terça-feira, 11 de março de 2025

A violência contra a mulher no Brasil

Visível e invisível:  a vitimização de mulheres no Brasil - 5ª edição - 2025,  Março de 2025


Introdução (p.6)

A  pesquisa “Visível e Invisível: Vitimização de Meninas e Mulheres” chega à sua quinta edição e traz dados inéditos sobre as distintas formas de violência contra meninas e mulheres brasileiras experienciadas nos últimos 12 meses. As respondentes são mulheres brasileiras de 16 anos ou mais. Em comparação com as pesquisas anteriores, todas as formas de violência apresentaram crescimento acentuado. E é fato que estamos diante de um crescimento que pode, sim, resultar na forma mais grave e definitiva de vitimização: o feminicídio.

Em 2015, mulheres de todo o Brasil foram às ruas para defender os poucos direitos sexuais e reprodutivos constitucionalmente assegurados às brasileiras. Tratava-se de um estopim. Uma miríade de pautas represadas com relação à desigualdade de gênero no país veio à tona e vivemos, desde a data, uma década marcada por debates sobre vitimização de meninas e mulheres em intensidade e frequência inéditas. Nunca se falou tanto de desigualdade de gênero no nosso país. Foi em 2015, inclusive, isto é, 10 anos atrás, que a então presidenta Dilma Roussef sancionou a Lei do Feminicídio (lei n. 13.104/2015), que incluiu no Código Penal, como figura qualificada de homicídio, o homicídio de mulheres motivado pela condição de gênero da vítima. E somente bem recentemente, via lei n. 14.994, de 09 de outubro de 2024, o feminicídio foi transformado em tipo penal autônomo, com caracterização própria, isto é, separado de outros tipos de homicídio. Essa é uma mudança que confere maior visibilidade ao fenômeno, tornando-o mais fácil de ser identificado e julgado de maneira específica. São indícios de que a luta pelo direito das mulheres acontece, mas é lenta.  

A primeira edição da pesquisa “Visível e Invisível: Vitimização de Meninas e Mulheres”, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017, captando a vitimização no ano anterior, se deu no bojo deste processo. Desde então, o Brasil vivenciou também uma série de turbulências políticas e econômicas que vários analistas têm chamado de retrocesso democrático1. Uma profunda recessão que culminaria no impeachment de Dilma Rousseff, nossa primeira presidenta mulher, em 2016. Pouco depois, a eleição de um político radical para a presidência afundaria qualquer possibilidade de diálogo ou polidez na política, naturalizando de vez baixarias e indecências como “ela não merecia ser estuprada”.

Neste período, vimos os dados referentes à violência contra meninas e mulheres no Brasil crescerem. E mais: a maioria das mulheres vítimas de violência grave nos últimos 12 meses afirma não ter feito nada diante da agressão sofrida. O padrão identificado pelas últimas quatro pesquisas de vitimização de meninas e mulheres brasileiras é percebido também nesta quinta edição: mulheres seguem sofrendo. E caladas. Além disso, a esmagadora maioria das mulheres afirma que sofreu agressões diante de testemunhas e ¼ afirma que sofreu agressão diante dos filhos. Estamos diante de um quadro crítico. 

O amplo debate que promove uma maior e melhor compreensão do fenômeno não o tem barrado. Nos cabe interpretar os dados coletados e procurar hipóteses que os justifiquem.  Buscamos, enfim, explorar as hipóteses que podem explicar o que os dados nos dizem. Em casos de violência contra meninas e mulheres, é notório, a subnotificação é regra. Portanto, a feliz proliferação de campanhas e iniciativas de conscientização e sensibilização encampadas por agentes públicos e privados faz com que meninas e mulheres identifiquem como violência comportamentos que antes eram considerados normais e esperados. Ainda mais do que tolerados, tais comportamentos eram premiados pela sociedade machista em que vivemos. 

Tal tomada de consciência necessariamente se traduz, no curto prazo, em um incremento relevante nos relatos sobre vitimização. Dados contam histórias. Os dados que seguem contam, em parte, uma história de sucesso, de campanhas bem-sucedidas ao levar à baila o tema da violência contra meninas e mulheres. Os números coletados, por exemplo, mostram que uma quantidade expressiva de meninas e mulheres afirma ter sido vítima de agressões verbais e insultos no último ano. Tais práticas violentas, muito provavelmente, não eram percebidas como violência antes deste esforço coletivo de tratar do tema insistentemente.

Há também o aumento de meninas e mulheres que relataram ser vítimas de violências como stalking, novas tipificações que antes não existiam e hoje não são apenas reconhecidas culturalmente como condutas violentas, são novos tipos penais. Mas acreditamos que estes feitos não explicam por completo os altos números que virão a seguir.

Outro fator que justifica os dados elevados aqui captados é o legado de quatro anos de desfinanciamento de políticas de prevenção e enfrentamento da violência contra meninas e mulheres por parte da administração Bolsonaro e de governadores e prefeitos alinhados com este governo.

Vale destacar ainda que o país foi atingido por uma pandemia em março de 2020 que resultaria na morte de 700 mil pessoas em apenas três anos, forçando milhões de brasileiros a mudarem seus hábitos e adotarem medidas de isolamento social. Neste processo, serviços de acolhimento foram descontinuados e o atendimento às mulheres em situação de violência doméstica tornou-se ainda mais desafiador. Na pesquisa realizada em 2021, que abarca o primeiro ano da pandemia, a prevalência de mulheres vítimas de violência caiu, seguindo a tendência dos registros policiais. Estariam as mulheres de fato mais seguras? Ou a convivência com o agressor na mesma residência teria deixado-as mais vulneráveis à violência doméstica? Os dados de feminicídios nos anos que se seguiram demonstraram que a segunda opção parece mais realista.

Os surveys aplicados nos anos de 2023 e 2025 sinalizaram essa tendência, mostrando uma escalada de formas agudas de violência contra meninas e mulheres. E os dados que serão apresentados ao longo deste relatório mostrarão que 37,5% das entrevistadas relataram ter vivenciado ao menos uma situação de violência no último ano, o equivalente a 21,4 milhões de mulheres com 16 anos ou mais. Esta é a maior prevalência de violência entre mulheres verificada ao longo dos oito anos da pesquisa.
 Mas o crescimento de diferentes tipos de violência, a opção por não procurar justiça e qualquer tipo de atribuição de responsabilidades ao agressor sugere que há algo a mais que sustenta os números elevados que a pesquisa revela. 

Uma das hipóteses nos parece digna de nota: todo avanço na luta por direitos incomoda aqueles interessados na manutenção do status quo. Desperta, via de regra, um efeito rebote. Um refugo que a literatura feminista chama de backlash [2]. 

Nenhum ganho passa impune e direitos jamais são dados, são sempre conquistados. O patriarcado se articula para reverter qualquer avanço. É o repuxo da onda de avanços nas agendas feministas recém conquistadas. Os artífices do rebote não têm pudor em se mostrar insatisfeitos com as demandas feministas. Se referem à defesa de direitos de meninas e mulheres com ironia, repetem a ideia-força de que mulheres estão mais seguras protegidas por homens do que vivendo a vida em igualdade de condições, decretam que a geração #MeToo apenas reclama, expõe e cancela – ao invés de produzir ganhos reais para brasileiras e brasileiros.

O rebote se faz presente quando nos deparamos com narrativas públicas que afirmam que homens têm sido excessivamente perseguidos e castigados, que a família brasileira ganharia com a restauração dos consensos que o feminismo faz tremer. Se apresenta também quando porta-vozes destas demandas propõem projetos de lei para criminalizar mulheres em casos de aborto, mesmo quando foram vítimas de estupro, tal como fez a Câmara dos Deputados com o PL 1.904/2024. 

Tragicamente, a vítima passa a ser ré. Em 1991, a feminista norte-americana Susan Faludi ganhou o prêmio Pulitzer com a obra “Backlash: The Undeclared War Against American Women”.  À época, Faludi identificava nos anos Reagan um grande movimento de retrocesso sustentado por duas premissas centrais: a) a ideia de que o feminismo teve conquistas reais e que mulheres e homens já seriam suficientemente iguais e que a desigualdade restante era positiva, não um dado negativo; e b) a noção de que o feminismo seria um exagero, algo desnecessário cujo resultado seria cruel para as relações íntimas, e desagregador no âmbito político. Tais premissas teriam sido, a princípio, articuladas por uma nova direita que surgiu sob a presidência de Reagan nos anos 1970 e se tornou mainstream nas décadas seguintes.

Contudo, Faludi é clara ao nos lembrar que tais mensagens são repercutidas também pelo que a autora chama de emissários da esquerda. Juntas, tais vozes antigênero se uniram para travar o movimento por direitos de meninas e mulheres e, de fato, conseguiu desmontar muitos dos ganhos que as feministas da chamada segunda onda lutaram para conquistar. Trata-se de um cenário que nos é familiar.

Outro ângulo do problema demanda reflexão: o efeito rebote sempre é vocalizado por artífices, em geral formadores de opinião e tomadores de decisão, que se encaixam no que a literatura norte-americana chama de strongmen and strongladies politics. Noutras palavras, trata-se da política capitaneada por homens-fortes e mulheres-fortes capazes de tudo e que articulam discursos truculentos e misóginos; com inclinações autoritárias; de DNA populista; e incansavelmente vocais contra todas as demandas relacionadas à igualdade de gênero. Grupos ultraconservadores elegeram, dentre outros temas, a igualdade de gênero como uma bandeira a ser combatida virulentamente. Para tais grupos, a mulher é um objeto que pertence ao homem. Pior: propriedade vitalícia.

Ambientes políticos como esse, é sabido, geram impacto negativo na vitimização de meninas e mulheres [3]. De acordo com a ONU, conflitos, instabilidade política, radicalização e contextos sociais definidos por um debate público acalorado e violento em que vozes antigênero sobem nos palanques e proferem absurdos sobre papeis de gênero exacerba padrões pré-existentes de violência de gênero [4]. Há na literatura referências robustas que demostram que a exposição à violência política, desde discursos de cunho autoritários e misóginos até a residência em territórios onde há conflito conflagrado, aumenta a ocorrência da violência contra meninas e mulheres perpetrada por parceiros ou ex-parceiros [5].

Trocando em miúdos, uma sociedade imersa na perversidade de discursos misóginos proferidos reiteradamente por formadores de opinião e tomadores de decisão geram um caldo cultural que autoriza agressores a se comportarem como tais. Circunstâncias como estas se traduzem em maior risco para meninas e mulheres. O clássico slogan feminista “o pessoal é político” foi criado para denunciar que o que mulheres enfrentavam na intimidade de seus lares deveria deixar de ser considerado uma questão apolítica, de natureza pessoal, e passar a ser compreendido como fato social.
Os dados desta pesquisa sugerem uma interpretação adicional ao slogan clássico: ambientes políticos marcados pela violência e por lideranças que proclamam discursos violentos e misóginos continuadamente impactam a trajetória de meninas e mulheres e as colocam em situações de risco.

Os dados que seguem não surpreendem, mas preocupam. Esperamos que as informações que constam nesta pesquisa: a) informem a infraestrutura cívica brasileira, para que ela possa demandar do
Estado resultados melhores e um país mais seguro para meninas e mulheres, e b) funcionem com uma bússola para que o Estado desenvolva políticas eficientes baseadas em evidências que garantam vida, segurança e dignidade a milhões de brasileiras.  

Referências 

[1] AVRITZER, L.; KERCHE, F.; MARONA, M. (orgs.). Governo Bolsonaro: retro
cesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

[2] FALUDI, S. Backlash: The Undeclared War Against American Women. 1991.

[3] MCKIERNAN, J.; MCWILLIAMS, M. The Impact of Political Conflict on Domes
tic Violence in Northern Ireland. In: Morris, L.; Lyon, E.S. (eds) Gender Relations in
Public and Private. Explorations in Sociology. 1996.

GHOSH, S. (2022). The Scourge of Domestic Violence in India. In: The Palgrave
Handbook of Global Social Problems. 2022.

CLARK, C. J. et al. Association between exposure to political violence and intima
te-partner violence in the occupied Palestinian territory: a cross-sectional study.
Lancet, 2010.

[4] OHCHR AND WOMEN’S HUMAN RIGHTS AND GENDER EQUALITY REPORT.
Women’s human rights and gender-related concerns in situations of conflict and
instability. 2024.

[5] RINGDAL C. Conflict and domestic turmoil: A review of intimate partner vio
lence in conflict settings. In: Development Learning Lab Evidence Review. 2024.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 




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