segunda-feira, 24 de junho de 2024

A expansão do Ensino Superior no Brasil

A expansão do ensino superior no Brasil: mudanças e continuidades (1)

Dermeval Saviani (2)

Resumo:

A  expansão  do ensino  superior  no  Brasil,  iniciada  em  1808  com  os  cursos superiores criados por D. João VI, portanto, por iniciativa oficial, tiveram continuidade no  Império  com  a  criação  das  faculdades  de  direito.  Uma  mudança  aconteceu  na Primeira República quando a expansão ocorreu por meio da criação de instituições ditas livres,  portanto,  não  oficiais  sendo,  via  de  regra,  de  iniciativa  particular.  Uma  nova mudança  se  processou  a  partir  da  década  de  1930  com  a  retomada  do  protagonismo público  que  se  acentuou  nas  décadas  de  1940,  1950  e  início  dos  anos  60  por  meio  da federalização   de   instituições   estaduais   e   privadas   e   com   a   criação   de   novas universidades  federais,  entre  elas  a  Universidade  Federal  de  Goiás  instituída  em dezembro  de  1960.  Em  todo  esse  período  que  se  estendeu  até  a  Constituição  de  1988 detecta-se  uma  continuidade  representada  pela  prevalência  do  modelo  napoleônico  de universidade na organização e expansão do ensino superior no Brasil. A partir da década de  1990,num  processo  que  está  em  curso  nos  dias  atuais,emerge  nova  mudança caracterizada  pela  diversificação  das  formas  de  organização  das  instituições  de  ensino superior alterando-se o modelo de universidade na direção do modelo anglo-saxônico na versão norte-americana.
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(1) Conferência proferida no campus de Catalão da Universidade Federal de Goiás, em 16/09/2010.

(2) Professor Emérito da UNICAMP, Pesquisador Emérito do CNPq e Coordenador Geral do HISTEDBR.

Artigo recebido em setembro de 2010
Poíesis Pedagógica - V.8, N.2 ago/dez.2010;  pp.4-17
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A expansão do Ensino Superior no Brasil

Embora alguns dos colégios jesuítas no período colonial mantivessem cursos de filosofia  e  teologia,  o  que  dá  respaldo  à  tese  de  que  já  existia  ensino  superior  nessa época no Brasil, os cursos superiores propriamente ditos começaram a ser instalados no Brasil  a  partir  de1808  com  a  chegada  de  D.  João  VI.Surgiram,  então,  os  cursos  de engenharia da Academia Real da Marinha (1808) e da Academia Real Militar (1810), o Curso de Cirurgia da Bahia (1808), de Cirurgia e Anatomia do Rio de Janeiro (1808), de Medicina  (1809),  também  no  Rio  de Janeiro,  de  Economia  (1808),  de  Agricultura (1812), de Química (química industrial, geologia e mineralogia), em 1817 e o Curso de Desenho Técnico (1818). Vê-se que se tratava de cursos superiores isolados, isto é, não articulados no âmbito de universidades.

Após a independência, por decreto de D. Pedro Ide 11 de agosto de 1827, foram criados  os  Cursos  de  Direito  de  São  Paulo  e  de  Olinda  sendo  que  este  último  foi transferido para Recife em 1854. Esse dois cursos vieram a constituir, respectivamente, a  Faculdade  de  Direito  do  largo  de  São  Francisco,  em  São  Paulo,  e  a  Faculdade  de Direito  do  Recife.Em  1934,  com  a  fundação  da  Universidade  de  São  Paulo,  a Faculdade de  Direito  do  Largo de  São Francisco  a  ela  foi  incorporada o  mesmo  tendo ocorrido  com  a  Faculdade de  Direito  do  Recife  que  se  incorporou  à  Universidade Federal de Pernambuco, criada em 1946.

De  modo  geral  aos  cursos  criados  por  D.  João  VI  e  às  duas  mencionadas faculdades  se  resume  o  ensino  superior  no  Brasil  até  o  final  do Império.  Duas características  são comuns a todos eles: trata-se de cursos ou faculdades isoladas e  são todos eles públicos mantidos, portanto, pelo Estado.

Mas já  no final do império ganhou força o movimento pela desoficialização do ensino, que era uma bandeira dos positivistas, e pela defesa da liberdade do ensino, uma bandeira  dos  liberais,  à  qual  se  associou  o  “ensino  livre”,  proclamado  no  decreto  da chamada  Reforma  Leôncio  de  Carvalho, de  1879.  Com  o  advento da  República,  sob influência  do  positivismo  essa  tendência  foi  ganhando  espaço,  o que  se  evidenciou  na visão mais radical como a de Júlio de Castilhos no Rio Grande do Sul, cuja Constituição suprimiu  o  ensino  oficial  decretando  a  liberdade  das  profissões.  E  mesmo  o  governo federal, ainda que sob a influência mais moderada de Benjamin Constant, não deixou de advogar as faculdades livres.

Vemos  assim  que  nas  primeiras  décadas  republicanas  arrefeceu-se  a  iniciativa oficial e surgiram  faculdades e também esboços de universidades no âmbito particular. Uma delas foia Universidade do Paraná que, fundada em 1912, iniciou seus cursos em 1913 e em 1920, por indução do governo federal, foi desativada e passou a funcionar na forma de faculdades isoladas (Direito e Engenharia, reconhecidas em 1920 e Medicina, reconhecida  em  1922) até  ser  reconstituída em  1946 e  federalizada  em  1951,  dando origem à atual Universidade Federal do Paraná.

Essa  “Universidade  do  Paraná”,  fundada  em  1912  pertence  ao  grupo  que  Luiz Antonio Cunha denominou de “universidades passageiras” (CUNHA, 1986, p. 198-211) no qual  se   incluem,  também,  a  Universidade  de  Manaus,  criada  em  1909,  e  a Universidade   de   São   Paulo,   fundada   em   1911.   A   de   Manaus,   surgida   com   a prosperidade  da  borracha  foi  dissolvida  em  1926  com  a  crise  econômica  representada pelo  esgotamento  do  ciclo  da  borracha.  Das  faculdades  que  a  integravam  sobreviveu apenas  a  Faculdade  de  Direito,  que  foi  federalizada  em  1949  e  depois  incorporada  à Universidade  do  Amazonas,  criada  por  lei  federal  de  1962  e  instalada  em  1965.  A  de São  Paulo cessou  suas  atividades  por  volta  de  1917  não  persistindo  nenhuma  de  suas faculdades.

Já a Universidade Federal do Rio Grande do Sul remonta à Escola de Farmácia e Química,  criada  em  1895 e  à Escola  de  Engenharia,  fundada  em  1896.  A  essas  se seguiram em  1900as  faculdades  de  medicina e  de  direito.  Em  1934  essas  escolas, acrescidas das Faculdades de Agronomia e Veterinária, de Filosofia, Ciências e Letras e do Instituto de Belas Artes,constituíram a Universidade de Porto Alegre transformada, em 1947, na Universidade do Rio Grande do Sul que foi federalizada em 1950.

A de Minas Gerais surgiu em 1927 por iniciativa privada contando com subsídio do   governo   estadual,   vindo   a   ser   federalizada   em   1949   dando   origem   à   atual Universidade Federal de Minas Gerais.

A  Universidade  da  Bahia  foi  constituída  em  1946  incorporando  a  Escola  de Cirurgia,  criada  em  1808,  Farmácia  (1832),  Odontologia  (1864),  Academia  de  Belas Artes (1877), Direito (1891) e Politécnica (1896), acrescidas da Faculdade de Filosofia, Ciências  e  Letras  criada  em  1941.  Em  1950  ela foi  federalizada  transformando-se  na atual Universidade Federal da Bahia.

A  Universidade  do  Rio  de  Janeiro  foi  constituída  em  1920  pela  reunião  da Faculdade de Medicina originária da Academia de Medicina e Cirurgia fundada por D. João VI em 1808, da Escola Politécnica, cuja origem remonta a1792com a fundação da Real  Academia  de  Artilharia,  Fortificação  e  Desenho,e  da  Faculdade Nacional de Direito,   criada   em   1882   e   restabelecida   em   1891   às   quais   foram   acrescidas posteriormente  a  Faculdade  Nacional  de Belas  Artes  e  a  Faculdade  Nacional  de Filosofia. Em 1937 ela passou a se chamar Universidade do Brasil e em 1965 recebeu o nome atual de Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Foi  após  a  Revolução  de  1930  que  se  retomou  o  protagonismo  do  Estado nacional  naeducação  com  a  criação,  já  em  outubro  desse  ano,  do  Ministério  da Educação  e  Saúde  Pública  e  com  os decretos  da chamada  Reforma  Francisco  Campos em  1931,  entre  os  quais  se  situam  o  que  estabeleceu  o  Estatutodas  Universidades Brasileiras  e  o que  reformou a  Universidade do Rio  de Janeiro.  Na  sequência  ocorreu, em 1934, a fundação da Universidade de São Paulo, mantida pelo governo do estado de São  Paulo,  e em  1935,  a  criação da  Universidade  do  Distrito  Federal,  mantida  pelo governo da cidade do Rio de Janeiro, então capital do país.A partir do final da década de 1940 e ao longo da década de 1950 vão ocorrer as federalizações estendendo-se pelasdécadasde 1960 e 1970 o processo de criação das universidades federais, de modo geral nas capitais dos estados federados.

Esboçando  uma  visão  de  conjunto  podemos  dizer  que  no  Brasil  o  ensino superiorteveorigem a partir de 1808 na forma dos cursos avulsos criados por iniciativa de D. João VI, sendo somente no primeiro quartel do século XX que aparecem algumas iniciativas,  ainda  isoladas  e  pouco  exitosas  de  organização  de  universidades.  Estas  só começaram a se caracterizar mais claramente a partir do Decreto 19.851, de 11 de abril de 1931 que estabeleceu o Estatuto das Universidades Brasileiras, seguido do Decreto n. 19.852,  da  mesma  data,  dispondo  sobre  a  organização  da  Universidade  do  Rio  de Janeiro. Nesse contexto foi criada, em 1934, a Universidade de São Paulo e, em 1935, a Universidade  do  Distrito  Federal,  por  iniciativa  de  Anísio  Teixeira,  que  teve  duraçãoefêmera, tendo sido extinta pelo Decreto n. 1063 de 20 de janeiro de 1939, ocasião em que seus cursos foram incorporados à Universidade do Brasil que havia sido organizada pela Lei n. 452, de 5 de julho de 1937 por iniciativa do ministro da educação, Gustavo Capanema.  Ainda  na  década  de  1930  se  organizava  o  movimento  estudantil  com  a criação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1938. Em 1941 surgiria a PUC do Rio  de Janeiro  e,  em 1946,  a  PUC  de  São Paulo. Na  década de 1950  a  rede  federal  se amplia especialmente com a “federalização” de instituições estaduais e privadas.

Obviamente, se o próprio ensino secundário, como indicava o Decreto-lei 4244, de 9 de abril de 1942, tinha como finalidade “formar as individualidades condutoras”, o acesso  ao  ensino  superior  estava  restrito  às  elites.  No  entanto,  com o desenvolvimento da  sociedade  brasileira  em  direção  ao  padrão  urbano-industrial,  as  pressões  populares subverteram aquela finalidade do ensino secundário, ampliando-se a demanda por vagas no ensino superior que ganhava grande visibilidade com a figura dos excedentes, isto é, os jovens que obtinham a nota mínima de aprovação nos exames vestibulares,mas que não  podiam ingressar  no ensino superior por falta de vagas. A  visibilidade decorria  do fato  de que,  tendo  sido  aprovados,  esses  jovens  consideravam  que  haviam  adquirido o direito  de  cursar  a  universidade  e  montavam  acampamentos  à  frente  dos  prédios  das instituições, exigindo a abertura de vagas para a efetivação  de suas matrículas. Junto a essa  pressão  pelo  acesso  à  universidade  por  parte  dos  jovens  das  camadas  médias  em ascensão, o início dos anos 60 assistiu a uma crescente mobilização, sob a liderança da UNE,  pela  reforma  universitária   inserida,  sob  a  égide  da  ideologia  nacionalista-desenvolvimentista,  no  âmbito  das chamadas  “reformas de base”.  Com  isso,  a  questão da  universidade  assumia  uma  dimensão  de  ordem  social  e  política  bem  mais  ampla, sendo  um  dos  componentes  da  crise  que  desembocou  na  queda  do  governo  João Goulart, com a consequente instalação do regime militar.

O  advento  do  golpe  militar   em  1964,  por  um  lado,  procurou  cercear  as manifestações  transformadoras  mas,  por  outro,  provocou  no  movimento  estudantil  o aguçamento dos  mecanismos  de  pressão  pela  reforma universitária.  O  movimento  pela reforma ganhou  as  ruas  impulsionado  pela  bandeira  “mais  verbas  e  mais  vagas”  e culminou com a ocupação, em 1968, das principais universidades pelos estudantes que instalaram comissões paritárias e cursos-piloto, ficando no controle das escolas durante o mês de julho e todo o segundo semestre. Nesse contexto resultou necessário efetuar o ajuste do sistema de ensino à nova situação decorrente do golpe militar.

O  ajuste  foi  feito  pela  Lei  n. 5.540/68,  aprovada  em  28  de  novembro  de 1968, que reformulou o ensino superior e pela Lei n. 5.692/71, de 11 de agosto de 1971, que alterou  os  ensinos  primário  e  médio  modificando  sua  denominação  para  ensino  de primeiro  e  de  segundo  grau.  Com  isso os  dispositivos  da  Lei  de  Diretrizes  e  Bases  da Educação    Nacional    (Lei    4.024/61)    correspondentes    às    bases    da    educação consubstanciadas  na estrutura do ensino primário, médio e superior foram revogados e substituídos pelas duas novas leis, permanecendo em vigor os primeiros títulos da LDB de  1961  (Dos  fins  da  educação,  do  direito  à  educação,  da  liberdade  do  ensino,  da administração  do  ensino  e  dos  sistemas  de  ensino)  que  enunciavam  as  diretrizes  da educação nacional.

O  projeto  de  reforma  universitária  (Lei  n.5.540/68)  procurou  responder  a  duas demandas contraditórias: de um lado, a demanda dos jovens estudantes ou postulantes a estudantes  universitários  e  dos  professores  que  reivindicavam  a  abolição  da  cátedra,  a autonomia  universitária  e  mais  verbas  e  mais  vagas  para  desenvolver  pesquisas  e ampliar o raio de ação da universidade; de outro lado, a demanda dos grupos ligados ao regime instalado com o golpe militar  que buscavam vincular mais fortemente o ensino superior  aos  mecanismos  de  mercado  e  ao  projeto  político  de  modernização  em consonância com os requerimentos do capitalismo internacional.

O  Grupo  de  Trabalho  da  Reforma  Universitária  buscou  atender  à  primeira demanda proclamando  a  indissociabilidade  entre  ensino  e pesquisa,  abolindo  a  cátedra que  foi  substituída pelo departamento,  elegendo  a  instituição universitária  como  forma preferencial de organização do ensino superior e consagrando a autonomia universitária cujas  características  e  atribuições  foram  definidas  e  especificadas.  De  outro  lado, procurou  atender  à  segunda  demanda  instituindo o  regime  de  créditos,  a  matrícula por disciplina, os cursos de curta duração, a organização fundacional e a racionalização da estrutura e funcionamento

.Aprovada a lei pelo Congresso, os dispositivos decorrentes da primeira demanda que não se coadunavam com os interesses do regime instaurado com o golpe de 64, em especial  aqueles  que  especificavam  as  atribuições  relativas  ao  exercício  da  autonomia universitária,  foram  vetados pelo presidente  da  República.  E, por  meio do  Decreto-Lei 464/69, ajustou-se melhor a implantação da reforma aos desígnios do regime.

Por  outro  lado,  na  prática,  a  expansão  do  ensino  superior  reivindicada  pelos jovens postulantes à universidade se deu pela abertura indiscriminada, via autorizações do  Conselho  Federal  de Educação, de  escolas  isoladas privadas,  contrariando  não  só o teor  das  demandas  estudantis,mas  o  próprio  texto  aprovado.  Com  efeito,  por  esse caminho inverteu-se o enunciado do artigo segundo da Lei 5.540 que estabelecia como regra a organização universitária admitindo, apenas como exceção, os estabelecimentos isolados; de fato, estes se converteram na regra da expansão do ensino superior.

A Constituição de 1988 incorporou várias das reivindicações relativas ao ensino superior.  Consagrou  a  autonomia  universitária,  estabeleceu  a  indissociabilidade  entre ensino   pesquisa   e   extensão,   garantiu   a   gratuidade   nos   estabelecimentos   oficiais, assegurou o ingresso por concurso público e  o regime  jurídico único. Nesse contexto a demanda  dos  dirigentes  de  instituições  de  ensino  superior  públicas  e  de  seu  corpo docente  encaminhou-se  na  direção  de  uma  dotação  orçamentária  que  viabilizasse  o exercício  pleno  da  autonomia  e,  da  parte dos  alunos  e  da  sociedade,  de  modo  geral,  o que se passou a reivindicar foi a expansão das vagas das universidades públicas.

Em  síntese,  podemos considerar que,  no  Brasil,  desde  a  criação  dos  cursos superiores por D. João VI a partir de 1808 e, especialmente, com a instituição do regime universitário por ocasião da reforma Francisco Campos em 1931, prevaleceu o modelo napoleônico, reiterado sucessivamente,inclusive na reforma instituída pela Lei n. 5.540 de 28 de novembro de 1968.

 Com efeito, podemos identificar três modelos clássicos de universidade, a saber, o modelo napoleônico, o modelo anglo-saxônico e o modelo prussiano. Este último teve sua  configuração  definida  com  a  fundação  da  Universidade  de  Berlim  por  Humboldt, em 1810. A origem desses modelos se assenta  nos elementos básicos constitutivos das universidades   contemporâneas:   o   Estado,   a   sociedade   civil   e   a   autonomia   da comunidade  interna  à  instituição.  Esses  elementos  nunca  aparecem  de  forma  isolada. Conforme   prevaleça   um   ou   outro,   tem-se   um   diferente   modelo   institucional.   A prevalência  do  Estado  dá  origem  ao  modelo  napoleônico;  prevalecendo  a  sociedade civil tem-se o  modelo  anglo-saxônico;  e  sobre  a autonomia  da  comunidade  acadêmica se funda o modelo prussiano (PIZZITOLA. In: DE VIVO E GENOVESI, 1986, p. 146).

No Brasil, apesar da tendência à privatização que se esboçou no final do império e  ao  longo  da  Primeira  República,  até  a  Constituição  de 1988  prevaleceu  o  modelo napoleônico caracterizado pela forte presença do Estado na organização e regulação do ensino superior, em especial no caso das universidades.

A partir da década de 1980 começou a se manifestar uma tendência a alterar esse modelo,  operando-se  um  deslocamento  no  padrão  de  ensino  superior  no  Brasil.  Esse deslocamento tem origem na distinção entre universidades de pesquisa e universidades de ensino introduzida em 1986 pelo GERES (Grupo Executivo para a Reformulação do Ensino Superior) criado pelo então Ministro da Educação, Marco Maciel. Essa distinção veio,  desde  aí,  frequentando  documentos  sobre  o  ensino  superior  mas,  na  gestão  de Paulo  Renato  Souza  à  frente  do  MEC,  foi  assumida  como  idéia-força  da política  a  ser implementada   relativamente   ao   ensino   superior.   Tal   orientação   acabou   sendo consagrada  no  Decreto  2.306,  de  19  de  agosto  de  1997  que  regulamentou  o  sistema federal  de  ensino  em  consonância  com  a  nova  LDB.  Esse  decreto  introduz,  na classificação   acadêmica   das   instituições   de   ensino   superior,   a   distinção   entre universidades ecentros  universitários.Em  verdade,  os  centros  universitários  são  um eufemismo das universidades de ensino, isto é, uma universidade de segunda classe, que não  necessita  desenvolver  pesquisa,  enquanto  alternativa  para  viabilizar  a  expansão,  e, por consequência, a "democratização" da universidade a baixo custo, em contraposição a um pequeno número de centros de excelência, isto é, as universidades de pesquisa que concentrariam  o  grosso  dos  investimentos  públicos,  acentuando  o  seu  caráter  elitista. Por  esse  caminho  o  modelo  napoleônico,  que  marcou  fortemente  a  organização  da universidade  no  Brasil,  vem  sendo  reajustado  pela  incorporação  de  elementos  do modelo anglo-saxônico em sua versão norte-americana.Nesse modelo a prevalência da sociedade  civil  enseja  um  maior  estreitamento  dos  laços  da  universidade  com  as demandas do mercado. 

É  essa  a  situação que  estamos  vivendo  hoje  quando  vicejam  os  mais  diferentes tipos  de  instituições  universitárias oferecendo  cursos  os mais  variados  em  estreita simbiose  com  os  mecanismos  de  mercado.  Aprofunda-se,  assim,  a  tendência  a  tratar  a educação  superior  como mercadoria  entregue  aos  cuidados  de  empresas  de  ensino  que recorrem a capitais internacionais com ações negociadas na Bolsa de Valores.

Nesse novo contexto  a  via  aberta  após a  entrada  em  vigor  da  Lei  5.540/68 que estimulou a instalação de instituições  isoladas privadas  de ensino superior mediante as autorizações do  Conselho  Federal de  Educação,  se  consolida com o  surgimento  de um conjunto cada vez mais amplo e diversificado de universidades privadas entre as quais se  incluem  as  chamadas  “universidades  corporativas”.  Estas  são  organizadas  pelas próprias  empresas acreditando  “fervorosamente  que  a  chave  do  seu sucesso  e  de  suas vantagens  competitivas  no  mercado  está  em  oferecer  aos  funcionários  maior  acesso  à atualização de seu conhecimento e de suas qualificações” (MEISTER, 1999, p. xxviii). 

Mas tais  instituições não se limitam aos próprios funcionários. Seu público-alvo é bem mais  amplo.  Elas  visam  treinar  seus  clientes  criando  “departamentos  de  educação  do consumidor”  por   meio   dos  quais todos,   revendedores,  distribuidores,   atacadistas, fornecedores e clientes são levados a conhecer a “filosofia da empresa” e colocá-la em prática  no  mercado.  E  conforme  a  previsão  de  César  Souza,  vice-presidente  da Odebrecht of America sediada em Washington, na Apresentação da edição brasileira do livro de  Jeanne  C.  Meister,  “Educação  corporativa”,  as  universidades  corporativas  que em  1999  eram  mil  e  oitocentas  nos  Estados  Unidos,  crescendo  no  mesmo  ritmo ultrapassariam,  em  2010,  as  cerca  de  quatro  mil  instituições acadêmicas de  ensino superior existentes naquele país. No Brasil as informações disponíveis dão conta de que essa  modalidade  de  educação  universitária  chegou  no  final  da  década  de  1990.  Se  em 1999 as universidades corporativas no Brasil não chegaram a dez, em 2004 seu número já se aproximava de quinhentos.

Conclusão:

Tentemos,   então,   identificar   as   mudanças   e continuidades   na   história   da expansão do ensino superior no Brasil.

A referida expansão, iniciada em 1808 com os cursos superiores criados por D. João VI, portanto, por iniciativa oficial, tiveram continuidade no Império com a criação das  faculdadesde  direito.  Uma  mudança  aconteceu na  Primeira  República  quando  a expansão ocorreu por meio da criação de instituições ditas livres, portanto, não oficiais sendo, via de regra, de iniciativa particular. Uma nova mudança se processou a partir da década de 1930 coma retomada do protagonismo público que se acentuou nas décadas de 1940, 1950 e início dos anos 60 por meio da federalização de instituições estaduais e privadas  e  com  a  criação  de  novas  universidades  federais,  entre  elas  a  Universidade Federal  de  Goiás instituída em  dezembro  de  1960. Em  todo  esse  período  que  se estendeuaté  a  Constituição  de  1988  detecta-se  uma  continuidade  representada  pela prevalência  do  modelo  napoleônico  de  universidade  na  organização  e  expansão  do ensino superior no Brasil. A partir da década de 1990 num processo que está em curso nos  dias  atuais  emerge  nova  mudança  caracterizada  pela  diversificação  das  formas  de organização  das  instituições  de  ensino  superior  alterando-se o  modelo de universidade na  direção  do  modelo  anglo-saxônico  naversão  norte-americana.  Em  consequência dessa   mudança   freou-se   o   processo   de   expansão   das   universidades   públicas, especialmente  asfederais,  estimulando-se  a  expansão  de  instituições  privadas  com  e sem  fins  lucrativos  e,  em  menor  medida,  das  instituições estaduais.Essa  foi  a  política adotada nos oito anos do governo FHC, o que se evidenciou na proposta formulada pelo MEC para o Plano Nacional de Educação apresentada em 1997.

Nessa    proposta admitiu-se    o    déficit do    ensino    superior    brasileiro comparativamente  aos  demais  países  concluindo-se  que,  para  se  chegar  ao  estágio  já atingido,  por  exemplo,  pela  Argentina, seria necessário  triplicar  a  porcentagem  da população  com  idade  entre  19  e  24  anos  que  tem  acesso  ao  Ensino  Superior.Isso porque,  enquanto  na  Argentina  36% da população  na  faixa  etária  de  19  a 24  anos  têm acesso ao ensino superior,no Brasil esse índice não chegavaa 12%.Para viabilizar esse objetivo previa-se a ampliação da oferta de ensino público em igual proporção, ou seja, um  aumento de 200% tanto das  vagas  privadas  como das  vagas  públicas  nos dez  anos seguintes. No  entanto,  não  se  previu  nenhum  investimento  público  adicional. Como, então, o governo pretendia atingir a mencionada meta de triplicar as vagas públicas? A resposta  que aparece  na  proposta  deixa  clara  a  mudança  de  modelo  em  direção  à  via anglo-saxônica na versão americana:

“A  expansão — diz a proposta — dependerá de uma racionalização no uso dos recursos  que  diminua  o  gasto  por  aluno  nos  estabelecimentos  públicos,  da  criação  de estabelecimentos  voltados  mais  para  o  ensino  que  para  a  pesquisa,  da  ampliação  do ensino  pós-médio  e do  estabelecimento  de parcerias  entre  União,  Estado  e  instituições comunitárias  para  ampliar,  substancialmente,  as  vagas  existentes”  (BRASIL,  1997, p.39).   Tal   orientação   se   fez   presente   na   meta 5, “oferecer   apoio   e   incentivo governamental para as instituições comunitárias”(p.40) ena meta 9,“diversificação do modelo IES, com vistas a ampliar a oferta do ensino”(p.40). É por esse caminho que se pretendeu disseminar  os  “centros  universitários”  enquanto  escolas  superiores  que  se dediquem apenas ao ensino sem pesquisa institucionalizada e os cursos pós-secundários, isto é, “formação de nível superior de menor duração”(p.38). Essa mesma orientação se expressa  também  na  meta  12, “estabelecer  um  amplo  sistema  de  educação  à  distância utilizando-o, inclusive, para ampliar o ensino semipresencial” (p.40).

Ao   longo   do   governo   Lula,   se   por  um   lado   se   retomou   certo   nível   de investimento nas universidades federais promovendo a expansão de vagas, a criação de novas  instituições  e a  abertura de  novos campi no  âmbito do  Programa  “REUNI”,  por outro lado deu-se continuidade ao estímulo à iniciativa privada que acelerou o processo de  expansão  de  vagas  e  de  instituições  recebendo  alento  adicional  com  o  Programa “Universidade para todos”, o PROUNI, um programa destinado à compra de vagas em instituições  superiores  privadas,  o  que  veio  a  calhar  diante  do  problema  de  vagas ociosas enfrentado por várias dessas instituições.

O  avanço  avassalador  da  privatização  da  educação  superior está expresso  nos índices quantitativos  das  instituições  e  do  alunado  como  se  pode  ver  numa  simples comparação dos dados iniciais e  finais da década abrangida pelo último quinquênio do século XX e pelo primeiro do século XXI.

Em  1996  nós  tínhamos  922  instituições  de  nível  superior,  sendo  211  públicas (23%)  e  711  privadas  (77%). Em  2005  o  número  total  das  instituições  se  elevou  para 2.165 com 231 públicas (10,7%) e 1.934 privadas (89,3%). Por sua vez, no que se refere ao  alunado  nós  tínhamos,  em  1996,um  total  de  1.868.529  alunos,  sendo  725.427(39,35%)em instituições públicas e 1.133.102 (60,65%) em instituições privadas. Já em 2005 a relação foi a seguinte: Total de alunos 4.453.156, sendo 1.192.189(26,77%) no âmbito público  e 3.260.967(73,23%)  no  âmbito  privado.  Observe-se,  por  fim,  que  em 2007, primeiro ano do segundo mandato do governo  Lula, o percentual dos alunos nas instituições  públicas  continuou  caindo  tendo  chegado  a25,42%  em  contraste com  o número  das  instituições  privadas  que  passou  para  74,58%  atingindo,  portanto,  dois terços do alunado.

Em  suma,  é  preciso  reverter  essa  tendência  fazendo  com  que  a  primazia  passe das instituições privadas para as públicas, da forma isolada para a forma universitária e dos  cursos  de  curta  duração  para  os  de  longa  duração. Essa  mudança  é  importante porque, como se sabe, as universidades públicas são responsáveis por cerca de 90% da ciência produzida no Brasil. Seus cursos possuem, pois,qualidade nitidamente superior aos  das  instituições  particulares. Assim,  a  expansão  das  vagas  nas  universidades públicas,   se   acompanhada   proporcionalmente   da   ampliação   das   instalações,   das condições  de  trabalho  e  do  numero  de  docentes,acarretará  a formação  de  um  número maior  de  profissionais  bem  qualificados.  E,  atendidos  esses requisitos,  haverá uma expansão   da   produção   científica,   o   que   é   de   fundamental   importância   para   o desenvolvimento do país.

Inversamente,  com  políticas  de  expansão  centradas  em  cursos  que  não  exigem uma  formação  mais  sólida, como  as  que  vêm  sendo  adotadas,  todoo  ensino  superior estará  sendo  rebaixado,  circunscrevendo-se  a  formação intelectual  propriamente  dita  a alguns  nichos  de  excelência, limitados  a  poucas  universidades  e  cursos  de  pós-graduação, relegando o  conjunto  a  padrões  menos  exigentes  de  qualidade.  Ao  fazer-se isso,o papel específico do ensino superior, que é o desenvolvimento dacultura superior e  a formação de intelectuais de alto nível, fica descaracterizado. E as possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico do país resultam ameaçadas. Só na medida em que o  Brasil mantiver um  sistema  de  ensino  superior  de  alto  padrão  de qualidade buscando expandi-lo  amplamente  é  que  ele  terá condições de  formar  quadros  e selecionar   os   cientistas   de   ponta,   que   vão,   de alguma   forma,   liderar   o seu desenvolvimento científico e tecnológico. Sem isso ele ficará em posição subalterna em relação aos demais países.

Procedendo  da  maneira  indicada,  estaremos  articulando  o  ensino  à  pesquisa. Mas,   como  prevê   a   Constituição   Federal,   as   universidades   se   caracterizam   pela indissolubilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Consequentemente, além do ensino superior   articulado   à   pesquisa,   cujo   objetivo   é   formar   profissionais   de   nível universitário, isto é, a imensa gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnólogos de  diferentes  matizes,  impõe-se  a  exigência  da  organização  da  cultura  superior  com  o objetivo de possibilitar a toda a população a difusão e discussão dos grandes problemas que  afetam  o  homem  contemporâneo.  Terminada  a  formação  comum  propiciada  pela educação básica, os jovens têm diante de si dois caminhos: a vinculação permanente ao processo produtivo por meio da ocupação profissional ou a especialização universitária.

Isto posto, em lugar de abandonar o desenvolvimento cultural dos trabalhadores a um processo difuso, trata-se de organizá-lo. É necessário, pois, que eles disponham de organizações culturais pelas quais possam participar,em igualdade de condições com os estudantes  universitários,  da  discussão,  em  nível  superior,  dos  problemas  que  afetam toda  a  sociedade  e, portanto, dizem  respeito  aos  interesses  de  cada  cidadão.  Com  isto, além    de    propiciar    o clima    estimulante    imprescindível    à    continuidade    do desenvolvimento  cultural  e  da  atividade  intelectual  dos  trabalhadores,  tal  mecanismo funciona  como  um  espaço  de  articulação  entre  os  trabalhadores  e  os  estudantes universitários, criando a atmosfera indispensável para vincular de forma indissociável o trabalho intelectual e o trabalho material.

Destaque-se que essa proposta coloca a função  de extensão da universidade em novo patamar diferenciando-a claramente da atual extensão universitária. Isso quer dizerque não se trata de estender à população trabalhadora, enquanto receptora passiva, algo próprio da atividade universitária. Trata-se, antes, de evitar que os trabalhadores caiam na passividade intelectual, evitando-se, ao mesmo tempo, que os universitários caiam no academicismo.   Com   efeito,   Gramsci   imaginava   que   tal   função   viesse   a   ser desempenhada exatamente pelas Academias que, para tanto, deveriam serreorganizadas e  totalmente  revitalizadas  deixando  de  ser  os  “cemitérios  de  cultura”  a  que  estão reduzidas atualmente.

REFERÊNCIAS

BRASIL,  MEC,  INEP, Proposta para o  Documento:  Roteiro  e  Metas para  Orientar o Debate sobre o Plano Nacional de Educação. Brasília, 1997, 61 p.

CUNHA,  Luiz  Antônio  Constant  Rodrigues. A  universidade  temporã,  2ª  ed.  revista  e ampliada. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1986.

DE  VIVO,  Francesco  e  GENOVESI,  Giovanni  [a  cura  di].Cento  anni  di  università. Napoli, Ed. Scientifiche Italiane, 1986.

MEISTER, Jeanne C. Educação corporativa.São Paulo: Makron Books, 1999.

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