André Borges (textos) e Ruy Baron (imagens), Enviados especiais a Coari e Silves (AM), Uol, 06/12/2023
Na praça de Coari (AM), às margens do rio Solimões, uma pequena estrutura de ferro fundido, com suas engrenagens e a sonda pintadas de vermelho, enfeita o centro da cidade. O equipamento usado nos poços de petróleo, um ícone do progresso coariense, está chumbado próximo às costas de um Cristo de cimento.
A estátua, cercada por lixo e cheiro de urina, tem os braços abertos para os barracos de pau, um amontoado de casas que se equilibram como podem sobre a lama e a sujeira que se reviram nas margens do rio. Um bando de urubus sobrevoa a área, avaliando os restos que amolecem sob o sol incandescente. O zunido das motos anuncia mais um dia na maior província do petróleo e do gás terrestres do Brasil.
A expectativa do surgimento de uma "Dubai amazônica" impulsionada pelo dinheiro do petróleo nunca se concretizou. A ambição financeira e as promessas de riqueza que hoje são usadas como principal argumento para extrair petróleo na foz do rio Amazonas já fazem parte do cotidiano de Coari há quase quatro décadas. Já se retira muito petróleo da Amazônia, e não é de hoje. Poços de óleo e gás são explorados na região desde a década de 1980.
Debaixo de Coari, município encravado no coração do Amazonas, encontra-se uma das maiores jazidas terrestres de petróleo do país, onde só se chega de avião ou barco, navegando pelas águas turvas do Solimões. São cerca de 450 km até chegar a Manaus.
Já se passaram 37 anos desde que o primeiro poço de petróleo "economicamente viável" jorrou sobre o solo coariense, em 12 de outubro de 1986, confirmando as pesquisas da Petrobras que indicavam haver, debaixo da maior floresta tropical do planeta, uma reserva de óleo com qualidade superior àquela encontrada em boa parte dos países árabes.
Em rede nacional, o então presidente José Sarney anunciava o começo da produção, em 1988, embalado por um discurso ufanista sobre a riqueza que "libertaria" o país. O Brasil, que se livrava da ditadura militar e ganhava uma Constituição Federal, mergulhava no petróleo amazônico para consolidar a emancipação nacional.
No meio da mata, a população de Coari, então com seus 35 mil habitantes, viu brotar do chão a promessa de uma vida melhor nos extremos da Amazônia, passados os ciclos da borracha e da castanha-do-pará. O óleo e o gás irrigariam os cofres da cidade, injetando dinheiro na máquina pública com o pagamento dos "royalties", como é conhecido o quinhão petroleiro que fica para o município. Um caminho virtuoso estava selado.
Coari, de fato, cresceu. Hoje, os campos do complexo de Urucu produzem cerca de 110 mil barris de petróleo por dia. Desde 2011, o gasoduto Urucu-Coari-Manaus, com seus 663 km de extensão, cruza a floresta para despejar o gás do município diretamente na capital do estado. Coari viu sua população dobrar de tamanho e chegar aos atuais 70,5 mil habitantes, como mostra o Censo do IBGE de 2022. O futuro e a riqueza, porém, nunca chegaram.
Em outubro, a reportagem do UOL percorreu, por terra e água, municípios da Amazônia onde a exploração de petróleo e gás já é uma realidade. A apuração se concentrou na Bacia do Solimões, região do Amazonas que é dona do maior volume terrestre destes insumos no Brasil.
O objetivo foi mostrar o dia a dia de cidades amazônicas que têm - ou pretendem ter - boa parte de suas finanças atrelada à produção petroleira. Dois municípios foram visitados: Coari, do lado oeste do estado, onde a exploração já acontece há 35 anos; e Silves, do lado leste, que deu início à sua produção de forma intensiva em 2021.
A realidade que se depreende das ruas, órgãos públicos, periferias e comunidades rurais destes municípios revela um cotidiano marcado pela falta generalizada de infraestrutura, ausência de saneamento básico, problemas graves de segurança pública e precariedade em serviços de saúde e educação. Se a razão de ser da exploração fóssil é a melhoria econômica e da qualidade de vida, não é a realidade que se vê nesta região.
Em Coari, município que recebeu R$ 136,3 milhões de royalties em 2022, a Polícia Militar conta hoje com um efetivo de 25 agentes e capacidade de circular com apenas uma viatura por dia em toda a cidade. Trata-se de uma guarnição da PM para fazer a segurança de 70 mil habitantes.
Isolada na floresta, a cidade também passou a conviver com o drama de grandes metrópoles, onde membros do CV (Comando Vermelho) e do PCC (Primeiro Comando da Capital) têm rivalizado pelo controle da rota do tráfico de drogas no Solimões (leia aqui).
Na farmácia popular do município, que distribui medicamentos gratuitos, faltam remédios básicos, como comprimidos que custam R$ 0,50. O mesmo ocorre em unidades básicas de saúde. Na zona rural, em locais como a Vila Lira, ao lado do terminal de embarque de petróleo da Petrobras, a merenda escolar só dá para a metade de cada mês (leia aqui).
"Para um município como Coari, que recebe esses recursos, o que a gente percebe é essa precariedade, sobretudo nas questões essenciais do serviço público", diz Gleides Medins de Menezes, coordenadora da Universidade Estadual do Amazonas em Coari.
Sem uma indústria além da petroleira, comenta Menezes, o município sofre. "Infelizmente, é um município com um índice de desemprego muito grande, além de carência de serviços básicos de saúde e educação. Poderia estar numa situação melhor, mas infelizmente nós não temos."
Os dados do IBGE emolduram o cenário. Em 2021, a proporção de pessoas empregadas em Coari em relação à sua população total era de apenas 8,1%, quase um terço da porcentagem de Manaus, por exemplo, com 23,7% de sua população ocupada. A média salarial também é baixa. Na capital amazônica do petróleo, 49% dos domicílios têm rendimento mensal de até meio salário mínimo por pessoa.
Geradora de óleo e gás que abastecem grandes usinas termelétricas de Manaus e da região Norte do país, Coari convive com a instabilidade no abastecimento de sua própria rede de energia elétrica. "Neste período de estiagem, a gente sofre bastante com a falta de energia", diz Gleides Medins de Menezes. "Eu destaco ainda a situação do saneamento, a falta de uma política ambiental consistente. Na verdade, o município não dispõe disso."
Na capital do petróleo amazônico, não há um programa de tratamento de resíduo sólido. A reportagem esteve no lixão a céu aberto de Coari. No meio da floresta, em uma área sem nenhum tipo de controle, montanhas de lixo de todas as origens crescem com o despejo irregular, o que acaba por contaminar o solo e o lençol freático, um dano severo ao meio ambiente, além de disseminador de doenças.
Coari está entre as cidades brasileiras que, ainda hoje, descumprem a lei federal dos aterros sanitários. A cidade já deveria ter uma área preparada para o tratamento dos resíduos, do chorume e dos gases. O que se vê na prática, porém, são nuvens brancas que encobrem parte da cidade, por causa da fumaça que escapa da queima do lixo. Até 2021, 62% dos domicílios de Coari não tinham esgotamento sanitário adequado.
Silves, a nova promessa fóssil
Do outro lado do Amazonas, uma "nova Coari" começa a nascer, a 330 quilômetros de Manaus, numa região onde afloram conflitos com povos indígenas (Leia aqui). Assim como a população coariense, que há décadas espera a transformação social e econômica que o petróleo traria, os 12 mil habitantes de Silves vivem, agora, a expectativa de terem a vida transformada pelo gás fóssil. A promessa atende pelo nome de Campo de Azulão, área produtora de gás na Bacia do Amazonas que passou a ser explorada pela empresa Eneva em 2021, após três anos de obras.
Como ocorre em todo projeto do setor energético, os números envolvidos com a extração de gás em Silves são superlativos. O complexo, que já tem uma reserva certificada de 6,3 bilhões de metros cúbicos de gás, recebeu investimentos de R$ 1,8 bilhão.
Para a população, porém, a obra de infraestrutura mais aparente que se vê fora do complexo é a estrada de 330 km que liga Silves a Manaus. O trajeto, que teve seu asfalto renovado, é usado diariamente por dezenas de carretas que transportam o gás de Silves até uma usina termelétrica de Boa Vista (RR), um percurso que soma 1.100 km. Com exceção desta estrada, o que sobra é a precariedade do município.
Uma voçoroca cresce no meio da ilha fluvial de Silves, a sede do município, cercada pelo lago de Canaçari, ao lado do rio Amazonas. O buraco gigantesco, causado pela erosão descontrolada, foi transformado em um lixão a céu aberto. Seis anos atrás, dois jovens morreram soterrados quando passavam pelo local.Nas ruas da Silves, proliferam buracos. O esgotamento sanitário é um luxo restrito a 4,8% dos domicílios e somente 36,4% das casas têm urbanização considerada adequada, com estruturas básicas de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio, segundo o IBGE.
Em 2021, o número de pessoas ocupadas era de apenas 796 habitantes, o equivalente a 7,1% da população total. De todos os domicílios, metade (49,1%) tinha rendimento mensal de até meio salário mínimo por pessoa. Márcia Ruth, presidente da Associação de Silves pela Preservação Ambiental e Cultural, diz que a oferta de postos de trabalho, que era uma promessa inicial, ainda não se concretizou.
"Infelizmente, ainda existem pessoas que estão muito encantadas com a ideia de que vão conseguir trabalhar", afirma ela. "Eles disseram, na audiência pública, que estão ajudando com a educação, com o hospital, com a saúde. A gente se pergunta: onde? Em quê? A cidade não consegue ver essa melhoria."
O dinheiro dos royalties já começou a pingar nos cofres de Silves. Os dados da Agência Nacional do Petróleo apontam repasses de R$ 760 mil em 2021. No ano passado, o valor subiu para R$ 1,703 milhão. Entre janeiro e outubro deste ano, chegou a R$ 1,763 milhão.
O pescador Marcos de Oliveira Costa encara qualquer nova promessa com desconfiança. Em tempos de estiagem histórica na região, com o agravamento de um cenário que já era difícil, seu ceticismo aumenta. "Quem sofre somos nós, que moramos aqui, filhos dessa terra. Não resolvem nossos problemas. Entra presidente, sai presidente, mas eles não vêm ver o que acontece aqui."
Piratas nos rios e violência nas ruas
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