sábado, 22 de junho de 2024

Morte desejada

'Minha mãe estava muito feliz por poder morrer como desejava'

Raquel era membro da Dignitas há mais de 15 anos 

Cynthia Araújo, FSP, 20/06/24

Raquel (nome fictício) tinha duas filhas, estava aposentada e morava em um bairro nobre de São Paulo. Ela tinha uma doença chamada ateromatosa, que é uma forma de arteroesclerose, doença vascular crônica em que o processo de envelhecimento das artérias e vasos leva à obstrução desses canais. Se isso acontecer no coração, levará a um infarto; se acontecer no cérebro, a um acidente vascular cerebral.

Raquel preferia morrer a perder a lucidez e se sentia segura por saber que, se não tivesse plena consciência, seus últimos desejos estavam registrados em um envelope guardado no seu armário. Inclusive o de não ser mantida viva a qualquer custo. "Não me sinto uma suicida, jamais pularia da janela. Apenas quero morrer dormindo".

Raquel não queria estender uma vida em sofrimento.

Já faz algum tempo que acredito que subestimamos a dor. A nossa dor, a dor alheia. Ninguém sabe quanto custa para outra pessoa se submeter a uma cirurgia, aos efeitos colaterais de medicamentos tóxicos, à sensação de cansaço, ao sono impeditivo. Defendo que ninguém deve ser obrigado a terapias desgastantes pela tentativa de viver mais um pouco.

Mas interromper a vida é outra coisa. Vejo algumas matérias tratarem a suspensão dessas medidas de combate a uma doença ou de tentativa de prolongamento da vida como equivalentes à eutanásia: não são. Obstinação terapêutica não é antônimo de eutanásia. Dá para continuar vivendo por um tempo – e, na medida do possível bem, em muitos casos – suspendendo-se tratamentos. E isso não é encerrar precocemente a vida.

Em 2010, a Folha de São Paulo publicou uma matéria sobre a Dignitas – To live with dignity – to die with dignity, uma sociedade sem fins lucrativos que conscientiza pessoas sobre o fim da vida e que opera desde 1998 em acordo com as leis suíças, conforme sua própria descrição. A organização tem atividades diversas como a prevenção ao suicídio e o acompanhamento de pacientes no fim da vida, inclusive para uma morte medicamente assistida. É uma das únicas instituições no mundo que recebe estrangeiros para realizarem suicídio assistido.

Segundo os dados da reportagem, de 1998 a 2009, 1041 pessoas haviam morrido com ajuda da instituição, que tinha, entre seus membros, sete pessoas brasileiras.

Um desses membros era Raquel. Em entrevista para a Revista Época (n. 736), em 2012, Raquel contou que, aos 68 anos, tinha feito muita coisa: "aproveitei minha juventude, peguei muito sol, viajei pelo mundo, namorei, casei, tive duas filhas maravilhosas, me divorciei e trabalhei duro".

E ela pretendia recorrer ao suicídio assistido se chegasse a hora.

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Yun Tianming e sua eutanásia [1]

(...) Ele poderia ir em paz. Às dez, entrou sozinho no quarto de eutanásia, tão calmo como se estivesse indo para a consulta do dia. Ele era a quarta pessoa da cidade a realizar o procedimento, então não havia muito interesse da mídia. Só cinco pessoas estavam dentro do quarto: dois tabeliães, um diretor, uma enfermeira e um administrador do hospital. O dr. Zhang não estava lá.

A seu pedido, o quarto não havia sido decorado. À sua volta, só as paredes brancas simples de um quarto hospitalar como qualquer outro. Ele se sentiu à vontade. Explicou ao diretor que conhecia o procedimento e não precisava dele. O diretor assentiu e foi para trás da parede de vidro. Os tabeliães terminaram as pendências com Tianming e o deixaram a sós com a enfermeira. A enfermeira já não exibia a ansiedade e o medo que tivera que superar na primeira vez. Ao penetrar a veia dele com a agulha, seus movimentos foram firmes e delicados.

Tianming sentiu um vínculo estranho com a enfermeira: afinal, ela seria a última pessoa ao seu lado neste mundo. Lamentou não saber quem havia feito seu parto vinte e nove anos antes. Aquele obstetra e essa enfermeira faziam parte do pequeno grupo de pessoas que genuinamente haviam tentado ajudá-lo ao longo da vida. Ele queria agradecer a elas.

— Obrigado.

A enfermeira sorriu para ele e saiu com os passos silenciosos de um gato.

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(...) Ele apertou 5.

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Por volta de 10 anos depois, com a saúde bastante deteriorada, Raquel estava cansada. Cansada de viver com tantas limitações. Mas ela não preenchia os requisitos para realizar o suicídio assistido na Dignitas. E isso era motivo de profunda tristeza. Então, algo aconteceu: Raquel recebeu o diagnóstico de Alzheimer e descobriu que a doença era elegível para a morte medicamente assistida. Foi um alívio.

Um estado de espírito incrível

Reconheço que, se sou grande defensora da autonomia do paciente em relação a todas as decisões sobre o que fazer ou não em relação a sua saúde e suas doenças, não encaro com a mesma naturalidade a ideia de interromper a vida. Não falo das questões objetivas, como a de que a dignidade da morte medicamente assistida depende de pleno acesso a necessidades básicas e, em caso de doenças ameaçadoras da vida, a cuidados paliativos – com o máximo de garantia possível de que alguém não está disposto a encerrar a própria vida por não conhecer ou alcançar as medidas que aliviariam o sofrimento que lhe faz querer morrer.

O meu desconforto particular vem de outro lugar. E eu sei que o lugar de onde ele vem é errado. Não é porque o sofrimento de alguém não parece intolerável para mim que ele não é absolutamente intolerável para quem o suporta. Minha primeira conversa com a Mariana (nome fictício), uma das filhas de Raquel, aconteceu poucos dias depois da morte da mãe, na Suíça, em outubro de 2023.

Depois de descobrir que poderia morrer na Dignitas, Raquel ficou feliz como há muito as filhas não a viam. O sentimento de não aguentar mais o esforço de viver deu lugar à alegria de poder pôr fim a sua vida em seus próprios termos. Raquel havia pensado sobre o assunto por mais de vinte anos. E isso fez com que Mariana pensasse também. "É injusto ficar vivo contra a própria vontade estando certo de que se deseja morrer. Minha mãe entendia que sua vida tinha valido, que ela tinha feito muita coisa. Mas não queria continuar viva com tantas limitações".

Mariana diz que conversar sobre a morte sempre foi algo natural na sua família, ao menos desde que a avó, mãe de sua mãe, era viva. E, por isso, não foi uma surpresa quando a mãe falou sobre a Dignitas pela primeira vez.

Ela conta que, no ano passado, quando o processo junto à instituição para permitir o suicídio assistido de Raquel foi iniciado, mãe e filhas conseguiram aproveitar muito a presença de cada uma. E que isso só aconteceu sob o horizonte da consciência de que o fim de sua vida em conjunto estava se aproximando. Raquel tinha, nas palavras da filha, "um estado de espírito incrível".

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Apertou 2.

(...)

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Morrer com dignidade

Qualquer membro da Dignitas com capacidade decisória e mobilidade física suficiente para administrar sozinho a dose letal de barbitúrico pode solicitar a realização de um suicídio assistido na instituição. Para que o pedido seja aceito, a pessoa solicitante precisa ter uma doença terminal, uma deficiência incapacitante intolerável ou dor incontrolável e insuportável, comprovados por relatórios médicos antigos e recentes. Uma taxa (atualmente no valor de 2.500 francos suíços, aproximadamente 15.300 reais) também é exigida.

O requerimento feito pelo membro é avaliado por médicos suíços que cooperam com a instituição, a partir da documentação encaminhada. Se eles concordarem em auxiliar, o membro é informado de que tem uma "luz verde" provisória, ou seja, o consentimento preliminar para morrer na Dignitas de forma assistida. Mas a decisão final só acontece depois que a pessoa é avaliada pelo médico.

A advogada Luciana Dadalto, referência brasileira em estudos sobre autonomia no fim da vida, esteve na instituição em 2017. Para ela, apesar da fama, a Dignitas representa muito mais do que um lugar onde pessoas podem morrer por suicídio assistido; trata-se de um projeto sério de conscientização e discussão sobre liberdade de escolha e autodeterminação em questões de vida e morte. Ela lembra que a instituição é bastante rigorosa na viabilização da morte assistida em suas dependências e que o processo para estrangeiros é bem burocrático. Além disso, um aspecto que chamou sua atenção na visita à Dignitas foi o questionamento sobre o limite da dignidade possível para a morte que ocorre em outro país, com outro idioma, outra cultura, longe de pessoas queridas, em uma cama desconhecida.

Verdade. No mundo ideal, teríamos, perto de casa, acesso a cuidados paliativos que aliviassem nosso sofrimento desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora da vida e condições de a encerrar quando ele, ainda assim, fosse irremediavelmente intolerável. No mundo real, no entanto, estamos vivendo dias infernais e morrendo em absurdo sofrimento, sem nem um pouco de morfina na veia, no leito frio e isolado de uma UTI.

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A morte de Raquel

Com a luz verde definitiva, Raquel fez sua última viagem para a Suíça, acompanhada das duas filhas. Mariana diz que foi tudo bem melhor do que elas imaginavam, com muito tempo de qualidade juntas, apesar de todo o sofrimento envolvido. A mãe estava realmente feliz por conseguir fazer as coisas do jeito que queria. "Todas as pessoas na Dignitas foram incríveis, muito empáticas e cuidadosas. Eles nos acolheram, nós nos sentimos calmas, o ambiente é maravilhoso, tem um lugar com um jardim lindo. Você faz tudo no seu tempo e, se quiser mudar de ideia, é seu direito. Tudo acontece para que a pessoa se sinta o mais confortável possível".

Embora estivesse muito tranquila sobre a decisão da mãe, os meses seguintes foram muito difíceis para Mariana. Em nossa última conversa, ela contou que, mais de seis meses depois, é que está conseguindo sair de um momento complicado do seu luto e olhar para frente.

No círculo mais próximo, quase todo mundo exaltou a coragem e a beleza da decisão de Raquel, mas houve quem não a entendesse. Para Mariana, preceitos religiosos impedem que algumas pessoas aceitem a ideia de suicídio assistido. Mesmo assim, o amor pela pessoa que deseja realizá-lo e a realidade do declínio da sua saúde acabam levando à aceitação, mesmo com muita tristeza.

Morrer

Lembro-me que, na obra "In Love: A Memoir of Love and Loss", Amy Bloom fala do peso que a informação de que alguém está prestes a morrer por suicídio assistido tem nos outros. Como contar para alguém que você conhece há tanto tempo o que está indo fazer na Suíça? Está indo esquiar? Passear?

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Morrer.

O assunto tem ganhado os jornais com mais frequência e, vez ou outra, é retratado no cinema e na literatura. Eu já tinha assistido a outros filmes que abordam o suicídio assistido, quando cheguei ao famoso "Como eu era antes de você" (2016). Ali tinha algo diferente. Em Mar Adentro (2004), por exemplo, eu de alguma forma conseguia acessar a ideia da dor do protagonista, acamado e totalmente dependente há anos. Eu sentia que, no seu lugar, provavelmente teria desejado a mesma coisa: encerrar aquele sofrimento com o fim da minha vida. Mas, na história de Will e Louisa, alguém que dançava feliz com um grande amor ainda assim gostaria de morrer em seguida. E eu não conseguia alcançar a sua dor. É fácil aceitar uma decisão quando ela também teria sido a nossa. Mas não é isso que deve ser considerado quando pensamos no direito de morrer em nossos próprios termos.

Há algum tempo, li um suspense meia-boca em que, inesperadamente, discute-se o fato de que há mais de vinte anos, era bem mais difícil morrer de forma assistida do que hoje. Essa dificuldade me causou aquela surpresa que sentimos quando lembramos que, para certas coisas, o tempo passou. E, ainda bem, mesmo que só um pouco, a sociedade avançou. Apesar dos meus sentimentos ambíguos, tecnicamente, eu já sabia que era favorável à eutanásia e ao suicídio assistido.

Mas algo de muito diferente aconteceu comigo ouvindo Mariana sobre a história da sua mãe. Raquel viu na vida que antecedia a morte em seus próprios termos uma beleza que não via mais. E que talvez nunca mais visse não fosse o respeito à resolução que tomou. O respeito a sua autonomia.

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Sei que é difícil pensar nisso quando não estamos submetidos às dores que outras pessoas consideram intoleráveis. Sei que é difícil escapar à tentação de pensar em que bom teria sido se Raquel pudesse sentir por mais tempo a alegria que a tomou de volta apenas quando soube que poderia morrer em seus próprios termos. Mas, muitas vezes, e não somente quando falamos em suicídio assistido, é diante da compreensão de que o tempo está realmente acabando que a possibilidade de se entregar por completo ao presente e às possibilidades de afeto e comunicação acontece.

Demorei algum tempo para elaborar este texto, na esperança de transmitir o sentimento de Mariana com a maior fidelidade possível. Espero ter conseguido.

[1] Cixin Liu, O fim da morte, tradução: Leonaro Alves, 1ª edição, pp. 50 - 56,  Suma, 2019


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