consequência drástica se dará sobre os aproximadamente 85% de jovens de classe popular que frequentam a escola pública. Nega-se a eles um ensino de qualidade e o estímulo àquilo que deveriam ser educados: controle sobre o uso das tecnologias, convivência no espaço diverso da escola, debate olho a olho com colegas e professores. Mata-se a função educadora e política de socialização da escola. Mas, desde a escravidão, naturaliza-se, de formas diversas, a ideia de que é absurdo que o escravo e as filhas e os filhos da classe trabalhadora imaginem que tenham direito à igualdade educacional, mesmo que na lei se diga isso. Dos quatro ministros da educação até hoje do Governo Bolsonaro, três, porque um sequer atuou, defendem a ideia de que a universidade não é para todos. 

Ricardo Vélez Rodríguez, ao dar entrevista ao jornal Valor Econômico afirmou: “A ideia de uma universidade para todos não existe”. Justificou que ela é para uma elite e que se alguém for advogado e trabalhar como uber, então não deveria ter feito Ensino Superior (1). O atual ministro Milton Ribeiro faz um grande rodeio, mas defende a mesma ideia quando afirma ao jornal Estado de S. Paulo: “Muitas vezes o sonho brasileiro é ter um diploma, o pessoal mais simples, mais pobre. Não sou contra isso. (...) mas em termos de política nacional é equivocado” (2). Ou seja, o Ensino Superior é para uma elite e ponto. Muito coerente com os cortes nas universidades públicas e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Ao mesmo tempo, cinicamente, diz que: “hoje, ser professor é ter quase uma declaração de que a pessoa não conseguiu fazer outra coisa” (3). Para barrar o que se anuncia pós-pandemia e barrar os estragos na educação já efetivados pela Emenda Constitucional n° 95, pelas contrarreformas do trabalho, da previdência, do Ensino Médio e pelo programa Future-se, só a organização e a luta do professorado, especialistas, técnicos e com forte vínculo com os pais, sindicatos, movimentos sociais e culturais, partidos políticos e esferas do poder judiciário.

_______________________________________________

(1). Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2019/01/28/ideia-de-universidade-para-todos-nao-existe-diz-ministro-da-educacao.ghtml>. Acesso em: 28/9/2020. 

(2). Disponível em: <https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,voltas-as-aulas-no-pais-e- acesso-a-web-nao-sao-temas-do-mec-diz-ministro,70003450120>. Acesso em: 28/9/2020. 

(3). Disponível em: <https://www.cpp.org.br/acontece-no-cpp/item/15896-nota-de-repudio-ministro-da-educacao-se-exime-de-suas-responsabilidades>. Acesso em: 30/9/2020.

________________________________________________

Para legitimar a competividade e a busca da eficiência, a “teoria do capital humano” vem se apresentando como marco relevante, revigorado e revisitado, sob a égide da lógica empresarial no processo de acumulação flexível. No contexto atual, verificamos novamente a educação ser apresentada como solução para as desigualdades e como fator determinante para o desenvolvimento econômico. Trata-se de uma renovação da promessa integradora via ressignificação da teoria do capital humano? Como um dos mais fortes expoentes da crítica a essa teoria, que particularidades você observa perpassando os discursos e as políticas educacionais, tais como a Reforma do Ensino Médio? Que papel e função são delegados ao professorado? 

O que se denominou, na literatura, de “teoria do capital humano” é, em verdade, a visão ideológica que a classe burguesa mundial disseminou e que expressa a visão invertida da realidade histórica. Do legado de Karl Marx, aprendemos que os intelectuais da burguesia veem a desigualdade, a pobreza, a violência e seus efeitos, mas por condição de classe não veem as determinações que as produzem. E, como sublinha Henri Lefebvre, quanto mais limitada e tosca é a classe dominante e os intelectuais que a representam, mais limitado é o conhecimento da realidade histórica. 

São os “limites de uma época” – de uma classe – mais que o egoísmo deliberado ou uma “mentira de classe” que explicam os limites das ideias; não existem “verdades” de classe; há apenas a “verdade”, o “conhecimento objetivo”, que o pensamento humano atinge por tentativas, por “aproximações sucessivas”. E o grau desta aproximação é definido pelo tempo e pelo lugar, pela classe dominante, pelos seus limites sociais. A verdade e o conhecimento objectivo continuarão incompletos, “abstratos” e “unilaterais”, enquanto uma classe, historicamente, não tiver senão objetivos limitados, aspirações e fins restritos.  (Lefebvre, 1966, p. 45)

A ideologia do capital humano surge num contexto histórico em que a classe burguesa, em especial as dos países centrais do capitalismo, estava preocupada com a expansão do socialismo e do comunismo após a Segunda Guerra Mundial e, especialmente, após a Revolução Popular de Cuba. Temiam que a desigualdade entre países e internamente a eles se constituíssem em terreno fértil para o avanço das teses socialistas. O economista Theodore Schultz, que dirigia um centro de pesquisa sobre desenvolvimento, observou empiricamente que as famílias que investiam em educação e saúde tinham maior mobilidade social e melhor renda. Após analisar a relação entre o Produto Interno Bruto (PIB) e a escolaridade de uma centena de países e ver a forte conexão, concluiu que investimento em educação constituiria um capital humano igual ou superior a outros investimentos. A partir daí, tomou-se o investimento em educação como sendo a “galinha dos ovos de ouro” para os países subdesenvolvidos atingirem o desenvolvimento e os grupos mais pobres terem mobilidade social, diminuindo, assim, a desigualdade. Por certo, uma boa formação tem efeitos importantes sobre todas as esferas da vida. Por isso, investir em educação pública, universal, gratuita e laica de qualidade não só é desejável, mas é um direito social e universal. 

Se o desejo da classe dominante da época e seus intelectuais era integrar a todos, por que a desigualdade entre nações e interna a elas permaneceu ou se ampliou? Schultz e seus adeptos do passado e do presente, por condição de classe, não veem que o motivo pelo qual as nações subdesenvolvidas e os grupos sociais pobres deixam de investir em educação não é falta de vontade, mas porque as relações de poder entre nações e internamente são desiguais. Assim, o Brasil não investe em educação pública de qualidade porque sua classe dominante se associa de forma subordinada aos centros hegemônicos do capital que assaltam o fundo público em pagamento de juros da dívida pública. Nada mais perverso do que o que indica a distribuição do orçamento público de 2020. Esse cenário aponta que hoje vivemos uma regressão à visão da ideologia do capital humano. Com a crise e colapso do socialismo real, como assinalei anteriormente, Margaret Thatcher deu a senha para as teses neoliberais de que não há mais lugar para todos, mas apenas para os mais competentes ou aqueles que adquirem as competências que o mercado demanda. O mercado se personifica e se constitui numa divindade mítica, onde quem quer sobreviver para ele tem que olhar e seguir. Por isso a ideologia do capital humano, que ainda tinha a ilusão de integrar a todos, se metamorfoseia numa ideologia ainda mais perversa, porque afirmada no culto ao individualismo e ao pragmatismo da ideologia das competências. 

O recado cínico é de que se você não é vencedor é porque as escolhas das competências a serem desenvolvidas não observaram os desejos e as necessidades do deus mercado. O coroamento dessa ideologia das competências é a ideologia da meritocracia. Desde a década de 1990, especialmente no Governo Fernando Henrique Cardoso, com seu ministro Paulo Renato de Souza, os intelectuais dirigentes infestaram o ideário educacional com a pedagogia das competências. A contrarreforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mudanças que não foram possíveis  de serem feitas antes por resistência protagonizada pelos educadores mediante suas organizações científicas, sindicais e políticas, foram rapidamente implementadas após o golpe de Estado de 2016, cujos intelectuais eram os mesmos do grupo do Governo Fernando Henrique Cardoso. A prova dos nove é que a grande executora da política educacional de Paulo Renato de Souza era Maria Helena Guimarães de Castro que, não por coincidência, mas por missão, foi a secretária executiva do Ministério da Educação do golpista  Michel Temer. 

A organização do Ensino Médio por itinerários formativos, com o slogan cínico de que agora o jovem pode escolher, na prática, volta ao tempo anterior das leis de equivalência e liquida o Ensino Médio como educação básica. Essa liquidação se completa com as BNCCs que definem como obrigatórias ao longo do Ensino Médio somente as disciplinas de língua portuguesa, matemática e inglês. Ou seja, liquida o que dá a base: uma compreensão de como funciona a sociedade humana, que se adquire pela história, sociologia, filosofia, geografia, arte, cultura etc., e como funciona o mundo da natureza da qual fazemos parte, a biologia, a química, a física.  

O esvaziamento das ciências humanas e sociais no currículo busca afirmar a tese de que ao professor cabe ensinar e não educar. E ensinar o prescrito que não tenha ideologia! O esvaziamento das ciências da natureza é coerente com uma classe burguesa brasileira que em vez de investir na produção de ciência básica, conhecimento original, tomou o caminho da compra da cópia. A negação da universalização da educação básica não é, pois, um descuido. Inscreve-se no limite da classe burguesa brasileira e seu projeto societário. Com o atual governo de extrema direita, essa classe expressa o ápice de seu limite e as consequências desastrosas para a classe trabalhadora.  As declarações anteriores assinaladas pelos ministros de educação do Governo Bolsonaro, sintetizam o traço raso de cultura humana e expressam, sem rodeios, que a universidade é para uma elite ou que os pobres podem ter esse sonho, o que em termos de política nacional seria um erro.

Na sua mais conhecida obra, A produtividade da escola improdutiva, você demonstra que a escola é imediatamente improdutiva e mediatamente produtiva. Considerando as circunstâncias que atravessamos, de crise orgânica do capital no cenário macro e de severo avanço na pauta conservadora e ultraliberal no contexto micro, como você definiria a natureza do trabalho docente hoje? Essa perspectiva permanece? Como os professores devem se armar, teórica e praticamente, para enfrentar as contradições que atravessam o aparelho escolar? 

A sociabilidade da forma capital de relação social ou o seu sociometabolismo tem a crise como elemento estrutural. Assim, as crises, como indicavam Marx e outros autores de sua herança, como David Harvey e István Mészáros, para o tempo presente tendem a ser cada vez mais profundas em sua universalidade, por atingirem todas as esferas da vida (natureza, trabalho, educação, saúde), e globais, porque não se restringem mais a uma região, mas afetam, ainda que de forma diversa, a vida das populações de todas as nações. Trata-se de um sistema que se afasta cada vez mais de seu parco caráter civilizatório e penetra em campos que eram preservados da lógica mercantil ou que as lutas sociais constituíram na esfera dos direitos universais. Ou seja, a tendência de penetrar com a lógica e as estratégias mercantis em todas as esferas da vida. A educação e a saúde são as esferas que, com as políticas neoliberais e ultraconservadoras, foram sendo atingidas de forma medular pela lógica mercantil.  Primeiro, pelo crescimento exponencial do ensino como negócio regido nos termos do papel da gerência no processo de trabalho capitalista. Mas, a partir da ideologia neoliberal ou ultraconservadora, desde o final do século XX, as organizações de classe do capital buscam sugar recursos públicos mediante “parcerias” e, de dentro do aparelho do Estado ou por pressão de suas organizações de classe na sociedade civil, pautar a escola pública no conteúdo, na forma e no método  que atendam a seus interesses. 

O Movimento Todos pela Educação, comandado por quatorze grupos empresariais e por dezoito institutos privados a ele direta ou indiretamente vinculados que sutil e malandramente subverteram o slogan da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de Educação para todos, e o Movimento Escola Sem Parido são a expressão política de classe na mercantilização do ensino público e do controle ideológico sobre o trabalho docente. Note-se que, não por acaso, em alguns sistemas educacionais estaduais e municipais, nesse processo que se aprofunda desde a década de 1990, os coordenadores de ensino passaram a se chamar  de gerentes. Com o golpe, essa perspectiva que tinha sido, em parte, confrontada pelos governos comandados pelo Partido dos Trabalhadores retornou mais potenciada pelas Contrarreformas. A Emenda Constitucional n° 95 tem em mira liquidar com o trabalhador do setor público da educação e da saúde, áreas prioritárias da mercantilização. A contrarreforma trabalhista atinge o professor da escola pública nos mesmos termos do setor privado. Com a eleição de um bloco de poder de extrema direita, somam-se a chantagem, as ameaças, quando não perseguições a quem ousa pautar-se por uma visão crítica. A melhor síntese que posso dar sobre como os professores devem se armar teórica e praticamente para enfrentar as contradições que atravessam o aparelho escolar, as recolho do que Gramsci escreveu no primeiro número do jornal L’Ordine Nuovo, de 1919: 

“Instruí-vos porque teremos necessidade de toda a vossa inteligência. Agitai-vos porque teremos necessidade de todo o vosso entusiasmo. Organizai-vos porque teremos necessidade de toda a vossa força”. 

Certamente, o potencial de uma formação na perspectiva do materialismo é de permitir ao professor entender a direção da luta e que a mesma só tem força quando é coletiva e organizada. Assim, quer dentro do microespaço escolar, quer no âmbito mais amplo do sistema educacional e do sistema social, só podemos construir trincheiras de resistência e de busca por alterar a correlação de forças se pertencermos a algum coletivo que se vincule à luta por direitos  sequestrados. Luta que tem em seu horizonte a superação das relações sociais capitalistas.

De acordo com a sua própria definição, a função da escola capitalista “se insere no âmbito não apenas ideológico do desenvolvimento de condições gerais, da reprodução capitalista, mas também no das condições técnicas, administrativas, políticas que permitem ao capital ‘pinçar’, na expressão de Gianotti,  de dentro dela aqueles que, não pelas mãos, mas pela cabeça, irão cumprir as funções do capital no interior do processo produtivo”. (Frigotto, 1984, p.151) Essa continua sendo a função da escola capitalista? Que perspectivas de escola ainda estão em disputa e que prática e estratégias político-pedagógicas adotadas pelos professores indicariam um caráter mais regressivo ou progressista dela? 

A escola, como qualquer organização dentro do sistema capitalista, tende a ser capturada para a sua produção e reprodução material, intelectual, ideológica e política. Mas a história mostra que as formas humanas de organização da sociedade, até o presente, se efetivaram mediante a dominação de uma classe sobre as demais e, como tal, é uma história da luta de classes. A própria burguesia se constitui como classe revolucionária destroçando as bases estruturais do sistema feudal: o Estado absolutista, a metafísica da Igreja e o trabalho escravo e servil, ainda que depois os redefina sobre outras bases. Assim, enquanto perdurar o sistema capitalista, a luta é a disputa da escola, em seu interior e na sociedade, para que dê as bases científicas e de formação política não apenas para reformar o capitalismo, mas para superá-lo. Por isso que a disputa da escola tem que ser travada na sua organização, na sua gestão e no conteúdo, forma e método de formação das novas gerações. 

O que os jovens, sobretudo, precisam perceber é que quando acusam o professor de, em seu trabalho, disseminar o marxismo cultural, a ideologia de gênero e politizar o processo de conhecimento, ali reside a possibilidade de uma formação que os afirme como sujeitos da história e que, somente dessa forma, poderão desde o presente construir as possibilidades futuras. Um futuro que, nas formas sociais do presente, está barrado na educação de qualidade, no direito à saúde, ao trabalho e, portanto, em uma vida digna. A confrontação odiosa que se faz ao pensamento crítico e a intelectuais que se constituíram e constituem como referências do mesmo na formação dos professores e dos jovens é uma indicação de que, desde as lutas contra a ditadura e, em especial, nos últimos quarenta anos, uma grande massa de professores se formou tendo bases para o exercício de ensinar e de educar. 

O estado de exceção implantado com o golpe de 2016 e a ascensão ao poder de um grupo de extrema direita, mediante a pedagogia do ódio e da ameaça de cunho neofascista, está gerando um estado de medo em parte do professorado. Medo de perder o emprego, afetar a aposentadoria ou, para outros, reforçando suas posições conservadoras, especialmente de cunho moral. Esses temas precisam ser abordados na formação dos professores nas licenciaturas e os sindicatos precisam atuar na formação política da categoria. O que Marx disse ao editor-chefe do jornal The New York Times em 1881, ao responder à pergunta sobre o que era para ele “a lei do ser”, ganha um sentido mais incisivo atualmente. De forma pausada a resposta foi: “a luta”. (Musto, 2018, p.17, grifo meu)

* Professor no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ). Professor titular aposentado pela Universidade Federal Fluminense. Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Expressão Popular, 2020.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1984.

LEFEBVRE, H. Para compreender o pensamento de Karl Marx. Lisboa: Edições 70, 1966.

MUSTO, M. O velho Marx. Uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018.

_________________________________ 

Fonte: Trabalho docente sob fogo cruzado. pp. 70 - 83. Organizadores: Cláudia Affonso Claudio Fernandes Gaudêncio Frigotto Jonas Magalhães Valéria Moreira Vera Nepomuceno. 1ª ed.  Rio de Janeiro : UERJ, LPP, 2021. 1 recurso online (504 p; v.2) : PDF


SUMÁRIO DO LIVRO

APRESENTAÇÃO Cláudia Affonso  8

PREFÁCIO Eveline Algebaile, Lia Tiriba, Maria Ciavatta e Marise Ramos  22

Consciência socioprofissional e docência: a dimensão ético-política do trabalho docente no contexto da pandemia  Jonas Emanuel Pinto Magalhães  31

PARTE I O TRABALHO DOCENTE NA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS

Entrevista com Gaudêncio Frigotto (outubro de 2020) 70

O precariado professoral em tempos de pandemia da Covid-19: a perda dos postos de trabalho e a eliminação de direitos  Amanda Moreira da Silva  84

O trabalho docente no período de pandemia: ataques, lutas e resistências  Rodrigo Lamosa  104

Implementação do “ensino remoto” nas redes públicas de educação básica na pandemia  Frente Contra o Ensino Remoto/EaD na Educação Básica  118

Trabalho remoto, saúde docente e resistências coletivas em contexto pandêmico: a experiência de docentes da rede particular de educação  Kátia Reis de Souza, Gideon Borges dos Santos, Guilhermina Luiza da Rocha, Andréa Maria dos Santos Rodrigues, Luciana Gomes, Eliana Guimarães Felix e Rosaldo Bezerra Peixoto  135

O Colégio Pedro II sob fogo cruzado na crise da pandemia  Luiza Rabelo Colombo  156
Ser professor no período pandêmico: reflexões a partir da experiência no Colégio Pedro II Clarissa Brazil-Sousa  177 

O fazer docente em tempos pandêmicos para além das aulas remotas: produção de conteúdo e disponibilização em espaços virtuais  João Henrique Ferreira de Castro  196

En defensa de la labor docente frente a la pandemia curricular  León Vallejo Osorio  216

PARTE II O TRABALHO DOCENTE NO LABIRINTO DO CAPITAL

A precarização do trabalho docente: o ajuste normativo encerrando o ciclo  Acacia Zeneida Kuenzer  235

O ataque ao trabalho docente na chamada sociedade do conhecimento Dalila Andrade Oliveira  251 

Socialização, profissionalização e trabalho de professores iniciantes  Maria Isabel de Almeida, Selma Garrido Pimenta e José Cerchi Fusari   270

Notas sobre as “reformas” do Ensino Médio e as conformações do trabalho docente  Vera Lucia da Costa Nepomuceno e Claudio Fernandes da Costa   298

Os ataques à educação pública no Brasil: do senso comum do capital humano ao oportunismo neoliberal na pandemia Euler Costa   323 

O que significa o Movimento Escola Sem (com) Partido?  Vitor Hugo Fernandes de Souza   347

A reprodução da força de trabalho e a crise de acumulação: pensando sob a perspectiva docente  Cláudia Lino Piccinini, Ligia Karam Corrêa de Magalhães e  Valéria de Moraes Vicente Moreira   365

A nova morfologia do trabalho (im)produtivo na era digital e a invenção do professor não-professor: infoprecarização e atividade magisterial no Ensino Superior a distância Thiago Boim   388 

A escola em disputa: trabalho docente, formação de professores e Educação do Campo  José Guilherme Franco Gonzaga, Jonas Anderson Simões das Neves e Cíntia Saydelles da Rosa   415

Formação continuada de educadores(as) das escolas do campo do Estado do Rio de Janeiro  Marília Campos e Rosilda Benácchio   439

Voluntariado como estratégia do capital para a fragmentação da categoria docente  Artur Gomes de Souza   460

Entrevista com Luiz Carlos de Freitas (setembro de 2020)  491
 


 

Nenhum comentário:

Postar um comentário