Um novo capítulo da nazificação argentina pode estar sendo escrito por Milei
Presidente eleito subiria no conceito mundial se descumprisse suas promessas de campanha, se enfim se revelasse um estelionatário eleitoral
Sérgio Augusto, O Estado, 10/12/2023
Que o mundo sempre foi e será uma porcaria a gente já sabe; desde, pelo menos, 1934, quando se ouviu pela primeira vez o tango Cambalache. Mais que um tango, um catártico desabafo niilista de Enrique Santos Discépolo (1901-1951) contra este merengue de absurdos em que ignorantes e sábios, honestos e canalhas, têm o mesmo peso. Discépolo falava do mundo, mas sobretudo da Argentina e das Américas.
Na quinta estrofe da versão original de Cambalache, aos mencionados Toscanini, Napoleão e o general San Martin juntavam-se o padre salesiano dom Bosco e o lutador Primo Carnera, com o tempo acrescidos de (ou substituídos por) Stravinski, Beethoven, John Lennon e Ringo Starr.
Nesse elenco Rexona, em que sempre cabe mais um, não fariam má figura dois argentinos sobre os quais muito tenho lido nas últimas semanas. Ambos convenientemente bissílabos, para não bagunçar a métrica da letra: Milei e Darré.
Milei, que hoje toma posse como o Bolsonaro da Argentina, dispensa apresentações. Caberia sem aperto no meio de outras figuras ainda não evocadas por quem gravou o tango depois de Caetano, Raul Seixas e Angela Rô-Rô. E decerto subiria no conceito mundial se descumprisse suas promessas de campanha, se enfim se revelasse um estelionatário eleitoral.
Ainda que Darré corra o risco de ser confundido com (Ricardo) Darín – como Staviski acabou trocado por Stravinsky na insuperável interpretação de Julio Sosa, que nunca ouvira falar no financista de origem russa Alexander Staviski –, insisto em sua inclusão pelo que Richard Walther Oscar Darré representa na história da nazificação da Argentina. Isto mesmo: nazificação. Um novo capítulo dessa história pode estar sendo escrito por Milei.
O milongueiro bufão que os hermanos alçaram à Casa Rosada iniciou sua carreira política à sombra do general Domingos Bussi, com extensa folha de serviços prestados à sanguinária ditadura de Videla (sequestrou um parlamentar, deu sumiço em centenas de sindicalistas, estudantes e professores), que culminaram com sua condenação à prisão perpétua em 2008.
Quanto a Richard Darré, nascido Ricardo e filho de imigrantes alemães atraídos ao “celeiro do mundo” que era a Argentina, aos 9 anos foi estudar agronomia na terra natal dos pais. Seu avassalador sucesso entre os nazistas o impediu de voltar para Buenos Aires, como planejara.
De um livro que publicou em 1930 saiu o slogan nazista Blut und Boden (sangue e solo pátrio) e a ideia de aplicar em seres humanos os mesmos métodos de “aprimoramento genético” da pecuária. O eugenista portenho ajudou Himmler a montar as diretrizes racistas do 3.º Reich, de que foi ministro da Agricultura entre 1933 e 1942. Condenado pelo Tribunal de Nuremberg, morreu em 1953, aos 58 anos, não na forca, de câncer. Como deixar de fora de Cambalache um supremacista branco desse calibre?
Em tempo
Cambalache, Carlos Gardel & Enrique Santos Discepolo
Cambalache - letra
El mundo fue y será una porquería, ya lo sé
En el quinientos seis y en el dos mil también
Que siempre ha habido chorros
Maquiávelos y estafáos'
Contentos y amargaos, valores y dublé
Pero que el siglo veinte es un despliegue
De maldá' insolente ya no hay quien lo niegue
Vivimos revolcaos en un merengue
Y en el mismo lodo todos manoseaos
Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor
Ignorante, sabio, chorro, generoso, estafador
Todo es igual, nada es mejor
Lo mismo un burro que un gran profesor!
No hay aplazaos ni escalafón
Los inmorales nos han iguala'o
Si uno vive en la impostura
Y otro roba en su ambición
Da lo mismo que sea cura
Colchonero, rey de bastos
Caradura o polizón
¡Qué falta de respeto, qué atropello a la razón!
¡Cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón!
Mezclao' con Stavisky van Don Bosco y La Mignon
Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín
Igual que en la vidriera irrespetuosa
De los cambalaches se ha mezclao' la vida
Y herida por un sable sin remache
Ve llorar la Biblia contra un bandoneón
Siglo veinte, cambalache, problemático y febril
El que no llora no mama y el que no afana es un gil
Dale nomás, dale que va
Que allá en el horno nos vamo' a encontrar
No pienses más, sentate a un lao'
Que a nadie importa si naciste honrao'
Es lo mismo el que labura
Noche y día como un buey
Que el que vive de los otros
Que el que mata o el que cura
O está fuera de la ley
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