sábado, 2 de dezembro de 2023

Música sertaneja e o racismo

'Casa-Grande e Senzala' e os mestiços da música sertaneja

Para a pauta indenitária atual, a negritude tornou-se tema central, daí a justa busca por negros entre os sertanejos. 

Gustavo Alonso, FSP, 01/12/2023

Em dezembro deste ano celebram-se 90 anos da publicação do clássico "Casa-Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, lançado em 1933. Trata-se de um livro interessantíssimo para se pensar a miscigenação nacional e a música sertaneja, tema desta coluna.

Em recente reportagem do jornal O Globo, vários especialistas acusaram a música sertaneja de ser racista pela baixa quantidade de artistas negros. Para a pauta indenitária atual, a negritude tornou-se tema central, daí a justa busca por negros entre os sertanejos.

Retrato da dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó, que completa 50 anos de carreira - Folhapress

A reportagem de O Globo lembrou de alguns negros sertanejos e caipiras: João Paulo (da dupla com Daniel), Rick (da dupla com Renner), Kleo Dibah, Tião Carreiro, Cascantinha & Inhana, Pena Branca & Xavantinho, João Mulato, Irmãs Barbosa e Thácio —exímio violeiro da dupla com Lucas Reis. Faltou lembrar-se de Adauto Santos, outro ícone da música rural, hoje esquecido.

Será que Freyre concordaria com o veredito de que há poucos negros na música sertaneja? O pernambucano talvez preferisse buscar mestiços em vez de negros nesse gênero musical, pois quase todos os que atualmente são chamados de negros, na verdade, são mestiços. Afinal, embora haja negros retintos e brancos azedos no espectro colorístico nacional, impera o hibridismo, especialmente nas camadas populares.

Em época de hegemonia de identitarismo birracial, o pensamento miscigenado de Freyre virou vilão. Quiçá nenhum outro livro serviu tanto de espantalho para a nossa época quanto o clássico do pernambucano. No entanto, uma releitura atenta e crítica de "Casa-Grande e Senzala" nunca se mostrou tão necessária. Desde que foi publicado, a obra conquistou rapidamente o status de clássico. Ele vinha a contento dos interesses da sociedade brasileira em metamorfose. A tese do pernambucano nos mostrava como um povo único, incrivelmente plástico diante das estruturas, relativizador das duras relações coloniais.

Freyre buscava a especificidade nacional, nossa contribuição à civilização humana. Para isso nos mostrou um passado que, apesar de toda a crueldade do encontro de raças, também nos fez únicos. Por meio de "Casa-Grande e Senzala" pudemos nos enxergar como um povo híbrido, mestiço por excelência, algo cada vez mais dissonante aos ouvidos de hoje.

Há muitos exageros e imprecisões na escrita ensaística de Freyre que devem e precisam ser apontados. Desde os anos 1950 não faltaram críticos do livro a explorar suas limitações. Apesar disso, sua tese ainda permanece importante: devemos nos compreender como um país hegemonicamente mestiço, no qual a bipolaridade negro/branco só faz sentido se matizada em muitos aspectos, ponderada em várias gradações e tonalidades e, sobretudo, contextualizada.

A realidade brasileira é, aos olhos de Freyre, muito diferente do birracialismo americano, onde impera a dicotomia branco/negro. As atuais pautas identitárias vêm tentando encaixar o Brasil neste molde americano, mas nossa realidade escapole a todo instante.

Talvez por seguir a forma americanizada de enxergar nossas relações raciais, a reportagem de O Globo tenha se esquecido de alguns mestiços brasileiros —alguns até no nome, como João Lucas & Marcelo, Pardinho (da dupla com Tião Carreiro), Zé Mulato & Cassiano e Gabriel Vittor, da dupla Us Agroboys. Mais grave, o silêncio sobre três ícones mestiços da música sertaneja chama a atenção: Zezé Di Camargo e a dupla Chitãozinho & Xororó.

Temos dificuldade de enxergar a miscigenação nestas estrelas sertanejas, viciados que estamos na lógica birracial. Se há poucos "negros" na música sertaneja, também há outro fenômeno bastante notável em nosso olhar: o apagamento de sertanejos mestiços bem-sucedidos de nosso imaginário.

Em mais de 15 anos de pesquisa sobre a música sertaneja, nunca vi ninguém se perguntar se Zezé Di Camargo é mestiço. Não seria Zezé um mulato claro? A reportagem de O Globo sequer considerou a possibilidade. Por sua vez, o movimento negro parece pouco interessado em saber se Zezé é negro. Como hoje em dia a palavra mulato foi proscrita do vocabulário identitário, restaria ao sertanejo ao menos a negritude. Zezé é negro?

E o que dizer de Chitãozinho & Xororó? Os irmãos paranaenses têm clara ascendência indígena, mas dificilmente conseguimos enxergar essa origem na dupla. Ilustrativa dessa nossa miopia é o fato de que dificilmente Chitãozinho & Xororó entrariam por cota em qualquer universidade brasileira. É comum as universidades cotistas pedirem àqueles que pleiteiam cotas indígenas, além da autodeclaração, uma carta de recomendação emitida por liderança local, normalmente uma personalidade ou um ancião reconhecido.

Também vale o Registro de Nascimento Indígena (Rani), documento emitido pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Ou seja, tem que ser amigo do cacique, do pajé ou da burocracia estatal para ser considerado indígena em nossas universidades.

Por que é tão difícil vermos estes mestiços na música sertaneja? Em parte isso se deve ao fato de que as pautas raciais quase nunca foram importantes para os próprios artistas. Em parte se deve às cirurgias plásticas, às maquiagens e ao envelhecimento, que tendem a suavizar traços da mestiçagem, embranquecendo-os.

O enriquecimento também dificulta: estamos acostumados a ver a riqueza como sinônimo da branquitude. O fato de Chitãozinho e Zezé terem apoiado o fascista Bolsonaro tampouco coopera. Para movimentos identitários de esquerda é dificílimo reconhecer que negros e indígenas possam não ser "progressistas".

No fim das contas, a mestiçagem é apagada diante de nossos olhos. Hesitamos em aceitar o hibridismo nacional. A tese de Gilberto Freyre vive. Ainda temos dificuldade de nos ver no espelho.

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Entenda como história da música caipira e sertaneja no Brasil foi marcada por embranquecimento dos ritmos e das imagens. Como mudar esse cenário?

Por Marília Neves, g1, 17/11/2023 

João Paulo, Rick e Kleo Dibah — Foto: Reprodução/Instagram

O sertanejo domina a lista de músicas mais tocadas nos rádios e plataformas de streaming há alguns anos. Contudo, esses rankings raramente têm artistas negros.

Desde 1996, o top 10 de músicas mais tocadas do ano nas rádios não conta com um representante negro do sertanejo. Naquele ano, João Paulo e Daniel apareceram na terceira posição com "Estou apaixonado". Um ano antes, a dupla estava na sexta colocação com "Eu me amarrei".

Em 1997, João Paulo morreu em um acidente de carro. Anos depois, Daniel fez diversas revelações sobre o preconceito que assistiu de perto com João Paulo. Incluindo a constante sugestão para que o cantor trocasse de dupla antes de eles estourarem. "Sugeriram que o Daniel se juntasse ao Marcelo Aguiar -- que era cantor também, foi deputado, e hoje tá na igreja -- lá no começo porque eram dois bonitinhos branquinhos e fazia mais sentido", contou, ao g1, o jornalista André Piunti, especialista em música sertaneja.

Rick, parceiro de Renner, revelou que passou por muitas situações de racismo. "A gente viveu situações delicadas. Eu vivi, sim, situações de preconceito", disse o cantor no canal de Piunti no YouTube, citando o dia em que uma fã foi ao show da dupla e pediu uma foto para Renner. Na hora em que o cantor chamou Rick para se juntar ao clique, a mulher disse "que não gostava de negros". Renner partiu em defesa do amigo e, então, recusou o pedido da foto.

Rick ainda relembrou uma história vivida e relatada a ele por João Paulo, na qual o clube da elite de uma cidade contratou o show de João Paulo e Daniel. "O cara comprou um show, mas ele não os conhecia. Na época, não tinha tanta imagem, não divulgava tanto. E quando João Paulo e Daniel chegaram, o cara falou que se tivessem falado que tinha um negro na dupla, ele não teria comprado."

Rick é um dos poucos nomes negros na música sertaneja atual ao lado de outros como Kleo Dibah e Thácio (dupla de Lucas Reis). Ao longo da história da música caipira e sertaneja, outros artistas aumentaram essa lista: Tião Carreiro, Cascatinha & Inhana, Pena Branca & Xavantinho, João Mulato e as Irmãs Barbosa. "Ainda que existam representantes negros, a proporção é pequena dentro um cenário majoritariamente branco. Mas por que essa lista é tão pequena? Sempre foi assim ou algo mudou ao longo dos anos?"

Em um artigo sobre "a música sertaneja e o enigma racial brasileiro", Marcos Queiroz levantou a hipótese de que o sertanejo teve que "embranquecer" para se nacionalizar. Marcos é professor do Instituto Brasiliense de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e membro do Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação — CEDD/UnB, do Maré.

O g1 conversou com especialistas que falaram de outros motivos que explicam a minoria negra na música sertaneja brasileira:

o apagamento das raízes negras da música sertaneja;

o embranquecimento gerado pela modernização da música sertaneja;

a falta de representatividade – sem estrelas negras, os mais jovens não têm em quem se espelhar e não se reconhecem no ritmo.

1) Apagamento das raízes negras

João Mulato, Tião Carreiro, Irmãs Barbosa, Pena Branca e Xavantinho e Cascatinha e Inhana — Foto: Reprodução

"Para Luiz Antonio Guerra, doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, a ausência de nomes negros na música sertaneja é reflexo do apagamento das raízes negras da música caipira. E esse cenário não é atual."

"Isso vem lá de trás. Vem lá da música caipira, na verdade, que sempre foi marcada por um esquema de modernização. Desde 1929, com Cornélio Pires, ela está entre esses polos do caipira, da tradição e da modernização", afirma o professor. Em sua tese de doutorado, ele analisou o desenvolvimento histórico e social da viola e cultura caipira.

Luiz explica que, nesse processo de modernização e de segmentação dos gêneros da música popular brasileira, a música caipira começou a receber apoio da intelectualidade paulista na década de 1930. A partir daí, ritmos que faziam parte de sua história e que são heranças africanas (como o lundu, o moçambique, a congada, o jongo e o samba) foram sendo apagados, deixando os traços da moda de viola, do cururu e o cateretê.

"Antes, tudo era música regional, música sertaneja. E esse processo de segmentação vai falando: 'ah, isso aqui é da música caipira, isso aqui é samba, isso aqui é nordestino'. Vai dividindo. No começo da fonografia caipira, estava tudo misturado ainda. Essas expressões musicais negras acabam ficando como se fosse do samba carioca ou da música nordestina em toda sua variedade."

"Essa musicalidade que estava presente nas comunidades caipiras não foram capazes, dentro desse processo de mediação da indústria fonográfica, de se tornar subgêneros da música caipira e, depois, da música sertaneja."

Segundo Luiz, essa segmentação musical se torna um obstáculo para as pessoas negras. "É mais difícil elas alcançarem a fama, vamos dizer assim. Conforme vai se tornando uma música sertaneja mais modernizada, mais nacionalizada, mais prestigiada, mais rica, como tudo na sociedade brasileira, vai se colocando obstáculos para essa população negra acessar esses espaços."

André Piunti reforça a tese do professor: "Se você for buscar lá a origem da música caipira, dos ritmos que a formaram, eram batidas influenciadas por portugueses, por indígenas e por negros africanos que vinham para cá. E aí no começo da música como música caipira, eles vão sendo tirados à medida que a música vai ficando pop."

"A indústria vai trazendo a música sertaneja para dentro e vai colocando a imagem do negro de fora. Alguns apareceram, mas a proporção é bizarra."

2) Obstáculos na indústria fonográfica

Discos da carreira de Tião Carreiro — Foto: Reprodução/TV TEM

Para Piunti, a modernização e a indústria fonográfica estão entre as culpadas pelo embranquecimento do sertanejo. "Quando a música passa a fazer parte da indústria que coloca o LP na gôndola da loja, que leva o artista para as televisões, ou que faz a dupla rodar fisicamente para conhecer os locais, as gravadoras e alguns executivos já cortavam por serem negros."

O jornalista ainda contou a história que ouviu de um artista, que prefere não ser identificado, relatando que "a moça da gravadora falou que 'não dava', assim nesses termos mesmo, para colocar dois 'neguinhos' na capa de um disco e vender numa loja."

Um caso interessante é o da dupla Cascatinha & Inhana. Na década de 1950, o som era mais importante do que a imagem. "Com certeza, muita gente que consumiu 'Índia' e 'Meu Primeiro Amor', em 1952, ouviu muito sem saber a cara deles."

Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos e professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Rogério da Palma também fala sobre as mudanças geradas ao longo do processo de modernização e profissionalização da música.

"É importante pensar como a modernização da indústria musical, na qual a imagem do cantor é cada vez mais explorada, abriu novos caminhos para a reprodução das desigualdades raciais. O racismo possui uma dimensão estética", analisa Rogério, que é autor do livro "Racismo e Liberdade: relações inter-raciais e a construção da (sub)cidadania negra".

"Modernizar e desenvolver sempre foi, mesmo que muitas vezes de maneira implícita, sinônimo de embranquecimento", completa o professor. Dentro disso, Luiz Antonio Guerra relembra que mesmo ícones negros do início da música caipira e sertaneja, a exemplo de Tião Carreiro, passaram por um branqueamento para terem suas imagens divulgadas em capas de disco.

"Você vai ver eles, vamos dizer assim, menos negros, muito entre aspas, na imagem que é passada na capa dos discos do que na que você vê deles ao vivo. É um processo racista que já existia na indústria fonográfica há um tempo."

3) 'Sertanejo é antimilitância'

A dupla Lucas Reis e Thacio — Foto: Divulgação

Para Marcos Bernardes, o Marcão do portal Blognejo, Tião Carreiro era um dos maiores ícones da música sertaneja e não fazia nenhum discurso em defesa dos negros. "Ao contrário, ele cantava músicas que de certa forma tratavam o negro de forma pejorativa. Um dos grandes sucessos do Tião Carreiro, 'Preto de alma branca', é uma das músicas que mais fala de forma velada sobre o racismo. Só o título da música já é racista."

"Não existia um discurso antirracista no sertanejo. A maioria das músicas falavam dessa forma dos negros. Tratavam como um racismo velado. Então eu acho que os próprios negros na música sertaneja não viam a importância deles nesse ponto."

A ausência desse discurso segue até hoje. Segundo Marcão, se algum artista tentar um movimento inverso, muito provavelmente não será aceito pelo mercado do estilo: "O sertanejo é totalmente antimilitância. Qualquer tipo de militância encontra barreiras no sertanejo."

"Qualquer tipo de movimento que tenha pouco espaço no sertanejo e que exista um certo preconceito ao longo dos anos só vai se consolidar quando abandonar militância. Não adianta tentar emplacar nada de movimento, porque o sertanejo vai ver isso com péssimos olhos."

Os cantores sertanejos Junior Marques, David Henrique e Diogo Henrique — Foto: Reprodução/Instagram

Para Marcão, o que poderia mudar esse cenário é o famoso "acertar uma música", que é quando uma canção se torna um hit e estoura. "A música é sempre mais importante do que a imagem do artista. Alguns artistas não se tocam disso. A maioria dos artistas do top do Brasil não são tão presentes nas mídias em geral."

"O artista negro dentro do sertanejo, na hora que acertar o repertório, que acertar na veia, que começar a render, pode ser que dê certo. A galera esperou muito isso com Kleo Dibah. Infelizmente, não aconteceu", analisa.

"Mas aconteceu com João Paulo e Daniel, que na hora que acertou, consolidou. Aconteceu com Rick e Renner. Pena Branca e Xavantinho acabou se tornando um ícone cultural porque tiveram uma importância não só no sertanejo, mas quando eles regravaram 'Cio da Terra', por exemplo, eles foram abraçados pela MPB."

Para Piunti, a concorrência segue injusta. "Passando tempos em Goiânia, eu vejo que tem [negros tocando em bares e baladas]. Só que o problema é a proporção. Não é 10 pra 1. É 50 pra 1. Então é mais um concorrente ali. Aí fica muito cruel."

Para ele, o "sertanejo precisa da sorte de um aparecer para puxar uma fila". "Como a gente deu sorte da Marília aparecer e, aí, veio uma galera junto". A cantora, que morreu em 2021, encabeçou um time de mulheres e o movimento feminejo, após décadas de preconceito contra mulheres dentro do sertanejo.

A afirmação de Piunti levanta o ponto da representatividade, já abordado pela atriz e produtora fluminense Jeniffer Dias, quando ela interpretou a cantora sertaneja Thamyres, na série "Rensga hits!", em 2022. "A gente não está acostumada a ver sertanejo preto. Então eu não tinha muito isso de escutar sertanejo porque não me representava muito", lamentou Jennifer.

Alguns nomes de artistas negros em ascensão que estão em destaque atualmente no cenário sertanejo são os cantores Junior Marques, David Henrique e Diogo Henrique. Junior, aliás, já cantou algumas vezes ao lado de Gusttavo Lima, incluindo algumas edições do festival "Buteco".

"Tenho certeza que vindo um, vai ter muita gente interessada que está escondida", diz Piunti. "O jeito de melhorar é cair uma Ana Castela, por exemplo, do nada. E aí, eu acho que bateria no lance da representatividade e conseguiria abrir um mundo diferente, um caminho diferente para você ter negros como tem em qualquer tipo de música."




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