quarta-feira, 5 de maio de 2021

A saga do milho

Após perder milho tradicional, povo krahô conseguiu recuperar plantio e alegria da aldeia com visita a banco de sementes

PAULA RODRIGUES
DE ECOA, EM SÃO PAULO, 05/05/2021

Toda a agricultura, como contam os mais velhos do povo krahô, foi um presente dado por uma estrela que um dia caiu do céu para virar mulher de carne e osso aqui na Terra. Foi ela quem apresentou alimentos como milho, batata-doce e mandioca a esse povo que antes só comia pau e pedra. Por causa disso, os krahô acreditam que tudo que plantam e comem não só enche a barriga, como também alimenta o espírito de todos da Terra Indígena de Kraôlandia, localizada nos municípios de Goiatins e Itacajá (TO).


A mestre em Desenvolvimento Sustentável Junto a Povos e Comunidades Tradicionais da UnB (Universidade de Brasília) Creuza Prumkwyj Krahô chegou a contar quatro rituais e festas que envolvem o põhypej, um tipo de milho dado pela estrela-mulher que, segundo acreditam, deixa o povo krahô mais forte e que também é usado na hora do resguardo pós-parto, sendo a única comida que a mulher pode comer nesse período.
Desde o primeiro contato com o homem branco no início do século 19, os krahôs, apesar de muito aguerridos, sofreram com disputa de terra e violência que resultou na diminuição do território e em várias mortes promovidas por fazendeiros vizinhos das aldeias. Outra transformação aconteceu na alimentação e na agricultura local por influência de órgãos do governo. Combinando essas três coisas, uma crise silenciosa se estabeleceu em Kraolândia: os alimentos apresentados por Caxekwyj (a estrela-mulher) desapareceram quase que por completo.


Por isso, no início dos anos 1990, lideranças da etnia, cansadas de ver seu povo abatido - resultado da alimentação não tradicional, diziam —, decidiram que só a volta do põhypej seria capaz de fortalecer os krahô de novo.

Alimentação na "geladeira do futuro"

Em 1995, passou pelo Centro Nacional de Recurso Genético (Cenargen), em Brasília, uma comitiva de pessoas até então nunca antes vistas ali: eram os krahô à procura do milho. Fernando Schiavini, indigenista que morava com eles, tinha descoberto que na capital do Brasil, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) guardava um estoque com cerca de 200 mil sementes de vários tipos de alimentos.
Durante um trabalho com aldeias krahô por volta de 1993, Fernando conta que um ancião se levantou. "[Ele] falou que queria recuperar o milho porque quando eles tinham esse milho não tinha tanta fraqueza no meio do povo", relembra Fernando, que até hoje chora quando toca no assunto.
Os pesquisadores, apesar de comovidos com a história dos indígenas, ficaram em dúvida se deveriam ou não ceder o material desejado. Até aquele momento ninguém sabia se aquelas sementes teriam capacidade de germinar no solo, afinal nunca tinham sido retiradas da câmara fria e plantadas na terra.
Elas estavam ali desde a década de 1970, quando técnicos da empresa brasileira de pesquisa percorreram territórios brasileiros atrás de sementes para começar a estocar os bancos de germoplasma, popularmente chamados de bancos de sementes, criado depois de um alerta da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre a perda de diversidade em espécies para alimentação e agricultura.

O retorno das sementes

Por ser o primeiro coordenador da associação em busca da garantia de direitos e do retorno da agricultura tradicional, Oscar Há'porô foi o escolhido para entrar no banco de sementes acompanhado de um profissional da Embrapa. Lá dentro, identificou que uma espécie de milho recolhido do território Xavante, em Mato Grosso, era o que procurava. Retirou um pacote branco pequeno com pouquíssimas sementes de põhypej para levar de volta para Krahôlandia. Lá, distribuiu não mais que seis caroços para algumas aldeias, como relembra Getúlio Krahô, também presente na comitiva do milho.
Era um teste. Restava saber se aquele material guardado há duas décadas sob temperaturas abaixo de zero, ainda teria capacidade de se transformar em um alimento de qualidade quando plantado. Um ano depois, as poucas sementes retiradas da Embrapa, viravam comida brotando da terra.
Getúlio define o retorno das sementes naquela época como um momento em que a vida voltou ao corpo. "O povo Krahô era festa pra todo lado", conta.

Mais do que recuperar o milho, a experiência pioneira, conhecida como "Retorno das Sementes põhypej", iniciou um processo de volta da agricultura como os krahôs a conheciam antigamente. Fernando ressalta, porém, que só a volta do alimento não foi suficiente para resolver o problema da fome sazonal no território, mas culturalmente esse episódio gerou um impacto grande.
"Por causa da volta do põhypej, os krahôs se interessaram em recuperar outros alimentos que tinham sumido. Começaram a falar coisas como: 'Lembro que meu avô plantava tal coisa', 'aqui antes tinha isso, tinha aquilo'", explica. Após a procura por outras sementes que tinham desaparecido, eles recuperaram alimentos como o inhame, a mandioca e a batata-doce. "Isso tudo somado fez a diferença para reduzir a fome naquele território," diz o indigenista.

Políticas públicas e insegurança alimentar

Como conta a professora Creuza Prumkwyj, os krahô chamam suas festas de "amj'kin", que literalmente significa "alegrar-se". Eles entendem que para estes festejos acontecerem é necessário "ter fartura de alimentos, numa dinâmica de interdependência entre as festas, as roças, as caçadas e as colheitas e que é própria ao modo de vida tradicional". O que não vinha acontecendo devido à falta de variedades de alimentos.


Para se ter ideia, em 1995, enquanto lutavam para conseguir de volta o milho, os krahôs entraram no Mapa da Fome Entre Povos Indígenas do Brasil. "Era praticado um modelo de agricultura que eu, como agente da Funai, tinha herdado de gestões anteriores da SPI [Serviço de Proteção aos Índios] e de outros funcionários da Funai. Era uma monocultura do arroz. Eles introduziram a monocultura de arroz muito forte entre os indígenas de modo geral, porque tudo naquela época era o arroz, assim como hoje é a soja", conta Fernando, que começou a trabalhar com os krahôs justamente para tentar reverter essa situação de insegurança alimentar.
Mesmo tendo dado bons resultados, a quantidade de sementes retiradas da Embrapa ainda não era suficiente para acabar com a fome sazonal nas aldeias. Como relembra Getúlio, os caroços de milho doados foram poucos e "quem tinha semente tava feliz, quem não tinha não tava". Isso ajudou os krahôs a perceberem que precisavam fazer mais para garantir que as sementes não voltassem a desaparecer.


Uma feira de sementes

E foi por isso que dois anos depois, eles articularam a primeira Feira Krahô de Sementes Tradicionais para promover a troca de sementes entre indígenas da etnia, valorizar e multiplicar a diversidade do material nas aldeias. "Não foi grande a quantidade e a diversidade de sementes que apareceram nesse primeiro encontro, mas o potencial desse espaço de circulação de sementes como estratégia de conservação das variedades locais foi logo percebido", observaram pesquisadores no relatório "As Sementes Tradicionais dos Krahô".

Outras dez edições da feira aconteceram depois disso. O sucesso foi tanto que os krahôs decidiram abrir o evento para parentes de outras regiões que estavam à procura de sementes perdidas. Para os especialistas, a importância do evento fica nítida ao observar o surgimento de feiras parecidas com essa por vários outros territórios.
"A feira chegou a ter a participação de 20 etnias diferentes, que hoje também praticam a conservação e fazem trocas inspiradas nessa dos krahô. Não só em terras indígenas vizinhas, mas no Brasil inteiro", diz Fernando.
A feira de sementes aconteceu até 2013, quando um acidente a caminho do evento matou três indígenas e deixou o grupo em luto. As trocas devem voltar em breve. Algumas aldeias krahô têm planos de retomar a atividade agora, em meados de 2021.

Ciclo de Alimentação

A alimentação é um direito previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também na Constituição Federal brasileira. Isso significa o Estado tem a obrigação de garantir que a população tenha acesso a alimentos saudáveis e nutritivos em todas as suas refeições.
Com o agravamento da pandemia, mais do que nunca, precisamos falar sobre alimentação e combate à fome, investigar maneiras sustentáveis de produção, olhar para quem garante produtos in natura a preços acessíveis e, claro, cobrar políticas públicas efetivas.

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