quarta-feira, 26 de junho de 2024

Filmes parte 42

Um Cavalheiro Em Moscou, A Gentleman in Moscow, Minissérie TV, 2024, Sam Miller & Sarah O'Gorman

Zona de Interesse, The Zone of Interest, 2023, Jonathan Glazer

Godzilla Minus OneGojira -1.0, 2023, Takashi Yamazaki

A Longa Caminhada, Walkabout, 1971, Nicolas Roeg

Inverno de Sangue em Veneza, Don't Look Now, 1973, Nicolas Roeg

Rebecca, a Mulher Inesquecível, Rebecca, 1940, Alfred Hitchcock

Cinco Dedos, 5 Fingers, 1952, Joseph L. Mankiewicz

Cronicamente Inviável, 2000, Sergio Bianchi

A Navalhana Carne, 1969, Braz Chediak

Uma Aventura na Noite, Somewhere in the Night, 1946, Joseph L. Mankiewicz

O Pequeno Rincão de Deus, God's Little Acre, 1958, Anthony Mann

A Queda do Império Romano, The Fall of the Roman Empire, 1964, Anthony Mann

El Cid, 1961, Anthony Mann

Região do Ódio, The Far Country, 1954, Anthony Mann

O Homem do Oeste, Man of the West, 1958, Anthony Mann

Jornada para oInferno, Butcher's Crossing, 2022, Gabe Polsky

Barry Lyndon, 1975, Stanley Kubrick

Western, 2017, Valeska Grisebach

Gigantes em Fúria, Sea Devils, 1953, Raoul Walsh

O Ladrão de Cavalos, Dao ma zei, 1986, Zhuangzhuang Tian & Peicheng Pan

Expresso para oInferno, Runaway Train, 1985, Andrey Konchalovskiy

Lola Montes, Lola Montès, 1955, Max Ophüls

Joana d'Arc da Mongólia, Johanna D'Arc of Mongolia, 1989, Ulrike Ottinger

Amor Fora da Lei, Ain't Them Bodies Saints, 2013, David Lowery


29/05/24

Um Cavalheiro Em Moscou, A Gentleman in Moscow, Minissérie TV, 2024, Sam Miller & Sarah O'Gorman


CRÍTICA | Um cavaleiro em Moscou. Um vinho para degustar e também para servir.

Por Retter Fan, 31 de maio de 2024

Apesar de ter pano de fundo histórico e localização reais, Um Cavalheiro em Moscou é pura ficção. Uma delícia de ficção, vale afirmar, com generosas camadas fabulescas para tornar tudo ainda mais agradável, com direito a uma atuação absolutamente cativante de Ewan McGregor e um elenco de apoio igualmente charmoso e eficiente que conta com Mary Elizabeth Winstead, Fehinti Balogun e Johnny Harris, dentre vários outros. Baseado em romance de 2016 do americano Amor Towles, a adaptação para a TV comandada por Ben Vanstone é um primor de elegância visual e narrativa que, ao longo de oito episódios, leva o espectador por uma jornada de três décadas pela vida de um aristocrata russo que, depois da Revolução de 1917, é condenado a viver o resto de sua vida em prisão domiciliar em um hotel de luxo em Moscou, sem jamais poder botar os pés para fora da porta giratória do estabelecimento.

Escapando da morte por ter a ele atribuído um poema popular de cunho revolucionário, o bigodudo Conde Alexander Ilyich Rostov (McGregor) passa a viver em um quarto minúsculo e acinzentado no sótão do Hotel Metropol a partir de 1921, podendo desfrutar, porém, de todas as dependências do local, inclusive e especialmente o lobby, o bar e o restaurante, que continuam recebendo provisionamento de luxo do governo. Mantendo toda a fleuma da nobreza à que pertencia, Alexander faz questão de barbear-se e vestir-se impecavelmente todos os dias e seguir sua vida da maneira mais próxima ao que ele estava acostumado, com os eventos subsequentes à Revolução Russa alimentando em off a narrativa a cada novo episódio circunscrito aos cenários que reconstroem o luxo do famoso hotel que efetivamente funcionou (e funciona) como hotel antes, durante e depois da implantação do comunismo soviético.

Existem paralelos que podem ser traçados em relação a O Grande Hotel Budapeste, que considero a grande obra-prima de Wes Anderson. Par além do óbvio cenário hoteleiro e das comparações que podem ser facilmente feitas entre o Rostov de McGregor e o Monsieur Gustave H. de Ralph Fiennes, ambos criaturas reféns do hábito e da manutenção da compostura em todas as situações, há os panos de fundo de um país real e outro fictício passando por radicalizações políticas e sociais e o cuidado das duas produções com os detalhes dos espaços confinados que servem de cenário central. Claro que o estilo característico de Anderson inexiste na minissérie, mas ambos compartilham a narrativa de certa forma farsesca e repleto de elementos de contos de fada, com Um Cavalheiro em Moscou, porém, mergulhando no lado sombrio desses contos, seja no passado complicado do protagonista em relação à sua irmã e a seu melhor amigo Mikhail “Mishka” Fyodorovich Mindich (Balogun), seja no presente marcado pela brutalidade de fundo e a vigilância eterna de um governo paranoico.

De maneira semelhante, o citado filme e a minissérie criticam o pano de fundo simplesmente deixando o pano de fundo como tal, sem que seus protagonistas possam efetivamente interferir em alguma coisa de relevo. Claro que, na minissérie, como os eventos são reais, eles falam sozinhos, descontroem-se pelo que sabemos que ocorreu na medida em que uma classe dominante exploradora foi substituída por basicamente outra classe dominante exploradora, em uma subversão dos próprios princípios em que a revolução foi baseada. Mas Um Cavalheiro em Moscou não tem intenção de mergulhar nesses aspectos, pois, como mencionei, os roteiros usam os eventos reais como ferramentas para ajudar na narrativa, mas sem que eles ganhem abordagem direta, com o governo soviético sendo essencialmente representado por Osip Glebnikov (Harris) que é como o carcereiro de Rostov, com os dois, porém, estabelecendo laços hesitantes, mas profundos que são uma constante nos episódios.

E qual é o ponto central então da minissérie? Diria que ele repousa na transformação. Enquanto o mundo fora do Metropol muda drasticamente, inicialmente em tese para melhor e, depois, claramente para pior, Alexander também precisa aprender a adaptar-se e a viver uma vida inteira confinado em apenas um lugar. Ele começa como o “conde deposto” que se recusa a abaixar a cabeça, mas logo percebe que sua clausura é muito mais do que a grande maioria daqueles além das paredes do hotel têm em seu cotidiano. Seu primeiro despertar vem com a conexão inesperada que ele faz com Nina Kulikova que ele conhece quando menina e, depois, como adulta (Alexa Goodall e Leah Balmforth) e que ensina a ele muita coisa, inclusive a relação de dependência e confiança tão cara às fábulas e os vários caminhos pela infraestrutura do hotel que expande seus horizontes. Depois, vem o amor quase imediato pela bela atriz Anna Urbanova (Winstead) que, quando visita o hotel, sempre fica na enorme suíte de paredes verdes onde Rostov morava antes de sua prisão perpétua, com essa conexão despertando sentimentos que ele talvez não mais esperasse ter.

Mas Nina e Anna são apenas duas personagens – que, com Mishka, forma a trinca central coadjuvante – em uma constelação de outros, todos de origem “proletária”, com quem Rostov estabelece conexões, seja o barman, o chef, o gerente ou o concierge, não importa. Existe uma hierarquia entre eles? Sim e não é a resposta mais correta e também a mais fácil. Todos sabem que Alexander é, em essência, um prisioneiro, mas sua origem aristocrata nunca é esquecida, mesmo quando ele passa a ser garçom, empregando seu vasto conhecimento sobre vinhos para fazer os pareamentos e sugestões aos clientes. Mas nobreza não é apenas algo conectado com hierarquia, com ordens sendo obedecidas por subalternos. Nobreza pode ser de caráter, de intenções, de gestos e, nisso, Rostov e os demais ao seu redor convergem em uma espécie de conspiração impossível em que todos se ajudam, com a única exceção sendo o garçom (no início) Leplevsky (John Heffernan), o caricatural seguidor cego da doutrina do Politburo, sempre pronto a delatar, a criar obstáculos a todos, especialmente a Rostov, que ele vê como a personificação do “inimigo de estado”.

Se por vezes a minissérie ensaia descambar para o melodrama e, por outras, não resiste a alguns didatismos ou a repetições temáticas, a grande verdade é que Ewan McGregor – com adoráveis figurino, penteado e bigode de inspiração chaplinesca – sustenta a história quase que completamente sozinho, ainda que valha destacar a presença magnética de Mary Elizabeth Winstead e outros do elenco que prefiro não indicar aqui para não enveredar pelo mundo dos spoilers. O ator, que parece ter se reencontrado na televisão, faz um irresistível protagonista que é um passageiro da História, um homem de quem tudo foi tirado, mas que, em seu exílio, ganhou muito mais do que jamais teve por apenas viver e usar de sua nobreza de espírito sua maior arma. Um Cavalheiro em Moscou é como um delicado presente de um ente querido que admiramos pelo gesto e pelas lembranças que ele traz à tona. Sem dúvida alguma, uma minissérie a ser degustada como um dos vinhos que Alexander tanto gosta de beber, mas também de servir e compartilhar.

30/05/24

Zona de Interesse, The Zone of Interest, 2023, Jonathan Glazer

Zona de interesse (2023), A violência oculta que ressoa, por Gabriel Zupiroli, 14/02/2024

No livro Imagens Apesar de Tudo, o teórico francês Georges Didi-Huberman resgata fotografias retiradas dentro do campo de concentração de Auschwitz para realizar uma defesa da sobrevivência dessas imagens. Na contramão de outros pensadores, que defendiam que os lapsos do horror deveriam ser esquecidos, Didi-Huberman advoga justamente pela exposição destas imagens, argumentando que é justamente pela sua visualização através do mundo que poderia se construir uma memória de tal violência. Zona de Interesse, novo filme do diretor inglês Jonathan Glazer, volta seu olhar justamente para este local: acompanhamos as vivências cotidianas da família do oficial nazista Rudolf Höss, comandante responsável por administrar Auschwitz, cuja residência faz fronteira muro a muro com o ambiente da barbárie.

Ao contrário do que poderíamos, a princípio, esperar em uma produção similar, Zona de Interesse se debruça menos sobre juízos acerca das consequências e naturezas morais decorrentes da contraditória vida de seus personagens – cujo cotidiano parece, muitas vezes, quase esquecer do cenário ao lado -, e mais sobre justamente uma investigação desta ideia de rotina em si. Dessa forma, o que Glazer procura focar ao longo do filme é como os sujeitos que compõem a família Höss experienciam seu dia-a-dia: os filhos e suas experiências de infância e adolescência, a mãe e seu apego fixo a uma ideia de lar construído arduamente, o pai e suas responsabilidades familiares e conjugais. O que se torna, de certa forma, algo atrativo ao espectador, no sentido de que se quebra um pouco a corrente de pensamento esperada para, em uma tentativa subversiva, fazer o banal explodir na face através, precisamente, da sombra oculta não mostrada.

Isso porque Glazer opta, na contramão da filosofia de Didi-Huberman, por nunca mostrar a violência em si. Os campos nunca são de fato, mostrados, apenas seus muros. A violência nunca é explicitada ao espectador, apenas ouvidos as constantes modulações sonoras que servem de pano de fundo àquela narrativa cotidiana através dos ruídos de tiros, gritos e lamentos. Assim, o oculto ressoa nestes detalhes circundando aquele cotidiano quase inocentemente representado, existindo invisível nos pormenores visíveis. Essa opção de Glazer serve, de certa forma, para reforçar a perspectiva de que seu interesse reside sobretudo na contradição: no não-sentido criado entre aquele cotidiano e o peso que ele carrega ao fundo. Uma tentativa de criar dialeticamente um silêncio ensurdecedor.

Diferentemente também de Didi-Huberman, para quem o anacronismo é uma maneira possível de se ler a história, para Glazer ele se torna um problema, pois no filme, de certa forma, tudo está em seu devido lugar. Todas as peças representam um teatro formado para conduzir ao comentário do horror através do oculto ressonante, fazendo com que a intervenção de um presente, representado pelo museu, torne-se uma espécie de ótica que categoriza a visão do passado, alocando-o em um lugar específico: a memória, mas através de um filtro. Dessa forma, Höss, uma espécie de proto-Eichmann que apenas procura “cumprir seu dever” (quando se reúne com os outros oficiais nazistas, o comandante não pensa em nada a não ser seu trabalho: imagina formas de se aniquilar todos eles para melhorar o trabalho dos campos), é o representante máximo desta crítica invisível. Seu objetivo reside justamente no processo: quase um personagem kafkiano, para quem a moralidade existe de forma lateral aos objetivos, assim como a sua própria vida, como quando declara seu amor ao cavalo, a representação da máquina potente, ao invés de sua família. Höss encarna este aspecto procedural em sua estrutura, tornando-se máquina executora por excelência – o que, de certa forma, aliado à opção de não mostrar o horror, cria uma espécie de higienização que seria, para Glazer, algo ainda mais gritante.

É neste processo constante, com o foco nos sujeitos do lado higienizado do muro, que Zona de Interesse estabelece, enfim, seu jugo moral. Os planos sempre distanciados da face de seus personagens, com enfoque no espaço, fazem com que esta concepção asséptica do horror se torne, para Glazer, sua grande arma. É justamente nesta tentativa opositora que a moralidade é despedaçada e entregue ao espectador – o que gera, de certa forma, um interessante efeito de contraditoriedade constante. No entanto, é nela, também, que o horror é transformado em museu. Em museu limpo, também higienizado. Em um lapso futurista, o proto-Eichmann enxerga a conclusão de seu trabalho e pode, assim, ir para casa. Talvez se apostasse em demonstrar esse horror, como defende o filósofo francês, o caminho de Höss seria perturbado. Pois seu grande inimigo, não deixa de ser, enfim, a memória, como Glazer tenta e consegue parcialmente demonstrar.

"Zona de Interesse": Dica da Semana 

03/06/24

Godzilla Minus OneGojira -1.0, 2023, Takashi Yamazaki

Godzilla Minus One, Simon Abrams,  December 01, 2023

Godzilla turns 70 next year, and to celebrate, his parent company Toho Studios waited until the end of this year to release the most conventional Godzilla movie in recent memory. “Godzilla Minus One” may also be the most sobering and least flamboyant Japanese-produced Godzilla movie since the original 1954 nuclear lizard disaster pic (though “Godzilla 1985” fans might disagree). Some reviews of “Godzilla Minus One” have already praised the movie as an escapist crowd-pleaser. It’s easy to see why, given the bleak but well-calibrated tone of its human-centric scenes.

Set in 1946, “Godzilla Minus One” follows a spiritually depleted group of ex-military men as they rally to vanquish everyone’s favorite kaiju antihero. Here, Godzilla’s presence is a given, as it probably should be after dozens of movies and spinoff projects. If traumatized survivors like disgraced kamikaze pilot Koichi Shikishima (Ryunosuke Kamiki) can’t stop Godzilla, he will destroy Ginza and then stomp all over Tokyo.

Koichi is motivated by survivor’s guilt. In an establishing scene on Odo Island, Koichi takes aim at Godzilla but can’t bring himself to shoot. As a result, several fellow army men die, leaving Koichi to bury their bodies. Reviving Koichi’s ultimately patriotic mojo takes priority since that sort of nationalistic passion is apparently essential to fighting Godzilla. At the same time, Koichi’s loved ones are still very dead, so now he has to take care of other survivors, most of whom have also lost their loved ones, their homes, and their will to fight. That last part is crucial, but overcoming spiritual decline is also a big part of Koichi and therefore, Big G’s story in “Godzilla Minus One.”

“I would like to try to live again,” Koichi says with square-jawed sincerity. His intense need to prove himself is paralleled but never matched by fellow cast-offs like Kenji Noda (Hidetaka Yoshioka), a bookish ex-weapons engineer, and Sosaku Tachibana (Munetaka Aoki), an ex-Navy mechanic. These guys only hint at their inner demons; they often literally wear their trauma on their sleeves since the ash and grime of post-war recovery have already overtaken them. Some female protagonists, like Koichi’s selfless sweetie Noriko Oishi (Minami Hamabe) and his newly-orphaned adopted daughter Akiko (Sae Nagatani), also give him more reasons to fight, though their agency and personalities are even more limited than Koichi’s male co-stars.

Godzilla’s also in “Godzilla Minus One,” by the way, and he’s treated with apparent reverence. “Godzilla Minus One” is a well-calibrated popcorn movie, and you can hear it in the way that its creators play up fan favorite devices and associations. It’s an event when he roars or deploys his fire breath for the first time in this movie. Godzilla fans will probably also feel appropriately flattered by the strategic use of a few song cues from Akira Ifukube’s now iconic “Gojira” score.

Ifukube’s music is worked in seamlessly without sounding much like new music by “Godzilla Minus One” composer Naoki Sato, who lays down a droning orchestral wall of sound that his string section flits across like a surfer riding a towering and perpetually cresting wave. It’s one of the most rousing and nerve-wracking original scores in a recent Godzilla movie. Tactically deployed silences and mood-setting background noises also punctuate and goose the already overwhelming on-screen action.

The timing of “Godzilla Minus One”’s release might also make it harder to love. This is the first Japanese-produced live-action Godzilla movie since “Shin Godzilla,” a stylistically adventurous disaster movie and political farce, as well as a modern take on a beloved character. Toho’s not been idle in the last six years, though you might think so given the relative prominence of the Warner Bros.-produced American “MonsterVerse” franchise. (if you’re curious, Toho’s trilogy of animated Godzilla features is also worth a look) Neither has the “Shin Godzilla” co-director/writer team of Hideaki Anno and Shinji Higuchi, whose faithful and imaginative spins on tokusatsu heroes Kamen Rider and Ultraman were also released this year in America. Those two movies, “Shin Ultraman” and “Shin Kamen Rider,” had limited theatrical releases here in America. By contrast, “Godzilla Minus One” opened mid-week across the country, sometimes playing in the same “large format” auditoriums as “Renaissance,” Beyonce’s three-hour concert doc extravaganza.

“Godzilla Minus One” is obviously Toho’s attempt at foregrounding their scaly star’s character as a spectacular and traditional crowd-pleaser. They found the right man for the job in director Takashi Yamazaki, who established his populist bonafides with his sappy but irresistible 2005 period family tearjerker “Always: Sunset on Third Street” and its two sequels.

Yamazaki gives G-fans plenty of reasons to see “Godzilla Minus One” in theaters. He’s got a clear eye for action and a firm grasp on feel-good, saber-rattling melodrama. Yamazaki’s style, like his movie’s politics, only looks conservative compared to his predecessors. He made a good Godzilla movie, if not a great one.

05/06/24

A Longa Caminhada, Walkabout, 1971, Nicolas Roeg


Nicolas Roeg (1928-2018) 

A LONGACAMINHADA (1971) - WALKABOUT

Duas crianças (uma menina de quatorze e um menino de seis) são abandonadas pelo pai louco que, pouco antes de se suicidar, tenta matá-las em meio a uma região desabitada do deserto australiano. À mercê do destino e com poucos recursos para sobrevivência, o garoto e a menina passam a ser auxiliados por um aborígene, que vive sozinho pelo deserto para cumprir um ritual de sua tribo.

O filme do diretor Nicolas Roeg, de 1971, foi saudado como obra-prima. Depois desapareceu no esquecimento, aparentemente devido a brigas envolvendo sua propriedade, e passou anos sumido. Em 1996, nova versão incluía cinco minutos de nudez que haviam sido amputados da cópia original.

O título deriva de um hábito dos aborígenes da Austrália: na época em que o menino se transforma em homem, um adolescente aborígene saía em "longa caminhada" de seis meses pelo Outback australiano, sobrevivendo (ou não) conforme suas habilidades para caçar, preparar armadilhas e arranjar água naquele deserto.

Há um inconfundível componente sexual encoberto: os adolescentes estão em seus primeiros anos de exacerbada consciência do sexo. A menina ainda usa uniforme escolar, que a câmera olha com sutil sexualidade (uma ambígua tomada sugere que o pai tinha uma preocupação doentia com o corpo da filha).

Em A longa caminhada, o detalhe crucial é que os dois adolescentes jamais acham um meio de se comunicar. Em parte talvez porque a menina não julgue necessário: durante o filme inteiro ela se conserva implacável nas da classe média convencional, encarando o aborígene mais com curiosidade e complacência do que como outro ser humano.

O filme não fornece informação adicional, portanto não podemos atribuir sua atitude a racismo ou preconceito cultural, mas certamente revela total ausência de curiosidade por parte da menina. O aborígene, por sua vez, não tem ideia de como defender suas intenções de outro modo além dos rituais de seu povo. Quando estes falham, ele perde o ânimo e a esperança.

A longa caminhada não é a história de uma menina e de seu irmão perdidos no Outback, que sobrevivem graças aos conhecimentos do engenhoso aborígene. A questão essencial é discutir como todos os três ainda estão perdidos no fim do filme - mais perdidos do que antes, porque agora, além de estarem à deriva no mundo, sofreram perdas interiores. O filme é profundamente pessimista. Sugere que todos nós desenvolvemos capacidades e talentos específicos que reagem a nosso ambiente, mas não funcionam com facilidade em um campo mais amplo. Não quer dizer que a menina não apreciasse a natureza, nem que o aborígene não pudesse viver em um mundo diferente daquele em que foi treinado. Quer dizer que todos nós somos cativos do meio ambiente e da programação: que há um vasto campo de experimentações e experiências sempre invisíveis para nós, por se situarem em um espectro que não podemos ver.

05/06/24

Inverno de Sangue em Veneza, Don't Look Now, 1973, Nicolas Roeg


Daphne Du Maurier (1907-1989) 

Além do principal, o enredo, o filme é um passeio pela Veneza dos 1970.

Crítica | Inverno de Sangue em Veneza

Não olhe agora... por Ritter Fan 30 de outubro de 2021

O britânico Nicolas Roeg tem pouquíssimos longas-metragens em sua carreira, mas diversos são marcantes, especialmente em sua primeira década de trabalho em que ele colocou nas telonas A Longa Caminhada, Inverno de Sangue em Veneza e O Homem que Caiu na Terra. Essa trinca de filmes bem diferentes, uma jornada de amadurecimento, um horror psicológico e uma ficção científica contemplativa, tem como característica em comum uma ambientação que também se torna um importante personagem.

Se o outback australiano cria os desafios para o jovem britânico que lá se perde em A Longa Caminhada, o meio-oeste surreal americano serve de pano de fundo orgânico para a construção do império tecnológico do alienígena que vem para cá tentar salvar seu planeta em O Homem que Caiu na Terra. Em Inverno de Sangue em Veneza (o título brasileiro exageradamente dramático – especialmente em contraste com o discreto original, Don’t Look Now ou Não Olhe Agora, é em razão do título italiano A Venezia… un Dicembre Rosso Shocking) – o cineasta eleva o uso da ambientação à enésima potência, transformando os becos vazios, escuros, sujos e úmidos de uma Veneza aproximando-se do inverno em elemento essencial de construção de tensão e de uma atmosfera que oprime pela claustrofobia e confunde pelo labirinto que é formado.

A história, adaptada a partir de conto de Daphne du Maurier, se passa alguns meses depois que o casal britânico Laura (Julie Christie) e John Baxter (Donald Sutherland) perdeu a filha mais nova Christine (Sharon Williams) em um afogamento acidental, levando-o a se mudar para a cidade italiana, mas deixando o filho mais velho, Johnny (Nicholas Salter) em um internato na Inglaterra. John trabalha em restauração de igrejas para o Bispo Barbarrigo (Massimo Serato) que será em breve o anfitrião do casal em razão do fechamento dos hotéis da cidade em razão da época do ano. É nesse curto intervalo em que o turismo de Veneza desaparece e a cidade entra em uma bem molhada hibernação, que os estranhíssimos eventos do longa se desenrolam, com a conexão com a Igreja Católica e a restauração em que John trabalha oferecendo os ecos religiosos que permeiam a narrativa.

O estopim é quando John e Laura, ao almoçarem em um restaurante, conhecem duas irmãs de mais idade, Heather (Hilary Mason) e Wendy (Clelia Matania), a primeira cega, mas, ao que tudo indica, com poderes psíquicos, já que ela é capaz de ver a falecida Christine e dizer que a menina está “feliz entre os pais”, o que imediatamente encanta Laura, sofrendo de forma mais aguda com o luto da perda. John é mais cético, apesar de Heather dizer que ele também tem dons especiais que ele se recusa a enxergar. Em meio a essa dúvida plantada sobre as habilidades de Heather e a vontade de Laura de acreditar em qualquer coisa que a acalente, John tem visões – será que são visões? – de uma criança com roupa vermelha muito parecida com a capa que sua filha estava usando ao morrer e há, como pano de fundo, menções a um serial killer à solta na cidade.

Pode parecer muita coisa, mas Roeg sabe o que faz ao trabalhar uma Veneza gótica cuja frieza somos capazes de sentir através da tela, com uma paleta de cores exsanguinada, por assim dizer, cortesia da fotografia de Anthony B. Richmond (O Mistério de Candyman), que é pontilhada por explosões de vermelho que fazem a “temperatura” aumentar quase que instantaneamente. O uso de flasbacks e flashforwards é outro artificio genial para lidar com a presciência – ou não – tanto de Heather quanto de John, assim como o uso de truques óticos que vão desde a assustadora “mancha de sangue” no slide do preâmbulo, até os extremos close-ups nos olhos mortos da senhora que diz ser psíquica, além da montagem quase impressionista de  Graeme Clifford (The Rocky Horror Picture Show) que desafia até mesmo a linearidade dos acontecimentos. Tudo funciona na direção de desconcertar e confundir o espectador, fazendo-o duvidar de tudo o que Roeg coloca em tela, o que amplifica sobremaneira a impressão de confinamento, de falta de saída para aquele casal sofrendo pela morte da filha.

Contando com uma longa, quase explícita, mas muito elegante e potente cena de sexo entre o casal que marcou a década pelo quanto ela desafia os limites do padrão setentista em filmes mainstream e com um final absolutamente aterrador e inesquecível, Inverno de Sangue em Veneza, que foi lançado “em dupla” com o tematicamente semelhante O Homem de Palha, amealhou grande sucesso na época e ajudou a construir o que podemos chamar de “horror psicológico moderno” em que todos os elementos audiovisuais convergem para um estudo de personagens fascinante, um verdadeiro mergulho em mentes profundamente traumatizadas por uma tragédia.

08/06/24

Rebecca, a Mulher Inesquecível, Rebecca, 1940, Alfred Hitchcock

No iutubi aqui  


REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL, Alfred Hitchcock, 1940

Por João Bénard da Costa

Alfred Hitchcock chegou a Hollywood na Primavera de 1939. Chegou, viu e venceu. O seu primeiro filme americano - Rebecca - foi um enorme sucesso, obteve o oscar de melhor filme do ano e, ainda hoje, sessenta e oito anos após a estréia, permanece como uma das obras mais populares e repostas do grande realizador inglês.

Rebecca baseia-se num bestseller da então popularíssima escritora inglesa Daphne Du Maurier que Hitch já adaptara ao cinema no seu último filme inglês (Jamaica Inn, de 1939), e em quem se basearia, muitos anos mais tarde, para The Birds. Os direitos de Rebecca foram adquiridos por Selznick, o famoso produtor que levou Hitchcock para a América, mas curiosamente, este já pensara adaptar a obra quando ainda estava em Inglaterra.

Em relação ao livro há uma modificação sintomática a assinalar. No romance de Du Maurier, Max de Winter tinha efetivamente assassinado a primeira mulher. Os códigos vigentes, à época, no cinema americano, não permitiam, contudo, que o herói fosse um assassino e, ainda por cima, um assassino impune. Daí a transformação do crime em acidente, aliás pouco crível, como Max reconhece na sua confissão à segunda Mrs. de Winter (“Quem me acreditará?”). Só que a concessão, neste caso, parece ter vindo enriquecer a obra, pois lhe introduziu outra ambigüidade e o tema permanente de Hitchcock: é mais culpado o autor do ato ou quem, interiormente, o desejou? Mais uma vez, esta é, entre outras coisas, uma história de um falso culpado ou de um falso inocente.

Tema permanente de Hitchcock, disse eu. No entanto, sabe-se que o autor dizia que Rebecca não era um “Hitchcock picture”, confessando-se surpreendido com o êxito de um filme a que chamou “a novelette” e que achou “old fashioned.”

Pode-se legitimamente discutir esta asserção. Se Rebecca não é a Hitchcock picture, no sentido do arquétipo que a expressão contém (e é curioso encontrar no filme a marca de Selznick quase tão visível como a de Hitchcock), é um fato que encontramos no filme muitas das constantes do universo hitchocockiano.

Começo pela dualidade feminina. Se muito se tem reparado (porque óbvio desde o título do romance e do filme) na não aparição da verdadeira protagonista da obra - Lady Rebecca de Winter, onipresente e oniausente do primeiro ao último plano -, tem-se dado normalmente menos atenção ao fato de Joan Fontaine, presente em quase todos os planos do filme, nunca ser nomeada e acabarmos por não saber quais eram os seus nomes de batismo e de família. Contra a presença de um nome, Rebecca (imagem sempre oculta), a presença de uma imagem, Joan Fontaine (nome sempre oculto).

É entre o nome (permanentemente invocado e só visualizado na letra que o personifica) e a imagem (permanentemente vista e só nomeada por referência ao marido) que o conflito se vai travar, tendo, como “terceiro personagem” (tão ou mais importante do que elas), a casa Manderley, completamente separada do mundo, presença tão onírica como a de Rebecca e tão real como a de Joan Fontaine.

Entre Rebecca e Joan Fontaine, entre a primeira e a segunda Lady de Winter, outras ambigüidades se introduzem que o fabuloso personagem de Mrs. Danvers tanto ajuda a pontuar. Todas as informações dadas ao espectador, ao longo do filme, apontam para uma total dissemelhança entre as duas mulheres de Max de Winter, quer no aspecto físico (Rebecca morena, Joan Fontaine loura), quer no aspecto moral e psicológico (a pérfida e seguríssima Rebecca, a doce e inseguríssima Joan Fontaine). Só que, contra essas informações, temos, na famosa seqüência do baile, a transformação de Joan Fontaine em Rebecca. Quando Max se volta e a vê e quando a cunhada murmura “Rebecca”, sentimos que não é apenas a identidade do traje que produz o choque, mas que existiria porventura uma secreta semelhança (só nesse momento plenamente revelada) entre Rebecca e Joan Fontaine. No fundo, talvez não seja forçado pensar-se que aquelas duas mulheres são uma só (como a Judy e a Madeleine de Vertigo, também uma morena e outra loura) e que Joan Fontaine é uma “reencarnação” de Rebecca.

Em apoio desta hipótese há vários sinais: Joan Fontaine aparece a Max de Winter quando este (como mais tarde contará) revive o seu “vergonhoso contrato” com a primeira mulher, no mesmo sítio onde Max e Rebecca também tinham passado a lua de mel. No momento em que Max, suspenso do abismo, sobre o mar (a importância do mar nesta obra é capital) se “perde” nessa terrível memória, surge-lhe Joan Fontaine e, imediatamente, o protagonista se sente atraído para ela (pode aproximar-se essa memória do esquecimento do contrato nupcial no notário, após o casamento de Olivier e Fontaine). Por outro lado, o ódio de Mrs. Danvers por Joan Fontaine não deixa de ser ambíguo. É daquela a idéia de a vestir como Rebecca e as duas surgem-nos com os rostos fundidos no assombroso grande plano “catártico” em que Judith Anderson incita Joan Fontaine ao suicídio. Se Hitchcock insinua uma relação lésbica entre a governanta e Rebecca (pelo menos, Mrs. Danvers apaixonou-se por Rebecca e vive e morre dessa e para essa paixão) é também sexualmente ambíguo o seu amor/ódio pela segunda Mrs. de Winter, com traços fetichistas muito acentuados (Judith Anderson mostrando e acariciando as roupas interiores de Rebecca diante da sua nova Senhora; Judith Anderson querendo vê-la vestida como Rebecca).

Só que, a partir da noite em que Joan Fontaine vestiu a pele de Rebecca, a personagem transformou-se: o seu apagamento cessou e, após a confissão do marido (e é a primeira vez que, na obra de Hitchcock, a confissão tem um tão importante papel) ela passa a dirigir as operações e a comandar o comportamento de Max (é o desmaio dela que o salva durante o inquérito).

Notou-se a semelhança do filme com alguns dos grandes contos tradicionais: a Gata Borralheira, o Barba Azul. Mas se, até à noite do baile e da descoberta do corpo de Rebecca, Joan Fontaine é a “gata borralheira”, nessa noite abandona o borralho para, após a identificação do corpo da rival, conduzir o “jogo” e decidir a sua vitória. Vitória que exige a eliminação de Rebecca, de Mrs. Danvers e da casa, todas passando apenas a existir em sonho ou pesadelo, que são, afinal, a sua razão de existir. Por isso, a partir dessa seqüência capital, a câmara deixa de estar colocada no “ponto de vista de Rebecca” (repare-se que é esse o ponto de vista da genial seqüência da visita de Joan Fontaine, guiada por Judith Anderson, aos aposentos da sua predecessora) para se subjetivizar no olhar de Fontaine, no filme realmente (e mais desde que o marido se confessou) a única Mrs. de Winter. Aos seus pés vem cair o cão, até aí sempre associado a Rebecca, guardando-lhe as portas e os segredos. E, mais ainda, na noite da confissão, tempo e as duas mulheres fundem-se: quando Olivier evoca a noite da morte de Rebecca, vemos, na cabana, através do olhar de Fontaine, tudo quanto ele descreve (cinzeiros, cordas, etc...) como se tudo de novo se recapitulasse e viesse nessa noite, trazido pelo corpo de Rebecca e pela aparência de Fontaine (antes Judith Anderson perguntara-lhe se ela acreditava que os mortos podiam voltar para olhar os vivos).

De um outro ponto de vista, encontramo-nos uma vez mais, em plena lógica do sonho. No sonho se inicia o filme (“Last night I dreamt I went to Manderley again”) e a dimensão onírica dessa seqüência marca todo o filme, com a sua subseqüente associação à morte, à qual, desde a segunda subseqüente (contre-plongée de Olivier nas rochas de Monte Carlo), fica associado o amor entre Olivier e Fontaine (igualmente associados à morta Rebecca). Manderley é sempre o espaço desse onirismo. Quando o casal atravessa pela primeira vez o portão, é um dia de sol. Antes de chegarem à casa, subitamente tudo se obscurece e começa a chover. No fim, Olivier confunde o nascer do sol com a luz das labaredas: o novo dia é só o da consumação da casa e da personagem que existia por emanação dela: Mrs. Danvers.

Depois temos o tema do Barba Azul. Se o fascínio deste filme provém, em primeira leitura, da junção do estranho trio de protagonistas (um nome, um corpo e uma casa), numa segunda leitura retira-o da sua semelhança estrutural com esses contos de fadas. O encontro da Gata Borralheira e do Barba Azul dá-se num castelo cheio de tabus e esconderijos, onde há quartos a que é vedado o acesso, uma ala proibida donde se vê o mar, um espaço e um tempo em que reina o alter-ego de Fontaine, sobre o qual Max lhe proíbe todas as perguntas e onde os Cupidos se quebram.

O segredo da perdurabilidade deste filme fascinante está na sua estrutura dupla e dúplice, tanto quanto na sua estrutura mítica e onírica.

Entre o ar (as brumas, o nevoeiro) o fogo e o leitmotiv do mar (o “listen to the sea”) na simbologia dos elementos primordiais, o que fica é um apelo subterrâneo, convocando todos os nossos fantasmas e todos os nossos corpos, todos os nossos medos e todos os nossos desejos.

CRÍTICA | REBECCA, A MULHER INESQUECÍVEL por LUIZ SANTIAGO 25 de janeiro de 2020

François Truffaut: Está satisfeito com Rebecca?

Alfred Hitchcock: Não é um filme de Hitchcock. É uma espécie de conto e a própria história data do fim do século XIX. Era uma história bem velhinha, bem fora de moda. Naquela época havia muitas escritoras: não tenho nada contra, mas Rebecca é uma história sem nenhum humor.

Alfred Hitchcock mudou-se para os Estados Unidos no final de 1939, a convite do badalado produtor David O. Selznick, que tinha acabado de lançar …E O Vento Levou. A princípio, o diretor britânico estrearia em Hollywood com uma adaptação de Titanic, mas Selznick mudou de ideia sobre o projeto e, aproveitando a simpatia de Hitchcock para com a obra de Daphne Du Maurier (de quem já adaptara para o cinema A Estalagem Maldita e futuramente viria adaptar Os Pássaros), comprou os diretos do romance Rebecca e se propôs a produzir o filme, com Hitchcock na direção.

Apesar de Rebecca marcar a estreia do Mestre do Suspense nos Estados Unidos, trata-se na verdade de um filme tipicamente britânico, com a maior parte do elenco principal composto por britânicos. Assim, Hitchcock se sentiu em casa no quesito “equipe de trabalho” e, mesmo que tivesse Selznick dando ordens e interferindo nas filmagens com frequência, a produção não foi difícil, apenas não foi prazerosa para o diretor, que além do produtor rigoroso, tinha que lidar com um romance de época num momento de sua carreira em que o suspense já se alvorava no topo de suas ambições de filmagem.

A história é dividida em duas partes dramáticas. Na primeira, temos Maxim de Winter (Laurence Olivier) e a futura segunda Sra. de Winter (Joan Fontaine), personagem que nunca é chamada pelo nome… um mistério que o diretor segura até o fim da obra, sem nos revelar. Essa primeira observação é interessante porque mostra muita coisa da personalidade dependente e subserviente dessa jovem senhora que se casa com um homem cuja esposa falecida é adorada e lembrada por todos à sua volta.

Já a segunda parte do filme acompanha o longo caminho percorrido pela personagem de Joan Fontaine para se adaptar à casa e conquistar o seu lugar num mundo que parece só haver espaço para Rebecca, a mulher inesquecível.

A despeito da indiferença de Hitchcock para com o filme, trata-se de uma obra verdadeiramente notável, um início esplêndido do cineasta em Hollywood. O suspense não é o verdadeiro gênero da película, mas o drama psicológico que se desenrola na tela tem uma forte presença de elementos caros ao diretor, algo que foi ressaltado a contento no roteiro e também na concepção estética, partindo da música marcante de Franz Waxman e da excelente direção de arte de Lyle R. Wheeler, que tinha acabado de receber um Oscar por seu trabalho em …E O Vento Levou.

Hitchcock guia a história por um caminho que não só engana e prende o espectador como também o faz perceber a mudança visual de um ponto a outro da fita. Enquanto o casal protagonista está em Monte Carlo, percebemos um maior número de cenas em externas, fotografia mais clara e ambientes menores e bastante preenchidos, deixando claro uma aparência de verão feliz e amor nascente. Todavia, quando a jovem Sra. de Winter chega à nova casa, vemos aumentar drasticamente o número de cenas em internas, presença de cenas noturnas, prenúncio de tempestade, névoa e cômodos sempre muito grandes, deixando a personagem de Joan Fontaine pequena e perdida em meio a tanta pompa e na overdose de objetos e hábitos da falecida Rebecca. E quando a verdade vem à tona, de uma maneira orgânica e num acertado ritmo dramático, o espectador fica sem chão.

Durante o filme, tem-se a oportunidade de presenciar todo tipo de comportamento, desde ameaças e medo até demonstrações de amor, uma avalanche de sentimentos que desembocam no final com a medonha Sra. Danvers defendendo o santuário de sua amada e antiga patroa e a teia que a todos prendia se desfazendo, mesmo que o ambiente que lhe sustentara ainda pairasse na cena final.

Rebecca, a Mulher Inesquecível é um grande filme de Alfred Hitchcock, um drama de característica misteriosa com direito a dominação psicológica, tormentos e acusações a uma jovem frágil e sem grande poder de ação para mudar um mundo que parece querer afastá-la a todo custo. Poucos diretores conseguiram trabalhar tão bem pela primeira vez fora de casa, realizando um filme que não tinha lá muito appeal e um produtor ao estilo da personagem da Sra. Danvers. Isso só mostra o quão afiado Hitchcock estava a essa altura de sua carreira, depois de passar anos treinando e aprendendo em sua terra natal. Agora, com maior orçamento, mais experiência e melhor equipe de produção, ele estava pronto para mostrar que sabia fazer grandes filmes e Rebecca é o primeiro passo desse notável momento.

"REBECCA" (1940): UM POLÊMICO FILME LGBT+ DE HITCHCOCK! 

09/06/24

Cinco Dedos, 5 Fingers, 1952, Joseph L. Mankiewicz

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Joseph L. Mankiewicz (1909-1993) 

5 Fingers

Sinopse: Durante a segunda guerra mundial, a Turquia é um país neutro e em 1944, torna-se um viveiro de espionagem para diplomatas aliados e nazistas. Certa noite, durante uma recepção em Ancara, os embaixadores Franz von Papen, da Alemanha, e Sir Frederic Taylor, da Inglaterra, conversam com a Condessa Anna Staviska, viúva francesa de um conde polonês pro-nazista. A outrora rica socialite encontra-se tão pobre que se oferece para espionar a favor de von Papen, mas o embaixador gentilmente não aprova a ideia. Mais tarde, naquela noite, o adido militar alemão, L. C. Moyzisch, é abordado por um homem misterioso, oferecendo fotografias de documentos britânicos ultrassecretos por £20,000. Inicialmente, Moyzisch descarta a ideia, mas promete consultar von Papen. O homem concorda e, em seguida, retorna à embaixada britânica, onde trabalha como empregado de Sir Frederic, com o nome de Ulysses Diello.

Sir Frederic, ciente de que, no passado, Diello trabalhara para o falecido Conde Staviska, discute a pobreza da Anna com ele, sem saber que ele se encontra secretamente apaixonado por ela. Logo depois, von Papen pede permissão à Berlim para comprar os documentos e, uma vez aprovada, Moyzisch reúne-se com Diello, que recebera o codinome “Cícero”. Na ocasião, ele passa o filme e fica surpreso ao verificar que o mesmo contém a ata da Conferência de Teerã, promovida pelos aliados. Diello exige £15.000 para cada rolo adicional do filme e marca um novo encontro com Moyzisch em uma semana. Em seguida, ele segue para a área decadente da cidade, onde Anna mora. Ao chegar lá, ele lhe promete dar uma vida de luxo se ela esconder £5.000 dele.

Embora ela lhe dê um tapa por admitir seus sentimentos por ela, Anna concorda com sua proposta e, pouco tempo depois, ela se vê instalada em uma bela moradia. Enquanto isso, Moyzisch é chamado à Berlim, onde o General Joseph Kaltenbrunner e o Coronel von Richter, preocupados quanto à validade dos documentos de “Cícero”, decidem testá-los aguardando um próximo bombardeio aliado mencionado em um dos documentos. Por outro lado, quando o bombardeio ocorre, von Papen fica irritado porque os residentes da cidade não foram avisados, e Moyzisch é autorizado a comprar um outro conjunto de documentos de Diello, que os obtém ao roubá-los do cofre de Sir Frederic e fotografá-los.  Quando o Ministério das Relações Exteriores turco começa a suspeitar que von Papen esteja envolvido em espionagem, o agente da contra-inteligência britânica, Colin Travers, é enviado à Ancara, enquanto os alemães, temendo que “Cícero” esteja trabalhando para os aliados, enviam von Richter para investigar.

Diello, que está colhendo grandes somas através de seus roubos, aproveita seus aposentos na Villa de Anna, aprofundando seu relacionamento, mas se mostra alarmado quando as suspeitas de Travers recaem sobre ela. Os alemães, por outro lado, acreditam que Anna favoreça os ingleses e receiam que “Cícero” seja um espião britânico trabalhando ao seu lado. O coronel von Richter encontra-se com Diello, que insiste que seus motivos são puramente monetários e que todos os documentos que ele obteve nas últimas seis semanas são genuínos. Depois que von Richter vai embora, Diello comenta que seu sonho é viver na América do Sul, ocasião em que Anna promete acompanhá-lo. Nas cinco semanas que se seguem, ele habilmente evita as medidas de segurança de Travers e é muito bem pago por novos documentos fotografados, embora os oficiais alemães se recusem a agir com base neles.

Na esperança de testá-lo, von Richter solicita-lhe documentos sobre uma rumorosa operação britânica chamada Overlord e Diello, que apenas fotografa documentos "top secret", compromete-se a procurá-los. Travers, acreditando que os vazamentos são provenientes de descuidados comentários feitos em saraus na Villa de Anna, fica aborrecido ao saber que uma mensagem interceptada de von Papen alega que “Cícero” trabalha dentro da embaixada britânica. Assim, ele instala um novo alarme no cofre do embaixador, e Diello, temendo uma iminente prisão, não atende ao compromisso firmado com von Richter. Em vez disso, ele pede para que Anna obtenha passagens de trem e falsos passaportes para eles. Na manhã em que eles vão viajar, no entanto, ele fica atordoado ao descobrir que ela roubou seu dinheiro e fugiu para a Suíça, deixando para trás uma misteriosa carta endereçada a Sir Frederic Taylor.

Desesperado por dinheiro suficiente para fugir, Diello telefona para Moyzisch, dizendo-lhe que vai entregar os documentos da Operação Overlord em Istambul. Em seguida, ele remove o fusível do sistema de alarme e fotografa os documentos do cofre, mas quando uma mulher da limpeza o recoloca, o alarme soa e Travers vê Diello fugindo. Assim, conhecendo o esquema de Diello, Travers e seus homens o seguem até Istambul, onde pretendem matá-lo antes que ele faça uso das sigilosas informações que detalham os planos dos Aliados para o Dia “D”. Von Richter, que pretende matar Diello, ao invés de deixá-lo cair em mãos britânicas, também envia seus homens à Istambul.

Durante a viagem de trem, Diello lê a carta de Anna, na qual ela informa Sir Frederic que seu criado é um espião alemão. Apesar de sua fúria pela traição, Diello consegue escapar de seus perseguidores e vender os documentos aos alemães por £100.000. Em seguida, ao perceber que os nazistas pretendem matá-lo, ele se rende à Travers, mas logo consegue fugir. De volta à Ancara, von Papen recebe uma carta de Anna, dizendo-lhe que “Cícero” é um espião britânico, o que faz Von Richter descartar as informações sobre os planos de invasão dos aliados.

Mais tarde, Diello, descansando feliz no Rio de Janeiro, é visitado por seu banqueiro brasileiro, acompanhado de um policial. Os homens o informam que seu dinheiro é falso, e que as falsificações também foram encontradas na posse de uma mulher que vive na Suíça. Ao ser preso, ele ri e, arrependido, grita: "pobre Anna !."

11/06/24

Cronicamente Inviável, 2000, Sergio Bianchi

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Por AIRTON PASCHOA*

Comentário sobre filme de Sérgio Bianchi

Logo no início, o filme Cronicamente Inviável, dirigido por Sérgio Bianchi (2000), revela seu princípio de construção. Na intervenção do diretor, quando se refazem duas cenas, para torná-las “mais adaptadas à realidade”, ganha corpo e voz a lei poética que passará a reger os diversos quadros dessa estrutura episódica. Antes de refazê-las, de adaptá-las mais à realidade, numa alusão provavelmente que ela — a realidade — é mais perversa que a ficção, ou que a ficção não logra alcançar sua crueldade, antes de exibir, enfim, cenas mais realistas, com os mendigos sendo proibidos de comer restos de comida e de dar de ombros a madame ao esquecer o pagamento da faxineira, um ruído de choque de veículo anuncia a reelaboração ficcional, antecipando uma resolução frequente do filme, pela violência, a qual examinaremos mais adiante.

Esse princípio de construção irrompe ainda em mais dois momentos, quando nova intervenção in off declara — depois de mostrá-la em sua “verdadeira infância”, submetida ao trabalho escravo na produção de carvão no Centro-oeste — que “inventar outro passado para Amanda não chegaria nem a ser uma mentira”, e logo a vemos, a “sofisticada gerente do restaurante do Luís”, em pleno idílio com a natureza, no mundo encantado do mato virgem e de nossas mais caras lendas, penteada carinhosamente pela mãe, colhendo e comendo caju, tomando banho de cachoeira…

Em outro momento, a mesma voz in off complementa, no mesmo sentido, que “inventar outra profissão para Amanda não chega nem a ser uma mentira, da mesma forma que não foi uma mentira inventar seu passado bucólico”, e passamos — após apreciá-la cuidando carinhosamente dos seus negócios, isto é, engordando-os, literalmente, na ala infantil de algum hospital, — passamos a acompanhá-la em entrevista, adentrando novo ramo, um “Centro Profissionalizante p/ Índios”. Em lugar de comerciar carne tenra, a flagramos desta vez a agenciar nativos em ONG financiada por banco holandês…

Se atentarmos porém às alternativas ficcionais que nos propõe essa lei poética (proibir ou não proibir mendigos de comer restos de comida; sentir ou não sentir remorso por esquecer o dinheiro da empregada; ser criança carvoeira ou ser criança feliz; traficar órgãos infantis ou agenciar índios), notaremos que não constituem propriamente alternativas. Ora melhorando, ora piorando a primeira realidade ficcional, mas não a mudando substancialmente, alterando-a portanto mais ou menos, as alternativas integram uma espécie de sistema de equivalência geral, no qual as coisas são mais ou menos iguais, se equivalem em alguma medida, assim ou assado, — um sistema pois em que tudo vale mais ou menos tudo e nada muda radicalmente nada, e que põe no mesmo plano, numa variação de escala que apenas repete a invariabilidade de resultados, tanto o mais quanto o menos criminoso.

A esse princípio de construção poético, que regula o universo fictício do filme, podemos dar o nome de lei de equivalência geral, — uma lei que organiza fundo os vários planos do mundo que cria. É a mesma lei, por sinal, que permite compreender a “psicologia”, digamos, instável de uma personagem como Maria Alice, oscilando exasperada entre o cinismo, a caridade e a crueldade, num mesmo continuum por vezes, como a sua primeira intervenção, a qual abre o filme.

Mas haveria mesmo diferença entre sentimentos tão díspares? Noutra sequência, ao exibi-la divertindo-se macabramente com crianças se matando por brinquedos, que ela mesma dera de presente a duas das iscas, aprendemos que a filantropia pode ser uma forma de crueldade.

Não é ainda outra lei que justifica admitir, sem crise de verossimilhança, que um intelectual de esquerda, preocupado com “formas de dominação autoritária”, autor de um livro de combate, Brasil Ilegal, e de repercussão, discutido em programa de tevê, que este mesmo intelectual militante trafique órgãos de crianças para completar o orçamento doméstico. Assim tanto faz se escrevem livros ou se desmancham criancinhas, pois, no fundo, no fundo, são formas de violência, do corpo ou da realidade, física ou intelectual, pouco importa.

Mas por que pouco importa? por que tanto faz? por que tudo mais ou menos se equivale? Exatamente por isso. Porque a violência reponta como denominador comum, como uma espécie de equivalente geral, apto a resolver todas as equações que arma o filme. Dito de outro modo, a lei de equivalência geral tem também sua moeda corrente, que regula todas as trocas sociais: a violência.

Em violência se resolvem muitos quadros do filme, direta ou indiretamente. Assim, fazendeiros e sem-terra se equivalem pela violência; como pela violência se equivalem mãe apanhando de filho e adolescente assaltante apanhando de populares e paramilitares. A violência do patrão, que come e cospe, equivale à dos assaltantes, que o fazem cagar de medo. Assaltar não tem graça, o divertido é humilhar… Se não se bate na patroa, bate-se no mais próximo, na empregada, e namorada. Se não se bate no passageiro “civilizado”, que reclama segurança, bate-se o táxi. Quando crianças de rua não se matam por brinquedos, resolvendo diretamente um quadro, são mortas por atropelamentos, os quais resolvem indiretamente duas cenas de tensão no restaurante grã-fino (uma discussão envolvendo o garçom, a negra e a judia, e outra, quase ao final do filme, entre Maria Alice e Luís, sobre fugir ou não fugir do país; na hora do brinde a Nova Iorque, em vez de vidros tilintando, ouvimos o barulho de vidros de carro estilhaçando, em novo atropelamento).

No “retrato falado” do Brasil, levado a cabo pelo intelectual progressista em suas andanças a serviço, se assiste amiúde a quadros de violência: são índios, foliões, adolescentes de rua, todos devidamente apanhando da polícia. Isto, quando não é a própria natureza violentada, e a violência ganha então foros de atributo essencial do Homem, e não mais apenas do brasileiro e seu “conhecido espírito de extermínio”, atingindo as raias da Ontologia (Homem, teu nome é destruição!), como na sequência da queimada e da devastação ecológica na Amazônia.

Pela violência, a experiência fundamental do filme, passam praticamente todas as figuras centrais: Alice apanha do filho; Josilene, do amante (Osvaldo); Carlos é vítima do taxista; Adam, do patrão; este, por sua vez, é agredido pelos assaltantes.

Não bastasse sua presença em sentido estrito, pululam ainda no filme suas mais variadas formas, como a violência verbal, nas discussões de trânsito, de rua; a violência virtual, nos famélicos sob a alça de mira (policial?); a violência sexual (a aula de putaria, ministrada por Jair a Adam); a violência de classe (a aula de pregar botão, ministrada por Carlos à empregada; a aula de pôr mesa, ministrada por Amanda ao garçom; a aula de terrorismo… “sem violência”, psicológico? ministrada por Adam a trabalhadores embasbacados; a aula de legalismo, ministrada a uma plateia pasma pela segunda madame do atropelamento; sem contar a teoria do trambique nacional, defendida por Carlos, e a de Luís, para reduzir em dois terços a “contradição social”, baixando de três para um o número de refeições por dia).

 

O que resulta dessa lei de equivalência geral, e dessa violência generalizada? Resulta, para além de uma estrutura episódica, fragmentada, a que poderíamos subtrair ou acrescer quadros indefinidamente, uma estrutura por assim dizer paralítica. E isto por várias razões: paralítica porque não ocorre propriamente progressão dramatúrgica (nas situações vividas, de pouco desenvolvimento, e resolvidas rapidamente, brutalmente quase, em lances de violência, é como se tudo passasse mas não transcorresse); paralítica porque estamos nós, espectadores extraídos em média dos mesmos estratos sociais, submetidos sistematicamente à paralisia do choque; paralítica ainda porque predomina o sentimento de sem-saída, de impotência ante um mundo fechado e sufocado, ordenado pelo crime e para o crime.

Não precisa dizer quão sombrio sai o retrato do país, tingido dum negativismo total, radical, absoluto. Sem invalidar seu diagnóstico, e prognóstico, que assim não dá pé mesmo, interessa-nos agora procurar especificar um pouco a posição social do legislador (legista?) desse universo ficcional – entendendo por isso, convém deixar claro, não a pessoa do diretor, nem a de seus colaboradores, mas aquela instância narrativa que estrutura um certo olhar do filme.

Felizmente ambicioso, querendo dar conta do estado nosso, retratá-lo imparcialmente de norte a sul, de leste a oeste, Cronicamente Inviável mobiliza, para tanto, uma multiplicidade de discursos, de enfoques, os quais defrontam ferozmente entre si, conformando uma verdadeira praça de guerra: o discurso sem-terra; o discurso proprietário; o discurso indígena; o discurso civilizado ou civilizador (pelo intelectual de esquerda); o discurso multiculturalista; o discurso regionalista ou separatista; o discurso neoliberal (executiva do Banco Central); o discurso das minorias ou do politicamente correto; o discurso das ONGs; o discurso legalista (da segunda madame do atropelamento); o discurso “alienado-religioso” (da sem-teto) etc. O mote de todos eles — a famigerada desigualdade social brasileira, ou o país em situação socialmente trágica.

Como o filme porém traz um núcleo de figuras centrais (menos personagens e mais tipos sociais talvez, reconhecíveis pela fala), predomina, porque recorrente, certo discurso, por assim dizer hegemônico, proferido — com a tradicional grossura da nossa gente fina,[1]numa encenação já evidentemente crítica — à mesa de restaurante elegante de São Paulo, o “restaurante do Luís”. Que fazer? nada? alguma coisa?

Dentro do clubinho, formado por pequenos empresários, Luís e Carlos, cínicos e indiferentes, reproduzem, com perdão do sociologismo vulgar, o discurso de nossos estratos médios “globalizados”, e que, reproduzindo, por sua vez, a visão de nossas elites desterritorializadas, não vê saída senão pelo aeroporto, rumo a Nova Iorque, onde “a violência é mais civilizada”. Esse ponto de vista “globalizado”, requentando a tese da inviabilidade nacional por razões raciais e/ou culturais, é como que ilustrado pelo périplo de Alfredo pelo país ilegal, cujo “retrato falado” apenas acentua seu círculo vicioso (o rosto?) de miséria e violência.

Em oposição ao discurso vitorioso, sobressai apenas o de Adam, dado que Amanda sempre cala, Valdir e Ceará saem de fininho (quando a patronal gerente surge de repente no vestiário dos funcionários para esculhambar Adam, sempre atrasado e relapso) e Josilene, como boa “escrava”, ofende mas defende a patroa ato contínuo, quando a vê ameaçada pelo namorado. Quanto ao discurso do garçom “terrorista”, como considerar de fato alternativo um discurso que prega a revolução em hora de rush, em ônibus superlotado, e na primeira oportunidade baixa… a guarda, digamos, aos encantos do patrão? ou que prega o terror… sem violência?

Não havendo oposição consistente ao ponto de vista hegemônico, talvez uma leve diferença em seu interior nos permita vislumbrar o ponto de vista que organiza o filme, sua posição social.

Graças a suas oscilações, sua exasperação, seus espasmos, sua histeria, Maria Alice funciona como uma espécie de pêndulo nervoso, ameaçando ir de um polo ao outro do espectro ideológico das nossas camadas médias, ora se aproximando, ora se afastando do dominante, ora aderindo a ele, ora o negando. Visto que o “fazer alguma coisa” da personagem se trai por si só, por não ultrapassar a caridade com as crianças de rua ou a amabilidade com seus motoboys, Maria Alice não avança até o polo contrário, mais crítico.

Não avança mas abre caminho. Quem o faz, quem avança por essa brecha, é o filme, condenando o discurso internamente hegemônico, cínico ou compassivo, de nossa classe média “globalizada”, — admiravelmente exposta aliás em suas entranhas nauseabundas, — aquela que está conectada (uma palavra chave) ao alto padrão de consumo do Primeiro Mundo; aquela, viajada e esclarecida, cacoetada de marxismos, que conhece na carne as mazelas da periferia e reconhece no corpo as benesses do centro, e na qual se incluem tantos artistas e intelectuais nossos; aquela classe média, enfim, que aprendeu a apreciar as delícias da Civilização do Capital, com suas prateleiras abarrotadas de bens, materiais, culturais, tanto faz, e cujo sonho, no fundo, no fundo, é consumir em paz.

À semelhança dos outros pontos de vista mobilizados, encenados todos criticamente, quando não satirizados, a leve fratura no interior do clubinho, meio cindido entre o cínico e o compassivo, que se autodestroem mutuamente à mesa do restaurante, é igualmente desclassificada. Vale dizer, o filme expõe mas não esposa o ponto de vista internamente hegemônico.

Mesmo mantendo-se dentro do campo de visão das classes médias, em sua desconfiança extrema de pontos de vista “extremistas”, sejam positivadores, via “globalizados”, sejam negadores, via organizações populares e/ou socialistas, como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra), o enfoque do filme se desloca do polo vencedor, desqualificando-o também em sua versão filantropa, ao polo oposto, como que fazendo coro com frações médias urbanas e radicalizadas, embora avessas a radicalismos, daquelas que tanto fizeram (e fazem) falta à nossa história, e cujo anseio mais profundo, quase inconsciente, ecoa certa mudança dentro da ordem, democrática, social-democrática, capaz de varrer das ruas a miséria nacional, autenticamente social-democrata, à europeia, referência sempre obrigatória – uma posição social não muito dissonante, em moldura nacional, de certo petismo (aliás, o hegemônico).

Para uma contraprova, basta continuar um pouco o filme. No quadro final, espécie de documentário encenado, ou encenação documental, com tipos e fala autênticos, o discurso da mãe sem-teto lobriga para o filho um futuro de “grande homem”. Sarcasmo à parte (futuro aos sem-futuro?!), e desconsiderando que já nem sabemos o que significa isso numa sociedade de massas (“grande homem” sem criado de quarto!?), podemos traduzir o anseio maternal por “doutor”, em termos nacionais, ou senhoriais, termo obviamente conservador, mas ajustado, na visão do filme, à mentalidade passiva, senzalesca, própria do lúmpen e seus afins, os trabalhadores e serviçais, rurais ou urbanos, sempre boquiabertos ante instruções que mal compreendem, manipulados que são por lideranças criminosas e ignorantes, pois as eventualmente legítimas não aguentam e caem fora (relembremos a “companheira” que discute com o “capataz” dos sem-terra e sai esbravejando que “trabalhador é diferente de escravo”).

O olhar conservador dirigido aos de baixo não implica contudo conservadorismo absoluto. Na perspectiva do filme, não mais do lúmpen visto por ele, não é o “doutor” que desponta, este também sob suspeição (recordemos a aula de legalismo da segunda madame do atropelamento, e a breve mas contundente lição legalista de outra madame, certamente doutora também, ao motorista de ônibus: “se me encostar um dedo, eu acabo com tua vidinha de nordestino burro!”).

No seu horizonte de estratos médios urbanos radicalizados, o qual, como se viu, desautoriza — sem exceção — um a um os tipos sociais acionados (os “globalizados”, cínicos ou compassivos; os trabalhadores, bocós, quando não revoltados e ressentidos; os intelectuais, impotentes e vendidos; os sem-nada, sem futuro, senão como alvo de fuzil, e por aí vai), o “grande homem” não ficaria longe do ser abrigado das necessidades mais elementares, do “homem comum”, por assim dizer, com seus direitos básicos resguardados (até quando, sabe Deus, ou o Capital…), conforme o bê-á-bá da cartilha social-democrata, de cuja justeza humana, a propósito, ninguém, de sã consciência, discordaria, nem sequer os donos da vida… não fossem os malditos constrangimentos do mercado! Numa palavra, sua concepção de homem não estaria longe do “cidadão”, em linguagem mais progressista e universal (ou ocidental).

O sentimento de impotência, de sem-saída, que dá na encenação nervosa, exasperada, inconformada, quiçá desesperançada, e que o quadro final ameaça melancolizar, com relembrar os milhões de vidas desperdiçadas, praticamente natimortas, sem futuro humano à vista, a curto prazo, pelo menos, — deriva da constatação que o homem brasileiro está muito aquém do “cidadão comum”, da certeza talvez que a urgência da nossa tragédia social, do nosso drama nacional, não sofrerá solução (se for o caso) em compasso idêntico.

Para rematar, não podemos senão saudar este filme formidando, endoscopia ofuscante que é dos movimentos ideológicos intestinos de nossas classes médias, debatendo-se convulsionadas ante o séquito de horrores que põe em cena nossa odiosa desigualdade social. Da encenação memorável desse enfoque hegemônico, mas fraturado, Cronicamente Inviável retira sua força explosiva, nela residindo sua grande novidade — sua novidade e seu limite.

*Airton Paschoa é escritor, autor, entre outros livros, de A vida dos pinguins (Nankin, 2014)

Publicado originalmente na Revista USP n.º 49, mar/abr/mai/2001 sob o título “A classe média vai ao inferno”

Sala de Cinema: Sérgio Bianchi 

12/06/24

A Navalha na Carne, 1969, Braz Chediak

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Por Andrea Ormond

Braz Chediak era um garoto cinéfilo, emigrado de Três Corações, Minas Gerais, e visto com desconfiança às vésperas da filmagem de “Navalha na Carne” (1969). “Os Viciados” – seu projeto anterior – fôra um fracasso, mas ainda assim ele recebia o gentil incentivo de Jece Valadão, o todo-poderoso da Magnus Filmes.

Como havia roteirizado “A Noite do Meu Bem” (1968) – cinebio de Dolores Duran – e Jece enxergava nele um talento a ser burilado, Chediak iniciou os trabalhos em “Navalha na Carne” com a certeza de estar diante de um mundo de ansiedades. Se perdesse o trilho novamente, talvez não voltasse a dirigir.

Interessante no jogo de personas e de publicidade que cercam o fazer cinematográfico, seu nome não é o mais cotado ao se falar do sombrio “Navalha na Carne”. Glauce Rocha (Neuza Sueli), Jece (Vado) e Emiliano Queiroz (Veludo) costumam surgir em posição mais favorável.

Entretanto, é preciso que se diga que certos detalhes responsáveis pela essência do filme foram escolhas pessoais do diretor. Exemplos: a opção pelos planos-seqüências longos, claustrofóbicos; a interiorização dos conflitos.

Neste sentido o silêncio histérico de mais de 26 minutos, antes de qualquer personagem falar alguma coisa, é um ponto bastante eloquente para a adaptação da peça teatral de Plínio Marcos – autor geralmente catalogado entre os que previam altos decibéis em gritos e urros dos personagens.

Esse vazio, esse nada acústico – salvo os ruídos cenográficos, como o arrastar de chinelos, carros passando, cachorros latindo – de cerca de meia hora serve para ambientar a prostituta Norma, o cafetão Vado e o homossexual Veludo, arrumador e faz-tudo do moquifo onde os três vivem.

Filmada anonimamente, com a câmera oculta, pelas proximidades da Lapa – zona central do Rio de Janeiro –, Glauce Rocha caminha no trottoir desmemoriado, automático, à busca de freguesia. Reza a lenda que foi reconhecida por um fã ardoroso que se mostrou penalizado pelo triste fim da atriz. Minutos depois, o mesmo senhor perguntou-lhe quanto seria o preço do programa.

Sorte de Chediak foi ter Glauce como protagonista. Quarta opção, depois das saídas de Tonia Carrero – que interpretara Norma Sueli no palco, ao lado de Nelson Xavier e Emiliano Queiroz –, Norma Bengell e Tereza Rachel, Glauce pareceu de fato bem mais talhada para o pé no chão e a tortura emocional e física de Neusa. Desprendida, o olhar roto, os traços empobrecidos e no limiar do suicídio, a cupincha de Vado tem com ele um leva-e-traz de humilhações, na sangria de ser esbofeteada e considerada a pior entre os piores.

Outro vértice do triângulo, Vado oscila com Veludo entre a ojeriza e o respeito quando percebe que o boy efeminado sabe se posicionar e jogar no esquema de achincalhes a Norma. Pode-se até afirmar que a situação deixe o espectador antever em Vado algum componente longinquamente homossexual que, recalcado e neurotizado, justifique tamanha agressividade à mulher.

Aliás, na esfera GLBT “Navalha na Carne” responde por outro aspecto relevante. A interação entre Veludo e o namorado (pago) impacta se considerarmos o momento pós-AI-5 em que as cenas foram rodadas. Captam a entrega e o brilho dos rapazes, no ambiente perdido, decaído, sujo.

Assim como estas, as cenas de Neuza e do cliente solitário (Carlos Kroeber) se passam naquele silêncio do começo. O olhar assombrado de Neuza, em um lugar completamente diferente do que no quarto com o homem asqueroso, constrói o semblante depressivo, doentio.

“Às vezes eu chego a pensar: poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente?” Talvez este pequeno monólogo de Neuza, desvendando-se para Vado, sirva de resumo para a narrativa.

A abordagem naturalista – e humanizadora – de “Navalha na Carne” mostra atos corriqueiros dos três. Esvaziam urinóis, lavam as mãos e as roupas íntimas, penduradas em cordinhas apodrecidas; fumam a “erva”, célebre na época nos ambientes de prostituição. A equipe do filme pesquisou in loco os Arcos da Lapa, participando Brás, Helio Silva – responsável pela engenhosa movimentação da câmera no filme – e Emiliano Queiroz.

Fora das telas, censura ferrenha do DOPS, como seria de se esperar. Várias redublagens de trechos, gravados em tom diferente do original, numa estratégia frequente dos realizadores que tentavam demonstrar para o público que a tesoura havia passado por ali.

O longo close final em Neuza mordiscando um pedaço de pão amanhecido, em um meio-sorriso louco, deixa outro acerto da obra. O tanto de dor e de fadiga que revela demonstram que a atriz – bem como os outros dois atores – alcançara um patamar redentor.

E conclamados pela crítica e pelo sucesso retumbante nas bilheterias – que chegou em bom tempo para a Magnus Filmes –, Brás Chediak e Jece Valadão investiriam mais uma vez na obra de Plínio Marcos. O filme: “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, o ano: 1971, como já tivemos a oportunidade de comentar nas páginas do Estranho Encontro.

14/06/24

Uma Aventura na Noite, Somewhere in the Night, 1946, Joseph L. Mankiewicz

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Por Sérgio Vaz

Joseph L. Mankiewicz é um dos maiores diretores do cinema americano. Sua obra não é das mais vastas, numerosas – são 22 títulos, lançados entre 1946 e 1972 –, mas inclui muitos grandes, excelentes filmes, como A Malvada/All About Eve (1950) e A Condessa Descalça (1954).

Roteirista maravilhoso, dono de um texto brilhante, povoou seus filmes com diálogos magníficos, inteligentes, afiados. Jean Tulard o definiu como “o mais inteligente dos diretores de Hollywood”.

Assim, fica difícil acreditar que este Somewhere in the Night, no Brasil Uma Aventura na Noite, seja um filme de Mankiewicz. Lançado nos Estados Unidos em maio de 1946, foi seu segundo filme como diretor, e ele assina o roteiro, ao lado de Howard Dimsdale, que se baseia em uma história de Marvin Borowsky, adaptada por Lee Strasberg.

Ver o nome de Lee Strasberg (1901-1982) como autor da adaptação da história original, para que ela então fosse roteirizada por Mankiewicz e esse outro nome que eu não conhecia, me surpreendeu bastante. Não sabia que o grande professor de atuação, um dos criadores do famosérrimo Actors Studio de Nova York, responsável pela formação de Marlon Brando, Paul Newman, James Dean, Dustin Hoffman, Al Pacino, entre tantos outros, havia mexido com roteiros. E depois vi que de fato ele só fez isso neste filme aqui.

E o grande problema do filme é exatamente o argumento, a história, a trama. A história não faz sentido algum!

É um policial, um noir – e muitos filmes noir têm mesmo trama confusa, enevoada, nublada. Mas não é que este Somewhere in the Night tenha uma trama confusa. A trama simplesmente não pára de pé. Não faz sentido. É, como muitíssimo bem definiu a crítica do filme no New York Times, assim que ele estreou na cidade, no Cine Roxy, “a large-sized slice of hokum” – um grande pedaço de besteira.

Adorei ver essa definição. Me senti aliviado: ah, então não fui só eu, não fomos só a Mary e eu.

“A large-sized slice of hokum”. Hokum, no ótimo Exitus, é bobagem, tolice, absurdo.

Uma grande, uma enorme besteira.

Um homem ferido na  guerra e com amnésia

Começa com um homem que havia estado desacordado, inconsciente, começando a abrir os olhos. Está num hospital de campanha, uma enfermaria militar atulhada de feridos, no Havaí, durante a Segunda Guerra Mundial – e não sabe quem é, onde está. Uma vítima de amnésia. E bastante ferido: o braço esquerdo está imobilizado, a cabeça está quase toda enfaixada, há arames na sua mandíbula.

Ouve as pessoas o chamarem de George Taylor – então supõe que seja mesmo um tal de George Taylor. O ator que o interpreta é John Hodiak.

Passa para um bom hospital, ainda no Havaí. E logo está em um hospital melhor ainda, na Califórnia.

Mary ficou bastante intrigada com o fato de que o protagonista da história sofreu amnésia, não se lembra de absolutamente nada – mas não se esqueceu como ler e escrever. Nem desaprendeu a enganar todo mundo ao fingir que não está com amnésia. Mas vamos em frente.

O Exército americano o dispensa, com agradecimentos e medalhas por bravura nas batalhas de que não faz a menor idéia. O soldado que o comunica sobre sua dispensa menciona que uma bolsa dele havia sido encontrada – será que ele gostaria que o Exercito a despachasse para seu antigo endereço, o Hotel Martin, em Los Angeles? Solícito, o militar consulta umas fichas e “Você vai voltar a se hospedar ali?” Pronto: agora George Taylor sabe que morava em Los Angeles, no Hotel Martin.

George Taylor vai ao Hotel Martin, em Los Angeles, vestindo sua vistosa farda, medalhas no peito, e pergunta ao funcionário se George Taylpr, que estivera hospedado naquele hotel uns três anos atrás, havia deixado algum endereço. O funcionário consulta os livros, não acha nada. O desmemoriado pergunta se eles têm um quarto vago – e assina no livro de registros, para absoluto espanto do funcionário: “George Taylor”.

Nosso herói vai então ao local que o militar havia indicado, onde ele havia deixado uma pasta. Lá dentro, ele encontra um revólver e um bilhete, escrito no papel timbrado de um salão de massagens e sauna chamado The Elite Baths: “Caro George, depositei US$ 5 mil em seu nome no (banco tal, agência tal). Esta carta servirá para identificar você. Me procure quando tiver alta. Seu amigo, Larry Cravat”.

George Taylor começará então, a partir do tal The Elite Baths, o que será uma longa, penosa procura por Larry Cravat, um sujeito que poderia – assim ele crê – contar quem, afinal de contas, ele mesmo é, o que fazia na vida…

Assim que começa sua busca por Larry Cravat, passa a ser perseguido por pessoas que ele não sabe quem são – nem por que estão o perseguindo.

Em seu caminho vão surgir, entre outros, uma bela cantora de nightclub, Christy (o primeiro papel de Nancy Guild), o dono daquele e de outros nightclubs, Mel Phillips (Richard Conte), um tenente de polícia, Donald Kendall (Lloyd Nolan), uma mulher misteriosa, Phyllis (Margo Woode), e um sujeito muito esquisito que se apresenta como adivinho, vidente, Anzelmo (Fritz Kortner|) e tem um capanga fortão que dá uma brutal surra em George Taylor. Quem interpreta o capanga Hubert é Lou Nova, um sujeito que, li isso depois, era um lutador de boxe.

Vai surgir ainda um velhinho, Conroy (Houseley Stevenson), internado como caso perdido em um hospício, que é assassinado por alguém ligado ao tal Anzelmo. Como invade o hospício para falar com Conroy, e chega lá quando ele acabava de ser esfaqueado, George, é claro, vai se tornar o principal suspeito do crime.

Tinha que ter uma mulher na história, e então…

Falo um pouquinho de Christy, o female interest do filme, e depois passo a palavra para os outros.

Female interest. É uma regra de ouro de Hollywood que os filmes têm que ter um personagem feminino para interessar às platéias. E então criou-se o personagem de Christy – interpretado por essa atriz tão bela quanto rápida em sua passagem pelo cinema: Nancy Guild (1925-1999) fez apenas oito filmes e três séries de TV.

Quando o filme está com 18 dos 108 minutos de duração, George Taylor, fugindo de dois sujeitos mal encarados, em um nightclub diante da casa de sauna e massagem, entra no primeiro aposento que não está fechado, nos fundos do lugar. É o camarim em que uma moça muito bonita se maquiava diante de um grande espelho.

– “Você esqueceu de bater”, diz Christy ao desconhecido. Para, dali a bem pouco, dizer outra frase ótima, igualmente cheia de ironia: – “Daqui a uns dois minutos, um segurança vai chegar aqui sem qualquer senso de humor. Ele é uns 30 centímetros maior que você em todas as direções.”

Pois bem. No dia seguinte, depois de ser duramente espancado pelo capanga do tal Anzelmo, e não podendo voltar para o hotel porque seus perseguidores estariam lá esperando por ele, George Taylor vai procurar abrigo justamente no belíssimo apartamento de Christy. (Cantora de nightclub em filme ruim ganha bem, né? comentou a Mary, com um sarcasmo parecido com aquela frase sobre os 30 centímetros maior em todas as direções.)

E, um ou dois dias depois disso, Christy confessa para o patrão Mel Phillips: – “I’m nuts about the guy”. Sou louca pelo cara.

É. De fato, “não é do mesmo nível das obras posteriores de Mankiewicz”, conforme sentenciou Leonard Maltin – que, no entanto, disse que o filme é um “drama satisfatório de Hodiak com amnésia tentando descobrir sua verdadeira identidade” – e deu 2.5 estrelas em 4 para o hokum.

“A narrativa joga a lógica ao vento cortante”

Hokum. Aqui vai a crítica publicada pelo New York Times no dia 13 de junho de 1946, assinada por Bosley Crowther:

“Aparentemente, Joseph L. Mankewicz, que dirigiu e foi um dos quatro que escreveram (ou é creditado pela autoria de) a nova atração do Roxy, Somewhere in the Night, é um admirador ardente de Alfred Hitchcock, porque neste filme, o primeiro que ele dirige, manifesta uma impressionante imitação do estilo melodramático e granulado de Hitchcock. Suas imagens são nítidas e realistas em sua representação de episódios bizarros, seus personagens são apresentados vigorosamente e o movimento do conjunto é rápido e tenso. Enquanto mera encenação melodramática, este filme da Twentieth Century-Fox é bom. Mas a história…”

Interrompo o texto para registrar que Bosley Crowther se equivocou ao dizer que este foi o primeiro filme dirigido por Mankiewicz. O primeiro foi Dragonwyck, no Brasil O Solar de Dragonwyck, filmado e concluído entre fevereiro e maio de 1945, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, portanto, e lançado nos cinemas dos Estados Unidos em 10 de abril de 1946.

Este Somewhere in the Night foi filmado e concluído entre novembro de 1945 e janeiro de 1946, e estreou em 30 de maio de 1946.

E é agora que o texto de Bosley Crowther chega no ponto de que eu mais gostei:

“Mas a história é um grande pedaço de besteira, começando com a proposição de que um veterano seria liberado de um hospital naval sofrendo de amnésia. E desse dúbio ponto de partida, a narrativa joga a lógica ao vento cortante ao contar os esforços sinistros desse veterano para descobrir quem ele é. Com base na suposição de que tal homem conseguiria suportar as durezas que tem pela frente, imediatamente ele começa a seguir uma trilha fina de pistas auto-reveladoras, A probabilidade de tais mistérios titânicos revelaram quem ele é parece logicamente remota. Contudo, a maior indiferença dos autores parece ter sido encontrar uma explicação razoável para a trama progressivamente complicada. Quanto mais o cavalheiro sem lembranças persegue seu passado misterioso e se confronta com vários personagens bizarros e brutais, mais ele – e o espectador – ficam confusos. Aparentemente o diretor e seus associados conseguem juntas as peças mais para o fim, mas este escritor aqui ainda está completamente perplexo. Quem era quem, e quem levou o tiro?”

Diacho! Eu gostaria de ter escrito esse texto!

“A confusão louca história inspira apatia”

Ah, meu… Vou continuar a traduzir-transcrever a crítica, porque ela é boa demais!

“John Hodiak interpreta o veterano apagado de maneira sombria e desesperada, e Nancy Guild, cujo nome é apresentado como uma rima com “wild” (selvagem), é a moça que ele encontra. Seu papel é o de uma cantora de nightclube, e dá a ela poucas oportunidades de atuar, a não ser sentar-se ao piano e resmungar junto do pescoço de Mr. Hodiak. Fritz Kortner é o mais maligno de um bando de personagens cruéis, e o lutador de boxe Lou Nova faz um capanga idiota. Lloyd Nolan, Richard Conte, Josephine Hutchinson e vários outros são competentes como vários peões. Suas atuações são interessantes: é uma pena que eles tenham tantas coisas turvas e inconclusivas a fazer. Depois de um tempo, a confusão louca da história inspira uma completa apatia.”

E a crítica termina com a seguinte deliciosa informação:

“The Copacabana Revue, com Desi Arnaz e sua orquestra, Lee Sherman e Beatrice Seckler, George Prentice, Peter Lind Hayes e The Copa Girls são a atração que acompanha Somewhere in the Night no Roxy”

Meu, que fantástico: o nova-iorquino ou o turista iam ao cine Roxy e assistiam a um filme (horroroso, é verdade) e também a um show com a orquestra de Desi Arnaz e mais todas aquelas atrações importadas do Copacabana, o nightclub bacanérrimo!

É. Às vezes não dá para evitar a sensação de que este mundo já foi melhor. Mesmo com um filme tão ruim quanto Somewhere in the Night.

Anotação em fevereiro de 2023

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Sessão Anthony Mann

13/06/24

O Pequeno Rincão de Deus, God's Little Acre, 1958, Anthony Mann

'O Pequeno Rincão de Deus' Por Luiz Carlos Merten, 03/01/2011

Mauro Brider me pede que comente 'O Pequeno Rincão de Deus', que viu em DVD (e do qual gostou muito). Anthony Mann fez o filme em 1958, baseado no romance de Erskine Caldwell. Nunca li esse escritor, que no meu imaginário virou um sub-Faulkner, porque as histórias de ambos têm muito a ver, passadas num Sul decadentista. Posso até estar sendo injusto, mas Faulkner criou um condado imaginário para refletir sobre a complexidade de condição humana, Caldwell escolheu falar do branco pobre, mais racista ainda do que o aristocrata sulista, porque tinha de disputar o pão de cada dia com o afro-americano. Caldwell era desbocado e obcecado por sexo, como se percebe nas adaptações que Hollywood fez de seus livros - o filme de Mann, claro, e o de John Ford que o precedeu, 'Tobacco Road', Caminho Áspero, de 1941. Na trajetória de Ford, 'Tobacco' surgiu logo em seguida e quase como uma consequência das preocupações sociais de 'As Vinhas da Ira', adaptado de outro autor que também tinha suas similaridades com Caldwell, John Steinbeck. Embora Nunnally Johnson tenha 'asseptizado' Caldwell para John Ford, Gene Tierney é arrasadora de sensualidade e tem muito a ver com a Tina Louise de 'God's Little Acre'. Tina Louise! Ela passou como um furacão de sensualidade pelo cinema norte-americano da segunda metade dos anos 1950, mas não era a sensualidade glamourizada de MM. Não era a idealizada vizinha ('O Pecado Mora ao Lado'), mas a tramp, a vagabunda pobretona e ligada à terra. Robert Ryan, que faz o protagonista de 'O Pequeno Rincão de Deus', não trocaria seu cantinho de terra por nada no mundo. É aqui que ele tiraniza a família - os filhos, a nora -, obrigando a todos a cavar, em busca de um tesouro imaginário, e chegando ao extremo de sequestrar um albino, porque acha que ele saberá encontrar o local exato da fortuna escondida. O filme foi feito entre dois westerns de Mann, 'O Homem dos Olhos Frios' e 'O Homem do Oeste', numa fase em que o diretor havia encerrado sua associação com James Stewart e tentava novas parcerias (com Henry Fonda e Gary Cooper). Acho o caso de Mann muito interessante. Bertrand Tavernier e Jean-Pierre Coursodon esculpiram o mito dos westerns de Mann como o que de mais perfeito e puro o gênero produziu, mas tenho para mim que essa definição se aplica muito mais à parceria entre Budd Boetticher e Randolph Scott. Os westerns de Mann são volta e meia contaminados pela psicanálise, pela sensualidade e até pelo melodrama. Seus personagens são desmesurados e é por isso que um ator sóbrio como Stewart era tão necessário para ele. A crítica caiu matando em 'O Pequeno Rincão de Deus'. Tavernier vê no filme a soma dos excessos do diretor e eu acho que foi a busca do classicismo e da harmonia (perdidas?) que levou Mann à Espanha para fazer o genial 'El Cid' e, depois, 'A Queda do Império Romano', cuja cena final, cada vez me convenço mais, foi a origem de 'Terra em Transe'. Glauber gostava de westerns, mas naturalmente que isso não é bom para sua biografia de revolucionário. 'A Queda' radicaliza os excessos de 'Pequeno Rincão' e o próprio Mann legitima isso fazendo com que o homem excepcional, o sucessor do Cid na sua obra (o imperador Marco Aurélio de Alec Guinness), morra logo na abertura do filme. Estou falando de 'O Pequeno Rincão de Deus' com uma visão muito longínqua do filme, a que assisti na época (ou pouco depois). Confesso que nunca tive muito apreço pelo filme. Não o colocaria entre os meus favoritos do diretor - os épicos 'El Cid' e 'A Queda do Império Romano' (apesar dos desequilíbrios narrativos), os westerns 'Winchester 73', 'O Preço de Um Homem' (The Naked Spur) e 'Um Certo Capitão Lockhart' (The Man from Laramie) e aquela delirante incursão pela Revolução Francesa, 'À Sombra da Guilhotina', sobre a queda de Robespierre. Em homenagem ao Mauro, vou tentar rever 'O Pequeno Rincão de Deus'. Não seria a primeira vez que um filme 'menor' iria crescer no meu imaginário.

15/06/24

A Queda do Império Romano, The Fall of the Roman Empire, 1964, Anthony Mann

A Queda do Império Romano, 1964, Posted by jc in Sword & sandal, 2016         

Com o imperador Marco Aurélio (Alec Guinness) a sentir avizinhar-se a sua morte, é sua intenção nomear como sucessor o general Lívio (Stephen Boyd), em detrimento do próprio filho Cómodo (Christopher Plummer). Ao descobri-lo, os partidários de Cómodo apressam a morte do imperador, antes que este proclame o sucessor, e Cómodo consegue o apoio público de Lívio, para desgosto da sua irmã Lucilla (Sophia Loren), enamorada de Lívio, mas forçada a casar com o rei arménio Sohamus (Omar Sharif). Na frente germânica, Lívio, com auxílio do filósofo Timónides (James Mason) procura a paz desejada por Marco Aurélio, libertando os germanos e dando-lhes terras. Ao descobrir, Cómodo toma isso como afronta, e ordena a morte dos novos cidadãos, lançando o império numa guerra civil.

Análise:

Por iniciativa da produtora de Samuel Bronston, a Paramount Pictures deu a sua aprovação ao filme “A Queda do Império Romano”, um dos últimos filmes sword and sandal, da sua era áurea (anos 50 e 60). Tratava-se da adaptação, não creditada, ao cinema, do livro homónimo Edward Gibbon, que pretendia ser um estudo político sobre as razões que levaram ao fim do império. Realizado por Anthony Mann, realizador com carreira no western, o filme foi rodado em Espanha.

O filme deveria suceder “El Cid” (1961), também de Bronston, repetindo as presenças de Charlton Heston e Sophia Loren como protagonistas, mas o primeiro acabou por declinar, sendo substituído por Stephen Boyd, com quem contracenara em “Ben-Hur” (1959) de William Wyler. Curiosamente Boyd voltava agora a ter uma competição de quadrigas, aqui menos imponente que a mítica sequência do filme de Wyler.

“A Queda do Império Romano” lida com a política do Império Romano, nesta altura (final do século II), dividida sobre a questão demográfica, com hordas de germanos a pressionar a fronteira do Danúbio, todos os anos. O filme começa em 180, com as campanhas de Marco Aurélio (Alec Guinness). O imperador tem consigo o fiel filósofo grego Timónides (James Mason), e o seu principal general, Caio Lívio (Stephen Boyd), que ele tenciona nomear seu sucessor, em detrimento do filho Cómodo (Christopher Plummer), que ele vê como violento e imaturo. Para isso, Marco Aurélio convoca todos os seus governadores, mas acaba por ser envenenado pelos seguidores de Cómodo, antes de poder fazer o anúncio. Cómodo auto-proclama-se imperador, mas fica desde logo decidido a desfazer a obra do seu pai, a quem não perdoa ter preferido Lívio. Enquanto isso, Lucilla (Sophia Loren), filha de Marco Aurélio, e enamorada de Lívio, é dada em casamento ao rei arménio Sohamus (Omar Sharif).

Caio Lívio continua a lutar no norte e consegue subjugar os inimigos, mas em vez de os matar consegue, com a ajuda de Timónides, convencê-los a aceitar a paz com Roma. Para isso, Lívio e Timónides discursam no senado, contra o imperador, e conseguem que seja aprovada a sua ideia de fazer dos inimigos agricultores pacíficos que defendam a fronteira norte do império.

Quando Lívio é enviado à fronteira Leste, para aplacar uma revolta de alguns governadores, descobre que Lucilla está por trás dela, esperando convencer Lívio a juntar-se-lhe. Mas este é fiel a Roma acima de tudo, e tudo se resolve quando as tropas percebem que Sohamus chamou para o seu lado os persas. Todos se juntam então a Lívio que triunfa, para desagrado de Cómodo, que, por vingança, manda chacinar os povos germanos pacificados.

Lívio e Lucilla entram então em Roma para desafiar Cómodo, que se tenta salvar através de subornos. Mas ao descobrir que ele não é filho de Marco Aurélio, mas sim do gladiador Verulo (Anthony Quayle), agora seu guarda-costas, Cómodo perde a cabeça e desafia Lívio para um combate, sendo morto por ele, no senado.

À luz do livro que lhe deu origem, “A Queda do Império Romano” surpreende pela quantidade de temas que traz a discussão, e que transcendem o simples entretenimento. Logo à cabeça temos um complexo edipiano, presente na relação entre pai (Marco Aurélio) e filho (Cómodo), onde não falta uma mãe, ausente, é certo, mas omnipresente no desenrolar da trama, desde o ódio de Cómodo pelo pai até ao desenlace final. Temos depois a pertinente questão da integração dos germanos, povo que fazia uma pressão demográfica sobre o império. É uma questão universal, onde as cíclicas migrações que foram formando a Europa estão longe de terem terminado. Temos depois a sucessão e corrupção na cabeça do império, na pessoa de Cómodo, um imperador vaidoso e arrogante, sem responsabilidade por aqueles que governa, bem o oposto do que o seu pai fora. Temos finalmente o papel do amor de Lucilla por Lívio, que a torna capaz de trair o próprio império contra o irmão.

Todos estes temas convivem com as batalhas épicas, aventuras, intrigas palacianas e cenários luxuosos. Mas há em “A Queda do Império Romano” algo mais. Uma atmosfera negra, e de maior rigor no que seria a reconstituição de uma era, aqui fugindo a clichés gastos. O acampamento de Marco Aurélio no norte do império, com as suas paisagens nevadas, e camaratas de campanha em madeira primam pelo ambiente que transmitem. Do mesmo modo a reconstituição do Fórum Romano é um feito inigualável pela atenção dada ao detalhe e ao rigor. Consta ser ainda hoje o maior cenário ao ar livre alguma vez construído para cinema.

O elo mais fraco serão talvez as interpretações. Mesmo com Alec Guiness e James Mason irrepreensíveis, Stephen Boyd não é Charlton Heston, e a sua química com uma Sophia Loren demasiado preocupada com a sua dicção é inexistente. Mesmo Christopher Plummer soa a exagerado, não ajudando a trazer subtileza e profundidade a um personagem que ele parece querer apenas tornar mau. Outras opções estranhas foram a quase não utilização de actores como Mel Ferrer e Omar Sharif, que passeiam pelo set quase sem nada para dizer. A título de curiosidade note-se as presenças (aqui também muito apagadas) de Andrew Keir e Finlay Currie, dois veteranos do sword and sandal. Destaque ainda para a presença do português Virgílio Teixeira num curto papel.

Apesar de uma história inteligente, talvez por ser um pouco pretensiosa num género onde se queriam heróis épicos e alguns efeitos especiais memoráveis, “A Queda do Império Romano” foi um completo fracasso de bilheteira. O filme, no entanto, ganhou o Globo de Ouro pela banda sonora de Dimitri Tiomkin, categoria na qual foi também nomeado para os Oscars.

Em 2000, Ridley Scott filmaria “O Gladiador” (Gladiator) protagonizado por Russell Crowe e Joaquin Phoenix, com uma história com muitos pontos em comum com a do filme de Anthony Mann.https://www.imdb.com/title/tt0058085/

16/06/24

El Cid, 1961, Anthony Mann

O caráter inabalável de “El Cid”, épico inesquecível de Anthony Mann

Por Octavio Caruso - 19 de março de 2016

A trajetória de Rodrigo Diaz de Bivar, mais conhecido como El Cid, herói espanhol do século XI que uniu os católicos e os mouros do seu país para lutar contra um inimigo comum: o emir Ben Yussuf (Herbert Lom).

(Texto escrito em 2016, durante o governo de Dilma Rousseff)

O Brasil vive um momento político complicado, com uma parcela expressiva, ainda que minoritária, de seu povo praticando a duvidosa arte da dissonância cognitiva, por pura ingenuidade ou inescrupulosa esperteza, celebrando a completa inversão de valores. Os mais lúcidos buscam uma réstia de ética que traga alguma esperança.

Como terapia desintoxicante intensiva, eu escolhi rever um dos épicos mais bonitos da história do cinema, dirigido pelo mestre Anthony Mann, protagonizado por Charlton Heston e Sophia Loren, o emocionante “El Cid”, a saga de um homem digno, honrado e corajoso, valores essenciais que precisam ser resgatados por boa parte do povo brasileiro.

Ao final da sessão, lágrimas no rosto e a gratidão de, por três preciosas horas, ter sido conduzido a uma elegante e bela realidade preenchida pela nobreza de caráter do protagonista, defendendo diálogos ricos em simbologia, envoltos por uma trilha sonora encantadora de Miklós Rózsa. Um contexto bem diferente de quando conheci o filme, ainda na época do VHS duplo, com uma péssima qualidade de imagem.

Quando o produtor Samuel Bronston comprou os direitos que estavam com o diretor espanhol Rafael Gil, ele intensificou os elementos de romance e aventura, desprezando a abordagem mais fria do roteiro original, escalando Heston como garantia de empatia com o público, logo após o sucesso arrebatador de “Ben-Hur”. Mann chegou a cogitar colocar a esposa Sara Montiel no papel de Ximena, mas acabou aceitando a sugestão de Bronston, escalando Loren.

O vilão mais óbvio, vivido por Herbert Lom, é unidimensional como um capanga da franquia 007, talvez o único ponto realmente negativo. Só que, analisando com mais cuidado, o real antagonista é plenamente desenvolvido, o rei Alfonso, cujo arco narrativo o conduz de uma gênese como um fraco submisso, passando pela omissão no planejamento da eliminação do irmão, até uma ordem injusta e cruel de exílio, culminando no reconhecimento do erro e a redenção com bravura no campo de batalha.

Com tantos personagens bem desenvolvidos, dá para perdoar a caricatura que é Yussuf. O mais bonito nessa jornada de Alfonso é que ele é levado a se tornar um indivíduo melhor por assimilação. Ele faz questão de causar todo tipo de problema para El Cid, ele despeja nele todo o seu ódio, mas recebe de volta apenas gestos de honradez.

Ele avança com a espada, na expectativa de que o seu oponente se defenda, ou contra-ataque, os impulsos esperados por quem vive pela lei da guerra, mas o oponente vira as costas, conquista um reino e, sabendo que poderia tomar o trono para si próprio, prefere seguir o que é correto, entregando a coroa a quem fez de tudo para tornar sua vida uma experiência miserável. Alfonso é amaldiçoado por sua própria consciência. Ele então aprende com o caráter do herói o caminho da dignidade.

Como esquecer o desfecho? A força simbólica do herói falecido, em seu cavalo, guiando seus homens e, mais importante, amedrontando os inimigos. A escolha da fotografia neste momento em posicionar El Cid, quando visto pela primeira vez por seus inimigos, emoldurado por um clarão da luz do sol, sem dúvida, uma das cenas mais bonitas no gênero, marca a transformação do homem em lenda.

Os mais jovens podem perceber nesta longa sequência, que vai da preparação dos exércitos até o fim do conflito, as referências visuais para batalhas similares em várias produções modernas, como “O Senhor dos Anéis” e “300”.

É uma pena que as novas gerações não valorizem este épico como ele merece. Que pena que o filme acabou e preciso encarar a realidade nojenta da política brasileira.

24/06/24

Região do Ódio, The Far Country, 1954, Anthony Mann

Crítica | Região do Ódio por Luiz Santiago 8 de janeiro de 2020

Região do Ódio foi o penúltimo de cinco westerns que James Stewart fez com Anthony Mann (Winchester ’73, E o Sangue Semeou a Terra, O Preço de um Homem e Um Certo Capitão Lockhart), todos eles de primeira linha e com Stewart interpretando de maneira irretocável personagens temerosos de seu presente e atormentados pelo passado; e Mann abordando de maneira objetiva a psicologia desses personagens, integrando-os uterinamente aos territórios que exploram.

A narrativa de Região do Ódio se passa entre o distrito de Skagway (Alasca, EUA) e Dawson City (Yukon, Canadá), no início da Corrida de Ouro de Klodike, em 1896. James Stewart dá vida a Jeff Webster, um homem de moral aparentemente boa mas que o roteiro disseca com crueldade. Mann faz a história crescer progressivamente através das belas paisagens gélidas da região e também a faz ganhar densidade quando o grupo protagonista se estabelece em Dawson City, fechando as janelas abertas no início da fita e dando novos significados à solidão e convicções pessoais de Jeff, o homem que não confiava em ninguém e dizia jamais precisar de quem quer fosse.

O tormento do protagonista é um elemento recorrente na filmografia de Mann desde os seus filmes noir, algo que nos westerns irá contribuir para a revolução do gênero e o apontamento de novos caminhos. Em Região do Ódio vemos o heroísmo desaparecer e dar lugar a um individualismo que se traduz, para Jeff, na luta pessoal pela sobrevivência. Ele não se mete nos assuntos dos outros e só compra briga quando é ameaçado. Desse modo, o espectador vive em conflito de identificação com o personagem e essa confusão é um triunfo dramático do roteiro de Borden Chase, que não adota a verborragia e sim as atitudes para marcar o território de cada um.

Por ser um diretor muito objetivo (a maior parte de seus filmes não passam muito de 100 minutos e contam histórias complexas e extremamente ricas), Anthony Mann não dá espaço para cenas que estariam ali apenas para contemplação do espectador e isso podemos comprovar em sua relação com a paisagem natural. Em vez de filmar o belo espaço geográfico em separado ou estender uma sequência apenas para mostrá-lo por mais tempo, o diretor faz desse espaço um personagem, inserindo-o de maneira orgânica na tela e com participação essencial no desenvolvimento da narrativa, acompanhando a história inclusive em seus símbolos e metáforas.

Região do Ódio é um filme sobre mudanças. Em primeiro lugar temos a virada do inverno para a primavera, portanto temos a mudança da paisagem. Depois, a vontade de alguns personagens em mudarem sua condição de nômades ou seminômades e se estabelecerem em algum lugar e, como complemento, a mudança causada pelas ações de Jeff e seus amigos na pequena região das minas, onde a violência já atingia níveis alarmantes nem bem a corrida do ouro começara.

É impossível não se lembrar da dinâmica vista em O Tesouro da Sierra Madre, mas diferente do filme de John Huston, Região do Ódio traz uma visão social mais opressiva e uma condição psicológica que se expande e cresce em cada estágio, culminando com um enfrentamento quase patético (e filmado de maneira primorosa) em seu significado, com pistoleiros covardes morrendo na lama e a remissão tardia de um homem ainda bastante egoísta mas disposto a lidar com essa versão de si ao lado de pessoas que queriam começar uma nova vida, mudar em definitivo para uma região que, ironicamente, tanta dor lhes causou.

O sino preso à sela do cavalo, o ouro, os sonhos de uma jovem, o cinismo de um homem cujo ego e a introspecção são quase patológicos e a discussão sobre o que o dinheiro e o poder nas mãos de desonestos podem causar são símbolos e situações trabalhados em Região do Ódio, que ainda traz uma revisão crítica da sociedade americana em mais uma corrida do ouro.

Belos figurinos de regiões frias (destaque para os da atriz Ruth Roman e para os de James Stewart), fotografia em contraste e opacidade perfeitos para cada paisagem filmada (destaque para o tom de azul e o trabalho com sombras nas cenas noturas) e trilha sonora que abre e fecha o filme com perfeição (mesmo que no desenvolvimento da fita caia um pouco no marasmo conceptivo, através de temas pouco inspirados) Região o Ódio é uma história de mudanças em um território selvagem, um northern infelizmente pouco conhecido, pequena pérola quase oculta na grande filmografia de Anthony Mann.

25/06/24

O Homem do Oeste, Man of the West, 1958, Anthony Mann

Man of the West, Anthony Mann, EUA, 1958

Quem é o homem do oeste? É Gary Cooper, cujas pernas não cabem no espaço a elas destinadas, quando sentado em um trem. Cujos olhos e ouvidos presenciam, pela primeira vez, a chegada da máquina bestial movida a vapor e, tal os espectadores dos Lumière, jogam-se para trás, com medo de serem esmagados pela terrível locomotiva. Neste filme de Anthony Mann, vemos um corpo fora de lugar. Uma figura do passado a caminhar por entre um mundo mudado. Um homem mudado a confrontar fantasmas do ontem.

“Atiramos o passado ao abismo, mas não nos inclinamos para ver se está bem morto”, escreveu Shakespeare. Cooper, um ex-fora da lei, jogou-o no vão e lhe deu as costas, indo viver em uma cidadezinha que aceitou o renegado de outrora. Não só o aceitou, como, anos depois, lhe incumbiu da mais nobre das tarefas nesse Oeste de selvageria e bebedeira: ir até a cidade grande e contratar uma professora. E é assim que o filme começa, com Cooper claramente desconfortável com a missão, não por má vontade, mas por, provavelmente, pressentir que voltar à cidade grande é dar chance ao abismo de vomitar seus fantasmas. O próprio descompasso do primeiro ato do longa em relação aos outros será, por comparação, desconcertante. Estamos rindo do fato de Cooper não caber no assento do trem e, mais tarde, veremos esse corpo atracar-se com outro em uma briga brutal e longa, em que a fúria transfigura o rosto do herói, ao ponto de lhe apagar qualquer traço de heroísmo. Antes disso há, no entanto, a cena que é o centro de gravidade do filme.

Ou, melhor, seu buraco negro: depois que o trem é assaltado por um bando, o homem do Oeste, junto com a dançarina Billie e o jogador Sam vão, em busca de abrigo, ao antigo esconderijo de Cooper (algo que as duas personagens coadjuvantes não sabem, evidentemente). A sequência, de grande duração, se passa dentro da cabana e o espaço aberto cercado por montanhas dá lugar ao tablado, pois a encenação assume alguns elementos teatrais, como a frontalidade dos enquadramentos que, vez ou outra, colocam todos os atores presentes no plano (a sequência, aliás, inicia-se com o acender das luzes, neste caso, provenientes de um lampião). A atuação de Lee J. Cobb, interpretando Dock, aquele que fora o “mestre” do agora pacífico homem do Oeste, com sua voz forçosamente rouca, é expansiva e completamente distinta da resignação contida de Cooper.  O confronto frontal do presente com o passado transcorre de maneira arrastada e densa – daí a opção de Mann pelo peso solene do teatro -, intercalando momentos de explosão com placidez. Movimentos estes que se revezam entre os personagens, mas colocam Cooper sempre em posição de impotência: primeiro ele observa o discurso de Dock, sem poder revelar que mudou de vida. Cercado pelos membros do bando do velho mestre, o ator é esmagado pelo espaço fechado e pela movimentação de J. Cobb, que o cerca, como um leão prestes a atacar. Em seguida, este avança em direção a Billie que, sentada, é provocada pelo velho. Mais adiante na sequência, Coaley, o novo pupilo de Dock, força Billie a fazer um strip-tease, enquanto mantém uma faca no pescoço do homem do Oeste. Momento de grande violência, com Cooper fechado em enquadramentos próximos, podendo apenas olhar sem nada fazer. Violência que parece ainda maior pelo fato de a montagem acrescentar ao plano/contraplano a complacência de Dock, que, sentado e enrolado em um cachecol, tem os olhos não na direção do corpo de Billie, mas em algum ponto do passado, quando os homens eram verdadeiramente corajosos.

E homens do verdadeiro Oeste vivem no espaço aberto. A vingança de Cooper sobre Coaley se dá em um campo, na já citada cena de briga. A grande força da cena está, justamente, no choque entre a clausura da sequência anterior e a exploração selvagem da terra, da poeira, da árvore, das pesadas nuvens no céu, nas montanhas ao fundo, no espaço físico percorrido pelos atores a se esmurrarem e rolarem pelo chão. Ao final do embate, o embate entre passado e presente, afinal Coaley é aquilo que Cooper fora um dia, este arranca as roupas daquele, em um ato de brutalidade muito mais típica dos spaghetti westerns do que do faroeste clássico americano.

Este constante conflito entre passado e presente, entre pais e filhos, só poderia terminar em uma cidade fantasma. Lasoo, a terra prometida, com seu banco repleto de dólares, que promete fazer retornar a emoção dos velhos tempos – Dock planeja um assalto derradeiro por lá -, não passa, na verdade, de uma paisagem abandonada e decrépita, o cenário deprimente de um Oeste que há muito não existe. O abismo que separa Dock e Cooper no tiroteio final, abismo gerado pela profundidade de campo, cria uma sensação de que tudo será engolido pela terra, o passado e o presente, e que o homem do Oeste, o envelhecido Gary Cooper, mudado ou não, deve desaparecer, pois, acabou, seu tempo já se foi. O plano final deste grande filme de Mann, não poderia, então, ser outro: a carroça com o ex-pistoleiro vista por trás, a sumir pela estrada.

Wellington Sari, Dezembro de 2012

Fim da sessão Anthony Mann

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17/06/24

Jornada para o Inferno, Butcher's Crossing, 2022, Gabe Polsky

Créditos finais: “Em 1860 cerca de 60 milhões de búfalos povoavam o oeste dos EUA. Vinte anos depois o número de búfalos caiu para menos de 300. Atualmente há cerca de 30 mil búfalos da América do Norte. Tribos nativas indígenas ajudaram a conservar a população de búfalos e é consideradas como uma das maiores histórias de conservação de uma espécie quase extinta. Em 2016 o búfalo americano foi nomeado "Mamífero Nacional".

Este filme foi feito em terras de propriedade da nação Blackfeet em Montana.Todos os búfalos apresentados no filme, foram manipulados pelo Programa de Búfalos da Tribo Blackfeet. A sua missão é cuidar do restauro de búfalos para as terras ancestrais e conservar o habitat selvagem, ajuda na soberania alimentar tribal, e revitalizar a cultura do búfalo.”

Crítica: Jornada Para o Inferno (Butcher’s Crossing) | 2022 por Eduardo Kacic, 17/10/2023            

Um estudante universitário procurando por experiências de vida acaba encontrando um desafio muito maior do que esperava neste Jornada Para o Inferno (Butcher’s Crossing, EUA, 2022, 107 min), um duro retrato dos homens da fronteira do Oeste durante os anos de 1870, envolvidos em uma fatídica caçada aos búfalos da região. Depois de mais de um ano na prateleira até finalmente encontrar distribuição, esta adaptação do livro de John Edward Williams dirigida por Gabe Polsky faz bom uso de seu áspero cenário, que se revela tão implacável quanto as aventuras que aguardam estes caubóis que deixam a civilização para trás; praticamente retornando a um estado primal no processo.

Com mais uma sólida performance de Nicolas Cage como o imponente e teimoso líder da expedição, Jornada Para o Inferno pode ser descrito como um western existencial, onde a ação dá lugar a um íntimo estudo do comportamento humano — mais especificamente, em torno do desejo dos homens em conquistar e destruir. Cage está altamente contido aqui, então os fãs à procura do bom e velho Cage descontrolado podem se desapontar. Mas aqueles à procura de um filme com uma visão nada romântica do Velho Oeste, terão vindo ao lugar certo.

Kansas, 1874. O estudante de Harvard, Will (Fred Hechinger) abandona a escola e se dirige ao Oeste, após decidir que precisa sentir o gosto do mundo real. Ele rapidamente se apresenta a Miller (Cage), um grosseiro e experiente caçador de búfalos, que aceita levar o jovem ao território do Colorado — junto dos compatriotas de Miller; o desagradável Fred (Jeremy Bobb), e o temente a Deus, Charlie (Xander Berkeley) — para rastrear um rebanho cuja captura renderá um bom dinheiro. Porém, quanto mais eles se afastam da sociedade, mais obsessivo Miller se torna, o que faz com que o grupo estenda sua permanência na região ao longo do rigoroso inverno, onde mortais tempestades ameaçam a expedição.

Polsky, mais conhecido por seus documentários esportivos, persegue uma elemental história sobre orgulho, arrogância, testosterona e loucura, em que o incômodo score musical de Leo Birenberg sublinha a dura inevitabilidade da história. Quando nós encontramos Will pela primeira vez, conhecemos um jovem ingênuo, com cara de moleque, ansioso por conhecer os aspectos mais selvagens da vida. Uma vez que ele encontra Miller — de semblante sério, careca e portando uma espessa barba — não há dúvida de que Will será amaldiçoado por ter seus desejos atendidos.

Filmado em Montana, nas terras da nação indígena dos Blackfeet, informação apontada nos créditos finais, Jornada Para o Inferno é visualmente belíssimo, criando a sensação de que estes quatro homens estão completamente isolados do mundo — e, eventualmente, de sua própria humanidade — depois deles serem cobertos pela neve, e o caminho para casa bloqueado pelo punitivo clima do inverno. A narrativa é também implacável na concepção de seus personagens. Miller e seus homens são imperdoáveis em seu massacre dos búfalos, estas magníficas criaturas destroçadas pelas armas dos homens. (Os animais utilizados no filme são cortesia do Programa Blackfeet Tribe Buffalo, cujo intuito é impulsionar o número destes animais após a população de animais da área ser quase exterminada nos anos de 1880, devido à atividade excessiva de caçadores.) Jornada Para o Inferno enxerga estes caubóis como nada além de invasores, sutilmente sugerindo que o destino destes homens é uma punição cósmica por sua ganância.

Mas enquanto que o tom reflexivo e a bela fotografia de David Gallego são óbvias forças do filme, a produção luta para encontrar insights originais em relação a suas preocupações temáticas. A lenta construção da tensão entre os homens é bastante previsível, e quando mais tarde eles se encontram presos na neve, a resolução não consegue ser nem surpreendente ou empolgante. Mesmo o amadurecimento de Will é desenvolvido de maneira previsível, em que Hechinger dá o seu melhor para tentar emprestar ao personagem um senso de amarga sabedoria, enquanto suas ilusões sobre o Oeste são demolidas aos poucos.

Ainda que seja raro (e bem-vindo) que Cage esteja contido desta maneira, ele continua uma presença tão volátil em cena, que é difícil crer completamente nele em um papel de época como este. Com seus olhos elétricos e comportamento intenso, existe algo excessivamente contemporâneo neste fenomenal ator — um fato que só se confirma com as claras e ocasionais homenagens de Cage ao também desequilibrado líder careca Coronel Kurtz, interpretado por Marlon Brando em Apocalypse Now.

À medida que a situação se torna mais desesperada, e a recusa de Miller em seguir o conselho de seus camaradas se torna ainda mais problemática, Jornada Para o Inferno não capitaliza totalmente sobre a constatação de que Will está perdido no meio do nada ao lado de um indivíduo perigosamente instável — e que Miller, o polo oposto de um Will mais refinado, representa os aspectos mais horrendos, ferais do homem como espécie. Como o próprio filme, Miller está nos dizendo a verdade em torno da brutalidade investida na própria conquista do Oeste Americano.

16/06/24

Barry Lyndon, 1975, Stanley Kubrick




Créditos finais - Epílogo: FOI NO REINADO DE GEORGE III QUE OS PERSONAGENS CITADOS VIVERAM E BRIGARAM. BONS OU MAUS, BONITOS OU FEIOS, RICOS OU POBRES. AGORA SÃO TODOS IGUAIS

Barry Lyndon por Jorge

Às vezes, o nome de uma pessoa pode ser um fardo, e Barry Lyndon esta aí para provar isso. Não digo isso relação à personagem interpretada por Ryan O'Neal, mas sim ao filme em si. No ano de 1975, do qual data este filme, Stanley Kubrick já era um diretor que gozava de um certo respeito, talvez não tanto quanto hoje. Vindo de um filme extremamente polêmico que foi (e ainda é, de certo modo) Laranja Mecânica e com obras como 2001 - Uma Odisseia no Espaço e Dr. Fantástico no currículo, Barry Lyndon soa como uma decadência do diretor, embora tal afirmação seja ligeiramente precipitada. A verdade é que este filme aqui não possui a mesma complexidade nem as mesmas, vamos dizer, "qualidades" (embora tal termo seja de uma subjetividade absurda) das obras supra-citadas. Mas o que faz Barry Lyndon parecer um filme pouco bom é exatamente a cobrança que se tem de um Kubrick. Portar o nome de tal diretor induz o espectador à idéia de que este irá acompanhar um filme digno de figurar entre os melhores da história, e quando percebe que tal idéia não irá se concretizar, já passa a ver o filme com uma ótica mais negativa. Coisa que não ocorreria se fosse dirigido por algum outro diretor. Filme de proporções épicas, Barry Lyndon narra a história do irlandês Redmond Barry, embora não narre seu nascimento nem sua morte a partir do livro The Luck of Barry Lyndon, de William Makepeace Thackeray. Embora um relato histórico, Redmond Barry, que mais tarde viria a ser conhecido como Barry Lyndon jamais existiu, sendo sua figura vagamente baseada na do "aventureiro" Andrew Robinson Stoney. Um personagem complexo, multi facetado e pluri-dimensional ao qual o filme não se contenta apenas em acompanhá-lo em suas desventuras, como também faz questão de tal companhia quando de sua evolução psicológica, evoluindo em conjunto a esse. Logo no início, temos um Barry totalmente imaturo, ainda descobrindo o mundo, e assim também é o filme, uma obra imatura, com uma direção passiva, atuações vazias, diálogos fúteis, e uma trilha sonora que teima em aparecer nos momentos mais inoportunos. Porém, conforme o jovem Redmond encontra seu lugar no mundo e começa a tornar-se uma figura cada vez mais forte, o filme também ganha força e começa a demonstrar sua grandiosidade. A direção começa a se mostrar presente, as atuações ganham conteúdo, os diálogos se aprimoram e a trilha sonora encontra sua posição na obra, uma posição perfeita, diga-se de passagem. E o grande momento dessa virada na trama é, sem dúvidas, o alistamento de Barry no exército britânico. Um garoto virando homem, um filme tolo virando um filme genial. Mas essa não é a única revolução que ocorre no enredo. Ao dividir a obra em dois atos, divide-se também a personalidade de Barry. Na primeira parte, temos um Redmond Barry amável, cuja história provoca a simpatia por parte do espectador. Na segunda parte, quando aquela criatura afável se transforma no frio e de moral dúbia Barry Lyndon, a afeição do público também se inverte. Um título transformando um homem agradável em uma criatura cruel. Clichê, mas que ainda funciona relativamente bem. Ao mesmo tempo que se acompanha o desenrolar da história, começa-se a notar um certo toque cômico, que num primeiro momento aparenta nem sequer estar lá, de tão sutil que é. Característica do humor britânico, em Barry Lyndon essa sutileza é levada a um nível absurdo, que acaba levando o público a se perguntar o que exatamente achou de engraçado em tal passagem e por que assim a achou. E nesse quesito (comicidade), um elemento se sobrepõe aos demais como provocador principal. Talvez o elemento mais difícil de ser utilizado de uma maneira razoavelmente boa, junto com a metáfora e com o zoom, e por conta disso evitado por quase todos os diretores, ao contrário dos dois citados. Estou falando da narração, que costuma tirar a credibilidade de uma obra, mas que aqui, vinda na voz inócue de Michael Hordern, acentua o clima da obra, confere aquele humor sutil citado anteriormente e funciona quase que como um personagem à parte, fazendo observações e por vezes, antecipando o que vem a seguir. Um excelente exemplo de como se utilizar de tal recurso. Mas o mais destacável do filme, sem dúvidas, é a sua composição estética, sobretudo em relação aos figurinos e à fotografia, ambos legendários. O figurino ficou conhecido por se utilizar apenas de vestimentas realmente confeccionadas no século XVIII, embora tal afirmação não seja verdadeira, até porque seria inviável, visto que há hordas colossais de figurantes em algumas cenas e encontrar vestimentas daquele período para tantos extras seria praticamente impossível, além do que isso tiraria todo o mérito da figurinista Milena Calonero, visto que sob essas condições, nenhuma das vestimentas seria legitimamente dela. A verdade, é que alguns dos figurinos são sim originais no período, enquanto a grande maioria foi desenhada tomando como base vestimentas presentes em quadros datados do período. O outro grande destaque técnico, a fotografia, ainda tem dois grandes trunfos a serem ressaltados. O primeiro é a composição das cenas, onde cenários grandiosos, jardins monumentais e paisagens naturais se misturam para evocar pinturas, sobretudo as do artista plástico Thomas Gainsborough. O segundo destaque a ser feito sobre a fotografia é em relação ao uso de iluminação natural, do qual também se criou o mito de o filme ser 100% filmado desse modo, embora, na realidade, algumas (poucas) cenas empregaram iluminação artificial. Mas esse uso predominante de luz natural chegou ao seu ápice nas cenas noturnas, onde uma lente especial de 50mm foi projetada especialmente para tais cenas, captando as imagens com o mínimo de luz possível. Porém, devido à sua hipersensibilidade no ajuste de foco, a câmera foi obrigada a permanecer estática e os atores a se moverem o mínimo possível. Mesmo assim, o resultado acabou excelente. No geral, Barry Lyndon é sim um excelente filme, embora inferior à maioria dos trabalhos de Kubrick. Um filme onde o roteiro bom é superado por uma estética incrível e cuja fama (ou falta de) não faz juz à qualidade.

17/06/24

Western, 2017, Valeska Grisebach

Um grupo de operários alemães vai trabalhar em uma construção na fronteira entre a Bulgária e a Grécia. Esta terra estrangeira e sua bela paisagem despertam o espírito de aventura dos homens; porém, eles também precisam encarar seus próprios preconceitos e desconfianças devido à barreira do idioma e às diferenças culturais. O cenário torna-se rapidamente propício ao confronto quando os homens começam a competir pelo reconhecimento e favorecimento dos habitantes locais. Fílmica 

Jornadas em livres tempos, Por Fabricio Duque

A diretora alemã Valeska Grisebach (de “Sehnsucht”) imprime em seu mais recente filme, “Western”, sua característica principal, que a de analisar de forma humanizada e orgânica os seres humanos que convivem socialmente, precisando assim transformar seus silêncios em palavras, seus tempos em necessidades e suas sobrevivências em oportunidades. O longa-metragem, que integrou a mostra Un Certain Regard do Festival de Cannes 2017, conduz-se pelo hibridismo de gênero, estreitando os limites do documentário (pela presença de não-atores) e da ficção, que se desenvolve pelo cinema direto, lembrando em muito a estrutura do brasileiro “Arabia”, de João Dumans, Affonso Uchoa.

“Western” é um road-movie de auto-conhecimento. De se aventurar em regiões a fim de recomeço, ida, vinda e ou perda. São instantes-detalhes-pontos que entram na vida do local. A câmera busca uma imersão ao acompanhar, em suas naturais ações, o solitário protagonista, trabalhador cortador de madeira (em um estilo Village People com seu brinco), colocando assim o espectador como companheiro de suas andanças e seus silêncios.

É acima de tudo sobre a existência social. Um grupo de trabalhadores alemães da construção civil iniciam uma jornada de trabalho dura em uma remota região rural da Bulgária. No local, enquanto o senso de aventura dos homens aparece, eles também são confrontados com seu próprio preconceito e pela desconfiança devido à barreira da língua e às diferenças culturais. Mas tudo se intensifica quando passam a competir por reconhecimento. É o afloramento do lado mais primitivo, de um perdido instinto ainda em limitada construção.

“Western” é pautado pelas micro-ações continuadas, pelos detalhes que ora conectam, ora afastam. Tudo ambientado em uma vista de bucólica beleza natural (de comtemplação editada) e pelo comportamento-testosterona hostil, não simpático e embrutecido de seus “desconfiados” e defensivos (e por implicantes conflitos por diversão simples e pura, como forma de passar o tempo e o tédio) colegas de trabalho (que trocam picardias como brincadeiras de “marcação de território” de “babacas machos-alfa” – e que se “comportam” como homens estereotipados quando veem uma mulher).

Mas nosso protagonista Meinhard Neumann foge do conceito padronizado. Não fala quase nunca, não é tão esperto assim e não sabe lidar com as mulheres (muito menos flertar, soando descompassado e incompatível). Mas possui uma latente sensibilidade e dom para domar um cavalo branco perdido. E para deferir frases adjetivadas de “moral da vida”.

O longa-metragem é também um retrato comparativo entre as culturas diferentes dos dois países “planeta forte”: Alemanha (“alemão, gente sofisticada”) e Bulgária (‘os brutos”). Cada vez Meinhard é mais estimulado às intolerâncias de próximos enciumados, gerando caronas “arrastadas” que o deixa em lugares inóspitos. Essa é a deixa para um novo começo. De madeira para pedra. Novo lugar, novas hostilidades e novas desconfianças dos “soldados da região”.

A confiança vem aos poucos, fazendo tudo o que precisa para trabalhar, e nas horas vagas, “pedras com rostos” e jogar Poker. Mas novas brincadeiras voltam a intimidar. Há a fofoca da vida alheia e o “dever” de usar a violência (que não é a dele), entre lutas livres de MMA. “E a Alemanha finalmente pedindo desculpas”, debocha-se.

“Western” é também acordar a obrigação da vingança, como por exemplo, o “cavalo pelo dama”. É quando “Forrest Gump”, de Robert Zemeckis encontra “Dogville”, de Lars von Trier. É um mundo de homens que potencializam seus machismos para provar masculinidade a outros homens.

“Eu cresci com o gênero faroeste, sentado na frente de um aparelho de TV na década de 1970, Berlim Ocidental. Senti o desejo de voltar a ele: me cativou profundamente. Eu queria lidar com os heróis solitários, melancólicos e a mitologia masculina. Fiquei entusiasmada com a modernidade do gênero – apesar de todos os seus elementos conservadores – em sua tentativa de capturar a construção social e a responsabilidade individual, ainda repleta de suas próprias contradições. Eu estava interessada na intimidade do duelo, a inversão do “amor à primeira vista. Todos os atores têm outros empregos. Eu me aproximei de Meinhard Neumann em um mercado de cavalos em Brandemburgo. Eu sabia que queria fazer um filme com ele. Com os outros atores, houve um tipo imediato de faísca. Ainda assim, houve um longo processo de conhecer uns aos outros, de casting e audições, para resolver com todos os envolvidos se e como poderíamos fazer este filme juntos”, disse a diretora Valeska Grisebach na coletiva de imprensa em Cannes.

“Há uma anedota sobre Milos Forman, que durante sua primeira peça, Black Peter, confiscou os roteiros dos atores pouco antes de começarem a filmar. Isso me inspirou desde o início e me encorajou a comunicar um roteiro verbalmente, a descrever as cenas e o diálogo em voz alta. Eu anseio por esse desfocado, a imperfeição, a diferença entre a intenção e o momento em que acontece. Através de cada projeto, há filmes que me acompanham. Durante “Western”, por exemplo, foi “Profissão: Repórter”. Nunca posso resistir à atração de Antonioni, o desafio de considerar a arquitetura e o mecanismo de seus filmes. Para mim, pessoalmente, são as pessoas, os rostos e os momentos – o que você lê entre as linhas – que colocou tudo em movimento durante o cinema”, finaliza.

19/04/24

Gigantes em Fúria, Sea Devils, 1953, Raoul Walsh

No iutubi aqui 

Na costa francesa de 1800, o jovem Gilliatt (Rock Hudson) aceita transportar a bela Droucette (Yvonne De Carlo) para que ela consiga resgatar seu irmão da guilhotina. Nutrindo uma paixão ardente pela moça, ele se sente traído quando descobre que ela é uma condessa disfarçada que está ajudando Napoleão a planejar uma invasão da Inglaterra. O problema, porém, é que a “condessa” é uma inglesa trabalhando como agente dupla para impedir esta invasão e quando os franceses descobrem a sua verdadeira identidade, Gilliatt terá que arriscar a sua própria vida para salvar a mulher que ama. Filmow 

As fúrias de viver: a juventude em Raoul Walsh porSabrina D. Marques

20/06/24

O Ladrão de Cavalos, Dao ma zei, 1986, Zhuangzhuang Tian & Peicheng Pan

No iutubi aqui 

O Ladrão de Cavalos

Por Wu Ming em 27/3/2021

Título Original: 盗马贼 (Dào mǎ zéi)

‍Direção: Tian Zhuangzhuang, Ano: 1988

Poucos filmes conseguem retratar de maneira tão genuína e hipnótica a confluência mística entre natureza e espiritualidade como O Ladrão de Cavalos. Considerada uma obra-prima de caráter etnográfico, o diretor Tian Zhuangzhuang (da quinta geração do cinema chinês), lança um extraordinário olhar sobre os costumes da cultura tibetana do início do século XX. O drama faz parte de uma trilogia sobre as minorias étnicas chinesas, junto dos outros excelentes "Lie chang zha sha", de 1984, e Delamu ("Cha ma gu dao xi lie") de 2004.

A história acompanha as dificuldades de um pastor em conseguir sustentar sua família, o que lhe motiva a recorrer a pequenos furtos nos vilarejos vizinhos. A aspereza com que é retratada a dura realidade dos moradores locais - a mercê das intempéries dos áridos verões e rigorosos invernos - intercala com cenas carregadas de espiritualidade onde temos a rara oportunidade de observar os rituais budistas dos monges tibetanos; tudo isso em meio a mística cadeia montanhosa dos Himalaias.

"É uma história sobre crenças, sobrevivência e morte", afirmou Tian em uma entrevista ao jornal The Harvard Crimson.

Um banquete para os olhos, o filme está disponível no YouTube com legendas em inglês.

21/06/24

Expresso para o Inferno, Runaway Train, 1985, Andrey Konchalovskiy

Sara (Rebecca De Mornay): Maldito. Acha que pode sacrificar

a vida de outra pessoa pela sua? É um animal.

Manny (Jon Voight) Sou bem pior. Sou humano.

Créditos finais

"Até na mais feroz das bestas se reconhece compaixão. Mas eu não reconheço nenhuma, por isso não sou uma besta."

De RICARDO III, William Shakespeare

RICARDO (Duque de Gloucester)- Senhora minha, não conheceis as leis da caridade que mandam retribuir com o bem o mal, com bênçãos as maldições.

ANA- Pérfido, tu não conheces nem a lei de Deus nem a lei dos homens. Não há besta

alguma, por mais feroz, que não conheça a piedade.

RICARDO (Duque de Gloucester)- Mas eu não a conheço, de sorte que não sou besta alguma.

ANA- Oh, maravilha, quando os demônios dizem a verdade!

Crítica | Expresso Para o Inferno por Guilherme Rodrigues 15 de novembro de 2020

https://www.planocritico.com/critica-expresso-para-o-inferno/

Dos nomes que se esperam estar associados a um filme de ação dos anos 80, o do lendário diretor japonês Akira Kurosawa não é um deles, mas eis que nos créditos iniciais de Expresso Para o Inferno, aparece o nome do mestre sob o título de “roteirista”. É interessante, mas pode não significar muita coisa, já que o verdadeiro porquê de um filme não é somente a sua história mas o como ela é contada, e isso está nas mãos do diretor do russo Andrei Konchalovsky.

O longa tem seu foco em Manny Manheim (Jon Voight), um criminoso que está na prisão de segurança máxima Stonehaven, no Alaska. Após duas tentativas de fuga, Manny é colocado na solitária por três anos pelo sádico diretor Ranken (John P Ryan), o que só fez aumentar a adoração dos presos por Manny. Após uma disputa judicial, o personagem é liberado para ficar nas celas comuns, e logo passa a planejar sua terceira fuga. Para isso, recruta Buck (Eric Roberts), um jovem lutador que o idolatra. Depois de fugir e encarar a imensidão gelada da região, a dupla consegue abrigo em um trem, mas que logo se mostra ser também uma prisão, já que o maquinista morre e os freios deixam de funcionar, e a fera de ferro passa a se tornar cada vez mais veloz, para o desespero dos operadores de trem.

Expresso Para o Inferno é uma produção que passa por algumas metamorfoses ao longo da sua narrativa. E começa como um típico filme de ação dos anos 80 mesmo, com um certo exagero, caricaturas – Ranken tem um corte de cabelo, bigode e postura que remete um pouco à Hitler – e testosterona ao máximo, com tanto o personagem de Roberts quanto o de Voight sendo apresentados por meio do seu físico, um suado após exercícios, o outro durante a atividade. Mas Konchalovsky não se demora muito nesse cenário, e tendo estabelecido a relação do trio Manny-Ranken-Buck, logo parte para o que interessa. Nem a fuga em si, algo tão importante em filmes relacionados a prisão, dura muito, ocorrendo sem grandes complicações.

A coisa muda de cena quando o trem aparece, que por si só é mais do que um cenário, e sim um personagem, que cria uma conexão instantânea com Manny, que simplesmente ao bater o olho na máquina declara “essa é minha limusine para Broadway”. Há pompa e circunstância no modo como o veículo é apresentado, saindo de uma neblina e com trilha sonora própria. É a partir dessa relação entre o fugitivo e o trem que o filme constrói suas questões filosóficas acerca da liberdade, já que essas duas figuras estão, de um modo, “livres”. Não há nada que possa parar o trem, assim como nada vai parar Manny em sua busca pela liberdade, mas qual é o custo disso?

Em uma das melhores cenas do filme, Buck é convencido a sair do trem por Manny e Sara (Rebecca DeMornay), uma engenheira do trem, para tentar parar a máquina de uma vez por todas, mas devido ao frio excessivo, fracassa. Manny, enfurecido, tenta violentamente força-lo a sair novamente, ao que Sara, horrorizada, exclama “Você é um animal”, e ele responde de bate pronto “Pior, sou um homem!”. A situação se intensifica até os dois homens estarem em vias de se matar, até que ambos caem em si, e para o personagem de Voight, isto é particularmente significativo, já que em sua busca pela liberdade, acabou se tornando outra figura opressora.

É nesses momentos mais psicológicos e emocionais que Expresso Para o Inferno está em melhor forma, explorando ideias de liberdade. Mas, como eu disse, é um filme de mudanças, e outro aspecto adicionado a trama é o do filme-desastre, que francamente, é um pouco bobo e beira o pastelão, sempre com um desastre maior após o outro, se o trem consegue cruzar uma ponte que está em vias de cair, logo em seguida temos uma fábrica de químicos que também está em risco, e os personagens envolvidos nessa seção nunca saem dos estereótipos de chefe emburrado, secretaria alheia a tudo e etc.

Não é a toa que o plano que fecha o filme se apoia unicamente na emoção e nas ideias de liberdade, sendo uma síntese perfeita do subtexto do filme. Mesmo sendo um longa de 35 anos atrás (2020), não irei descrevê-lo, pois é algo que merece ser testemunhado em primeira mão. O que começa com ares de filme B terminar de modo tão poético não é nada menos que surpreendente. Palmas para Konchalovsky. 

22/06/24

Lola Montes, Lola Montès, 1955, Max Ophüls

Lola Montes, Roger Ebert, January 01, 1955

One of the signs of a great director is his ability to sustain a consistent personal tone throughout a film. The work of certain directors can be recognized almost at once; a few hundred feet of Godard or Fellini are sufficient. Max Ophuls was such a director, and his "Lola Montes" has as much unity of tone as any film I can remember.

It is all of a piece from beginning to end: The mood, the music, the remarkably fluid camera movement, the sets, the costumes. It is a director's film. The actors are in Ophuls' complete control, an additional element in his examination of the romantic myth.

His story involves the infamous Lola Montes, "The Most Scandalous Woman in the World," the mistress of Franz Liszt and King Ludwig of Bavaria, of students and artists, of soldiers and ringmasters. We find her in a New Orleans circus, the star attraction in a review of her sensational career. Peter Ustinov, the ringmaster, narrates her past as Lola revolves on a platform. Later the customers will have their chance to spend a dollar and kiss her hand.

The device of the circus is as successful as it is daring. Using it to supply his narrative thread, Ophuls slides through a series of flashbacks with as much ease, and psychological completeness, as Welles exhibited in "Citizen Kane." The structure of the film is terribly artificial -- flashbacks suspended from a fantasy circus -- and the style itself is a highly mannered romanticism. But it works; Ophuls understands and justifies his method.

He is not so successful, unfortunately, with the performance of the late Martine Carol in the title role. Famous in the 1950s as a sort of prototype Bardot, Miss Carol was a third-rate actress, and she comes across as wooden, shallow, not even very attractive.

Ophuls apparently needed Miss Carol's box-office name to help justify his $1,500,000 budget (this was the most expensive French film to date when it was completed in 1955). He tries to make an advantage of her weakness by directing her almost as a doll; her function is to watch impassively while her lovers save her scenes. The best performance in the film is by Anton Walbrook as the deaf, touching old king. Peter Ustinov is typically excellent. Oskar Werner, as a young student, is not much better than ever.

Note: "Lola Montes" was a commercial flop when Ophuls released it in 1955. He died two years later, still engaged in a battle with the film's producers. A savagely butchered version was in circulation for a few years. Through the efforts of the Village Voice's Andrew Sarris and other lovers of the film, the original, uncut version was shown at the 1963 New York Film Festival and again at last year's festival.

Roger Ebert

Roger Ebert was the film critic of the Chicago Sun-Times from 1967 until his death in 2013. In 1975, he won the Pulitzer Prize for distinguished criticism.

23/06/24

Joana d'Arc da Mongólia, Johanna D'Arc of Mongolia, 1989, Ulrike Ottinger

Um grupo de europeus que viaja em um transiberiano é feito prisioneiro por uma tribo mongol. O filme é fundamental na filmografia de Ulrike Ottinger: começa como uma ficção espetacular, mas transforma-se em documentário tal como a sua obra como um todo. Versão restaurada. Filmicca 

Joana d’Arc da Alemanha por Anelise De Carli, Feb 20, 2021

 Uma retrospectiva da obra da cineasta Ulrike Ottinger visitou Porto Alegre durante uma curta e intensa semana de outubro de 2013. A coletânea invadiu a Sala P. F. Gastal da Usina do Gasômetro depois de estar no Festival de Cinema do Rio, que teve a Alemanha como tema de muitas das mostras. Dona de uma obra extremamente livre e ensaísta, a realizadora percorre o submundo da Berlim dos anos 1980 até recônditos povoados japoneses. Para Ulrike Ottinger, o mundo não tem limites.

Para as histórias que o cinema da alemã quer contar, povoado de cores fortes, atuações milimetradas e roteiros redondos e ousados talvez não dessem conta do recado. Depois de muitas horas de cores fortes e cenas que beiram o surreal, a mensagem de Ulrike só ficou mesmo clara no único filme da mostra não realizado por ela: o documentário A Nômade do Lago (Brigitte Kramer, 2012). É ali que ela responde, de supetão, com uma espada na ponta da língua:

    “não existe nada mais irreal do que uma história linear”.

Ulrike: dona de uma agitada vida social na lendária Berlim dos anos 1970, produtora cultural que incentivava o trabalho de jovens realizadores das artes, pintava pop art na Paris sessentista e era fotógrafa do inusitado e das culturas do mundo. Em um bar, este “Jodorowsky alemão” bebeu com Fassbinder e encontrou Nina Hagen.

Em uma trilogia sobre a decadência urbana de Berlim, esta mesma Ulrike queria transgredir através do feminino — e o fez em Retrato de uma Alcoólatra (1979). Queria experimentar tudo que a película poderia suportar, e o fez em Freak Orlando (1981). Queria brincar com as artes e o futuro dos outros, e o fez em Dorian Gray no Espelho da Imprensa Marrom (1984). O experimentalismo nessas três grandes obras iniciais da carreira como cineasta talvez peque pelo excesso de juventude, mas faz tremer o coração dos espectadores quando eles assustadoramente reconhecem a gigante mobilização de música, teatro, dança, cenografia, luz, ângulos e montagem orquestradas por uma artista com poucos filmes na bagagem até então — e pouco mais de 30 anos.

Quando ao final de Joana d’Arc da Mongólia (1989), a princesa asiática revela que os acampamentos de verão são uma prática das mulheres da cidade para relembrar a cultura ancestral, é possível se sentir enganado. Até aquele momento, já foi possível ser dissuadido por Ulrike algumas vezes dentro do mesmo filme, que começa parecendo um musical dentro da Transiberiana para se tornar um documentário etnográfico sobre a cultura mongol. É indescritível o frisson de, depois da sensação de acordo entre público e cineasta desmoronar, relembrar que, o tempo todo, o filme era declaradamente do gênero ficção. Ulrike declara o seu o amor pelas manifestações culturais diversas através do feminino, do teatro e da comédia — recurso do qual, pode-se dizer, se utilizou em quase todo seu trabalho.

A diretora alemã esteve em Porto Alegre para a abertura da mostra e conversou com o público após da exibição do filme-fábula Sob a Neve (2011), filme-fábula protagonizado por dois dançarinos kabuki. A história dos modos de vida das pessoas da região é contada através de lendas locais. Perguntaria Ottinger: e de que outra maneira falar sobre as coisas, se não falando sobre o que se fala? Este, assim como Joana d’Arc da Mongólia, é um filme de ficção que faz as vezes de um documentário. É difícil lembrar que a coreografia de um dos gêneros mais estetizados de teatro do mundo está servindo, ali, para contar sobre uma população e uma cultura que realmente existem.

Originalmente publicado no Zinematógrafro em 2013.

25/06/24

Amor Fora da Lei, Ain't Them Bodies Saints, 2013, David Lowery

Crítica | Amor Fora da Lei por Melissa Andrade, 12 de julho de 2014

Há vários conceitos de filmes no mercado e cada um deles segue mais ou menos uma fórmula de começo, meio e fim. Mas, há outro conceito, conhecido dos cinéfilos e que muitas vezes passa desapercebido do grande público: o filme de arte.

Filmes de arte não precisam necessariamente obedecer a nenhuma fórmula em específico, eles apenas refletem a criação de seu diretor com um roteiro mais simples. Mas, justamente por fugir um pouco as regras, pode não agradar a maioria.

Amor Fora da Lei conta a história do casal Ruth e Bob, que foram criados juntos e acabaram se apaixonando. Vivendo em uma cidadezinha no interior dos Estados Unidos na década de 70, o casal vive seu amor em meio aos crimes cometidos por Bob e seu parceiro. Tudo o que ele quer é dar uma boa vida a Ruth e constituir uma família. Mas, em um roubo que dá errado, Bob é preso e Ruth acaba ficando sozinha e grávida. Com a promessa de que vão se encontrar novamente, Ruth leva sua vida pacata com a filha, enquanto Bob amarga na prisão sonhando com a amada. Mas, o destino reserva surpresas.

O diretor David Lowery quis muito emular Terrence Malick, mas a tentativa não terminou em sucesso. O filme que possui uma fotografia apagada, quase em sépia, flutua entre as angústias dos personagens de Bob e Ruth, interpretados por Casey Affleck e Rooney Mara, sem realmente se aprofundar nelas. Os atores, aliás, o elenco no geral é o que salva o filme, entregando atuações palpáveis, ainda que nada surpreendentes.

Fica claro que Lowery quis contar sua história através unicamente das emoções, mas infelizmente ele falha, pois sem uma direção precisa, os atores parecem perdidos e acabam causando a mesma sensação em quem assiste ao filme. Já o enredo é fraco e possui alguns diálogos desconexos e que tentam poetizar situações que acabam por parecer vazias. Além do mais, o triângulo amoroso que surge na metade do filme não convence a ninguém.

O tempo todo o espectador espera por algo, mesmo um pequeno diálogo que conclua a trama e isso não acontece. Mais uma vez, contamos apenas com as emoções e elas não são suficientes nesse caso.

Não há problemas em filmes de arte, como mencionado antes Malick tem feito um ótimo trabalho com em A Árvore da Vida e Amor Pleno. A questão reside quando se tenta mimetizar algo ou o estilo de alguém, sem de fato alcançar seu objetivo. Exatamente o que acontece com Amor Fora da Lei.