Sobre a ignorância artificial
O que temos agora não é mais a ignorância da vacuidade, mas uma outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos gelados e por tentáculos de silício
Por Eugênio Bucci, O Estado, 13/06/2024
Quando alguém tenta imaginar o que seja a ignorância, a primeira imagem que lhe ocorre é o vazio. De fato, enquanto o saber tem para nós o aspecto de casa cheia e feliz, o não saber é seu oposto: um lugar macambúzio, desocupado e triste. O conhecimento lembra uma constelação de fagulhas inspiradoras, como um salão de janelas amplas, ensolaradas, cheio de gente bonita indo de um lado para o outro; a estultice é sombra e mutismo, um galpão deserto, escuro, sem ninguém e sem utilidade. O espírito dos sábios cintila em signos vibrantes, representações abstratas e sensibilidade de muitas claves; a massa cinzenta de quem não sabe nada é só um pedaço de carne amorfa, incapaz de qualquer contemplação. Portanto, é com acerto que temos o costume de dizer que as pessoas cultas têm uma vida interior rica e ativa, ao passo que os boçais têm a cabeça oca. Nada mais justo. Nada mais preciso. Nada mais óbvio.
Ocorre que isso mudou drasticamente. As novas tecnologias alteraram em definitivo a textura da ignorância. Ela não é mais o que sempre foi, não é mais uma cabeça oca, e já não decorre da escassez de informação e de conhecimento. Na era digital, ela decorre do inverso: o excesso de desinformação, de bugigangas do entretenimento, de quinquilharias imaginárias e de fanatismos virtuais.
Hoje, a ignorância não é uma casa inabitada, desprovida de ideias, mas uma edificação repleta de baboseiras desarticuladas, uma gosma de densidade pesada que ocupa todos os espaços. E é pisca-piscante: revestida de milhões de luzes feéricas, mais ou menos como um cassino em Las Vegas, e lotada de gente robotizada perambulando aleatoriamente, como a Praça dos Três Poderes sendo depredada no dia 8 de janeiro de 2023.
O que temos agora não é mais a ignorância da vacuidade, mas uma outra, a da overdose, a ignorância fabricada por algoritmos gelados e por tentáculos de silício. Estamos falando da ignorância artificial, uma forma densa e totalizante que ocupa e vicia o hospedeiro. Ao contrário do pensamento, que liberta e dá a ver, a ignorância artificial aprisiona e cega. Ela é o insumo de maior valor nas estratégias dos autocratas: entregue de graça para cada indivíduo, custa caro, muito caro, para a sociedade.
Por isso, os ignorantes de hoje não são mais como os de antigamente. Não são como a terra bruta ou a flor inculta, que nunca receberam o toque do jardineiro – foram adestrados pela selvageria e andam carregados até as tampas de preconceitos e de estereótipos, destituídos de imaginação própria. Não são um campo aberto à espera da luz e da letra – são corpos fechados e blindados contra qualquer gota de cultura. A ignorância artificial é a maior epidemia do nosso tempo.
E agora? Existirá cura para tamanha enfermidade? Talvez não. Para entendermos melhor essa resposta, voltemos no tempo. Mais exatamente, recuemos até a Grécia clássica. No Laques, de Platão, o general Nícias, ao tratar do tema da coragem, comenta a hipótese da criança que, por desconhecer o perigo, age com aparente destemor. Nícias argumenta: nesse caso, a ação aparentemente livre de todo medo não traz nada de audácia, é apenas falta de conhecimento. Com esse raciocínio, sugere que a bravura verdadeira requer consciência do risco: para ser valente de fato, o sujeito precisa ter instrução e juízo, precisa saber o que faz. Quanto aos idiotas, patriotas ou não, a exemplo das crianças pequenas, jamais estarão à altura da virtude da coragem.
Nícias, a exemplo de seus contemporâneos, vê semelhanças entre a falta de ilustração do adulto e a inocência infantil: ambas resultam da carência de saber, e por isso têm cura. Definidas pela ausência, as duas podem ser superadas pela presença – a presença do logos, da educação e da experiência. Em resumo, para essas duas formas naturais de ignorância, existe remédio.
Para a ignorância artificial, porém, o tratamento não tem a menor eficácia. Com sua substância maciça e, ao mesmo tempo, maleável, a ignorância artificial fecha todas as saídas e barra todas as entradas, de tal maneira que para os fanáticos não há educação ou experiência que dê jeito: nenhuma informação de qualidade os alcança; nenhum conhecimento os afeta. Os novos ignorantes foram abduzidos por uma argamassa de obscurantismo luminescente que os impede de saber de si, de perguntar ao outro, de duvidar do que veem, de repensar o mundo. Eles não têm senso de humor. A ignorância da era digital os ocupa feito uma forma de trabalho que não os deixa trabalhar. É uma forma de torpor que não os deixa gozar – e um bordão hipnótico que não os deixa conhecer a si mesmos.
Ao menos no horizonte imediato, não há esperança. Nesses dias de tantas proezas tecnológicas e tantas máquinas miraculosas, não é apenas a inteligência que se tornou artificial, não é somente a intimidade que pode ser confeccionada pelos chips, não é apenas o espírito que pode ser replicado em laboratório. A ignorância também. A ignorância, quem diria, até ela, agora também é fabricada pela técnica.
As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las
Por Eugênio Bucci, 27/06/2024, O Estadão
Já é conhecido o poder econômico das empresas tecnológicas mastodônticas que revolucionaram o nosso tempo, as chamadas big techs. Na semana passada, tivemos mais uma prova de sua magnitude pecuniária: circulou a notícia de que a Nvidia – detentora de mais de 70% do mercado global de chips para inteligência artificial – conquistou o alto do pódio, a posição de mais valiosa do mundo, com um preço de US$ 3,33 trilhões. A Microsoft, dona do Windows, foi desbancada para o segundo lugar – vale “apenas” US$ 3,32 trilhões. Em terceiro segue a Apple, avaliada em US$ 3,21 trilhões. As três juntas somam uma cifra intergaláctica, que dá mais ou menos cinco vezes o PIB de um país do tamanho do Brasil.
É também conhecido o poder político dessas gigantes do capitalismo. Trata-se de uma força imperial que vem do alto, como a das divindades. Elon Musk, proprietário da SpaceX, da Tesla e do X (ex-Twitter), costuma desfilar por aí e por aqui rodeado por um séquito de tietes da extrema direita, incensado como santo profeta. Nas outras big techs, os sintomas de prepotência são iguais. Em maio do ano passado, a seção brasileira do Google publicou em sua página inicial um link para um texto que fazia campanha contra a aprovação do Projeto de Lei 2.630, o PL das Fake News. Foi um choque. Muita gente, incrédula, se perguntava: como é que pode um site de buscas estrangeiro, que sempre jurou ser apartidário, respeitoso e isento, tentar encabrestar desse jeito a opinião pública de um país soberano?
Pois é, como pode? Muito simples: não pode. Ou não poderia. Tanto não poderia que, quase um ano depois, no final de janeiro de 2024, a Polícia Federal enviou ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, o relatório com suas conclusões sobre o caso. Segundo o relatório, o Google incorreu em “abuso de poder econômico”. Diagnóstico preciso.
Preciso e desolador. Os conglomerados monopolistas globais fazem jus à fama de trilionários e poderosíssimos. Barbarizam em toda parte, como se flutuassem acima da lei – acima do alcance da lei. Quando estão na China, é verdade, posam de subservientes, mas, no resto do planeta, chutam a porta sem se incomodar com as boas maneiras. Tratam as tentativas de regulação como incômodos incidentais que vêm de baixo. Olham para a autoridade pública do mesmo modo que o playboy filhinho-de-papai olha para o guarda de trânsito que tenta multá-lo por excesso de velocidade.
E isso não é tudo. Aliás, isso não é nem o principal. A riqueza desmesurada e a estonteante máquina de propaganda não são as características centrais desses colossos da era digital. O que os coloca acima de todas as outras organizações, públicas ou privadas, é o saber técnico que acumulam a portas fechadas, entre quatro paredes de titânio. Nisso – mais do que no dinheiro sem limites e na capacidade de manipulação ideológica – reside a maior ameaça que eles representam para o mundo democrático. Esses bunkers inexpugnáveis abrigam um saber proprietário, privativo e blindado que é só deles e de mais ninguém.
O termo “saber”, aqui, não significa “sabedoria”. Não existe sapiência dentro desses bunkers, longe disso. Não existe cultura. A Meta – controladora do Facebook, do WhatsApp e do Instagram – e suas concorrentes, que lucram espalhando ignorância artificial, obscurantismo e atrações viciantes, não são templos de conhecimento ou de iluminação. São o oposto disso. O que elas concentram em seus escaninhos de silício não é a elevação do espírito, mas a técnica desumanizada, fria, num grau de matematização cibernética que mal imaginamos. Elas armazenam fórmulas e equações complexas que pavimentam a expansão da inteligência artificial, a ferramenta mais assombrosa jamais forjada pelo engenho humano e cada vez mais direcionada contra o talento humano.
As novas bibliotecas secretas, instaladas nas nervuras mais íntimas das big techs, não são mais como aquelas que atravessaram a Idade Média, hospedadas em mosteiros, conventos e abadias. O scriptorium monacal não se abria, jamais, a leitores vindos de fora da Igreja. Lá dentro, os códices e manuscritos conservavam a memória filosófica e teológica da antiguidade em sigilo absoluto. As ideias do passado repousavam em estantes labirínticas, isoladas do mundo secular e tratadas como substâncias perigosas, que não podiam entrar em contato com o presente para não perturbar o status quo.
O que as bibliotecas secretas de hoje têm em comum com suas precursoras medievais é apenas o regime de segredo. No mais, são diferentes. O que elas ocultam não é a o pensamento dos antigos, mas os softwares e algoritmos que programam o que virá – à revelia da sociedade. Nenhuma autoridade pública tem meios de examinar seus arquivos. As instituições democráticas não sabem o que elas pesquisam, testam e realizam. As agências reguladoras não conseguem inspecioná-las. As bibliotecas secretas da Idade Média nos sonegavam o passado. As do século 21 nos sequestraram o futuro.
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