Policial registra B.O. em forma de poesia, e delegado refaz documento em SP
Josmar Jozino, UOL, 30/05/2024
Um caso inusitado agitou o plantão da Delegacia Seccional de Presidente Prudente (SP) na tarde de 25 de fevereiro deste ano. Um policial civil registrou um B.O. (boletim de ocorrência) em forma de poesia sobre um furto a residência no Jardim Everest.
O delegado Eduardo Iasco Pereira, chefe da equipe de plantão, desconsiderou o documento e três dias depois mandou lavrar outro boletim de ocorrência por entender que a primeira versão não seguiu o padrão da técnica de escrita policial e as normas de serviço da Polícia Judiciária.
A vítima do furto foi um morador da Rua Barros Silva. Um ladrão entrou na residência dele, durante a madrugada, e levou uma lavadora de alta pressão, uma tampa de tanque de combustível, 20 litros de gasolina e outros 20 litros de etanol.
Na primeira edição, criada por Alan Douglas Silva, o policial começa a registrar o documento em tom poético, narrando como se deu o furto: "Na mansidão do silêncio noturno, permeada pela penumbra que abraça os segredos da calada madrugada, o vilão de nossa trama, qual sombra furtiva, penetrou na propriedade da respeitável vítima".
E continua descrevendo o caso: "Neste ato de profanação, destemido e sorrateiro, desfez a barreira da intimidade alheia e arrebatou consigo os objetos que figuram na relação dos despojos.
O policial poeta também caprichou no segundo parágrafo ao observar a falta de equipamentos de segurança no local: "À propriedade da vítima coube servir de palco para a execução deste sórdido enredo. Na ausência de sentinelas visuais, as câmeras de monitoramento permaneceram omissas, incapazes de registrar os passos furtivos do agente do mal".
Manteve o nível poético
No terceiro parágrafo, o autor manteve o nível da poesia ao tentar explicar que o ladrão cometeu um erro na cena do crime: "Deixou sua marca indelével como um sinal no trilho do rastejar do agressor, tal o rastro de uma serpente que insinua sua presença".
O autor do boletim de ocorrência também menciona a falta de testemunhas: "Sobre o lamento do silêncio, testemunhas não surgiram para narrar o ato infame e a propriedade da vítima transformou-se, por um breve lapso temporal, em palco de desventuras e dissabores.
O policial encerra o documento criticando a insegurança: "Ao sabor do destino, este registro serve como crônica dos eventos que se desenrolam na quietude da noite, evocando uma afronta à segurança, e trazendo à tona a necessidade imperiosa de restabelecer a paz usurpada".
Nas linhas finais ele clama por justiça: "E assim, como pluma ao vento, se finda o relato, aguardando a justiça como derradeira sentença, na esperança de que a luz da verdade dissipe as trevas que encobrem este capítulo indesejado da existência da vítima".
A segunda edição do boletim de ocorrência foi digitada no dia 28 de fevereiro pelo investigador Cesar Alberto Pereira Pinto, a pedido do delegado que chefiava a equipe. O documento tem apenas quatro linhas.
O novo B.O. é curto e grosso e diz que a vítima compareceu à unidade policial, relatando quais objetos foram furtados de sua residência. O boletim afirma apenas que a ação não foi gravada por câmeras de segurança e que não havia testemunhas do fato.
A reportagem não conseguiu contato com os policiais envolvidos nos registros das ocorrências. O texto será atualizado, caso haja manifestação.
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Literatura no xilindró
Um policial civil com fumaças de escritor lavrou um B.O. em prosa poética, pena que passadista
Ruy Castro, FSP, 06/06/2024
É
uma vocação perdida num ermo do Judiciário. Reportagem de Josmar Jozino
no UOL (30/5) contou a história do policial civil Alan Douglas Silva,
da Delegacia Seccional de Presidente Prudente (SP), que há dias lavrou
um ousado B.O. em prosa poética. O delito era simples: um ladrão
arrombou uma casa, levando uma lavadora de alta pressão, uma tampa de
tanque de combustível, 20 litros de gasolina e outros tantos de etanol.
"Na mansidão do silêncio noturno", ele escreveu, "permeada pela penumbra que abraça os segredos da calada madrugada, o vilão de nossa trama, qual sombra furtiva, penetrou na propriedade. Neste ato de profanação, destemido e sorrateiro, desfez a barreira da intimidade alheia e arrebatou os objetos que figuram na relação dos despojos. Na ausência de sentinelas visuais, as câmaras de monitoramento permaneceram omissas, incapazes de registrar os passos furtivos do agente do mal.
"Deixou sua marca indelével, tal o rastro de uma serpente que insinua sua presença. Sobre o lamento do silêncio, testemunhas não surgiram para narrar o ato infame. Ao sabor do destino, este registro serve como crônica dos eventos que se desenrolam na quietude da noite. E assim, como pluma ao vento, se finda o relato, aguardando a justiça como derradeira sentença, na esperança de que a luz da verdade dissipe as trevas que encobrem este capítulo indesejado da existência da vítima."
Louvo
o esforço do policial Alan. Só lamento o seu estilo passadista, fora de
moda. Ele precisa se atualizar. Se conhecesse Oswald de Andrade, por
exemplo, teria escrito: "Só me interessa o que não é meu. A lavadora. A
tampa do tanque. 20 litros de etanol. A gasolina é a prova dos nove.
Cleptofagia".
Ou, se tivesse lido Guimarães Rosa, sairia: "Totudo. O
senhor mire e veja. O diabo não existe. É o que eu digo, se for. Existe é
o tanque de combustível, Deus esteja. Há-de-o".
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