Duna, Dune, 1984, David Lynch
O gabinete do Dr. Caligari, Das Cabinet des
Dr. Caligari, 1920, Robert Wiene
O jardim dos prazeres, The Pleasure Garden,
1925, Alfred Hitchcock
O Pensionista, The Lodger: A Story of the
London Fog, 1927, Alfred Hitchcock
Meu querido zelador, El Encargado, Série de
TV, 2022– Criação: Mariano Cohn & Gastón Duprat
O caso dos irmãos Naves, 1967, Luiz Sérgio
Person
Agente secreto, Secret Agent, 1936, Alfred
Hitchcock
Até os deuses erram, The Offence, 1973,
Sidney Lumet
Emilia Pérez, 2024, Jacques Audiard
Amargo pesadelo, Deliverance, 1972, John
Boorman
Excalibur, a espada do poder, Excalibur,
1981, John Boorman
O franco atirador, The Deer Hunter, 1978,
Michael Cimino
Esperança e glória, Hope and Glory, 1987,
John Boorman
Os Implacáveis, The Getaway, 1972, Sam
Peckinpah
A quadrilha, The Outfit, 1973, John Flynn
A outra face da violência, Rolling Thunder,
1977, John Flynn
Daisy Miller, 1974, Peter Bogdanovich
Taxi Driver: motorista de táxi, Taxi
Driver, 1976, Martin Scorsese
Fogo na Planície, Nobi, 1959, Kon Ichikawa
47 Ronins, Shijûshichinin no shikaku, 1994,
Kon Ichikawa
Assassinato em Gosford Park, Gosford Park, 2001, Robert Altman
Alcatraz: fuga impossível, Escape from
Alcatraz, 1979, Don Siegel
Rebelião no Presídio, Riot in Cell Block
11, 1954, Don Siegel
Palíndromos, Palindromes, 2004, Todd
Solondz
A glória de um covarde, The Red Badge of
Courage, 1951, John Huston
01/02/25
Duna, Dune, 1984, David Lynch
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Crítica | Duna (1984) por Ritter Fan, 10 de junho de 2017
Tentando o impossível.
A gigantesca magnus opus sci-fi de Frank Herbert, lançada em 1965, cria um universo muito particular, cheio de detalhes e de história pregressa que exige até mesmo um glossário ao final para que os leitores não se percam com expressões como gom jabbar, Bene Gesserit, Kwisatz Haderach, sardaukar e dezenas (centenas?) de outras que ganham significado meticuloso e preciso. Herbert, ao criar o universo de Duna, que, no total, conta com seis livros – e aqui só estou contando os que foram originalmente escritos pelo autor, pois há outros ainda – faz o que os maiores autores de fantasia e ficção científica costumam fazer: nos oferecer uma experiência complexa, imersiva e, no final, extremamente recompensadora.
E é justamente por isso que a adaptação cinematográfica do primeiro livro da série de Herbert precisa ser vista com o máximo de distanciamento da obra original. Afinal, simplesmente não há como a complexidade marcante da obra de Herbert ser transposta para qualquer tipo de obra audiovisual, por mais longa que seja. Espremer esse material dentro de pouco mais de duas horas (ou pouco menos de três horas na versão estendida) é uma tarefa ingrata, especialmente se lembrarmos que a produção de Duna (o filme) vinha sendo “construída” desde 1971, quando os direitos foram adquiridos por Arthur P. Jacobs, que faleceu logo depois, sendo assumidos pelo francês Jean-Paul Gibon que tinha Alejandro Jodorowsky com diretor (há até um fascinante documentário sobre o lisérgico Duna de Jodorowsky, que contava com Pink Floyd e H.R. Giger só para vocês terem uma ideia). Mas foi somente em 1976, com o envolvimento do mítico produtor Dino De Laurentiis é que a coisa começou de verdade a andar novamente, com a contratação inicial de Ridley Scott.
Óbvio que tudo deu errado e, graças a seu O Homem Elefante, David Lynch chamou a atenção de Raffaella de Laurentiis, quando os direitos de Duna estavam para expirar. A correria para produzir a obra começou, de maneira a evitar que os direitos se perdessem e Lynch, que não conhecia os livros e não se interessava por ficção científica, concordou não só em dirigir com em escrever o roteiro.
Em outras palavras, as circunstâncias – do material fonte à conturbada produção, passando pela improvável escolha de diretor e pelo corte original de quatro horas que foi reduzido para duas por ordem da Univeral – conspiraram contra Duna e o resultado foi sua destruição pelos críticos e sua ojeriza pelos fãs da série literária. Mas Duna definitivamente não é essa desgraça toda que pintam por aí. Ao contrário até. Há muito o que se apreciar, mesmo que o resultado final seja melhor caracterizado com uma cara bagunça.
De maneira a introduzir conceitos de forma econômica, Lynch cometeu um dos pecados capitais da Sétima Arte: ele dependeu fortemente de diálogos expositivos. O primeiro dele, falado pela “cabeça voadora” da Princesa Irulan (Virginia Madsen), filha do Imperador Padishah Shaddam IV (José Ferrer), estabelece a existência da especiaria, uma substância necessária para a dobra espacial e que é somente produzida no planeta desértico Arrakis, mais conhecido como Duna. Em seguida, somos jogados para outra cena expositiva em que uma estranha criatura, emissário do Spacing Guild (responsável pelas viagens espaciais) tem uma audiência com o Imperador e já de antemão aprendemos – só com base em diálogos – que o Imperador, junto com a Casa Harkonnen, tramam para assassinar o Duque Leto Atreides (Jürgen Prochnow), da Casa Atreides, ao passo que o ser gigante pressente que é o filho do duque, Paul Atreides (Kyle MacLachlan), que pode trazer problemas e, ato contínuo, ele pede seu assassinato. Tudo é entreouvido telepaticamente pela Reverenda Madre Gaius Helen Mohiam (Siân Phillips), da ordem Bene Gesserit, da qual a mãe de Paul, Jessica (Francesca Annis) faz parte e que, então, sai para testar o jovem, para descobrir se ele pode ser o messias, o chamado Kwisatz Haderach.
Confuso? Bem, se você não leu os livros, você tem que estar. Lynch, apesar de esmagar o espectador sob o peso de longos diálogos expositivos, narrativas em off e “pensamentos” dos personagens, ainda assim faz o clássico bombardeio de jargão específico do livro sem contexto, sem realmente explicar cada um deles. Com isso, ao tentar explicar, ele torna as águas ainda mais turvas e quebra o ritmo da narrativa com momentos em que ele quase que literalmente olha para nós e para tudo para explicar o que aconteceu ou o que acontecerá.
O hermetismo da obra original e a confusão da produção foram dois elementos-chave para esse resultado, mas Lynch, inserindo o máximo da mitologia de Duna no filme – e literalmente todas as expressões fantásticas criadas por Herbert – tenta respeitar o original esquecendo-se do público como um todo. Assim, os 137 minutos de projeção são sim cambaleantes em razão da estrutura narrativa imposta por Lynch.
No entanto, essa foi uma escolha do diretor e roteirista. Ele optou por assim fazer de maneira a trabalhar com proximidade ao material fonte e trazer um semblante de fidelidade. Sua escolha consciente não o exime das falhas, mas Lynch, sendo quem é, explica ao menos sua tentativa de absorver e transmitir o máximo da obra de Frank Herbert. Muitos alegam que George Lucas fez o mesmo – mas com sucesso – em Star Wars, mas isso não é verdade, pois as expressões e conceitos expostos na saga de fantasia de Luke Skywalker são, no frigir dos ovos, familiares ao público em geral. O misticismo da Força não se compara ao misticismo das Bene Gesserit. As viagens na velocidade da luz de Han Solo não têm paralelo com as dobras espaciais causadas pela fumaça laranja da especiaria de Arrakis, que deforma e transcende seus usuários. O sabre de luz é lindo, mas não tem as camadas interpretativas que a Voz permite.
Acontece que a alienação que ele causa em razão do roteiro jamais deveria ser causa suficiente para o espectador simplesmente balançar a cabeça em sinal de desapontamento pelo resultado final. Duna é, sem sombra de dúvida, um triunfo visual, especialmente se considerarmos que se trata de um filme pré-CGI, que depende de efeitos práticos, cenários e sobreposições de imagens para alcançar o que hoje bits e bytes fazem mil vezes melhor (ou pelo menos tentam). Os efeitos visuais e o design de produção são cuidadosos, detalhistas e assombrosos, na verdade.
E tudo isso vem carregado pela fotografia de Freddie Francis, que já trabalhara com Lynch em O Homem Elefante, além do preciso design de produção de Anthony Masters, um membro da tríade responsável por esse departamento em nada menos do que 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Esses dois elementos nos apresentam a um universo sombrio, cujas luzes vêm, unicamente, do sol escaladante e mortal de Arrakis ou da corte imperial czarista do Imperador, com seus dourados falsos e igualmente mortais. A luz, em Duna, significa morte. A escuridão, por outro lado, significa vida. Desde o planeta original da Casa Atreides – brindado por oceanos – que é retratado sempre com interiores pesados e exteriores à noite, passando pelos horríveis membros da Casa Harknonnen (Sting é um deles!) que se vestem com figurinos escuros, mas cuja violenta e nojenta cena de introdução do Barão Vladimir Harkonnen (Kenneth McMillan) acontece em ambiente muito iluminado e pelo povo nômade do planeta Duna, os fremen, espartanos por natureza, precisos em sua vida nos poucos oásis da vastidão desértica do local.
Além disso, o trabalho de Francis transita muito bem entre planos gerais magníficos que estabelecem a ação e planos mais fechados e alguns close-ups que passam exatamente o que os personagens sentem (outro aspecto que torna desnecessário o exagero de narração de Lynch). A montagem de Antony Gibbs (Uma Ponte Longe Demais) lida de maneira eficiente com as esparsas cenas de combate – basicamente os dois grandes ataques que acontecem no começo e no final do filme – e brilha ao trabalhar com precisão a sequência da “cavalgada” dos vermes de areia.
A trilha sonora, a encargo de Toto, é majestosa e bonita, transmitindo, a cada nota, a melancolia de Paul Atreides e a inevitabilidade de seu futuro como Paul Muad’Dib, o messias, mas não o messias previsto pelas Bene Gesserit e sim o libertador do povo fremen e de Duna, que, de certa forma, funciona como uma alegoria ao colonialismo de exploração comum em séculos passados por aqui. Além disso, a trilha ajuda a amplificar e pontuar os paralelos religiosos constantes ao contrastar notas eletrônicas com clássicas, de maneira a demonstrar o embate entre ciência e religião, entre fato e mito.
Duna é um filme muito falho, não há dúvidas disso. No entanto, é um daqueles filmes que deslumbram e aguçam a curiosidade. É um triunfo visual atrapalhado por uma narrativa expositiva que, inexplicavelmente, funciona.
01/02/25
O gabinete do Dr. Caligari, Das Cabinet des Dr. Caligari, 1920, Robert Wiene
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Crítica | O Gabinete do Dr. Caligari por Rafael Lima, 11 de fevereiro de 2018
Entre as palavras que podem ser usadas para definir O Gabinete Do Dr. Caligari (1920), “pioneiro” talvez seja a mais acertada. Dirigido por Robert Wiene, o filme se tornou o principal marco do Expressionismo Alemão, com seu visual único influenciando outras grandes obras que o sucederam neste período, como Nosferatu (1922) e Metrópolis (1927). O projeto também trouxe recursos narrativos inéditos para o cinema, que continuam a ser utilizados atualmente, como a reviravolta final, o narrador não confiável e a história-moldura. É impossível para o espectador de hoje imaginar o impacto que as inovações narrativas e principalmente estéticas do filme tiveram na época, mas O Gabinete do Dr. Caligari envelheceu muito bem, e ainda guarda muito de sua magia.
Na trama, Francis (Friedrich Feher) conta para um velho a história de como o pequeno vilarejo onde vivia foi abalado pela chegada do misterioso Dr. Caligari (Werner Krauss) e de seu show envolvendo o sonâmbulo Cesare (Conrad Veidt), adormecido há 23 anos e reanimado por Caligari através de hipnose, tornado-se seu servo. Quando uma série de assassinatos acomete o vilarejo, Francis passa a desconfiar que Cesare, controlado pelo Dr. Caligari, possa estar por trás das mortes.

Escrito por Hans Janowitz e Carl Meyer, o roteiro de O Gabinete do Dr. Caligari pode parecer mundano á primeira vista, mas guarda muito mais significados do que aparenta. Tendo sido escrito no rescaldo da 1ª Guerra Mundial, a história apresentada por Janowitz e Meyer reflete o clima de pessimismo e desesperança instaurado na Alemanha após o conflito e a assinatura do Tratado de Versalhes. O filme aparenta carregar um forte subtexto político ao lançar um olhar desconfiado para figuras de autoridade, sendo o Dr. Caligari, grande vilão, dono de uma posição de poder em uma instituição mental que usa para atingir seus próprios fins, controlando sonâmbulos incapazes de pensarem por si mesmos para realizar o seu trabalho destrutivo, traçando um paralelo entre Caligari e as autoridades alemãs que levaram o país à Guerra. Anos depois, o teórico alemão Sigfried Kracauer chegaria a apontar o filme como profético em relação ao Holocausto, ao escrever o livro De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1947) por trazer figuras de autoridades insanas que levam aqueles submetidos a tal autoridade a cometer monstruosidades.
A reviravolta final, entretanto, pode transmitir uma mensagem diferente. Nos minutos finais, descobrimos que Francis está internado num sanatório, onde outros personagens, como Cesare e o interesse romântico do protagonista, Jane (Lil Dagover) também são internos. O homem que Francis aponta como o louco e maquiavélico Dr. Caligari é o diretor do sanatório, mas não é o hipnotizador assassino que conhecemos ao longo da projeção, e sim um atencioso médico que parece se preocupar apenas com a cura e o bem-estar dos pacientes. Ou seja, toda a história contada por Francis sobre os crimes de Caligari e Cesare não passavam de um delírio de uma mente doente.
Embora possa parecer uma reviravolta até previsível para os dias de hoje, o pot twist causou espanto na época de seu lançamento, inclusive para os roteiristas. O final surpresa foi incluído pelo diretor e pelo produtor Erich Pommer, para grande desagrado de Janowitz e Meyer, que alegaram que o novo desfecho quebrava o discurso do filme, já que no fim das contas, a figura de autoridade passa de uma figura perversa para uma figura benevolente, que traz a cura para a loucura. Embora os dois roteiristas tenham um argumento válido, o desfecho idealizado por Wiene e Pommer é mais intrigante, possuindo maior força dramática por ser construído de forma narrativa e esteticamente coerente e nos fazer repensar toda a obra que acabamos de assistir.
Se a narrativa, embora inovadora para a época, pode soar um pouco clichê nos dias de hoje, o visual do filme continua a impressionar. O design de produção, com paisagens criadas completamente em estúdio, evoca o clima de pesadelo e loucura que permeia toda a trama. O visual do mundo em O Gabinete do Dr. Caligari é distorcido, com estradas e ruas assimétricas, árvores com folhas pontiagudas, escadas que parecem não levar a lugar nenhum, portas desproporcionais que abrem em ângulos esquisitos e casas e edifícios que parecem dobrar-se uns sobre os outros. Mesmo alguns intertítulos surgem fortemente estilizados, como na cena que traz a primeira menção ao nome de Caligari. Os cenários e sombras desenhados à mão brincam com a noção de perspectiva do público, mérito que também deve ser creditado á fotografia de Willy Hameister, que cria enquadramentos que reforçam tal sensação na interação dos cenários com os personagens.
O mais impressionante é como a atuação de Conrad Veidt e Werner Krauss, sob a direção segura de Robert Wiene, combina perfeitamente com a estética do filme. Veidt, ator símbolo do Expressionismo Alemão, que atuaria posteriormente em filmes como As Mãos de Orlac (1924) e O Homem que Ri (1928) concede ao sonâmbulo Cesare movimentos esguios, que parecem quase reproduzir os ambientes estilizados que o cercam, o que se nota principalmente na sequência em que Cesare foge pela estrada carregando Jane nos braços. O figurino do personagem, criado por Walter Reimann também colabora com a fusão do indivíduo com o cenário, já que seus trajes e cabelos negros o fazem parecer uma verdadeira sombra viva. A maquiagem é outro acerto que só potencializa a atuação de Veidt, posto que a palidez e olheiras absurdamente profundas de Cesare e o olhar sofrido e desorientado do ator provocam tanto incômodo quanto pena no público. Já Werner Krauss torna o Dr. Caligari a personificação da autoridade insana. Se o olhar de Cesare transmite tristeza e apatia, o olhar de Caligari brilha de malícia e crueldade. O vilão raramente encara os seus interlocutores diretamente, preferindo espioná-los pelo canto do olho, transmitindo a impressão de sempre estar planejando algo horrível, e mesmo os movimentos espásticos de Krauss parecem demonstrar intenções dúbias, fazendo dele uma figura ainda mais estranha do que o próprio Cesare dentro daquele mundo, sensação aumentada pelo figurino do vilão e pelos enquadramentos, que parecem colocá-lo como uma figura tridimensional em cenários essencialmente bidimensionais.
O Gabinete do Dr. Caligari é um filme cheio de significados, onde estética e narrativa formam um casamento perfeito. Se muitas películas do cinema mudo, especialmente aquelas pertencentes ao Expressionismo Alemão, podem incomodar o público moderno devido ao seu forte aspecto teatral, esta teatralidade é simplesmente perfeita para a história que o filme se propõe a contar. A película de Robert Wiene continua a ser uma experiência cinematográfica única, que segue ecoando até os dias de hoje. Trata-se de uma grande obra-prima da filmografia alemã, um fascinante pesadelo Expressionista que ajudou a forjar o cinema como o conhecemos hoje.
Celebrando o Final INESQUECÍVEL de "O Gabinete do Dr. Caligari" vídeo
02/02/25
O jardim dos prazeres, The Pleasure Garden, 1925, Alfred Hitchcock
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Crítica | O Jardim dos Prazeres por Luiz Santiago, 13 de agosto de 2019
Antes de se tornar o Mestre do Suspense, Alfred Hitchcock engatinhou por alguns crimes menores e dramas de baixa tensão, no início de sua carreira. A estreia oficial do cineasta aconteceu no ano de 1925, com The Pleasure Garden, mas ele já trabalhava há algum tempo como assistente de direção, tendo sido apresentado ao mundo da sétima arte em 1921, ocupando papéis diferentes como desenhista de intertítulos, diretor de arte e editor. Foi também nesse período que ele conheceu sua futura esposa, Alma Reville.
Em 1922, Hitchcock iniciou a produção daquele que seria o seu primeiro filme (Nº 13), mas abandonou-a no ano seguinte porque aceitou o cargo de assistente de direção do cineasta Graham Cutts, um popular diretor da época em quem Hitchcock viu a oportunidade de aprender e talvez conseguir melhor oportunidade do que a que recebera para dirigir Nº 13. Nesse mesmo ano, ele teve a oportunidade de terminar as filmagens do curta Always Tell Your Wife para o diretor Hugh Croise, trabalho pelo qual não recebeu os créditos.
Em 1924 surgiu a Gainsborough Pictures, no lugar da The Select Organization, uma produtora que de imediato assinou contrato com a famosa UFA (Alemanha) e levou o diretor Graham Cutts e sua equipe para Berlim. O filme que então se produzia era The Blackguard, uma parceria britânico-germânica cujas filmagens seriam muito importantes para um dos membros da equipe de Cutts, o seu assistente de direção Alfred Hitchcock, que durante a viagem acabou conhecendo e conversando com F.W. Murnau (à época, filmando A Última Gargalhada). Hitchcock possivelmente deve ter trombado com Fritz Lang pelo Estúdio, pois era no mesmo núcleo em que o diretor alemão filmava uma das cenas de Os Nibelungos, filme do qual Hitchock acabou aproveitando os cenários para organizar a filmagem de uma cena em The Blackguard.
Foi durante essas filmagens que o Executivo da Gainsborough Pictures fez uma proposta para Hitchcock dirigir dois filmes de produção britânico-germânica pelos estúdios MLK, na Bavária. Ambas as obras foram filmadas em 1925, mas não tiveram lançamento comercial no mesmo ano. The Mountain Eagle (filme hoje perdido, infelizmente) estreou em 1926, e o presente The Pleasure Garden fez a sua estreia em Munique, em 3 de novembro de 1925.
O Jardim dos Prazeres foi uma espécie de batismo de fogo para Hitchcock. O filme teve como locações os estúdios da MLK e associados, além de externas na cidade de Munique e a sequência da Lua-de-mel na comuna de Alassio (província de Savona), na Itália. Nem é preciso dizer que o diretor teve problemas com orçamento, o que explica alguns momentos bem estranhos de continuidade e ambientação de cenários no filme. Mas não há muito o que florear: a inexperiência de Hitchcock atrás das câmeras e um roteiro que não ajudava muito fizeram deste longa-metragem (que é uma adaptação do romance de Oliver Sandys) um melodrama um tanto ousado no toque libidinoso, mas de baixa qualidade geral.
O filme mostra a relação de duas garotas com seus respectivos amores, mas acompanha o rumo que a vida de cada uma delas toma a partir de um certo momento, criando interessantes concepções femininas de mundo. Essa característica do texto, todavia, é imediatamente soterrada por opções narrativas e estéticas tremendamente questionáveis, a começar pela aparência física (não disfarçada pela maquiagem) das atrizes Virginia Valli (Patsy) e Carmelita Geraghty (Jill). Chega um momento do filme em que o espectador não consegue diferenciar quem é quem! No momento em que Hugh, o noivo de Jill entrou em cena, eu tive que voltar alguns minutos para poder ver novamente a entrada dos personagens e gravar algumas de suas características a partir da parca quantidade de informações dos diálogos nos intertítulos.
A obra traz ainda alguns defeitos próprios do cinema mudo, como o congelamento dos atores por alguns segundos nas cenas dramáticas, ou mesmo a interpretação afetada em momentos de grande dor ou forte expressão sentimental. O único que se livra disso é o ótimo Miles Mander, que interpreta Levett, o vilão do filme. Sua atitude enlouquecida após a doença contraída no além-mar é incrível; uma pena que o roteiro tenha lhe dado um final patético, assim como deu à ligação amorosa de Patsy com o ex-noivo de Jill.
Em termos técnicos, podemos até selecionar alguns pontos que já delineavam as opções de imagem ou entretenimento desenvolvidos no futuro por Hitchcock (o toque indiscreto obtido através da montagem, no início do filme, é o principal deles), mas pouco sobra além disso. Um elemento aqui presente e que realmente vale a citação é o uso de sobreposição da imagem de uma nativa morta por Levett reaparecendo como um fantasma. Embora destoe do núcleo geral do filme, essa opção mostra a coragem que o diretor tinha para fazer experimentações, algo que seria uma pedra angular de sua carreira.
Antes de finalizar, gostaria de destacar as ótimas cenas feitas com os inquilinos de Patsy, o Sr. e a Sra. Sidey, além, é claro, da presença do cão da garota, o divertido Cuddles. Esse é o único núcleo do filme que não possui problemas, não só porque encabeçam o ponto cômico da obra, mas porque, em meio ao mínimo desenvolvimento psicológico das outras personagens, se apresentam na medida certa, com características bem dosadas pelo texto de Eliot Stannard e bem filmadas por Hitchcock.
The Pleasure Garden é um filme ruim, mas não uma bomba imprestável. Falta à película a dose certa entre o entretenimento e a qualidade da história que se está narrando. Definitivamente não parece o primeiro longa de um gênio, mas é um filme que definitivamente vale a pena assistir a fim de se comprovar os primeiros passos nada firmes de um futuro Mestre do cinema.
Crítica originalmente publicada em 5 de outubro de 2013. Revisada para republicação em 13/08/19, em comemoração aos 120 anos de nascimento do Mestre do Suspense e início de uma versão definitiva do Especial do diretor aqui no Plano Crítico.
Alfred Hitchcock in Afinal quem faz os filmes, Peter Bogdanovich, tradução de Henrique W. Leão, pp. 568, Companhia das Letras, 2000.
02/02/25
O Pensionista, The Lodger: A Story of the London Fog, 1927, Alfred Hitchcock
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Crítica | O Pensionista (O Inquilino Sinistro) por Luiz Santiago, 20 de agosto de 2019
Este terceiro filme de Alfred Hitchcock foi distribuído em momentos diferentes aqui no Brasil, por isso constam dois títulos nacionais para a obra, O Inquilino Sinistro (ou só O Inquilino) e O Pensionista. O longa conta a história de um serial killer que se autodenomina “Avenger” e que inicia uma série de assassinatos em Londres, todos cometidos contra mulheres loiras, sempre à meia-noite de terças-feiras. Esses crimes anunciados geram pânico na cidade enevoada e criam uma macabra expectativa na população, que sempre está à espera da próxima vítima.
O título original do filme, The Lodger: A Story of the London Fog é bem específico na criação de um significado que nos remete a um conto fantástico, uma história tradicional ou mesmo uma crônica. Com efeito, o assassino do filme é a representação do famoso Jack, o Estripador, e o modo como Hitchcock filma sua ação e mostra os efeitos sociais causados por seus crimes — focando a imprensa, a polícia e as famílias — nos faz lembrar a dinâmica de qualquer assassino em série noticiado nos dias de hoje. O modus operandi do “Avenger” e a abordagem da mídia são dois focos de estrutura narrativa para os quais o diretor dispensa bastante atenção, fazendo-os aparecer na tela durante o filme inteiro.
Através de jornais, telegramas, bilhetes, cartas, letreiros públicos e cartazes temos uma visão sempre ameaçadora dos eventos. Mesmo que a população queira esquecer e viver uma vida normal, algo sempre a faz lembrar do assassino e do tipo de mulheres que ele mata. Todos têm medo. E é nesse momento que o diretor insere o seu personagem principal, interpretado por Ivor Novello, o inquilino. O roteiro do filme tem uma ótima sequência de eventos e a colocação de Novello em cena só depois de instaurar o pânico e deixar o espectador tenso e curioso para saber quem é o assassino foi uma escolha muitíssimo acertada.
Com a chegada do misterioso jovem, temos o núcleo motivador preferido de Hitchcok: a culpa. A eficiente construção do roteiro mais uma série de indicações imagéticas exploradas pelo diretor em todo o início do filme ajudam a tornar a acusação ao protagonista ainda mais forte, posto que evidências não faltam de que ele é o culpado (ou pelo menos é o que imaginamos). O espectador também é um algoz, assim como o noivo de Daisy, só que em momentos diferentes da projeção; e o modo como o diretor “conclui” o mistério é quase uma brincadeira macabra com o público, porque há uma forte dubiedade em tudo o que é mostrado. Não sabemos se nos sentimos culpados por acusarmos um inocente ou se mantemos a acusação ao óbvio criminoso – perceba que a culpa é uma faca de dois gumes.
Hitchcock procurou ao máximo explorar composições visuais inteligentes. Podemos destacar os passos de Novello filmados sobre um chão de vidro. Na montagem, podemos vê-lo em um momento tenso, quando ainda temos dúvidas sobre quem é o jovem misterioso que chegou ao hotel. A cena é bem filmada, em todos os sentidos, e é praticamente o único momento do filme em que a edição é boa. Temos a família no térreo da casa/hotel, um tanto apreensiva sobre o novo hóspede. Então eles ouvem os passos pesados do jovem no andar de cima (e sabemos disso por indicação visual, uma vez que se trata de um filme mudo). Ao mesmo tempo, temos uma fusão de imagem e vemos, de fato, o inquilino “andar no teto”! Uma ideia muito eficiente no sentido dramático e bastante inteligente também.
O ritmo do filme não é ruim (em O Jardim dos Prazeres tivemos um problema pior com isso), mas a montagem peca muitíssimo em combinação de sequências, repetições pouco imaginativas de letreiros e símbolos, uso de íris e outros elementos focais que tornam a obra um pouco cansativa e formalmente descuidada. A despeito disso, O Inquilino é um filme que já traz as marcas de Hitchcock, a tensão, a dúvida, a suspeita, a culpa, o sexo, o amor complicado, as relações familiares e uma tensão permanente costurando todos esses elementos. Mesmo tendo complicações técnicas (leia-se uma montagem defeituosa) trata-se de um bom filme, um fruto do suspense tipicamente hitchcockiano, só que um pouco mais amargo do que os frutos de suas melhores safras, o que não o impede de ser apreciado.
Crítica originalmente publicada em 12 de outubro de 2013. Revisada para republicação em 20/08/19, como parte de uma versão definitiva do Especial Alfred Hitchcock aqui no Plano Crítico.
Alfred Hitchcock in Afinal quem faz os filmes, Peter Bogdanovich, tradução de Henrique W. Leão, pp. 569 e 570, Companhia das Letras, 2000.
03/01/25
Meu querido zelador, El Encargado, Série de TV, 2022– Criação: Mariano Cohn & Gastón Duprat
Crítica | Meu Querido Zelador – Série de comédia ácida no estilo ‘Parasita’ estreia na Star+
By Janda Montenegro, 20 de novembro de 2022
Desde que o longa sul-coreano ‘Parasita’ ganhou o Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro, dentre outros prêmios, a produção cinematográfica ocidental tem voltado seus olhos com mais atenção para as histórias das pessoas comuns, que trazem uma riqueza ainda maior para as narrativas. O atual representante do Brasil ao Oscar, ‘Marte Um’, também aborda esse tema, pois um dos personagens, o pai, é porteiro de um prédio de classe média alta. Também nessa pegada, recentemente estreou no streaming da StarPlus a ótima série argentina ‘Meu Querido Zelador’, programão para maratonar de uma vez só.
Há quase trinta anos Eliseo (Guillermo Francella) trabalha em um prédio como porteiro e zelador, cuidando do local, abrindo portas, ajudando com compras, recebendo encomendas e orientando outros funcionários. Sua vida praticamente inteira está neste prédio, na zona rica de Buenos Aires. Certo dia, ele entreouve uma conversa muito suspeita da arquiteta Florencia (Malena Sánchez) e o advogado Doutor Zambrano (Gabriel Goity), que o faz ficar encucado até que, na reunião de condomínio, Eliseo infiltra um walkie talkie no local para ouvir o debate e descobre que os dois moradores levaram uma proposta tentadora aos outros proprietários: construir uma piscina no terraço do prédio. Isso não seria um problema, exceto pelo fato de a casa de Eliseo ficar exatamente no terraço, e, para a construção da piscina, Zambrano e Florencia estivessem propondo demitir o zelador e destruir sua casa. O que eles não contavam era com a astúcia do ‘Meu Querido Zelador’.
Dividida em nove episódios curtinhos com cerca de trinta minutos, ‘Meu Querido Zelador’ é uma série de comédia deliciosamente ácida com toques de suspense e psicopatia. Guillermo Francella faz de seu personagem um dócil e querido cidadão exemplar, sem vícios, sempre disposto, mas que usará de todos os artifícios para defender sua permanência – e é aí que vem o outro lado desse protagonista, que também se revela um cara frio, calculista, sem remorsos e bastante obcecado com cada morador, um verdadeiro vouyer da vida alheia. A química perfeita entre um ótimo ator com o roteiro ao ponto de Martin Bustos.
Se por um lado a série entretém e faz rir, por outro faz a crítica social ao comportamento dos seres mais abastados, que comumente se acham na autoridade de descartar pessoas como se fossem lixo. A cada risada que damos da história criada por Gastón Duprat e Mariano Cohn fica um sabor amargo na boca, por reconhecermos esses comportamentos na sociedade. É o que mais vemos acontecer nos dias de hoje: empresas descartando funcionários e prestadores de serviço sem se importarem com os direitos trabalhistas, com o impacto que causa na vida da pessoa e/ou em prol de uma dita modernização, em que empregos são substituídos por máquinas e autoatendimento. É o retrocesso disfarçado de “futuro”.
Não se admire se você sentir nervoso ao assistir aos episódios de ‘Meu Querido Zelador’, pois um clima constante de “vai dar ruim” vai sendo construído com a evolução do enredo, costurado por um suspense estilo policial em que todos são suspeitos de um crime ainda não cometido, mas que deve ser evitado pelo protagonista. ‘Meu Querido Zelador’ é uma série deliciosa e viciante, sabor vingança.
03/01/25
O caso dos irmãos Naves, 1967, Luiz Sérgio Person
No iutubi aqui
‘O Caso dos Irmãos Naves’: Person é corajoso ao escancarar tortura em plena Ditadura Militar
'O Caso dos Irmãos Naves', de Luiz Sérgio Person, retrata um dos fatos mais graves de injustiça do país, de irmãos presos e condenados por um crime que não cometeram.
Por Isadora Rupp 15 de junho de 2016
Mesmo que você não consiga tempo para ver O Caso dos Irmãos Naves (1967) na última exibição da obra de Luiz Sérgio Person no 5º Olhar de Cinema, que encerra nesta quarta-feira (15), dê um jeito de colocar o filme em uma daquelas listas de “para se ver” sem falta: o drama envolvente, que conta uma história acontecida em 1937, ainda explica muito sobre o funcionamento e as falhas da Justiça brasileira.
Um dos mais importantes filmes nacionais da década de 1960, Person conta na tela a história verídica, retratada pelo advogado João Alamy Filho em um livro que detalha um dos casos mais chocantes de injustiça no país: dois irmãos de Araguari, no interior de Minas Gerais, Sebastião José Naves e Joaquim Rosa Naves foram condenados por um crime que não cometeram.
Em pleno Estado Novo, a tortura da polícia, além de juiz acuado pelo autoritarismo policial, fez com que ambos confessassem o sumiço de um comerciante de cereais, sócio dos irmãos. A versão da polícia: eles o mataram para ficar com o dinheiro de uma grande venda. Mesmo não encontrando o dinheiro, a polícia bolou os detalhes do crime e colocou a pequena cidade contra os irmãos e a família.
Alamy quer resolver a injustiça e trabalha com extrema dedicação: além das barbáries cometidas contra os irmãos, a mãe também foi presa e torturada pelas autoridades. Nem as esposas ou filhos dos irmãos foram poupados. Mesmo com os apelos do advogado, até mesmo o juiz ignorava depoimentos dizendo que houve tortura.
Das idas e vindas na justiça, com apelações ao caso, mesmo com a absolvição pelo júri por duas vezes, o veredito final não foi favorável, apesar de todas as evidências apontaram que não havia culpa por parte dos irmãos.
Contexto
Fora a história extraordinária, Person foi extremamente corajoso ao mostrar a tortura policial fria e bárbara na tela em plena Ditadura Militar: o filme acaba traçando um forte paralelo com a repressão e violência que aconteciam naquele ano de lançamento do filme, a mesma dos trinta anos anteriores.
O Caso dos Irmãos Naves ganhou prêmios em festivais como o de Brasília (melhor roteiro),e foi celebrado no 5º Moscow International Film Festival.
Caso dos irmãos Naves wiki
04/02/25
Agente secreto, Secret Agent, 1936, Alfred Hitchcock
No iutubi aqui
Crítica | Agente Secreto, por Luiz Santiago, 29 de dezembro de 2019
Em um resumo de leitura simples: Agente Secreto (1936) é um filme vago de motivação dramática e absurdamente insistente em situações que não ajudam a desenvolver a história, apenas desviam o espectador para coisas que o vão chateando cada vez mais, resultando em um produto final que tem momentos isolados de brilhantismo técnico de Alfred Hitchcock na direção e muita coisa que deveria ter sido cortada durante a edição.
A história que vemos na tela é adaptada de duas fontes literárias; a primeira, dos romances muito populares escritos por W. Somerset Maugham, tendo o personagem Ashenden como protagonista. A segunda, da peça escrita por Campbell Dixon, de onde saiu o ponto romântico da película. A junção entre literatura, teatro e cinema não poderia passar incólume a estranhezas narrativas, e este é o ponto que temos de sobra em Agente Secreto.
Um soldado tem a sua morte forjada e é enviado à Suíça pelo alto escalão do Exército para matar um espião alemão. Já em seu destino, ele se encontra com uma esposa arranjada — também espiã — e um parceiro, o curioso General Pompellio Montezuma De La Vilia De Conde De La Rue (que nome fantástico, não?), um alívio cômico interpretado maravilhosamente por Peter Lorre. A trama se passa durante a I Guerra Mundial e ressalta a forte inimizade entre britânicos e germânicos neste momento da História, uma situação que voltaria a se repetir em pouco mais de duas décadas, e de forma bem mais bruta.
Já no início do filme, ficamos às voltas com os motivos escolhidos pelos roteiristas para a criação do pseudo-suspense. Temos uma introdução que nos dá a atender uma rede notadamente intricada de espionagem militar, todavia, o restante da trama é conduzido como sendo o trabalho de um homem só — ou de um homem com dois parceiros — voltando à conexão com o QG apenas no desfecho da obra, cenário que reafirma a questionável ligação amorosa entre os “Ashenden”, piorando ainda mais o problema de foco e sentido do filme.
Depois, não entendemos muito bem o critério de escolha do Exército e que planos tão importantes eram esses. Uma pequena sequência de sobreposições geográficas e jornalísticas é usada por Hitchcock para contornar o problema e adicionar um pouco de contexto à Guerra e ao plano em si, mas isso se perde completamente se levarmos em consideração todo o restante da película. O mais curioso é que no caso da espiã Elsa Carrington (numa interpretação bipolar de Madeleine Carroll), temos uma pessoa completamente desequilibrada, que dá espetáculos sentimentais e surtos nervosos quando se vê próxima a uma situação que envolve assassinato. Que tipo de espiã é essa?
As coisas pioram, quando vemos que um personagem tão duro e apático como Richard Ashenden (um John Gielgud bastante sério e com cara de quem não se importa, mas mesmo assim, ótimo) se enamorar dessa espiã sem preparo psicológico e levar adiante o romance, pondo em riso o próprio objeto de sua missão. O próprio Ashenden tem dúvidas sobre seu papel em toda a história e não quer cometer o tal assassinato, mostrando ele mesmo um grande despreparo. O único relativamente convincente, em especial porque nunca se leva a sério, é o Genal Pompellio. Peter Lorre não deixa escapar o momento de seus olhares sérios, olhos esbugalhados ou revirados, mas também deixa espaço para falas e atitudes bastante irônicas e cínicas, o que gera uma ótima construção geral de sua persona no filme.
A linha de investigação, a rigor, nunca é deixada de lado, mas é interrompida ou pouco trabalhada em detrimento de pequenos caprichos inúteis para o enredo, como o já citado romance, as cenas do cachorro que sente a morte do dono, a festa folclórica suíça, a fábrica de chocolates e por aí vai. Fica claro para o espectador que Hitchcock quis trazer o máximo de elementos tipicamente suíços para o filme, mas acabou exagerando na dose e se perdendo nas entrelinhas que todos esses elementos criaram, numa sequência de ações contendo começo, meio e fim errôneos.
Em meio a tudo isso, salvam-se as pontuais e fantásticas experimentações imagéticas do diretor, com direito a efeitos Kuleshov, contrapontos sonoros e metáforas entre paisagens, objetos, animais e pessoas, uma admirável concepção dramática e estética para um filme com tantos problemas de concepção de enredo.
Agente Secreto não é uma obra memorável de Hitchcock, apesar de já trazer características muito próprias de sua fase maestra dos anos posteriores. Trata-se de uma obra menor, mediana, mas que num momento ou outro garante uma animada erguida de sobrancelha para closes e cenas realmente muito boas, os únicos momentos que irão garantir a validade da sessão.
Crítica originalmente publicada em 10 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 29/12/19, como parte de uma versão definitiva do Especial Alfred Hitchcock aqui no Plano Crítico.
06/02/25
Até os deuses erram, The Offence, 1973, Sidney Lumet
Sidney Lumet (1924-2011)
Até os Deuses Erram | Dossiê Sidney Lumet ¹Por Nilvio Pessanha 05/06/2024
Se há alguém que sabe o que é chegar ao fundo do poço, esse alguém são os personagens dos filmes do diretor estadunidense Sidney Lumet. É comum vermos, em seus filmes, seres levados a situações-limite, situações em que descem até seus infernos interiores, se defrontam com seus demônios mais profundos. É o que vemos com os irmãos Andy e Harry Hanson – interpretados por, respectivamente, Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke –, em Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto; e também com o Sonny Wortzik e Frank Serpico, personagens vividos por All Pacino, de forma respectiva, em Um Dia de Cão e Serpico.
Os personagens das obras de Lumet também se notabilizaram por sua complexidade, por se mostrarem dúbios, ambíguos, moralmente contestáveis. Novamente temos o caso dos dois irmãos Hanson, de Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto, que tramam o roubo da joalheria dos próprios pais, o que acaba desencadeando uma série de acontecimentos trágicos. O próprio Frank Serpico, vivido por Pacino em Serpico, embora seja um policial incorruptível, mostra um comportamento bastante discutível no trato com sua companheira.
Essa longa introdução serve, justamente, para deixar claro que o que vemos em Até os Deuses Erram, filme de 1973, é uma mostra de marcas, de características da filmografia de Sidney Lumet. O filme acompanha o detetive Johnson – interpretado pelo saudoso Sean Connery –, um policial britânico que investiga o desaparecimento de várias meninas. Johnson é perturbado por memórias dos casos tenebrosos com que já teve que lidar. E aqui começa a descida de Johnson ao inferno de Lumet. Atormentado por visões desses casos anteriores que não saem de sua cabeça, o detetive acaba se envolvendo num caso de violência policial, sobre o qual não darei mais detalhes, pois, apesar de ser um filme de 1973, não quero estragar a experiência fílmica de quem quiser procurá-lo para assistir.
A partir desse incidente de truculência do detetive, o que vemos é Johnson se perdendo dentro de seus próprios demônios interiores. E surge outra marca do cineasta que é a construção de uma tensão claustrofóbica. Essa tensão é muito bem executada por meio de ótimos diálogos e movimentos de câmeras usando muito bem ambientes fechados, lembrando até certo ponto a estrutura de teatro de onde se originou a obra, uma vez que o filme é uma adaptação da peça This Story Of Yours, de John Hopkins, que também roteiriza o filme. Podemos ver, por exemplo, em toda a sequência de diálogo de Johnson com a esposa Maureen (Vivien Merchant) o desenvolvimento de um ambiente tenso e bastante desconfortável. A forma como o detetive trata sua esposa é bastante incômoda.
Outra sequência que traz bastante tensão é durante todo o depoimento que o personagem de Sean Connery dá ao detetive superintendente Lieutenant Cartwright (Trevor Howard). Novamente vemos um diálogo, com aspecto teatral, tenso e num ambiente claustrofóbico. Por fim, a própria sequência em que Johnson interroga o suspeito de sequestrar e molestar as meninas é o ápice da tensão claustrofóbica. Em todas essas sequências, vemos Johnson sendo obrigado a se defrontar com seus fantasmas, com seus traumas que o perseguem.
Assim como personagens complexos, contraditórios e problemáticos são uma marca de Lumet, essa tensão claustrofóbica também não é algo isolado na filmografia do cineasta. Em 12 Homens e uma Sentença (1957), o diretor já havia explorado diálogos tensos em um local fechado, trabalhando bem com a mudança de planos e com jogo de câmera. E não é coincidência que ambos os filmes são adaptações de peças. No caso de 12 Homens e uma Sentença, que marcou a estreia de Sidney Lumet no cinema, a obra original era uma peça escrita por Reginald Rose feita para a TV. Outro aspecto em comum com Até os Deuses Erram é que, assim como o filme de 1973 que teve o autor da peça como roteirista do longa para o cinema, Reginald Rose também assina o roteiro de 12 Homens e uma Sentença.
Até os Deuses Erram e todos os outros filmes citados como exemplo aqui neste texto mostram um cineasta mestre em dirigir seu elenco, um diretor que sabia como poucos traduzir o desenvolvimento de seus personagens para o audiovisual. Personagens como Frank Serpico e o detetive Johnson mostram qualidades e virtudes, porém ambos têm, em maior ou menor nível, seus defeitos. Os personagens dos filmes de Lumet são falhos, são contraditórios como nós, são humanos. São frutos da moralidade falida que vemos nas tramas de suas obras. Lumet nos mostra que até os deuses erram, e, quando erram, ele transforma os erros em filmes.
Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.
¹ Nilvio Pessanha é professor de literatura, crítico de cinema, ‘co-fundador e criador do podcast e site “Cine Trincheiras” ao lado de Iuri Freire
Making 'The Offence' (1973) Sidney Lumet, Sean Connery
07/02/25
Emilia Pérez, 2024, Jacques Audiard
Crítica | Emilia Pérez por Ritter Fan, 6 de fevereiro de 2025
Não há ninguém como Emilia Pérez. Obra-prima
Emilia Pérez é um daqueles filmes únicos, corajosos, surpreendentes e hipnotizantes que só aparecem muito de vez em quando na Sétima Arte, especialmente nos dias atuais de muito volume e qualidade mediana. Diria até mesmo que a produção franco-belga comandada por Jacques Audiard em seu primeiro longa em espanhol que, em Cannes, levou tanto o Prêmio do Júri como a Palma de Ouro de Melhor Atriz pelo conjunto das quatro atrizes centrais, é uma joia tão rara que o espectador se beneficiaria mais se não procurasse saber nada, nem mesmo a sinopse, sobre ela para além do que escrevo neste parágrafo inicial. Não é que o desconhecimento sobre o filme seja condição para apreciá-lo, pois isso seria estupidez de minha parte, mas tenho para mim que obras como essa que se enquadram tão redondamente no conceito indefinível de Magia do Cinema, ganham uma camadinha extra de deslumbramento quando o espectador simplesmente mergulha nela na mais completa ignorância.
Mas, se o leitor decidir continuar a leitura da presente crítica, ela será totalmente sem spoilers, ainda que eu inevitavelmente tenha que usar o conteúdo das sinopses oficialmente divulgadas por aí para construir meus comentários e evitar uma abordagem excessivamente críptica. Portanto, a leitura de meu texto é segura a não ser que seja desejo do leitor acatar a sugestão de meu primeiro parágrafo, mesmo reconhecendo que, no mundo exacerbadamente conectado de hoje em dia e particularmente cansativo e frustrante no que diz respeito à revelação de antemão de todos os detalhes de produções audiovisuais, essa tarefa de manter-se ignorante sobre um filme seja muito mais difícil do que deveria ser.
Inspirado bem de longe pelo romance Écoute, de Boris Razon, que o próprio Audiard adaptou na forma de um libreto de ópera e, depois, transformou em roteiro cinematográfico ao lado de Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi e Léa Mysius, Emilia Pérez mistura gêneros de duas maneiras, ou seja, tanto em termos de estrutura narrativa quanto de conteúdo, trabalhando um thriller de crime como um inusitado musical que, apesar de não ser comédia como alguns definem por aí, extrai humor do absoluto inusitado que é sua premissa. Nela, Juan “Manitas” Del Monte, o asqueroso chefão do maior cartel de narcotráfico do México, faz uma oferta irrecusável à Rita Mora Castro, uma brilhante, mas subestimada advogada para que ela o ajude, usando tanto meios legais quanto ilegais, a conseguir aquilo que ele sempre quis na vida: tornar-se fisicamente a mulher que ele sempre foi, mas que também sempre precisou esconder por razões óbvias, e, ato contínuo, mudar de nome e desaparecer no mundo.
Quando Rita, vivida por Zoe Saldaña esbanjando tanto sua habilidade de dançarina em razão do treinamento formal que recebeu quando jovem e um espanhol de qualidade em razão de seus pais e pelo fato de ter vivido na República Dominica com sua mãe quando criança, recebe essa proposta, a natureza de musical do longa já está definida, com ela inaugurando essa “pegada surpresa” quando, saindo vitoriosa mas sem reconhecimento de um julgamento em que precisava conseguir a absolvição de um criminoso pelo assassinato de sua esposa, ela começa a cantar suas mágoas em uma transição absolutamente brilhante da direção de Audiard. Mesmo assim, nada prepara o espectador para a proposta em si, que vem logo em seguida em um caminhão escuro que é o quartel-general móvel de Manitas, um homem corpulento, de voz espessa, todo tatuado, com barba desgrenhada e dentes prateados que é vivido assustadoramente bem por Karla Sofía Gascón, atriz espanhola abertamente trans que, para essa parte do longa, teve que passar por um muito convincente “processo de reversão” graças ao extenso uso de maquiagem e iluminação limitada, mas perfeitamente lógica dadas as circunstâncias, por parte do diretor de fotografia Paul Guilhaume.
A partir daí, Rita parte pelo mundo para não só entender como o processo pode ser feito, como em quanto tempo, com quantas operações e, claro, o tamanho do investimento, ao mesmo tempo em que estabelece planos para fazer com que Manitas desapareça, para obter uma nova identidade – a de Emilia Pérez, logicamente – para ele e para realocar Jessi (Selena Gomez), esposa do narcotraficante, e seus dois filhos, para a Suíça, mantendo-os na ignorância do que ocorreu, mas com todo o conforto a que sempre estiveram acostumados. E tudo isso é, somente, a primeira parte do longa, que vai muito além disso, mas que não abordarei aqui para evitar spoilers, sendo apenas importante salientar que uma quarta personagem feminina, Epifanía, vivida por Adriana Paz, é introduzida mais para a frente, já que a atriz merecidamente faz parte da quadra premiada em Cannes.
Além de abordar a transição de gênero de maneira aberta, direta, sem rodeios e trabalhando o preconceito inerente como parte da infraestrutura fílmica e não como algo solto, existente somente para dar lições de moral, o roteiro de Audiard usa as canções e os números musicais de maneira inteligente, também como alicerces narrativos que efetivamente impulsionam a trama e que respeitam as limitações de cada atriz (diferente de um certo musical lá, lá em Los Angeles). E as canções, normalmente de gêneros que eu desgosto, são cativantes, cantadas – por vezes quase faladas como acontece com Manitas – da maneira mais natural possível, o que torna as transições no estilo “começa a cantar do nada” que eu sei que muita gente não gosta, mas que eu adoro, bem mais fáceis e lógicas. Os próprios números musicais em si são consideravelmente discretos, sem arroubos explosivos, mas sempre com coreografias de primeiro nível criadas por Damien Jalet que se esforça em não permitir que os passos de dança traiam a premissa do longa, algo que Audiard é também muito cuidadoso em manter na execução, ao ponto de ter confinado os números aos cenários criados em estúdio em Paris, já que nada foi feito em locação no México, por mais incrível que possa parecer.
As quatro atrizes centrais revelam-se como escalações perfeitas para a proposta audiovisual. Confesso que jamais esperaria ver Zoe Saldaña em um musical e nunca achei a atriz particularmente talentosa, ainda que muito carismática. Mas, em Emilia Pérez, ela não só convence como uma advogada brilhante de olhos sulcados e cheios de olheiras que, na medida em que a trama engrossa, desenvolve-se a olhos vistos, como, também, como cantora e dançarina, em uma performance arrebatadora. Selena Gomez, mesmo não tendo o mesmo domínio do espanhol que Saldaña, parece continuar seu processo de reencontro com o audiovisual iniciado de maneira mais contundente por seu continuado e merecido sucesso em Only Murders in the Building, desta vez encontrando uma obra que conversa também com seu lado musical e oferece um desafio maior que ela encara de frente e com surpreendente naturalidade. Adriana Paz, por seu turno, tem o destaque internacional que ninguém sabia que ela merecia ter em Emilia Pérez, em um papel decididamente menor, até porque sua personagem é introduzida no terço final e, portanto, tem pouco tempo para efetivamente ganhar desenvolvimento, mas não menos importante como uma esposa que perde o marido para o narcotráfico e acaba sendo vital para o recrudescimento dramático do longa.
Deixei Karla Sofía Gascón propositalmente por último, pois a atriz mostra uma coragem de se tirar o chapéu ao deixar-se “reverter” à uma figura masculina, algo que não me lembro ter sido feito antes (o mais próximo foi em Orange is the New Black, mas, lá, a versão pré-transição de Sophia Burset foi vivida por M Lamar, irmão gêmeo de Laverne Cox), não com tanta proeminência pelo menos. E o melhor é que ela muito claramente se dedicou na composição de Manitas, criando um personagem que, mesmo aparecendo pouco, é inesquecível com sua presença imponente e voz ameaçadora e seus momentos de rap. Mas é Gascón como Emilia Pérez, claro, que brilha do momento em que aparece pela primeira vez até o final do longa, pois a personagem não só é muito interessante por sua própria natureza – um estereotípico chefe do tráfico do sexo masculino que se torna uma atraente mulher -, mas também e especialmente pela maneira como a atriz consegue fundir as “duas personalidades”. Se fisicamente ela é completamente uma mulher, psicologicamente Pérez carrega décadas de dor e violência em seu âmago e isso transparece com constância, seja em sussurros, seja em gestos mais amplos e até na flutuação da inflexão de voz. Diferente do que poderíamos imaginar, Audiard não quer que Pérez deixe completamente de ser Manitas e Gascón não só compreende essa necessidade, como faz um esforço hercúleo e muito bem-sucedido para encarnar essa dicotomia.
Emilia Pérez é, portanto, uma experiência audiovisual inesquecível do começo ao fim que funciona sem engasgues como thriller de crime, como musical, como drama, como crítica social, como aprendizado e como plataforma para quatro atrizes se reinventarem. Jacques Audiard criou algo único e que renova aquela sensação de que o Cinema é para ser, no fundo, um instrumento disruptivo, tão destruidor quanto criador e que existe, acima de tudo, para fascinar.
Obs: Crítica originalmente publicada em 14 de outubro de 2024, como parte da cobertura do Festival do Rio. Apesar das polêmicas que cercaram o filme desde a época do Globo de Ouro, decidi, por considerá-las, em essência, extra fílmicas, manter o texto como originalmente escrevi para republicação hoje, quando da entrada do longa em circuito nacional, mesmo que isso signifique que a sugestão dos parágrafos iniciais não mais seja factível a não ser para alguém que more em uma caverna sem conexão com o mundo exterior.
Emilia Pérez (Idem – França/Bélgica, 2024)
Direção: Jacques Audiard
Roteiro: Jacques Audiard, com colaboração de Thomas Bidegain, Nicolas Livecchi e Léa Mysius (baseado em romance de Boris Razon)
Elenco: Zoe Saldaña, Karla Sofía Gascón, Selena Gomez, Adriana Paz, Mark Ivanir, Édgar Ramírez, James Gerard, Agathe Bokja, Lucas Varoclier, Marie-Elisabeth Robert, Eric Geynes, Anabel Lopez, Eduardo Aladro, Line Phé, Cyrus Khodaveisi, Yohan Levy, Daniel Velasco-Acosta, Jonas Paz-Benavides
14/02/25
Alguns filmes vistos (ou revistos) analisados em Quentin Tarantino, Especulações cinematográficas, tradução: André Czarnobai, 1ª edição, Intrínseca, 2023.
Um livro com especulações controversas escrito por um cinéfilo contumaz. 1001 citações e dezenas de filmes. O período da nova hollywood em destaque. E suas predileções por filmes onde a violência e a masculinidade estão presentes. Alguns reacionários como ele próprio define. A produção de filmes estadunidense pós 1960 é contaminada pelas armas de fogo. (Colt Company agradece). Assim como o tabaco presente nas produções USA nas décadas de 1930 – 40. (Philip Morris agradece). Tarantino está nem aí para estas questões. Seu interesse está na masculinidade e violência. Os filmes analisados no livro têm as indicações, aqui, nas páginas iniciais do livro.
Amargo pesadelo, Deliverance, 1972, John Boorman
Tarantino, p. 77
Crítica | Amargo Pesadelo por Ritter Fan, 26 de abril de 2022
A decadência da civilização.
Não posso afirmar com qualquer grau de certeza, mas a imagem que até hoje se tem do “caipira americano” pode muito bem ter tido sua origem em Amargo Pesadelo, clássico de 1972 capitaneado por John Boorman e que lhe valeu sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor (a segunda e última vez seria com Esperança e Glória, de 1987). Filmes de horror da mesma década, notadamente O Massacre da Serra Elétrica e Quadrilha de Sádicos, relevantes nesse processo de sedimentação dessa imagem estereotipada do interiorano dos EUA, parecem ter bebido do que Boorman fez a partir do roteiro que James Dickey escreveu com base em seu próprio romance de dois anos antes.
Mas Amargo Pesadelo, apesar de resvalar no horror, é, em essência, um drama sobre a decadência da civilização sob o prisma da amizade entre homens de meia idade que procuram, na natureza, uma forma de escapar de seu cotidiano urbano e da “prisão” da família, além de dar vazão à sua masculinidade, verdade maior em relação ao responsável principal pela viagem, Lewis Medlock, vivido por Burt Reynolds, mas que se aplica, também, ainda que de formas e pesos diferentes, aos três outros, Ed Gentry (Jon Voight), Bobby Trippe (Ned Beatty começando sua carreira) e Drew Ballinger (Ronny Cox em seu segundo longa). Há até mesmo um subtexto ecológico na obra, já que a região e o rio em que eles planejam remar está prestes a se tornar um grande lago em razão da construção de uma represa, mas o que, parece ser um idílico final de semana acaba se tornando o que o icônico título nacional indica, com dois caipiras, durante uma caçada, capturando Bobby e Drew e sodomizando o primeiro, o que acaba levando Lewis a matar um deles com seu arco.
No entanto, diferente do que se pode esperar, o grande momento climático do longa não só é vagarosa e cuidadosamente construído ao longo da primeira metade da projeção, que Boorman usa para trabalhar as personalidades dos turistas e a miséria dos moradores locais, com destaque para a absolutamente inesquecível “batalha dos banjos” entre Drew e o jovem Lonnie (Billy Redden) que tocam, com velocidade cada vez maior, a música Dueling Banjos, de Arthur “Guitar Boogie” Smith, e que se torna o de certa forma enganoso – porque é feliz – tema da epopeia dos quatro amigos, como ele é seguido de algumas sequências curiosamente lentas de “vingança” e, depois, outras que servem como dénouement alongado, por vezes um pouco demais, diria. O que o diretor faz é estabelecer um ritmo compassado que tem como grande atrativo uma abordagem franca e naturalista das filmagens em locação no nordeste da Geórgia e a sequência da sodomia, talvez mais famosa ainda do que já seria em razão do brilhantemente improvisado “squeal like a pig“, fazendo parte de um grande todo, quase – ênfase no quase – como mais um dia na vida deles por ali, mesmo que a tensão e a aflição sejam palpáveis.
É curioso que, ao longo dos anos, a atuação de Burt Reynolds seja possivelmente a mais lembrada e a mais elogiada. Não que o mais famoso ator do elenco à época não tenha uma boa performance, pois ele sem dúvida tem, assim como Beatty e Cox, mas o grande destaque é o trabalho de Voight, o verdadeiro protagonista da fita. De todos os quatro personagens, seu Ed Gentry é o único que verdadeiramente tem um arco narrativo completo e é o único que, por isso, ganha desenvolvimento. Enquanto o Lewis de Reynolds impulsiona a narrativa em seu começo e é responsável pela morte do caipira após o estupro, sua postura é arquetípica do macho man americano, sem nuanças e com muitas bravatas, o homem civilizado que parece agir como seus ídolos do cinema, com Bobby e Drew de Beatty e Cox cumprindo papeis bem específicos, mas naturalmente limitados. Ed, por seu turno, é o homem de família hesitante em estar ali, que não consegue matar animais silvestres para comer e é obrigado a reinventar-se para sobreviver, com uma bela sequência, filmada sem dublês, de escalada de uma escarpa que pode ser encarada como sua própria maneira de deixar para trás seus traços civilizatórios remanescentes.
É bem verdade que o desenvolvimento de Ed é telegrafado em detalhes pelo que o roteiro de Dickey estabelece no primeiro terço, mas Voight faz valer a pena toda a previsibilidade do que acontece, com seu personagem, no momento em que ele realmente precisa entrar em ação e largar de vez seu lado citadino, abraçando o lado primitivo do ser humano. O que funciona muito bem é o quanto Voight imprime de hesitação em seu Ed em transformação, algo que em momento algum parece deslocado ou forçado. Muito ao contrário, é natural que vejamos em Ed alguém como nós, uma pessoa absolutamente normal que precisa trancafiar a moralidade em algum lugar de difícil acesso para fazer algo que nunca fez antes e que não pretende fazer novamente, com todos os erros, tropeços e movimentos estabanados que resultam de sua inexperiência.
Amargo Pesadelo é uma experiência visceral e dolorosa. A construção vagarosa, mas constante do isolamento e do medo por Boorman é exemplar, muito superior a um sem-número de diretores de filmes de horror que acham que mostrar é sinônimo de assustar. Aqui, o menos é mais e o espectador é brindado com sequências memoráveis que vão desde o surpreendente número musical, passando pelo estupro e chegando à catarse final, com homens tornando-se bestas e, depois, tentando retornar ao que eram. E, nesse processo, a imagem nada simpática dos hillbillies americanos tomou a forma e o relevo modernos, para o mal ou para o bem.
15/02/25
Excalibur, a espada do poder, Excalibur, 1981, John Boorman
Rei Arthur
Excalibur - A Espada do Poder por Ari Cabral, 21 de agosto de 2024
Excalibur – A Espada do Poder (1981) é um filme que se destaca como uma das adaptações mais autênticas e eficazes da lenda arturiana. Dirigido por John Boorman, o filme é um verdadeiro épico que captura a magia e a tragédia da clássica história de Sir Thomas Malory, "Le Morte d'Arthur". Boorman, um visionário cujo amor pela fantasia e mitologia brilha em cada quadro, planejou originalmente um filme sobre Merlin, mas o destino o levou a adaptar toda a saga arturiana, resultando em uma obra que combina elementos dramáticos de uma ópera com uma atmosfera quase onírica.
A trama de Excalibur acompanha a trajetória de Arthur, interpretado por Nigel Terry, desde seu nascimento como filho bastardo do rei Uther Pendragon (Gabriel Byrne) até sua ascensão à realeza e formação da Távola Redonda. Merlin, interpretado com intensidade e mistério por Nicol Williamson, desempenha um papel essencial, guiando e manipulando acontecimentos com uma aura de mistério e poder. A primeira parte do filme foca nas intrigas de Uther e sua aliança com Merlin, culminando na icônica cena da espada em pedra que marca o início da jornada de Arthur.
Boorman constrói um mundo que transcende o tempo e o espaço, criando um cenário onde os elementos de fantasia estão profundamente enraizados na realidade medieval. A escolha de filmar na Irlanda promove uma paisagem exuberante e misteriosa que é o cenário perfeito para a história. A cinematografia de Alex Thomson é excelente, utilizando cores vivas e desfoques que conferem ao filme uma qualidade quase etérea, como se estivéssemos assistindo a um sonho ou pesadelo.
As performances de Excalibur são uma mistura de altos e baixos. Nicol Williamson e Helen Mirren, como Morgana Le Fey, apresentam atuações memoráveis e marcantes. Williamson traz complexidade ao papel de Merlin, equilibrando estranheza e sabedoria com um toque de malevolência. Mirren, por outro lado, retrata Morgana com uma tristeza que a torna uma das personagens mais interessantes do filme. Nigel Terry, convincente como o rei problemático, não captura totalmente a aura heróica de Arthur. Nicholas Clay como Lancelot e Cherie Lunghi como Guinevere carecem da química necessária para administrar o romance trágico que está no centro da lenda. E ainda tem Liam Neeson em um de seus primeiros trabalhos no cinema.
O roteiro, escrito por Boorman e Rospo Pallenberg, entrega a longa saga de Malory com clareza e economia, mas carece de ambição. A história cobre muitos eventos, desde a ascensão de Arthur até sua obsessão pelo Graal e a queda final de Camelot. Esse escopo, embora impressionante, resulta em uma trama que às vezes parece apressada, com alguns personagens e subtramas não recebendo o que merecem. Por exemplo, a relação entre Lancelot e Guinevere é tratada de forma superficial, deixando muito a desejar em termos de profundidade emocional.
Mas Excalibur é mais do que a soma de suas partes. Composta por Trevor Jones, a trilha sonora, que inclui músicas de Richard Wagner e Carl Orff, como “O Fortuna” de Carmina Burana, eleva a experiência cinematográfica a um nível quase transcendental. A música não apenas complementa como reforça a emoção e grandiosidade das cenas, levando-nos ao centro das batalhas e intrigas de Arthur.
Um dos momentos mais marcantes do filme é a batalha final entre Arthur e seu filho ilegítimo Mordred. Esta justaposição, impregnada de simbolismo e tragédia, é o culminar visual e emocional daquilo que Boorman foi construindo ao longo do filme. O uso da cor – ouro de Mordred, prata de Arthur e vermelho sangue – cria uma paleta visual poderosa que enfatiza a inevitabilidade da tragédia.
Apesar de possuir algumas falhas, Excalibur se destaca como uma obra emocionante e envolvente que captura a natureza épica e trágica da lenda arturiana. Boorman pretende impressionar com som e imagem e, embora a ambição do enredo crie lacunas narrativas, a experiência visual e auditiva é inegavelmente poderosa. A produção é datada, principalmente quando comparada a obras mais recentes em termos de qualidade de imagem e efeitos especiais, mas o roteiro sólido e a direção visionária de Boorman superam essas limitações.
Curiosamente, Excalibur nasceu de uma reestruturação do projeto Merlin, e Boorman até escreveu um roteiro para O Senhor dos Anéis. A influência de Tolkien é evidente, especialmente na forma como Boorman mistura fantasia com realismo para criar um mundo que é ao mesmo tempo familiar e estranho. Esta visão é magistralmente concretizada em Excalibur, que continua a ser uma das adaptações mais autênticas e envolventes da lenda arturiana.
Concluindo, Excalibur é um filme que merece ser visto e respeitado, não só pela fidelidade à lenda arturiana, mas também pela capacidade de guiar o espectador através da magia, da tragédia e do heroísmo. É uma obra que, apesar das suas deficiências, consegue captar a imaginação e o coração, oferecendo uma experiência cinematográfica rica e inesquecível.
NB: o último terço do filme se parece tirado de uma ópera sob a batuda de Richard Wagner (Parsifal – Tristão e Isolda) e Carl Orloff (Carmena Burana). Nota dez.
16/02/25
O franco atirador, The Deer Hunter, 1978, Michael Cimino
No iutubi aqui
O Franco Atirador (The Deer Hunter), Clinton Davisson, 1978, quarta-feira, março 24, 2021
Um grupo de amigos de uma cidade pequena fazem uma festa de casamento cheia de tensões emocionais, mas com muita alegria e inocência. Dos quatro rapazes presentes, três estão para partir para a Guerra do Vietnã sem ter a menor noção do inferno que os aguarda. Quando voltam todos estão de alguma forma marcados para sempre no corpo e na alma pelo conflito, mesmo quem não foi, não sairá ileso.
Talvez tenham sido as quase três horas de meia de duração que explicam por que nunca vi O Franco Atirador do começo ao fim. Sua montagem costuma dar saltos e a narrativa foge de modelos convencionais o que torna fácil você se perder sobre o que está acontecendo no filme quando você é aquele espectador que passa de vez em quando na sala se o filme está na tevê. Trata-se, enfim, de um filme para ver focado, para se prestar atenção nos detalhes. E se manter focado por três horas e meia é complicado quando se é adolescente. Tenho quase certeza de ter visto o filme com amigos em VHS, mas se vi, eu não tinha estrutura ainda para digerir.
Para mim, sempre foi o “Filme da roleta russa”, porque suas cenas de mais tensão envolvem este mórbido jogo onde se coloca uma bala no tambor de um revólver para depois girar e atirar na própria cabeça para ver se você tem sorte ou se vai morrer.
De fato, o filme influenciou toda uma “moda” que percorreu os anos 80. Eu lembro de notícias de pessoas no Brasil e de fora que morreram “praticando este esporte” na época. E realmente em certo momento O Franco Atirador parece girar em torno de como este jogo afeta os personagens que são obrigados a praticá-lo no campo de prisioneiros no Vietnã como forma de tortura, mas que depois, ao menos um deles, parece desenvolver certo fetiche pela prática.
É um daqueles casos em que nos perguntamos: este filme seria cancelado nos dias de hoje? Resposta: não sei. Não importa.
Mas ontem, finalmente, depois de uma queda de duas horas na internet, resolvi que já era hora de encarar e ver o que este filme tinha de tão bom. Devo confessar que, tanto o tempo de filme, quanto a intensidade das cenas, fazem de O Franco Atirador, um dos filmes de guerra mais imersivos e densos já feitos. Mas o diretor Michael Cimino parece manter a câmara afastada dos atores dando às vezes um ar documental ao filme. Os personagens não exalam nenhuma qualidade ou simpatia que nos faz torcer por eles. São gente comum, mas esquisita o suficiente para mantermos certa distância empática. Como se assistíssemos a um documentário intenso, sobre pessoas reais, mas não há um buraco confortável como um Harry Potter ou um Luke Skywalker do qual podemos assistir ao filme. O fio condutor é Michael, personagem de Robert De Niro, mas ele não é nenhum mar de simpatia. Não é alguém com quem gostaríamos de cruzar o caminho, não é um personagem confortável. E se, só vamos realmente compartilhar seus sentimentos e seu desespero nos minutos finais, isso é parte da genialidade do filme, do roteiro, do diretor e do tremendo ator que é Robert De Niro.
O título original é um caso a parte. Já que O Caçador de Veados causaria certa confusão com os títulos das pornochanchadas brasileiras da década de 70. Piadas a parte, o correto seria o Caçador de Alces, ou O Caçador de Cervos. É bom lembrar que, ao diferente do que acontece no Brasil, os americanos não veem no veado nenhuma conotação homofóbica. Ao contrário, é um dos símbolos mais poderosos de virilidade, sendo sua caça um esporte praticado por nobres e sua carne muito apreciada.
O animal em questão é usado em diversas metáforas na narrativa. Os amigos se reúnem para caçar antes de ir para guerra e logo depois do casamento. E ali, continuamos a entender melhor a personalidade de cada um. Eles voltam com um alce morto por Michael (Robert De Niro) amarrado na parte da frente do carro. Mais tarde, Michael coloca o Steve ferido também na parte da frente de um carro no meio da guerra. Quando volta a caçar depois da Guerra, Michael se recusa a abater o alce. Como se agora houvesse uma identificação do caçador com a caça, ou porque atirar em outro ser, mesmo que para se alimentar, tenha ganhado outro significado agora.
A história é centrada em Michael (Robert De Niro) e sua relação com os amigos Stan (John Cazale), Steven (John Savage), Nick (Christopher Walken) e Linda (Maryl Streep). Todos com atuações impecáveis e densas que conseguem nos fazer entender os personagens ao mesmo tempo que nos deixam sempre com uma dúvida do que realmente está acontecendo na cabeça deles.
Ficamos com uma sensação de imprevisibilidade e confusão. No começo, são sonhadores, imaturos e inconsequentes. Logo depois, são jogados na guerra em uma situação de realismo e violência visceral. Em um corte abruto, já estamos no meio da guerra, com atrocidades acontecendo para lá e para cá. Novo corte e Michael, Nick e Steven dividem uma cela de bambu mergulhada em um rio sujo, entre ratos e cadáveres. É quando chegamos a nossa famosa sequência de Roleta Russa que é usada como forma de tortura psicológica pelos vietcongs para com seus prisioneiros.
Michael e Nick conseguem se empoderar daquela tortura de tal maneira a usá-la como forma de escapar do campo de prisioneiros e resgatar Steven. Entretanto, este empoderamento cobra seu preço. Mesmo as balas que o revolver não dispara em suas cabeças, parecem penetrar fundo no seu subconsciente e rasgar suas almas.
Durante a fuga, um helicóptero americano consegue resgatar Nick, mas Michael e Steven caem do veículo o que acaba deixando Steven paraplégico.
Michael volta para casa e reencontra Linda. Mas tem dificuldades de se adaptar a antiga vida. Os dois tentam manter um romance, mas Michael não esquece a guerra e quer saber onde estão os amigos. Ele parece ter se tornado a personificação do veterano de guerra totalmente desprovido de emoções ou ilusões em relação a guerra. Mesmo assim, ele vai a todos os lugares vestindo seu uniforme e exibindo suas medalhas, provas concretas e palpáveis de um orgulho que ele mesmo não parece sentir. Como se elas camuflassem todos os horrores e traumas que passou.
Michael vai buscar Steven que se recusa a voltar agora sem pernas, preferindo ficar no hospital. Mas descobrem que uma grande quantidade de dinheiro chega regularmente para ele vindo de algum lugar do Vietnã. Michael, então, deduz que o dinheiro vem de Nick e volta ao Vietnã para buscá-lo. O desfecho é brutal, com Nick se “profissionalizando” como um “atleta” da Roleta Russa. Ele não consegue reconhecer Michael apesar de seus apelos e em uma tentativa desesperada, Michael aceita jogar mais uma vez com Nick na esperança de tirá-lo daquele transe e trazer ele de volta para casa.
Dedo na ferida
Além de um filme poderoso, O Franco Atirador foi lançado em 1978, apenas três anos após o fim da Guerra do Vietnã. Chegando na hora certa de mostrar os estragos psicológicos e físicos que a guerra havia causado na sociedade norte-americana, algo que, hoje, em 2021 ainda dói no imaginário coletivo desta sociedade. Até então, os filmes de guerra celebravam a bravura, o heroísmo e o triunfo daquela sociedade. A guerra do Vietnã já era criticada duramente na mídia em outras obras, como M.a.s.h (filme e série de tevê que se passavam na guerra da Guerra da Coreia, mas claramente faziam alusões ao Vietnã). Mas a crueza visceral de O Franco Atirador abriu caminhos para obras que se permitiram ser mais violentas e perturbadoras. Até então, morrer e perder a perna por seu país era retratado no cinema como uma grande honra. Veteranos eram heróis. Agora, se questionava: o que a nação havia feito por aqueles heróis? Fora o grande conflito travado em campos midiáticos na época questionando a legitimidade daquela guerra e o tratamento dado aos veteranos.
Mais do que questionador, O Franco Atirador é um soco no estômago que funciona tanto como estudo de personagem, filme político, ação e, claro, filme de guerra. As atuações também não ficam atrás. Vemos Robert De Niro, Christopher Walken e Maryl Streep no melhor de sua forma.
Não é à toa ganhou os Oscar de melhor filme, diretor, edição, som e melhor ator coadjuvante para Christopher Walken numa das melhores atuações da sua vida.
Digno de nota, foi o último filme de John Cazale, então marido de Maryl Streep, que estava com câncer terminal durante as filmagens, portanto suas cenas foram filmadas antes. Robert DeNiro – reza a lenda – peitou os produtores que queriam tirar o moribundo ator do filme. Alguns dizem que pagou o cachê de Cazales do próprio bolso. De Niro, nega. Cazales morreu antes do filme estourar como grande sucesso. Ao todo, o ator fez pouco mais de 5 filmes, mas todos indicados a mais de 42 prêmios. Todos indicados ao Oscar, sendo três deles vendedores.
Sim, até nos bastidores, O Franco Atirador é visceral.
Talvez por isso, eu não tenha digerido o filme nas dezenas de tentativas de ver na adolescência. Talvez tenha visto, mas não tenha digerido completamente. Me faltava ter passado por experiências semelhantes aos dos personagens. Eu ainda estava no paraíso e pouco, ou nada, sabia do que era o inferno. Ainda não tinha tido uma arma apontada para a minha cabeça, muito menos visto gente morrendo... (sou jornalista, só para esclarecer).
Assim, temos um filme sobre seres humanos que saem do paraíso para terem seus corpos e almas dilacerados no inferno para, depois, descobrir que voltaram para uma espécie de purgatório desconfortável e ao qual precisam se readapatar.
O fato é que na vida todos nós temos um pouco daqueles caçadores de alce. Começamos a vida cheia de ilusões, desejos e nos sentimos invencíveis. E em algum momento, a vida nos rasga, nos dilacera e temos que passar o resto dos nossos dias carregando e tentando superar essas marcas no nosso corpo e em nossas almas.
Uma obra que andava esquecida, mas que merece estar no patamar de outros clássicos que precisam ser vistos e revistos várias vezes. Fica a dica! Mas se prepare, porque machuca.
Clinton Davisson Fialho é jornalista, escritor, roteirista e vai voltar para a academia depois da pandemia. É formado em jornalismo, tem pós em cultura africana e indígena e mestrado em narrativa em novas tecnologias. Publicou quatro livros mas o quinto está no forno.
16/02/25
Esperança e glória, Hope and Glory, 1987, John Boorman
Foi uma bomba extraviada.
- Obrigado, Adolf.
- A escola foi destruída!
Nada mais na minha vida se igualou a alegria daquele momento. Minha escola estava em ruinas.
HOPE AND GLORY / 1987 (Esperança e Glória)
Cinco Oscars da Academia premiaram esta incursão semi-autobiográfica de John Boorman na segunda guerra mundial. Boorman por si só ganhou três estatuetas, como produtor do melhor filme, realizador e argumentista (as outras duas foram para a fabulosa fotografia de Philippe Rousselot e para a direcção artística e cenários de Anthony Pratt e Joanne Woolard). De certo modo, pode afirmar-se sem receio de errar, que Hope and Glory é também, para muitos, o melhor filme de Boorman (até hoje, concedamos-lhe o benefício da dúvida), enquanto outros (entre os quais me incluo) se inclinam para qualquer de dois filmes anteriores, Point Blank/A Queima Roupa, que em 1967, injectou um novo sangue (e estilo) na narrativa do cinema “negro”, ou o impressivo Deliverance/Fim-de-Semana Alucinante que, em 1972, lhe valeu a sua primeira nomeação para melhor realizador pela Academia de Hollywood.
O que distingue essencialmente Hope and Glory dos outros dois filmes é a sua linguagem mais transparente (costuma-se dizer que é o seu filme mais facilmente “compreensível” pelo público em geral) e o seu êxito de público e prémios terá levado Boorman a abdicar das suas veleidades vanguardistas para entrar definitivamente na “mainstream” da produção cinematográfica anglo-americana, compromisso evidente em Beyond Rangoon ou The Tailor of Panama.
Em certos momentos Hope and Glory tem muitas semelhanças com Radio Days que Woody Allen filmava nesse mesmo ano de 1987, e que tem cenário o mesmo período temporal, o tempo da segunda guerra mundial, e a fotografia de Rousselot utiliza cambiantes e estilo de iluminação semelhantes às que usa Carlo di Palma no filme de Allen. Há ainda outras aproximações entre os dois filmes: ambos têm traços autobiográficos dos seus argumentistas-realizadores, e em ambos a realidade circundante é vista pelos olhos de uma criança, que a pouco e pouco vai abrindo os olhos para o mundo (há, inclusive, descobertas sexuais, por ambos os heróis, com algumas semelhanças).
Mas as aproximações ficam-se por aí, até porque as realidades descritas, apenas da coincidência no tempo, são bastante diferentes: Woody Allen está nos Estados Unidos, onde a guerra soa de longe e as preocupações são outras; John Boorman está em Londres, em pleno “blitz”, testemunhando os sucessivos raids da Luftwaffe sobre a capital britânica. Sem esquecer a questão do humor. Em Allen ele vem de fora, quer dizer, é fruto do trabalho de um adulto sobre o olhar adolescente, uma espécie de comentário irónico, “exterior”. Em Boorman, o humor que aparece resulta das situações em si mesmas, tal como o autor as poderá convocar com maior ou menor fidelidade. Daí que elas se possam despojar do trauma, do aspecto dramático que, naturalmente, faz parte da evocação da memória de um adulto sobre o mesmo tempo.
A virtude maior de Hope and Glory reside exactamente nesta característica de conseguir fazer rir em situações dramáticas com a natural “inconsciência” dos seus jovens heróis (que podem não ter a noção do “patriotismo”, gritando “Thanks, Adolf!”, quando uma bomba alemã destrói a escola, provocando umas inesperadas “férias”, nem da tragédia quotidiana, jogando sobre as ruínas e saqueando as da casa da família de um deles), o que é diferente da inconsciência “induzida” no filho da personagem de Roberto Begnini em La Vita è Bella.
Bill Rohan (excelente composição de um jovem, Sebastian Rice-Edwards, cuja carreira cinematográfica parece ter-se ficado por este filme) é um “alter ego” de John Boorman, que, através dele revisita a sua infância em Londres durante a guerra, vivendo numa zona característica (a magnífica reconstituição da época, por Anthony Pratt e Joanne Woolard, pode-se comparar com as do próprio período em causa, em filmes como Went the Day Well? de Alberto Cavalcanti feito em 1942 ou This Happy Breed/Esta Nobre Raça, de David Lean, realizado em 1944), com o pai mobilizado e vivendo com a mãe (Sarah Miles numa das melhores criações da sua carreira) e as irmãs. A guerra, para ele, é um acontecimento excitante, que traz novas possibilidades de divertimento com os amigos da escola. Boorman usa habilmente imagens e sons de documentos da época, mas incluídas na narrativa como imagens do “seu tempo” de forma diegética e como instrumento para outras, de carácter onírico.
No primeiro caso os discursos de Churchill na rádio e os jornais de actualidades que Bill e os amigos, ou a família, vêem no cinema, e de que a sequência de abertura é uma das mais sugestivas, com as imagens de uma sessão infantil em que a sala de cinema está transformada num verdadeiro parque com as brincadeiras e “lutas” entre os miúdos (muitos, como eu, encontrarão nestas imagens um pouco das suas próprias infâncias). No segundo, o sonho de Bill (a preto e branco evidentemente, como os filmes que viam) como aviador de combate.
Verdadeira crónica do tempo da guerra e da infância, Hope and Glory é também um filme sobre a memória, inscrevendo-se numa série que tem o seu exemplo maior em Amarcord, de Fellini.
Manuel Cintra Ferreira
Texto originalmente escrito antes da entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico
17/02/25
Os Implacáveis, The Getaway, 1972, Sam Peckinpah
Tarantino, pp. 97-124
Crítica | Os Implacáveis (1972) por Ritter Fan 20 de novembro de 2022
Um dos mais arrebatadores casais da Sétima Arte.
Em 1968, com Crown, o Magnífico e Bullitt, Steve McQueen alcançou o supremo estrelato em Hollywood, passando a ser o ator mais bem pago da época, apesar da extrema dificuldade que era trabalhar com ele. Curiosamente, porém, seus três projetos seguintes, Os Rebeldes, As 24 Horas de Le Mans e Dez Segundos de Perigo, foram retumbantes fracassos de bilheteria que afetaram sua carreira e sua própria autoconfiança. Quando o roteiro de Os Implacáveis chegou ao seu conhecimento – digo conhecimento, pois quem selecionava tudo para ele era sua primeira esposa, Neile Adams, grande responsável por sua vitoriosa carreira, já que McQueen notoriamente se recusava a ler roteiros – o ator simplesmente precisava de um sucesso e todos os esforços foram envidados para criar algo que fosse um tiro certo, quase como o que hoje chamamos de filme de algoritmo.
Baseado em romance de sucesso de Jim Thompson, originalmente também contratado para escrever o roteiro que Peter Bogdanovich dirigiria, Os Implacáveis (porque simplesmente traduzir como A Fuga, que essencialmente é o filme, aparentemente não era uma opção…) tinha justamente o objetivo de novamente elevar a carreira de McQueen ao ponto em que esteve quatro anos antes, o que significou que o ator passou a interferir na produção mais do que o normal, levando à demissão tanto de Thompson quanto de Bogdanovich, e a contratação de Walter Hill, então ainda a três anos de sua estreia como diretor, para reescrever o roteiro, em apenas seu segundo trabalho nesta cadeira. Para a direção, Sam Peckinpah foi chamado, mesmo tendo dirigido o fracasso anterior do astro, o que acabou criando uma trinca imbatível tanto atrás quanto na frente das câmeras.
Mas era necessário mais uma pessoa para fechar os nomes mais importantes: a atriz que viveria Carol McCoy, esposa do ladrão de bancos Carter “Doc” McCoy (McQueen), que acabou de sair da prisão em condicional. A busca por alguém para o papel foi incessante, com o ator vetando todas as atrizes que porventura tivessem chance de ofuscá-lo em tela (ele ficara irritadíssimo com a indicação de Rupert Crosse ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Os Rebeldes), mas ao mesmo tempo preocupado em trazer alguém com star power suficiente para atrair mais gente para as telonas. Como a produção era originalmente da Paramount, então sob o comando do grande Robert “Bob” Evans, sua esposa Ali MacGraw, egressa do estrondoso sucesso de seu papel em Love Story: Uma História de Amor e, por causa dele, uma das mais cobiçadas atrizes dos anos 70, foi um dos primeiros nomes conectados ao papel, o que acabou esmorecendo quando o roteiro entrou em rotação, sendo comprado pela National General Pictures, mas que acabaria sendo a grande escolha. Em poucas palavras, não poderia haver uma dupla de marido e mulher nas telonas de 1972 que fosse mais poderosa e atrativa para o público do que a formada por McQueen e MacGraw, tanto que os dois acabariam se divorciando de seus respectivos esposos e casando no ano seguinte.
A entrada de Hill no roteiro teve como objetivo transformar a obra original, que tinha pegada surrealista em seu famoso final, em um veículo para McQueen, o mesmo valendo para Peckinpah, que, apesar do fracasso de Dez Segundos de Perigo, teve uma boa experiência com o astro. No longa, a saída de Doc McCoy (é “Mc” e “Mac” para todo lado nesse filme, sejam nos sobrenomes da dupla principal de atores, seja nos da dupla principal de personagens) da prisão se dá quando ele, tendo sua condicional negada, pede que sua esposa negocie sua liberação com o gângster Jack Beynon (Ben Johnson) que compõe o painel julgador. Em uma sequência inteligentemente filmada, com Carol visitando Jack em seu escritório com uma roupa particularmente sexy e Peckinpah fazendo uso de cortes precisos, já há a indicação de que o acordo encetado por ela em nome de seu marido não inclui apenas um trabalho de Doc para Beynon, mas, também, ela própria entregando-se para o vilão.
O que segue daí, ou seja, o roubo do banco com o casal McCoy tendo que trabalhar com dois bandidos escolhidos por Beynon, Rudy Butler (Al Lettieri) e Frank Jackson (Bo Hopkins) e a traição de Rudy já prevista por Doc, e, claro, a fuga, são, apenas, confeitos em um bolo cujo centro é a relação entre Doc e Carol e como ela é abalada pelo que Carol tem que fazer para libertar o marido e, também, como isso acaba sendo violentamente revelado para Doc. Não existem dúvidas possíveis sobre o que Carol sente por Doc e MacGraw acerta em cheio nesse aspecto de sua personagem, equilibrando força e um certo grau de frieza que lhe permite participar de um assalto e uma meiguice que, sendo muito sincero, Doc simplesmente não merece. Não que McQueen não esteja bem em seu papel, pois ele está daquela sua maneira durona e estoica, mas sim porque o personagem em si é difícil, caminhando na fronteira entre o herói bonitão e o anti-herói desagradável. O que não funciona muito bem é como a direção de Peckinpah por vezes quer fazer o espectador crer que Carol tem sentimentos por Beynon, algo que navega contra a maré de tudo o que é mostrado antes e depois da cena climática com o vilão principal, ainda que a sequência do casal no caminhão de lixo e, depois, no lixão da cidade em que Doc precisa se curvar à Carol, seja memorável.
Al Lettieri, hoje certamente mais lembrado como Virgil “O Turco” Sollozzo de O Poderoso Chefão, papel que viveu no mesmo ano de lançamento de Os Implacáveis, é o arquétipo do vilão porcaria, mas asqueroso e odioso, algo que é amplificado por sua relação abominável com a esposa fogosa do coitado do veterinário que ele obriga a ajudá-lo com seu ferimento. Mas o ator empresta um nível de amoralidade tão grande à obra como um todo que, na comparação, ele faz Doc parecer um santo recém-canonizado pelo Papa, pelo que ele tem uma função narrativa importante que é mostrar o fundo do poço vilanesco de maneira consideravelmente eficiente.
Os Implacáveis acabou sendo o sucesso que McQueen precisava, abrindo espaço para a estirada final de sua carreira encerrada abruptamente por sua doença avassaladora. O longa é uma grande história de amor com um casal principal absolutamente cativante e inesquecível em meio a uma atmosfera de podridão e sujeira – e nenhuma honra – entre bandidos que, talvez, tenha um final feliz demais para combinar com o restante, ainda que, claro, sendo um filme feito para agradar o maior número possível de pessoas, ele faça todo sentido.
18/02/25
A quadrilha, The Outfit, 1973, John Flynn
Tarantino, pp. 125-143
A QUADRILHA por Jesús Cortés
(The Outfit). 1973. Metro-Goldwyn-Mayer (103 minutos). Produção: Carter DeHaven. Roteiro: John Flynn, baseado na novela The Outfit, de Richard Stark. Fotografia: Bruce Surtees (Metrocolor). Música: Jerry Fielding. Cenografia: Tambi Larsen (a.d.), James L. Berkey (s.d.). Montagem: Ralph E. Winters. Elenco: Robert Duvall (Macklin), Karen Black (Bett Harrow), Joe Don Baker (Cody), Robert Ryan (Mailer), Timothy Carey (Menner), Richard Jaeckel (Chemey), Sheree North (a esposa de Buck), Felice Orlandi (Frank Orlandi), Marie Windsor (Madge Coyle), Jane Greer (Alma), Henry Jones (médico), Joanna Cassidy (Rita), Tom Reese (braço direito), Elisha Cook Jr. (Carl), Bill McKinney (Buck), Anita O’Day (ela mesma), Archie Moore (Packard), Tony Young (contador), Roland La Starza (atirador), Edward Ness (Ed Macklin), Roy Roberts (Bob Caswell), Toby Andersen (atendente do estacionamento), Emile Meyer (Amos), Roy Jenson (Al), Philip Kenneally (barman), Bern Hoffman (Jim Sinclair), John Steadman (atendente do posto de gasolina), Paul Genge (homem do pagamento), Francis De Sales (Jim), James Bacon (apostador), Army Archerd (mordomo), Tony Trabert (ele mesmo).
A partir do momento em que Macklin (um Robert Duvall perfeito, recém-saído de O Poderoso Chefão) acerta o relógio que lhe é devolvido ao sair da prisão após cumprir pena por roubo e até mesmo antes, na cena de assassinato a sangue frio de quem depois saberemos que era seu irmão, A Quadrilha é um mecanismo de precisão que desafia o tempo, as modas e as tendências que dominaram o thriller dos anos 70.
A iconografia da América dos grandes noir que começam nos anos 30, os chapéus e os impermeáveis, os trajes e os vestidos de noite, os clubes, os carros e os métodos e meios da polícia para combater o crime organizado ou “de sobrevivência” ficaram para trás e nas bem-sucedidas Chinatown, Um Lance no Escuro, Perseguidor Implacável, À Queima-Roupa ou O Perigoso Adeus a perspectiva se torna claramente renovadora, especialmente no que se refere aos elementos puramente estéticos e éticos.
Adiantando-se em vários anos em relação a Michael Cimino (sobretudo pela estrutura de O Ano do Dragão, que teria ligações com Fuller, uma referência comum) ou Clint Eastwood, John Flynn injeta sabedoria cinematográfica, sentido do drama, de tempo narrativo, da direção de atores, como se a lição mais importante, a única que realmente valesse a pena ser aprendida, viesse dos grandes Fleischer dos anos 50 e quase nada das contaminações mais ou menos proveitosas que os anos 60 trouxeram tivesse afetado de alguma forma a construção do filme.
Parece que a preocupação de Flynn em A Quadrilha não é apenas com o todo, mas mais particularmente por set pieces, segmentos independentes. Blocos de granito puro, que se abrem e se fecham para se encadearem em elipses quase invisíveis que lhe dão um sentido fulgurante, como se estivesse suspenso no tempo. Na verdade, se não fosse a mistura de estóico revanchismo a essa expressão amargurada ante o pior que pudesse acontecer a Macklin, A Quadrilha estaria mais próximo de Alan Clarke que de Don Siegel e em todo caso se aproxima mais de Ulu Grosbard que de Martin Scorsese e muito pouco às correntes abertas mais tarde por Wim Wenders.
Em especial, esse procedimento “miniaturista” e a aparição em papéis secundários de ícones da idade de ouro como Robert Ryan, Jane Greer, Richard Jaeckel, Marie Windsor e Elisha Cook Jr. poderia ter condenado A Quadrilha a se tornar pouco mais que um modelo em escala dessas obras que suponho assaltar a memória sobre o papel em seu argumento: Os Assassinos e Baixeza de Siodmak, O Grande Golpe de Kubrick, Seu Último Refúgio de Walsh, O Poder do Ódio de Dwan... e westerns de Boetticher, Mann, Stuart Heisler ou Jack Arnold.
Mas John Flynn, sem se tornar em momento algum revisionista e com uma contenção exemplar, se atreve a transitar nesse vasto território policial olhando em frente e sem ter na cabeça os recursos que estavam funcionando tão bem nos filmes contemporâneos mencionados acima. Isso cinematograficamente se traduz compondo-se à distância (sem usar apenas o primeiro plano e dando sempre uma importância decisiva ao equilíbrio do enquadramento), usando pouco diálogo e nunca frases feitas nem ironias, quase nada de música (que além do mais é muito pouco estridente, com apenas umas pequenas notas de “funk” em um par de ocasiões), não tocando no zoom e sobretudo injetando humor e humanidade ao longo do filme ao invés de optar pela tendência mais cômoda e rentável na qual derivaria por pura deformação o gênero: como os tempos se tornaram mais sofisticados, mais velozes, esqueceram-se dos códigos morais e já não há mais espaço para aqueles que pensam e sentem, tomemos o caminho fácil e conduzamos o objetivo na medida do possível à ação, evitemos ou reduzamos a trivialidades os conflitos sentimentais ou de consciência, tratemos de mostrar que todos nós podemos ser impotentes como uma desculpa para validar qualquer atrocidade cometida, que já não será mais castigada, e esbocemos um inferno sem ordem ou justiça que é o quê já não mais era, certo de que é no quê este mundo se converterá em breve... a base de tantos filmes desde então e até nova ordem, sem percurso, desagradáveis, gratuitamente violentos, afobados, insubstanciais.
Uma cena simples reflete o que distancia A Quadrilha de tantos filmes do seu gênero. Quando Bett (Karen Black) atropela com seu carro dois homens para evitar que disparem contra Macklin e seu amigo Cody (Joe Don Baker), que escapam por um triz e na euforia de ter salvado a sua pele, Macklin faz o gesto de abraçá-la, mas ela o afasta com o braço, ainda em estado de choque por ter feito algo assim, quem sabe pela primeira vez e talvez surpreendida por ter sido capaz de tomar tal iniciativa.
Assim, o melhor e mais tocante de A Quadrilha acontece na sua parte final, quando, em duas conversas, uma no carro e a outra no fim do assalto à casa do mafioso interpretado por Robert Ryan, em uma chave muito Peckinpah e com reminiscências do Jacques Becker de Grisbi, Ouro Maldito, vem à luz a intensa amizade que une Macklin a Cody - que até aquele momento parecia um simples mercenário cruel - que querem acabar o quanto antes com esta vida que levam, de motéis de rodovia e armas escondidas debaixo do travesseiro, talvez para começar de novo, como em tantos westerns, nessa aldeia de Oregon onde “quando neva te cobre até a cabeça”, da qual Cody fala com uma mistura de saudade e utopia.(Traduzido por Bruno Andrade)
INTELIGÊNCIA DE JOHN FLYNN por Bruno Andrade
20/02/25
A outra face da violência, Rolling Thunder, 1977, John Flynn
Trata-se do melhor filme fascista de vingança absolutamente brutal jamais feito. (Tarantino pp. 235-277)
A OUTRA FACE DA VIOLÊNCIA E A RESSACA DO VIETNÃ por Sérgio Alpendre
O cinema americano da segunda metade dos anos 1970 expressou, com variável intensidade, o mal-estar da sociedade dos EUA após a crise do petróleo, quando os países da OPEP decidiram pelo embargo econômico como forma de represália ao apoio dado a Israel durante a Guerra do Yom Kippur; de Watergate, escândalo político que culminou com a renúncia do presidente Richard Nixon; e do fracasso no Vietnã, com os soldados já tendo regressado aos seus lares.
Filmes como Taxi Driver (1976), A Outra Face da Violência (Rolling Thunder, 1977), O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978), Amargo Regresso (Coming Home, 1978) e Who’ll Stop the Rain (1978) vão direto na jugular, mostrando essa ressaca difícil de suportar de forma crua, temperada com muita violência e uma densidade asfixiante. Rambo - Programado Para Matar (First Blood, 1982) e O Reencontro (The Big Chill, 1983), além de outros filmes que de certa forma - e muitas vezes por via tortuosa - fazem uma espécie de análise da ressaca da Guerra, surgem depois para não deixar a ferida cicatrizar, expondo a vulnerabilidade moral americana naquele início desastroso da gestão de duplo mandato de Ronald Reagan. Rambo o faz de forma direta, mostrando a dificuldade de adaptação de um Boina Verde; O Reencontro retrata de forma indireta, com alusões a vícios em drogas e demais desconfortos em um reencontro em tempos difíceis, motivado pela morte de um amigo comum. Esses são só alguns filmes, mas a lista é extensa.
O mal-estar também podia ser sentido já em 1975, de forma mais ou menos evidente, em outros filmes autorais, mas que não foram tão diretamente ao ponto, caso de Elite de Assassinos (The Killer Elite, 1975), Nashville (1975), Shampoo (1975) e Um Lance no Escuro (Night Moves, 1975), ou em filmes insuspeitos e mais comerciais como Rocky - Um Lutador (Rocky, 1976), Os Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever, 1977), Joyride (1977), e até em Kramer vs. Kramer (1979), que além de estar sensível à desesperança daqueles anos do pós-guerra, já mostra sinais da vida yuppie que iria prosperar a partir da segunda metade dos anos 1980. No início desta década até hoje incompreendida vimos, por sinal, um renascimento da comédia rasgada, com filmes como Clube dos Pilantras (Caddyshack, 1980) e Apertem os Cintos... O Piloto Sumiu (Airplane!, 1980), que dariam novas tintas ao cenário do cinema americano e atenuariam (ou disfarçariam) a sensação de fim do mundo moral que a década anterior havia passado. Vimos também alguns fenômenos estéticos difíceis de se decifrar: os filmes americanos que de certa forma refletiram o impacto da popularização das produções em vídeo e do videocassete caseiro e a iminente “morte do cinema” pela televisão - O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1983), Videodrome (1983), Especiais Efeitos (Special Effects, 1984); as reflexões amargas ou irônicas sobre a desastrosa administração do presidente Ronald Reagan (1981-1988) em diversas obras inteligentes e muito mais políticas do que suspeitavam à época - Grito de Horror (The Howling, 1981 - que parece prever o desastre que seria um republicano no comando naquele momento), Gremlins (1984), O Ano do Dragão (Year of the Dragon, 1985), Robocop (1987) e uma infinidade de outros filmes; uma onda de policiais urbanos que amplificavam o confronto e o sentimento de vale tudo, e também expressavam um mal-estar político com a má gestão dos problemas sociais e econômicos dos anos 1970 - Scarface (1983), Viver e Morrer em Los Angeles (To Live and Die in L.A., 1985), Caçador de Assassinos (Manhunter, 1986), A Marca da Corrupção (Best Seller, 1987), etc.
Mas voltemos à segunda metade dos anos 1970, mais precisamente ao filme de John Flynn, cineasta que nos interessa aqui, localizado no âmago da crise moral americana: A Outra Face da Violência, de 1977. Neste filme duro e seco como um dos diversos estampidos de espingarda de sua banda sonora, vemos as conseqüências da guerra na mente de veteranos que tentavam se ajustar à vida comum. Voltamos a 1973, ano em que se passa a trama, para acompanharmos dois desses veteranos no exato momento em que são recebidos de volta no aeroporto de San Antonio (no Texas), uma das cidades em que a aprovação à Guerra era considerável. A festa é imensa, a TV vai entrevistar os veteranos, as pessoas dão presentes, e a economia, lembremos, ainda não havia sofrido o novo colapso. Mas Flynn filma como se tal colapso fosse inevitável, com a vantagem de já ter vivido o que iria acontecer nos anos seguintes. Do fim de 1973 em diante a situação iria degringolar, como já vimos, e A Outra Face da Violência é o retrato perfeito dessa derrocada econômica e moral, que falseou deliberadamente o espírito da sociedade no recuo no tempo. O ano foi escolhido apenas para mostrar a volta dos guerreiros, mas não se enganem, Flynn fala principalmente dos anos que se seguiram, especialmente de 1975 e 1976.
1973, por sinal, é o ano em que A Quadrilha (The Outfit), sua magistral obra anterior, foi filmado e lançado. A comparação entre o tom dos dois filmes comprova a ferida causada pelos acontecimentos já destacados e que iria se intensificar a partir de 1975. Em A Quadrilha, temos uma trama de vingança muito semelhante à de A Outra Face da Violência. Mas no primeiro inexiste o sentimento de melancolia que faz com que os vingadores pareçam mortos vivos à caça de sangue humano. São apenas vingadores os personagens de A Quadrilha, firmes numa condição temporária de super-homens, captados com rigor graças à frieza e à habilidade de Flynn na geografia dos espaços, nas escolhas da angulação e da distância da câmera, e pelas interpretações inesquecíveis de Robert Duvall e Joe Don Baker. Mas parecia difícil, àquela altura, mesmo com os sinais mais ou menos evidentes no dia a dia, prever como o espírito que envolvia os Estados Unidos seria maculado nos anos seguintes. O tom ainda é o de celebração de um cinema físico, violento e intelectualizado, derivado de Operação França (The French Connection, 1971) e Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972), mas com esperança e final feliz com direito a freeze frame. A Outra Face da Violência tem final relativamente satisfatório, ainda que os dois heróis estejam gravemente feridos. Devane e Lee Jones realizam no clímax um banho de sangue digno de Sam Peckinpah, mas filmado à maneira clássica de Flynn, com uma decupagem primorosa em uma locação ingrata, que impunha escadas, quartos apertados e um balcão que parece ocupar quase a metade de um saguão como elementos do cenário. Conseguiram suas desejáveis catarses: um pela vontade de vingar a morte de sua família e a amputação de sua mão em um triturador de pia; outro pelo desejo de dar um sentido à sua vida, reduzida a lembranças da guerra e a um compromisso matrimonial pouco promissor. O filme todo é banhado em tintas de melancolia que entregam um olhar de lástima para quatro anos antes. Uma lição de como ver um ano específico pelo que iria acontecer depois, como poucos filmes souberam fazer até então, raros conseguiram depois. Além disso, o que aconteceria a esses soldados após o tiroteio final? Como iriam suportar a vida pacata de uma cidade conservadora como San Antonio? Como se livrariam do vício da adrenalina do combate, que parecia ter voltado com força? São perguntas que se impõem no desfecho.
Existe um mistério nos movimentos de Tommy Lee Jones, em sua relação com aqueles que o cercam, e em sua maneira de ver as coisas corriqueiras e sua própria posição como herói de guerra. Mas ele é o coadjuvante de A Outra Face da Violência. O protagonista é o major que não é um zumbi, e recebe presentes da população, incluindo uma maleta cheia de dinheiro (um dólar para cada dia passado longe de sua pátria, uma soma que passava de 200 mil dólares). William Devane, o ator por trás dessa interpretação, tem os lábios cerrados, a cara angulosa e enigmática perfeita para viver tal papel. Ele parece encarar esse mal-estar externa e internamente. Em uma cena importantíssima para essa definição do incômodo regresso, ele tem um longo diálogo com a esposa, logo após um diálogo em que estabelece um caminho para a relação com o filho que mal conheceu. No diálogo com a esposa, a desilusão é sensível, e a câmera de Flynn mantém-se sóbria, como se registrasse um ritual íntimo. Esse major é alguém perturbado, que não encontra respaldo na sociedade que o recebia de volta (apesar dos presentes e apupos), mas podemos prever que um dia ele superará os pesadelos e conseguirá se ajustar a uma vida normal. A desgraça familiar acontece, e é como se o mal-estar precisasse atingir a superfície, tornando-se físico e voltando para o estágio mental ao causar traumas profundos.
O que faz de A Outra Face da Violência o filme mais denso de John Flynn é justamente a época em que foi feito. A necessidade de olhar, de 1977 para um ano chave, 1973, quando a maior parte dos soldados americanos estava voltando do Vietnam e a economia estava prestes a sofrer o duro golpe da crise do petróleo que estouraria em outubro daquele ano, fez com que, à luz dos anos futuros, esse olhar fosse amargo, num tom de penúria que agravava os acontecimentos e o deslocamento existencial de seus heróis. Ou simplesmente traduziria na evidência de suas imagens o mal-estar que na época ainda não era tão sensível, mas que estava ali, à espreita, implacável.
O caminho a seguir
Podemos comparar A Outra Face da Violência também com o filme seguinte de Flynn, Souls: Liderança Desafiada (Defiance, 1980), que opera numa chave de reação ao sentimento de perda das condições de exercer a cidadania, com um grupo de moradores de um bairro se unindo para afastar, sem mortes, uma gangue violenta - os Souls - que aterrorizava a região. Jan-Michael Vincent é o trabalhador portuário que está à espera de emprego nessa região inóspita. Ele não pretende se envolver nesse problema, mas fica amigo de alguns vizinhos, fortalecendo com eles os laços de amizade e, no caso da vizinha de cima, a bela Theresa Saldana, uma determinante paixão.
O filme tem boa dose de violência, como A Outra Face da Violência e A Quadrilha, mostra ruas sujas e cheias de lixo como Rocky - Um Lutador, explora a delinqüência urbana como Os Selvagens da Noite (The Warriors, 1979), mas não se sente tanto o peso da melancolia, o que pode significar que parte da sociedade, incluindo aí a cinematográfica, estava tentando reagir àquele sentimento de falência moral (como mostra a série de comédias rasgadas citadas no início deste texto). Flynn entra com tudo nos anos 1980, aberto a novas perspectivas, como num sentimento que acontecia por vezes, especialmente no âmbito artístico, mas não só, quando uma nova década começava no século XX (o sentimento de vale tudo e de eterna festa dos anos 1920, o New Deal que se seguiu à quebra da bolsa em 1929 e deu nova esperança ao povo americano nos anos 1930, aliado a uma permissividade do cinema americano que duraria até o Código Hays, em 1934, o alto crescimento econômico dos anos 1950, o pop bubblegum nos anos 1960, o hippismo menos contestador movido apenas a paz e amor dos anos 1970, o new wave encobrindo o pós-punk e a cold wave nos anos 1980, um novo levante comercial do cinema independente americano nos anos 1990); Souls trazia um final feliz, mas a luz que invadia o cais de Nova York parecia invadir também os corações dos oprimidos, num interessante movimento de esperança que nem sempre encontrava eco em outros filmes (vide o carrancudo ambiente do Rambo de Ted Kotcheff), e que depois sofreria um novo golpe com o governo republicano de Reagan, e com o cancelamento de programas sociais que já eram insuficientes. Lidar com a violência ameaçadora era a bola da vez naquele início de década, e Flynn abraçava essa idéia com seu talento único.
Os anos Reagan ainda influenciariam retratos urbanos e brutais da sociedade, como A Marca da Corrupção, um dos melhores policiais dos anos 1980 e um dos melhores trabalhos de Flynn. Mas o interessante aqui é ver como o diretor atravessou os anos 1970, passou pelas crises que mutilaram boa parte do orgulho americano e saiu ileso, pronto para realizar mais grandes filmes. Mas isso já é outra história.
22/02/25
Daisy Miller, 1974, Peter Bogdanovich
Cybill Shepherd, 1950
Barry Brown (1951 - 1978)
Tarantino, pp. 205-211
Crítica | Daisy Miller (1974) por Ritter Fan, 27 de novembro de 2022. Ótimo
Baseado em novela homônima que Henry James publicou em 1878, Daisy Miller é um pequeno, mas muito interessante e surpreendente filme de Peter Bogdanovich que lida com o choque entre a tradição e a modernidade, entre o passado e o futuro em um contexto que põe em antítese a jovem e belíssima Annie “Daisy” Miller (Cybill Shepherd), nova rica de Schenectady, Nova York, que, durante viagem com sua mãe e irmão, conhece Frederick Winterbourne (Barry Brown), americano representante da riqueza clássica e “pura”, em Vevey, na Suíça, onde ele estuda. Daisy não segue as normas implícitas e explícitas da alta sociedade tradicional e refestela-se com a atração que exerce sob os homens, logo capturando o Sr. Winterbourne em sua rede, o que, aos poucos, vai criando o conflito entre os dois lados da alta sociedade da época.
Shepherd estava no auge de sua beleza e Bogdanovich obviamente tinha perfeita consciência disso, mantendo suas lentes dirigidas ao rosto angelical da atriz que faz um esforço tremendo para encarnar sua personagem sem deixá-la descambar para o que poderíamos classificar como “loira burra”. Falando seus diálogos como um metralhadora, o que me faz imaginar quantos takes foram necessários para capturar os textos ininterruptos dela de maneira apropriada, Shepherd triunfa não em se mostrar uma grande atriz, algo que ela verdadeiramente nunca foi, mas sim em compor uma personagem encantadora, mas, ao mesmo tempo, enfurecedora, beirando o insuportável, mas que deixa evidente, logo de início, sua vontade de viver da maneira mais completa possível, um verdadeiro joie de vivre como diriam os franceses, combinado com um razoável, mas sadio grau de inocência.
Barry Brown, como Frederick Winterbourne, é exatamente o contrário disso. Apesar de imediatamente apaixonado por Daisy Miller, ele mantem-se rigidamente dentro das fronteiras estabelecidas por sua criação e pelos ditames da sociedade em que circula. Ele obviamente admira a jovem justamente por ela não seguir por esse mesmo caminho limitativo que ele, mas, ao mesmo tempo, teme ter sua reputação manchada por tabela, possibilidade que fica ainda mais evidente quando a ação é transportada para Roma, na Itália, com Daisy saindo abertamente com o Sr. Giovanelli (Duilio Del Prete) para horror da senhorita Walker (Eileen Brennan) que se arvora como a guardiã dos bons costumes da alta sociedade americana expatriada na Europa e faz de tudo para amedrontar Winterbourne.
Há muito humor no trabalho de Bogdanovich criado naturalmente pela maneira elétrica com que Shepherd derrama as falas de sua personagem, pelo ridículo (para os nosso padrões) choque que ela causa na sociedade e pela presença de Randolph (James McMurtry) o dentuço irmão temporão de Daisy que odeia qualquer coisa que não seja americana, chegando a dizer que a melhor parte da viagem foi o navio em que eles estavam, com o único defeito sendo a direção que ele estava indo. O humor também se deve à presença inconstante, mas sensível da Sra. Ezra Miller (Cloris Leachman), a mãe avoada, tímida, mas também falastrona de Daisy que, como a filha, não consegue enxergar as supostas “impropriedades” no comportamento dela.
E Bogdanovich, novamente, sabe usar essa comicidade inerente para construir Daisy e, por contraste, Frederick, sem jamais apontar para o fim dramático e abrupto do longa que subverte expectativas, especialmente por quase tudo acontecer off screen, com direito até mesmo a um breve salto temporal que pega o espectador desprevenido e uma belíssima tomada em que vemos o Sr. Winterbourne receber uma notícia através da cortina rendada da porta do hotel onde a família Miller está hospedada. Essa escolha do diretor é no mínimo curiosa, pois o filme, até esse ponto mais dramático, vem em um crescendo narrativo que “pula” para um clímax não preparado e ele simplesmente acaba, com a realização dura sobre a incompatibilidade de Daisy Miller com o mundo em que circulava.
Filmado em locação na Suíça e Itália, Bogdanovich usa o ambiente natural para criar frames enquadráveis do cotidiano da alta sociedade, com um desfile de magníficos cenários essencialmente reais em castelos, museus e mansões, além de um mais magnífico ainda desfile de figurinos de época, notadamente aqueles esplendorosamente usados por Daisy Miller. Por outro lado, o diretor não cai na armadilha de transformar seu longa em um “guia turístico”. As atrações históricas locais são usadas, mas não apenas para servirem de enfeites e sim com funções narrativas específicas, notadamente o castelo de Chillon que referencia sombrio poema de Lorde Byron e, claro, mais para o final, o fantasmagórico e até mesmo finalista Coliseu, palco de um show de horrores para agradar a realeza e distrair o povo
Daisy Miller é, uma joia esquecida na filmografia de Peter Bogdanovich que até mesmo o diretor acabou se arrependendo em fazer por não ter sido economicamente atraente e, por conseguinte, rentável. Mas o filme encanta por economicamente – são apenas 91 minutos! – lidar com a tragédia da hipocrisia humana embalada por uma performance irresistível de Cybill Shepherd e outra estoica, mas repleta de significados escondidos de Barry Brown que, quatro anos depois, tiraria sua própria vida.
23/02/25
Taxi Driver: motorista de táxi, Taxi Driver, 1976, Martin Scorsese
Tarantino pp. 219-241
‘Taxi Driver’ e o norte filosófico de Martin Scorsese por Bernardo Vasques, 19 de maio de 2018
Refutando Hobbes e dialogando com Rousseau, o longa de Martin Scorsese, 'Taxi Driver', é um ensaio visceral sobre a essência humana.
Imagine uma impossível conversa entre Thomas Hobbes e Martin Scorsese. O local é sua mente que decide, mas o tema é apenas um: a essência humana. Imagine que Hobbes, categoricamente, afirme: “O homem já nasce mau, sem o menor interesse em se tornar um ser sociável. Ele precisa de um Estado forte, autoritário, para que lhe sejam impostas regras.” Scorsese, então, franze sua testa, realçando ainda mais suas grossas sobrancelhas, e apenas rebate: “Será? Deixa eu te mostrar um filme, então.”
Na tela, inicialmente, apenas olhos. Quando um rosto é revelado, uma bela surpresa. Robert De Niro. Em memorável atuação, ele interpreta Travis Bickle, jovem de 26 anos, que, sofrendo de insônia, resolve se tornar taxista em Nova Iorque durante a noite. O filme é Taxi Driver, que narra a trajetória de Travis sob a perspectiva de sua instabilidade psicológica. O maior desafio do personagem de DeNiro é se confrontar consigo mesmo.
Travis Bickle é preconceituoso. O taxista não mede palavras para ofender homossexuais, negros e prostitutas, e coloca todos no mesmo patamar de inferioridade, postura que faz com que Travis não faça distinção de quem entra no seu táxi, pois se sente superior. Ele, inclusive, se refere à chuva como uma forma de “limpar o lixo das ruas à noite”.
Ao não explicar as origens de toda a intolerância de Bickle, o roteiro de Paul Schrader sugere que esta seja a essência do personagem, que Travis sempre foi dessa forma, corroborando com a primeira premissa da filosofia de Thomas Hobbes. Entretanto, a concordância acaba aí, e tanto Schrader quanto Scorsese não medem esforços para deixar isso bem claro.
A primeira refuta a Hobbes vem quando Travis afirma que acredita que deve ser como as outras pessoas, se encaixar. Em outras palavras, seu desejo é de ser sociável. Para isso, decide entrar no comitê eleitoral de Charles Palantine (Leonard Harris), candidato à presidência dos EUA. Travis Bickle é, assumidamente, analfabeto político, logo, sua única motivação neste ambiente é conversar com Betsy (Cybill Shepherd), e convidá-la para um café. A peculiaridade e extrema sinceridade de Travis revelam sua dificuldade de socialização, mas acabam atraindo a moça, que aceita o convite.
Nas andanças de táxi por Nova Iorque, o longa revela sua essência: explicitar a contemplação, por parte de Travis, de sua própria essência falha. Com isso em mente, Scorsese atribui à cor vermelha um sentido de culpa, de pecado, faceta que se tornou marca registrada do cinema do diretor.
Sendo assim, Travis é, a todo momento, impregnado pela cor vermelha. Fachadas de prédios, poltronas do cinema, latas de refrigerante, pacotes de pipoca e chocolate, pilastras do comitê de Palantine, as roupas do taxista e até as de Betsy são pintados de vermelho. Simbolicamente, tudo o que os olhos de Bickle podem enxergar faz com que ele visualize suas próprias falhas.
Entretanto, em meio à imensidão vermelha, Scorsese, em conjunto com a direção de arte de Charles Rosen, faz questão de quase sempre posicionar um detalhe em verde em algum lugar do quadro, seja um letreiro ou até mesmo a luz do sinaleiro. O tom associado à natureza humana serve para lembrar o espectador de que, por mais que Bickle tente se tornar sociável, sua essência má e falha nunca permitirá. Ideia que se confirma em um dos planos mais espetaculares da história do cinema.
O segundo encontro entre Travis e Betsy é desastroso – a total desconexão do taxista com a lógica da sociedade o faz levá-la em um cinema pornô -, e, após alguns dias, a tentativa de reconciliação vem por meio de uma ligação de um telefone público.
Travis Bickle é visto utilizando o último aparelho de uma parede com três telefones, e está posicionado à direita da tela, quase saindo do quadro. Isto, por si só, já transmite a ideia de desconforto. Além de estarem em alturas distintas, em posição de “escada”, os telefones são todos diferentes, sendo o primeiro muito antigo, o segundo um pouco mais moderno e o terceiro, utilizado por Travis, praticamente igual aos telefones públicos vistos hoje. Esta lógica associa-se aos estágios da evolução humana, essencialmente o está sendo buscado naquele momento.
Entretanto, existem apenas três aparelhos, e não cinco, como as etapas da evolução. Isto indica que o personagem nunca conseguirá evoluir totalmente, sua essência simplesmente não permite. Em adição, o único telefone que não tem fios conectados à parede é o que Bickle utiliza, simbolicamente excluindo qualquer possibilidade de conexão entre suas atitudes e o mundo, deixando muito claro que ele nunca chegará a lugar nenhum. Tudo isso com Travis Bickle utilizando sua característica jaqueta esverdeada, expondo ainda mais sua natureza.
Não satisfeito, Scorsese faz um travelling lateral com a chamada ainda em andamento, revelando um extenso corredor, muito mais iluminado do que o ambiente visto anteriormente. Este movimento de câmera representa a total desistência em relação a Travis, além de ser o momento que a vergonha alheia sentida torna-se insuportável. A partir daí, a contemplação da culpa torna-se assimilação e, inconscientemente, Bickle percebe que não pode ser salvo de si mesmo e que não há Estado autoritário que possa tirá-lo da ruína.
Isso permite que Scorsese explicite parte de suas visões de mundo a partir do roteiro do filme. O momento de consolidação da base filosófica do filme é quando Wizard (Peter Boyle), também taxista, afirma categoricamente que o homem torna-se seu trabalho, que ele é moldado pela sociedade após ter nascido igual a todos os outros. Pois é, Jean-Jacques Rousseau acabou de entrar na conversa. E para não sair mais.
Já tomado por um desespero retraído, Travis Bickle resolve agir. O taxista compra diversas armas e decide que a “limpeza da sociedade” teria que ser feita com suas próprias mãos. Scorsese rapidamente interfere e desaprova a imposição da moral própria de Bickle, seja enfraquecendo-o ao substituir uma arma real por um gesto com as mãos, seja mostrando-o em um estande de tiro em uma sequência de planos cada vez mais afastados, até que Travis não possa mais ser visto. Este enfraquecimento faz com que o destino de Travis se torne cada vez mais assimilado pelo seu próprio subconsciente, criando ideias inconscientemente autodestrutivas, como apontar a arma para o espelho.
A única atitude moralmente validada de Travis Bickle é a libertação de Iris (Jodie Foster), inserida no mundo da prostituição por Matthew (Harvey Keitel) com apenas 12 anos. A menina é o claro exemplo do personagem que, de acordo com o filme, merece salvação. Isto é, uma pessoa que nasceu totalmente pura e boa, mas que a sociedade corrompeu. Novamente, Scorsese refuta definitivamente as ideias de Hobbes e enaltece Rousseau.
O desfecho do longa traz uma provocativa antítese na qual, após implorar, com um gesto, para que fosse morto, Travis Bickle passa a ser visto como heroi por ter resgatado Iris. É a prova clara de que Bickle tem total consciência de sua essência e sabe que ela não permite a ele nenhum tipo de salvação. O que o resta é continuar contemplando sua culpa atrás do volante de um táxi, como mostra o apoteótico plano final da obra-prima de Scorsese.
Taxi Driver é o estabelecimento definitivo das diretrizes filosóficas de Martin Scorsese. A forma como o cineasta enxerga a essência humana e a sociedade, fortemente influenciada por Jean-Jacques Rousseau, seria ainda retratada em alguns dos filmes mais aclamados do diretor, como Os Bons Companheiros, Cassino e O Lobo de Wall-Street. Esta faceta, em meio a diversas outras particularidades, atribuiu muita personalidade ao cinema de Scorsese, ajudando a consagrá-lo como um dos maiores cineastas de todos os tempos.
24/02/25
Fogo na Planície, Nobi, 1959, Kon Ichikawa
Tarantino, p. 236
Review by Robert Beksinski ★★★★★
The film begins with a slap to the face and this is important because it never lets up on that intensity, on that brutal barrage of assaults and causalities laying on thick the depravity of war for the viewers to succumb to. Fires on the Plain is the antithesis to Kon Ichikawa's previous war film The Burmese Harp, reneging any shred of hope that the former film had and opts to display only the atrocities that come with war and surviving such harsh and bleak conditions. It is surely a dark film and one I like to consider or give the moniker of being the Japanese version of Come and See.
The film is a flat out masterpiece and Ichikawa's best. It ought to be with the amount of sweat, blood, and determination from all individuals associated with the film to strive for the utmost success in authenticity. Ichikawa did not even have to fill in the role of a tyrant on set when his actors were willingly obliged to starve themselves to achieve the look and character of men constantly on the brink of death. It's redundant to mention but I must also add that the technical prowess displayed in this film is superior to all other Ichickawa films from the guerrilla style cinematography to the masterful editing (take notice in some of the bombing sequences how well the editor shows just enough of the clips of what the bombs are hitting to be mortally terrified, even the quick lightning flashes of the tank assault on the highway were tremendously effective). Needless to say it was pitch perfect quality.
Now the script and direction is even better as Ichikawa eases the viewer into the protagonists wayward odyssey through mayhem and death but adds just enough satirical irony and cynicism to give the dark matter a needed spice from being "too dark". An example of a great scene in which Ichikawa employs this device is the shoe trading in the rain, as each soldier walks by to a empty pair of boots sitting in the mud only to trade them in their place for a pair that was worse off from the one before it leaving the last man barefooted. It is genius in its own way of handling the subject material, making it light enough to cope with but still delivering the message of how utterly impossible of the conditions these soldiers have to live with.
This Japanese war film is also interesting to note that the code of honor ending in suicide is only present on one occasion and does not carry a heavy importance with these characters. I think Ichikawa is showing that with the hell that all of them have to endure, they basically wind up running on human instinct (suicide not being one) and the mindset to survive any way possible becomes their only mechanism to abide by. Hence the horrors of war shown at their most ghastly when the last resort of survival becomes common in cannibalistic tendencies. Content like that mixed with how starving and deathly that these soldier already look give them a near zombie appearance. The film fires on all cylinders and pushes the viewer to the limit as far as they will go.
Call it anti-war, call it horror, or even disturbing tales of survival, any way you look at it Fires on the Plain is masterclass filmmaking. Letterboxd
Review by Jerry McGlothlin ★★★★
What are men but beasts of prey?
Human nature dictates survival at all costs, but the price of survival is often payed in honor and bloodshed.
A pair of tattered, waterlogged shoes are found sitting in a puddle by a small group of starving soldiers wandering the Philippine front near the end of WWII in 1945. One soldier examines the shoes, then changes the soaked pair out for his own, which are equally frayed and drenched in water and sweat. The next soldier in line does the same. Then the next one, and the next one. Finally we come to the last soldier, Tamura. As he arrives at the pair last exchanged, he picks up each shoe and stares blankly through the foot-sized hole in the middle of each one. He then removes his shoes (which expose all ten of his toes and the bottoms of his own feet), but he does not replace them like the others did. He refuses to do what he knows is against his own personal code. Instead, he continues his hellbound journey barefoot. This profound scenario foreshadows a much more sinister choice that Tamura will have to make later in the film.
Not only does director Kon Ichikawa show us the physical and emotional tolls of war, he also displays the psychological depths to which a person will sink when deprived of food, water, hope and dignity. It is one thing in practice to say you will do whatever it takes to survive, but in action, there are lows of desperation and despair that some men simply refuse to cross, and this refusal in the name of human decency can prove to have fatal consequences. The film presents us with the struggle between morality vs. mortality. By showing us the most horrific aspects of war without stylizing or heightening them, they are even more stark and disturbing than a majority of other war pictures. Ichikawa creates what I can best describe as a haunting verisimilitude by having his actors eat as little as they could without starving, neglecting any sort of hygiene and, of course, shooting on location, with the only aid to their wretched states being a small number of onset medical personnel. Definitely an ethically questionable move (though from what I’ve gathered, all of the actors participated with these stipulations willingly) but one that only enhances the level of realism we see in the finished product.
Apart from Come and See, I can’t think of any other film that manages to capture the insanity and inhumanity of war and bleak desperation of the human condition at its most abhorrent than Fires on the Plain, while capturing images both lyrically gorgeous and despondently mortifying in equal measure. Letterboxd
25/02/25
47 Ronins, Shijûshichinin no shikaku, 1994, Kon Ichikawa
No iutubi aqui ou aqui
Crítica | Os 47 Ronins (1994) por Luiz Santiago 31 de janeiro de 2014
Kon Ichikawa já ia em avançada idade e obra quando dirigiu Os 47 Ronins, em 1994. Cineasta de filmografia respeitável, ele conseguiu realizar, ao longo de sua carreira, películas de grande força dramática e qualidade estética, trabalhando muito bem com todo tipo de gênero e fontes de inspiração para roteiros, inclusive adaptações literárias, a exemplo do belíssimo As Irmãs Makioka (1983).
Ao voltar-se para a peça de Kaneo Ikegami sobre a história dos 47 ronins, Ichikawa teve como objetivo principal trazer para a tela a longa preparação dos samurais após descobrirem que seu senhor havia sido condenado a cometer seppuku por ter retirado a espada dentro do palácio do shogun e atacado um dos funcionários do soberano, lorde Kira.
Esse tipo de visão de bastidores para o fato já havia sido explorado com brilhantismo por Kenji Mizoguchi no épico de quatro horas, A Vingança dos 47 Ronins (1941). Mas diferente do caminho tomando pelo conterrâneo, Ichikawa trabalha alternando a dramatização daquilo que conhecemos da crônica secular e elementos novos, que muitas vezes retiram a essência do acontecimento e faz com que essa versão do roteiro acabe perdendo qualidade.
A sequência dos eventos aqui permanece a mesma da cronologia original, mas muita coisa é oculta ou narrada fora de ordem. A narrativa alinear, no entanto, não seria um problema se o roteiro fechasse bem o ciclo de histórias e fizesse com que o encontro entre as partes acontecesse de forma orgânica e em momentos realmente marcantes, a fim de não parecer algo gratuito ou apenas uma equiparação “natural” de tempos entre o que foi visto no início do filme e o presente momento da história, uma das piores concepções para unir dois blocos fílmicos separados por uma narrativa descontinuada.
Talvez pela influência da peça que lhe deu origem ou pela composição do roteiro, os eventos mais marcantes da história dos ronins não aparecem e o espectador precisa lidar desde os primeiros minutos com uma preparação de samurais para invadir um castelo mesmo sem ter um único motivo na história para isso. E para piorar, há uma injustificável negação do texto em revelar o verdadeiro motivo para o ataque de Asano a Kira, ao mesmo tempo em que o lado da corrupção e velhacaria do funcionário do shogun nos é apresentado como um boato espalhado pelos próprios samurais. Estaria Ichikawa tentando reescrever a história? Mas se a resposta for afirmativa, por qual motivo ele não reescreveu tudo? Manter o que for conveniente e reescrever justamente o que dá força à lenda não é a coisa mais indicada a se fazer!
Parece-me que o diretor quis tornar Asano realmente culpado, impressão que martela nosso bom senso o tempo inteiro, porque o próprio ponto de partida para a vingança dos ronins é vago, como se o mestre deles precisasse, quase como um dever obrigatório/robótico, ser vingado. Pouco do código de honra e da devoção dos samurais a Asano aparece no filme. A maior parte dos laços são soltos. Há mais interesses pessoais e conflito de egos do que destaque ao bushido.
Mesmo se considerarmos os micro-momentos em que oportunos flashbacks tentam mostrar o motivo da briga e a causa de toda a vingança, o caminho percorrido até então é tortuoso e tem como base um ponto de partida não oferecido ao público! Assim, quem assiste a essa versão, precisa tomar como legítima a causa de uma luta que só vai revelar os seus motivos muito tempo depois – e ainda com carência absurda de detalhes –. E dentro de um contexto em que tais cenas de referência não cabiam mais.
Algo mais ou menos nessa linha pode ser percebido no épico A Queda do Castelo Ako, de Kinji Fukusaku. Só que nesse filme, a sequência dos eventos sustenta a proposta geral do filme, o que faz da omissão do conflito inicial um detalhe incômodo e não um erro crasso do roteiro.
Da primeira para a última parte de Os 47 Ronins, é possível perceber uma incômoda alteração na forma de mostrar o espaço geográfico e a relação entre os próprios samurais. De início, temos a impressão de que eles estavam se reunindo para planejar o ataque. Em pouco tempo, percebemos que esse é um ponto futuro da narrativa, e então voltamos, com a ajuda de um inconstante e dispensável narrador, para o momento onde a crise foi iniciada. Só que não vemos a crise. Ela é dada como pronta e acompanhamos somente o desenrolar de suas consequências na tela.
Nesse ponto da história, temos uma maior ocorrência de momentos musicais, porém, todos muito breves. Esses temas tenderão a desaparecer conforma a história for se tornando mais sombria, ao mesmo tempo em que perceberemos uma sutil diferença na cor dominante para a fotografia. Essas diferenças pouco exploradas fazem com que o longa nos pareça terrivelmente sem foco narrativo, o que é uma meia verdade. O foco existe, à sua maneira, mas ele é afetado por dramas desnecessários, especialmente os de teor amoroso. Não se trata da exploração de um lado familiar dos samurais, como feito por Fukusaku em A Queda do Castelo Ako ou mesmo na minissérie em quadrinhos Os 47 Ronins. Trata-se de plots cuja intenção é aproximar o espectador, mas que ao mesmo tempo falha em sua missão porque atrapalham o andamento da história já iniciada.
É inegável que existam momentos muito bons nessa versão de Ichikawa para a famosa história. Mas o diretor se perde numa miríade de intenções, distraindo o público quando não deveria (e com coisas supérfluas) ou negando ao público informações essenciais e exibidas na hora certa, para que se construa adequadamente os lados da história. Nem na batalha final o cineasta deixa de errar, suprimindo o som ambiente para criar um efeito que só poderia nos impactar se da hora e meia anterior tivesse se erguido de maneira correta, o que não é o caso. Talvez Os 47 Ronins valha pela curiosidade, mas no fim das contas, acaba sendo uma dupla decepção: a de ver tamanhos erros vindo de um diretor como Kon Ichikawa e a de ver uma história tão boa estragada por caprichos burocráticos cinematográficos.
26/02/25
Assassinato em Gosford Park, Gosford Park, 2001, Robert Altman
No iutubi aqui
Assassinato em Gosford Park / Gosford Park
Por Sérgio Vaz
Anotação em 2010: Há dezenas e dezenas e dezenas de filmes retratando o forte classismo da sociedade inglesa, uma chaga que mudou muito pouco ao longo dos últimos séculos. Vários deles são ótimos. Este filme do americano Robert Altman de 2001 é um dos melhores – e talvez o mais virulento.
Filme bom é uma coisa extraordinária, das melhores que há na vida. Peço perdão pelo truísmo, mas é a sensação que tive ao ver mais uma vez Assassinato em Gosford Park para fazer esta anotação. Tinha visto já duas vezes, uma em 2002, outra em 2004; deu vontade de ver de novo. E o prazer não diminui – muito ao contrário.
Tinha revisto Short Cuts algumas semanas atrás, e, ao anotar sobre ele, repeti a obviedade de que os mosaicos, os filmes que focalizam um número muito grande de personagens, é a especialidade desse grande cineasta, dos mais importantes da história. Muita gente faz isso, os mosaicos, as tais estruturas multiplots – mas Altman é o especialista. Fez isso em Nashville, de 1975, Cerimônia de Casamento/A Wedding, de 1978, O Jogador/The Player, de 1992, Prêt-à-Porter, de 1994, Kansas City, de 1995, A Fortuna de Cookie/Cookie’s Fortune, de 1999, Dr. T e as Mulheres/Dr. T and the Women, de 2000, A Última Noite/A Prairie Home Companion, de 2006. Todos eles são filmes que retratam diversos personagens, uma dezena, às vezes mais. Aqui são, sei lá, umas duas dezenas.
A idéia da trama, segundo informam os créditos iniciais, é do próprio Altman e de Bob Balaban, um sujeito que dirige, produz, escreve e atua; trabalha como ator em Gosford Park. A idéia é um brilho, o roteiro de Julian Fellowes desenvolveu com imenso talento a trama básica, uma penca de grandes atores foi reunida sob a direção magistral de Altman – não tinha como dar errado.
Deu tudo certo demais.
Tudo muito inglês – classismo, mordomos, governantas, assassinato
A trama básica: em 1932, ou seja, no meio do período espremido entre as duas guerras mundiais que devastaram a Europa, um milionário inglês, Sir William McCordle (Michael Gambon, um ator com o perfeito physique du rôle para interpretar personagens desprezíveis) reúne, em sua propriedade no campo (foto acima), uma dúzia de convidados, para alguns dias de lautos jantares e caçadas. Cada convidado chega à propriedade, o Gosford Park do título, com um criado ou uma criada.
Acompanharemos, então, os relacionamentos das pessoas dessas duas classes sociais – pequenos ódios, pequenas intrigas, pequenas traições, pequenas trapaças, pequenas desconfianças, pequenos golpes. Tudo pequeno, tudo fútil, tudo vão – tudo marcado por uma divisão estanque de classes sociais que mais parecem as castas indianas.
Eventualmente, haverá um assassinato – como costuma acontecer nas novelas policiais, uma das muitas especialidades dos ingleses, assim como o classismo, os mordomos e as governantas, o chapéu coco, a comida insossa, a grande literatura, o grande teatro, o grande cinema.
Os marqueteiros criaram uma tagline – a frase para atrair espectadores, colocada nos cartazes do filme no mundo todo – genial: “Chá às quatro. Jantar às oito. Crime à meia-noite.” Agatha Christie seguramente teria adorado, a velha doida, diabólica.
Entre os ricos, há subdivisões
Nos créditos finais, na tradicional relação dos nomes de atores e personagens, o cast of characters, Altman foi fiel à sociedade que retrata e o dividiu em “acima das escadas” – os ricos – e “abaixo das escadas” – os criados. Há ainda, entre as duas grandes categorias, a dos “visitantes” – o inspetor e o policial.
As categorias não são monolíticas. Dentro de cada uma delas, há subdivisões. (Na foto posada, feita para a publicidade, que não é uma cena do filme, os personagens ricos.) No andar de cima, os personagens se dividem de acordo com o título de nobreza e a quantidade de dinheiro acumulada por cada um – e, como se sabe, nem sempre as duas coisas andam juntas. O dono de Gosford Park, já se disse, é Sir, cavaleiro do Reino – muito menos que o título de condessa, ostentado por Constance, a condessa de Trentham (Maggie Smith). Só que Constance está hoje empobrecida, e depende, para viver, de uma pensão paga por Sir William, que é o mais rico dos ingleses ali reunidos. Constance tentará barganhar com ele a respeito de dinheiro – assim como farão outros dos convidados, todos de bons nomes e boas famílias mas desprovidos de meios suficientes para manter o estilo de vida inerente à sua condição social.
Entre os convidados de bons nomes e diferentes contas bancárias, há dois que não são bem daquele meio: Ivor Nortello (Jeremy Northam), primo distante de Sir Michael, ator de cinema, admirado por todos os criados e esnobado pelos demais do andar de cinema, exatamente por trabalhar, e trabalhar nessa coisa menor (para eles) que é o cinema, diversão popular, barata; e Morris Weissman, convidado por Ivor Nortello, um produtor de cinema de Hollywood. Weissman é interpretado por Bob Balaban, o co-autor, com Altman, da idéia da trama de Gosford Park.
Weissman é assim um filme dentro do filme: pretende produzir uma aventura do detetive Charlie Chan numa propriedade rural inglesa, e conseguiu através do amigo Ivor Nortello a oportunidade de conhecer in loco como é aquela vida que pretende retratar no novo filme. Funciona também, o personagem, para dar algumas estocadas nos costumes americanos (afinal, Altman não desperdiçaria munição estocando apenas os costumes ingleses) e, mais especificamente, nos costumes de Hollywood, como já havia feito antes em O Jogador/The Player, o filme que trouxe o diretor de volta ao sucesso comercial depois de alguns anos de ostracismo, na década de 80.
Os criados dos visitantes não têm nome – são espelhos do patrão
Assim como no andar de cima há subdivisões de categoria social, também as há no andar de baixo. E como.
Entre a criadagem (reunida para a foto promocional – não é uma cena do filme), há a tradicional pirâmide: no topo, o mordomo, Jennings (um dos últimos papéis de Alan Bates, ator importante), com aquela empáfia, aquele formalismo que, no seu caso, esconde um sério problema. Abaixo dele, vem a governanta, Mrs. Wilson (Helen Mirren, extraordinária num elenco extraordinário), e, abaixo dela, a chefe de cozinha, Mrs. Croft (Eileen Atkins, outra grande e veterana atriz inglesa). Em posição um pouquinho abaixo de Mrs. Croft, há os diversos criados e a criada mais experiente, Elsie (a fantástica e bela Emily Watson).
Já os criados dos visitantes não têm nomes, enquanto permanecerem ali em Gosford Park: serão conhecidos pelos nomes dos patrões a que servem, e sua importância será equivalente à dos patrões. Assim, o segundo lugar mais importante na ampla mesa de jantar da área da criadagem será ocupada pela criada da condessa – a cabeceira pertence ao mordomo. Robert Parks (interpretado por um absolutamente jovem Clive Owen, muito antes de virar grande astro), por exemplo, não será tratado como Robert, ou Parks, e sim como Mr. Stockbridge, já que é criado de Raymond Stockbridge (Charles Dance), que por sua vez é casado com Louisa (Geraldine Somerville), irmã da dona da casa, Sylvia McCordle.
Sylvia, a mulher de Sir William e mãe da garota Isobel (Camilla Rutherford), é interpretada pela grande Kristin Scott Thomas. Tudo em Kristin Scott Thomas é fascinante, até mesmo o fato de que, nesse filme realizado em 2001, ela parece mais velha e menos bela que em diversos bons filmes que faria depois – como Arsène Lupin, de 2004, e Há Tanto Tempo que Te Amo/Il y a longtemps que je t’aime, de 2008. Está mais velha e menos bela para adaptar-se ao papel, grande atriz que é. Sylvia merece o marido que tem, que por sua vez também merece a víbora com quem se casou. Um homem desprezível, uma víbora. Os dois, como costumo dizer, se-merecem-se.
Entre as dezenas de personagens, poucos são simpáticos
Na verdade, não é muito fácil, no meio daquelas duas dezenas de personagens, achar alguém simpático, boa gente, bom caráter. Como em Short Cuts, Altman lida com personagens desagradáveis, antipáticos, ou abertamente nojentos, asquerosos. Tanto no andar de cima quanto no de baixo. São poucos os que merecem a simpatia do espectador.
Uma delas é Mabel Nesbitt (Claudie Blakley), uma mocinha simples, um tanto tímida, bastante deslocada no meio de tanta gente esnobe e desprezível. Sofre muito, a coitada: o marido, Freddie Nesbitt (James Wilby), casou com ela por dinheiro, mas o dinheiro deixado pelo pai dela era menor do que ele imaginava, acabou rápido, e o imbecil hoje morre de vergonha da mulher que não tem criada e possui poucos vestidos para se apresentar nos salões.
Assim como Mabel, atrai a simpatia do espectador a jovem escocesa Mary Macearchran (Kelly MacDonald, ótima), criada ainda pouco treinada, sem experiência, que foi contratada pela pavorosa Constance, a condessa de Trentham, exatamente por isso, por ser barata.
Quem de cara saca isso, que Mary foi contratada pela condessa porque é mão de obra barata, é a experiente criada Elsie, ao conversar com a jovem. As duas ficarão quase amigas. Elsie é uma figura complexa, interessante, fascinante mesmo. Como é bela, ela usa a cama para pular o abismo social, mas tem plena consciência dele, o tempo todo. Lamenta o fato de que os criados estão sempre falando sobre a vida dos patrões – para que perder tempo com a vida dos outros, perto das quais jamais chegarão?, ela questiona.
Pelas graças que obteve na vida em função da beleza e de seu uso, Elsie se tornou algo inaceitável para um membro da criadagem: é revoltada. A governante, Mrs. Wilson, jamais a perdoará por isso.
“Como você agüenta essas pessoas?”
Algo correspondente a Elsie no andar de cima é Ivor Novello, o ator de cinema (na foto, com Mabel Nesbitt-Claudie Blakley). É aceito pelas outras pessoas – mas com reservas. Está no andar de cima, mas não é exatamente do meio, embora primo distante, como já disse, do dono da casa. Só que, ao contrário de Elsie, que exprime revolta, desconforto, desassossego com a situação toda, Ivor Novello se conforma. Ainda não se passou meia hora de filme quando há um brilhante diálogo entre ele e seu amigo Weissman, o produtor americano. Diz o americano, chocado com o esnobismo, a futilidade das pessoas da terra: “Como você agüenta essas pessoas?” Ao que Novello, tocando uma canção ao piano, para entreter o grupo, responde:
– “Você se esquece de que eu ganho a vida interpretando pessoas como essas.”
Altman, Bob Balaban e o roteirista James Fellowes farão uma fina ironia nas letrinhas miúdas quase ao final dos créditos finais. Lá aparece uma afirmação deste tipo (reproduzo o conteúdo; não copiei palavra por palavra): “Ao que se sabe, Ivor Novello jamais compareceu a uma festa em Gosford Park, até porque Gosford Park é fictício.”
Ivor Novello, personagem de ficção do filme, existiu na vida real – não sabia disso, não tinha prestado atenção a esse detalhe pequeno e saboroso. Os autores usaram o nome real de um ator inglês de sucesso naquele início dos anos 30.
Inglês, não – galês. Aprendo agora no iMDB: Ivor Novello, compositor, cantor, dramaturgo, escritor, nasceu em Cardiff, País de Gales, em 1893, morreu em Londres, em 1951. Em 1932, ano em que se passa a ação de Gosford Park, foi o protagonista de um filme chamado The Lodger. Em Gosford Park, esse filme é citado algumas vezes; gente da criadagem assistiu, adorou.
Delícia de piada interna não tão interna assim.
Altman destroça tudo que passa à sua frente – com bom humor
Falta falar do outro personagem que chega a Gosford Park com Ivor Novello e o produtor americano Morris Weissman, um jovem chamado Henry Denton, interpretado por Ryan Phillippe. Mas sobre ele é melhor não falar nada, para não haver spoiler.
E, finalmente, há o Inspetor Thompson, interpretado pelo grande, em todos os sentidos, Stephen Fry. O Inspetor Thompson (de pé, à direita) surgirá lá pelo meio da ação, ou pouco depois da metade, quando se dá o assassinato de que fala o título brasileiro do filme. Uma figuraça.
São muitos os filmes em que aparecem detetives, inspetores da polícia inglesa que acabam roubando a cena por serem engraçados, divertidos. O inspetor de Disque M para Matar é assim, e Hitchcock usaria outro inspetor mais hilariante ainda no seu penúltimo filme, Frenesi, de 1972, passado e feito em Londres, num retorno do mestre às suas origens.
Os dois personagens do velho Hitch, no entanto, são bons de serviço. O Inspetor Thompson criado pelo trio Altman-Balaban- Fellowes é um completo idiota, coitadinho. Julga-se o maior, mas é um tremendo babaca – e reprime o policial que o acompanha, que talvez pudesse juntar as pistas que levariam ao criminoso. Se depender do Inspetor Thompson, vai ser difícil identificar o assassino.
E essa é mais uma grande sacada do filme – um filme todo cheio de sacadas, algumas grandes, outras que são pequenos detalhes, como, por exemplo, o fato de que o trapalhão inspetor jamais conseguirá proferir todas as sílabas de seu próprio nome.
Altman estava com sua iconosclatia afiadíssima, quando fez Gosford Park. Destroça tudo o que vê pela frente – mas com bom humor.
Um grande filme, para ver, rever, rever de novo.
27/02/25
Alcatraz: fuga impossível, Escape from Alcatraz, 1979, Don Siegel
Tarantino pp. 305-318
Crítica | Alcatraz – Fuga Impossível por Mister Charles 28 de março de 2018
Frank Morris (Clint Eastwood) foi um criminoso que alcançou a fama através de suas fugas de presídios; ele passou por diversos, até que foi mandado para a prisão de Alcatraz, localizada em uma ilha de mesmo nome que se encontra na bacia de São Francisco. E é neste contexto relativamente simples que este Alcatraz – Fuga Impossível se passa: na estadia de Morris na aparentemente infalível prisão.
Alcatraz – Fuga Impossível é um filme mais preocupado em colocar seus personagens em situações que deixem o espectador na beira da poltrona do que em explicar porque exatamente estes personagens estão vivenciando tais situações. Dito isto, o roteiro de Richard Tuggle baseado no livro de J. Campbell Bruce fornece pouca coisa (ou quase nada) a respeito da personalidade de seus personagens para o público, o que é algo muito evidente – por exemplo, basta apenas ver ao filme e tentar responder as seguintes perguntas sobre o protagonista: porque Morris foi preso? Porque ele quer fugir, para voltar à sua rotina de bandido ou voltar para alguém que lhe espera? E quem é Frank Morris, exatamente?
Assim, a única característica que o roteirista faz questão que nós saibamos a respeito de Morris é a de seu Q.I. elevado – mas, evidentemente, apenas porque isto está intimamente relacionado com o desenrolar de toda a trama do filme. Da mesma forma, a narrativa pouco investe em relacionamentos entre personagens que fujam do grande foco do filme (a tentativa de escapar da prisão), e, quando o faz, é meramente para desviar um pouco a atenção da plateia de toda a esquematização por trás desta tentativa de fuga.
Mas este vácuo na personalidade dos personagens pouco afeta no grande objetivo desta obra: promover uma experiência tensa e envolvente para o espectador – e, neste aspecto, o trabalho do diretor Don Siegel é fabuloso. Se na primeira metade do longa o cineasta (junto de seu roteirista) é hábil ao estabelecer a rotina da prisão e demonstrar para nós o funcionamento da mesma, é na metade final que Alcatraz atinge seu auge. Seja pelas improvisações e estratégias de Morris que fascinam, seja pelas inúmeras situações que promovem desconforto e inquietação, Siegel garante que seu público não pisque da metade da projeção em diante, graças à atmosfera tensa e sufocante que constrói.
Mas o cineasta não estabelece o suspense apenas com o ritmo ágil e envolvente que fornece ao seu trabalho, mas também ao fazer uso de recursos sonoros e visuais para a construção da atmosfera. Veja como ele é hábil ao usar os próprios sons do ambiente (a cena na serralheria ilustra muito bem isto) e uma trilha sonora sutil e por vezes acanhada; da mesma forma, a ausência de qualquer som também é muito bem utilizada pelo diretor, tornando o silêncio um aliado (ou inimigo) poderosíssimo dos personagens. Também, como recurso visual, o design de produção de Allen E. Smith é bem utilizado por Siegel e se mostra fundamental não apenas na composição de ambientes angustiantes, claustrofóbicos e pequenos – vide as minúsculas celas dos prisioneiros e o estreito corredor entre as paredes que separam internamente umas celas das outras –, mas também ao estabelecer uma lógica visual coerente para o histórico presídio.
Assim, se o roteiro pouco oferece para a personalidade do personagem principal, a escalação de Clint Eastwood não podia ser mais certeira, já que o ator tem uma presença forte e marcante, bem como um ar de confiança em si mesmo, o que garante que Frank Morris funcione enquanto protagonista da história, de tal forma que nunca desconfiemos de que ele é capaz de arquitetar soluções para todas as circunstâncias improváveis que surgem ao longo da projeção. Também, é interessante observar a maneira quase mítica com que o ator, ao lado de seu diretor, constrói o personagem, o que foi e continua sendo fundamental para que Morris seja visto praticamente como uma lenda.
Portanto, além de ser uma experiência tensa e angustiante, o trabalho de Siegel e Eastwood (que também foram parceiros no excelente Perseguidor Implacável) se revela como sendo um filme pipoca que funciona de forma mais que eficiente, em um passatempo despretensioso que merece figurar nas listas dos filmes de prisão que merecem ser conferidos.
27/02/25
Rebelião no Presídio, Riot in Cell Block 11, 1954, Don Siegel
Em última análise, no entanto, o que faz com que Rebelião no presídio tenha a reputação que tem é muito simples: trata-se do melhor filme de prisão de todos os tempos. (Tarantino, p. 311)
Review by Mandrakegray ★★★★
"NO picture ever walloped you like this before!" (Poster Tagline)
I'm a little surprised how much I'm taken with prison films, as they tend to always hit the exact same tropes and plot points. Those with stories built around a riot are notably guilty of this. And yet the great Don Siegel's entry into this cycle of flicks sports a very progressive point of view (especially for 1954) and manages to separate itself from its cinematic brethren by putting together an amazing cast of B-film character actors to carry the weight.
"Suppose we blast a hole in the block...only inmates will get killed."
Whether we're talking about 1937's "San Quentin", 1947's "Brute Force", 1969's underrated "Riot", 1979's "Escape from Alcatraz", 1980's "Brubaker", or even 1994's beloved "The Shawshank Redemption", prison pics are typically star-driven efforts. Not so here, and that's one of the qualities I really admire about this movie. Neville Brand, Emile Meyer, Frank Faylen and Whit Bissell equate to the most well-known names, and the work across the board by the entire cast is pitch-perfect. Brand (in one of his very best performances) plays James Dunn, a charismatic prisoner who guides his fellow inmates into a violent uprising aimed at seeking better conditions. With guards taken as hostages, the stand-off with authorities will take its toll on prisoners and administration officials alike...especially after politicians get involved.
"We're going to ask for changes just like they did in the other prison. If they don't give it to us, we'll make them a present of one dead guard!"
Meyer is first-class as the stoic Prison Warder who possesses a liberal world-view, long arguing with the Governor and higher ups at the State Capitol for the need of improved conditions. The flick's progressive bent extends to the cast of characters, as there's also a sympathetic gay character included, which is certainly not the norm for the era. (To be fair, the character is largely derided by the main group of prisoners...although not in a way one wouldn't see as believable). The film is charged with social commentary throughout, including the effective conclusion (which will likely satisfy viewers of all points of view). Outside of the fine work from the cast, the movie certainly benefits from being filmed at Folsom State Prison, with ominous static shots of the entire length of the two-floor cell block a recurring and effective image. Siegel even utilized actual guards and inmates as extras and technical advisers.
"You feel the savage frenzy of 4000 caged humans! You see the horror of the wolf pack on a vengeance kick!" (Advertising quotes)
Made for under $300,000 and shot in just 16 days, it proved to be a big box office hit in its day. I can see why. It effectively pushes buttons while providing white-knuckle intensity. The film's considerable reputation is more than deserved. Recommended. Letterboxd
28/02/25
Palíndromos, Palindromes, 2004, Todd Solondz
Ellen Barkin (Sempre repórter, Lillian Ross, tradução de Jayme da Costa Pinto, p. 318, Carambaia, 2024)
Review by Jeremy Snow ★★★★
Bertholt Brecht wrote about the alienation effect, a theatrical technique that prevents the audience from losing itself passively within a text or that prevents viewers from becoming too emotionally invested in an actor’s portrayal of a character. This technique detaches us from any possibility of feeling entertained or aesthetically pleased so that we can assume the role of critically conscious observer. According to Brecht, art should not induce us to feel blindly, but to think critically; we should not be entertained or patronized but intellectually challenged. Keeping this technique in mind, it seems to fit comfortably with Solondz's filmography. From Welcome to the Dollhouse, with the endearingly relatable underdog Dawn Wiener, to the morally questionable characters of Happiness to the thoroughly idiotic figures of Storytelling, Solondz's ouevre has grown progressively more cynical, more discomfiting and more alienating. In his 2004 offering, Palindromes, Solondz employs the alienation effect in multiple ways to challenge viewers to look at culturally divisive issues, the characters, and ultimately ourselves, palindromically, from opposing sides.
Solondz generates alienation by disclosing and making obvious the manipulations, contrivances and fictional qualities of the medium, forcing viewers into an analytical frame of mind that serves to disabuse them of the notion that they are watching a separately compartmentalized narrative. The alienation effect shatters the illusion that what we are watching is anything real, and in this way, viewers cannot take style or content for granted. What makes Palindromes so startling and confusing on first viewing is that the protagonist, Aviva, is played by many different actors who are of different ages, sizes, races and genders. Solondz mentions that he felt inspired to try this casting of multiple players for a single part after contemplating television shows that sometimes change actors as the series progresses and then go on with production as if nothing at all had changed. For the most part, his experiment works, and somehow adds to the film’s poignancy and twisted charm. Each sudden change of actor reminds us that we are watching a constructed work of fiction, and it disconnects us from the character by insistently refusing to allow us to become too attached. Before we can emotionally invest ourselves in Aviva’s experiences, the actors are abruptly switched after each segment, and in some cases through a quick cut and edit within the very same scene. Although alienating us in one way, this strategy allows us to relate to the protagonist in a completely different way than that to which we might feel accustomed; we are forced to acknowledge and focus on internal drives, motivations and other inner characteristics rather than external appearances. The physical bodies change quite radically, but the character’s essential personality and identity does not. These switches illustrate one of the film’s key questions: to what extent do people really change as a result of their life experiences?
Another way in which Solondz uses the alienation effect occurs through the film’s examination of two incendiary topics: abortion and pedophilia, issues for which a significant number of individuals adhere to entrenched thinking. Both Aviva’s mother and Mama Sunshine, although positioned diametrically in regard to the abortion debate, are depicted as essentially the same. Underneath the surface of their seemingly happy and friendly “outward” dispositions lies something darker, and both seem quite capable of abandoning principles when it suits their personal agenda. There is a lot of cruel irony in Palindromes as both Aviva’s pro-choice parents and her pro-life surrogate mother, Mama Sunshine, exhibit hypocrisy. When Aviva’s frantic mother (Ellen Barkin) tries to coerce her daughter into having an abortion: “It’s a tumor!’ she declares. Pro-choice, then, is not really about choice at all if Aviva’s not allowed to choose for herself. Mama Sunshine is just as hypocritical, if not more so. Down in the Sunshine family basement, she is enabling and complicit as her husband and his cronies plot the murder of a doctor that performs abortions. Pro-life, then, is not really about life at all if they’re planning an assassination. Although audiences probably begin watching the film with their political opinions fixed, Solondz gives us no point of reference, no cause with which we can feel comfortable, no familiarity with the manner in which Palindromes frames the abortion “debate.”
No stranger to controversy, Solondz does something similarly alienating with the issue of pedophilia. Aviva’s cousin, Mark Wiener, is an alleged pedophile; he is genuinely unpleasant, a misanthrope with a sour, cynical disposition. It is quite possible that he is not a pedophile, but we don’t particularly care about him one way or another because of the unsympathetic portrayal. The ambiguity is enough to evoke judgment and condemnation. Another character, Bob (or Earl), a self-loathing child predator, shows us that he tries to resist his desire to sexually abuse children, that he acknowledges a moral dilemma with his behavior. He is hyper-emotional, wants to change, but Bob stays the same, and while some might want to empathize with Bob, it’s extremely difficult (and probably impossible for most) to hold back moral judgments and see him as anything other than a miscreant. Pulitzer prize winning film critic Roger Ebert presents it like this:
“Palindromes contains characters in favor of abortion and characters opposed to it, and finds fault with all of them. The film has no heroes without flaws and no villains without virtues, and that is true no matter who you think the heroes and villains are.”
Through sudden shifts to the political left or right, or riding the edge of moral relativism, Solondz's manner of alienating effects jars the audience into recognition of the instability of political and sexual identity. Not only does the alienation effect call into question the nature of the film characters’ identities and the absurdity of taking ideological sides over divisive or controversial issues, but Solondz and his alienating style make us complicit in the ugliness of it all; with so many ugly and strange happenings in the narrative, the director seems to hold up a mirror and dare us to laugh and to see ourselves in the process. I laughed my fair share during the film and I felt somewhat uncomfortable doing so. Finding humor with disturbing content such as rape and pedophilia, Solondz seemed to turn his camera on me. Bob the pedophile has some of the funniest lines in the film; in a moment of black despair he cries out, "Oh God! How many times can I be born again?” I had to evaluate and critique my sense of humor for laughing about the depiction of a child abuser. Another scene made me painfully aware of how people often perceive that cruelty is in others only, rather than in themselves. Just as Bob the pedophile spots a defiled doll and exclaims, “My God, there's some wacko fuckers about!” it made me laugh at first, then cast an inward gaze upon myself, in an uncomfortable search for my own potential for cruelty. Similarly, during my favorite scene in which the Sunshine singers gallantly perform a pop-synth rendition of “Nobody Jesus But You,” I chuckled with delight but soon my hearty amusement turned nervous and I felt uncomfortably self-conscious. I had to ask myself why I was laughing and at what. Isn't this type of brainwashing also a form of child abuse? How do I really feel about these differently-abled characters playing religious zealots, performing a campy singalong with choreography? The scene challenged me to think about myself in a way that again called into question my sense of humor: was my laughter, in any way, cruel and complicit or just innocent admiration? Either way, the result is effectually alienating. Solondz excoriates the exaggerated follies of his characters, which are, in a distressing way, our own.
By the film’s end, Aviva's mythical journey (reminiscent of Huckleberry Finn and Alice in Wonderland) comes full circle as she ends back exactly where she began—at home. After everything she has experienced, is she really a different person? Not according to Solondz’s philosophy, it seems. For all the drastic metamorphoses that Aviva undergoes, she is always recognizable as essentially the same person, her childlike innocence and motherly aspirations intact until the very last scene.
Although I appreciate Palindromes for its complexity and capacity to provoke, something about the film doesn’t sit right with me, something besides having to emotionally divest myself, something besides being forced to confront human imperfections. Solondz’s film is authoritarian and manipulative in trying to coerce us to agree with a pessimistic view of people, and any sincere effort to examine ethical questions is set-up to devolve into absurdity. In my opinion, Solondz makes some valid and incisive observations, but his conclusions about the nature of people is what leaves me feeling most alienated of all. In the world of Palindromes, there is no objective morality, only hypocrisy and absurdity. In the world of Palindromes, humans are not just limited; they're incapable of transcending their limitations. There's no learning from mistakes, no awareness of anything outside one's own warped subjectivity, no epiphanies—unless you count as an epiphany the realization that you're never going to have an epiphany. To the characters of Palindromes and probably to Solondz as well, backward and forward, it's all the same. Letterboxd
01/03/25
A glória de um covarde, The Red Badge of Courage, 1951, John Huston
Um making off em prosa do filme: (1) a história da produção cinematográfica do filme do começo ao fim. O livro “Filme” de Lillian Ross; (2) o livro “John Huston, um livro aberto” de John Huston; (3) o livro “Sempre reporter” de Lillian Ross e (a) “Dicionário de filmes” de Georges Sadoul.
Filme, Lillian Ross (Autor), Pedro Maia Soares (Tradutor), Companhia das Letras, 1ª edição-2005; John Huston, um livro aberto, John Huston, tradução de Milton Persson, pp. 202-206, LPM, 1980; Sempre repórter, Lillian Ross, tradução de Jayme da Costa Pinto, pp. 323-369, Carambaia,2024 e Dicionário de filmes, Georges Sadoul, tradução de Marcos Santarrita e Alda Porto, p. 169, LPM, 1993
Channing Pomeroy Review by Channing Pomeroy ★★★
Stephen Crane’s The Red Badge of Courage is the great American war novel, and a precursor of modernism in his inventive use of narrative tools to convey subjectivity and the thin membrane separating cowardice from courage.
John Huston intended to use cinematic tools, Matthew Brady’s camera and film noir camera moves, to convey subjectivity as Crane had, to show what it felt like to be on that battlefield, fighting fear and blinded by cannon smoke. He didn’t want to portraying a battle of North vs South, but of one soldier fighting with himself. Huston hoped to convey psychological action matching the armed conflict, and to build on the poignant irony of awarding Audie Murphy, the most decorated soldier of WWII, the metaphoric “red badge.”
The MGM’s studio bosses, used to raking it in on Ester Williams swimming pictures and technicolor musicals, thought Huston’s film had no story, no stars, and no chance at the box office. I’m also guessing they skipped 10th grade English class and never understood the book nor the “red badge” and its irony that cracks you on the skull like the riflebutt that saves the Youth from shame.
The studio recut the film taking out 12 minutes of shots they thought boring and confusing to test audiences and added a case study in superfluous tell-don’t-show voiceover.
We’ll never know if Huston’s version was a lost Ambersonian masterpiece. Huston is Hollywood’s greatest literary adaptor, but he achieved this not by clinging to the sacredness of source novels. I do think here Huston’s vaulting ambition may have o'erleapt itself.
Recommended extra credit reading: Picture by Lillian Ross, the New Yorker staff writer and doyenne of creative nonfiction. She moved to Hollywood for a year to chronicle the making of Huston’s RBoC and published an account that reads like a novel. It might be the lone instance where the making-of book is better than the film itself. Letterboxd