domingo, 10 de dezembro de 2023

Milei, novo capítulo da nazificação argentina?

Um novo capítulo da nazificação argentina pode estar sendo escrito por Milei

Presidente eleito subiria no conceito mundial se descumprisse suas promessas de campanha, se enfim se revelasse um estelionatário eleitoral

Sérgio Augusto, O Estado, 10/12/2023

Que o mundo sempre foi e será uma porcaria a gente já sabe; desde, pelo menos, 1934, quando se ouviu pela primeira vez o tango Cambalache. Mais que um tango, um catártico desabafo niilista de Enrique Santos Discépolo (1901-1951) contra este merengue de absurdos em que ignorantes e sábios, honestos e canalhas, têm o mesmo peso. Discépolo falava do mundo, mas sobretudo da Argentina e das Américas.

Na quinta estrofe da versão original de Cambalache, aos mencionados Toscanini, Napoleão e o general San Martin juntavam-se o padre salesiano dom Bosco e o lutador Primo Carnera, com o tempo acrescidos de (ou substituídos por) Stravinski, Beethoven, John Lennon e Ringo Starr. 

Nesse elenco Rexona, em que sempre cabe mais um, não fariam má figura dois argentinos sobre os quais muito tenho lido nas últimas semanas. Ambos convenientemente bissílabos, para não bagunçar a métrica da letra: Milei e Darré

Milei, que hoje toma posse como o Bolsonaro da Argentina, dispensa apresentações. Caberia sem aperto no meio de outras figuras ainda não evocadas por quem gravou o tango depois de Caetano, Raul Seixas e Angela Rô-Rô. E decerto subiria no conceito mundial se descumprisse suas promessas de campanha, se enfim se revelasse um estelionatário eleitoral.

Ainda que Darré corra o risco de ser confundido com (Ricardo) Darín – como Staviski acabou trocado por Stravinsky na insuperável interpretação de Julio Sosa, que nunca ouvira falar no financista de origem russa Alexander Staviski –, insisto em sua inclusão pelo que Richard Walther Oscar Darré representa na história da nazificação da Argentina. Isto mesmo: nazificação. Um novo capítulo dessa história pode estar sendo escrito por Milei. 

O milongueiro bufão que os hermanos alçaram à Casa Rosada iniciou sua carreira política à sombra do general Domingos Bussi, com extensa folha de serviços prestados à sanguinária ditadura de Videla (sequestrou um parlamentar, deu sumiço em centenas de sindicalistas, estudantes e professores), que culminaram com sua condenação à prisão perpétua em 2008. 

Quanto a Richard Darré, nascido Ricardo e filho de imigrantes alemães atraídos ao “celeiro do mundo” que era a Argentina, aos 9 anos foi estudar agronomia na terra natal dos pais. Seu avassalador sucesso entre os nazistas o impediu de voltar para Buenos Aires, como planejara.

De um livro que publicou em 1930 saiu o slogan nazista Blut und Boden (sangue e solo pátrio) e a ideia de aplicar em seres humanos os mesmos métodos de “aprimoramento genético” da pecuária. O eugenista portenho ajudou Himmler a montar as diretrizes racistas do 3.º Reich, de que foi ministro da Agricultura entre 1933 e 1942. Condenado pelo Tribunal de Nuremberg, morreu em 1953, aos 58 anos, não na forca, de câncer. Como deixar de fora de Cambalache um supremacista branco desse calibre? 

Em tempo

Cambalache, Carlos Gardel & Enrique Santos Discepolo

Cambalache - letra

El mundo fue y será una porquería, ya lo sé

En el quinientos seis y en el dos mil también

Que siempre ha habido chorros

Maquiávelos y estafáos'

Contentos y amargaos, valores y dublé

Pero que el siglo veinte es un despliegue

De maldá' insolente ya no hay quien lo niegue

Vivimos revolcaos en un merengue

Y en el mismo lodo todos manoseaos


Hoy resulta que es lo mismo ser derecho que traidor

Ignorante, sabio, chorro, generoso, estafador

Todo es igual, nada es mejor

Lo mismo un burro que un gran profesor!

No hay aplazaos ni escalafón

Los inmorales nos han iguala'o

Si uno vive en la impostura

Y otro roba en su ambición

Da lo mismo que sea cura

Colchonero, rey de bastos

Caradura o polizón


¡Qué falta de respeto, qué atropello a la razón!

¡Cualquiera es un señor, cualquiera es un ladrón!

Mezclao' con Stavisky van Don Bosco y La Mignon

Don Chicho y Napoleón, Carnera y San Martín

Igual que en la vidriera irrespetuosa

De los cambalaches se ha mezclao' la vida

Y herida por un sable sin remache

Ve llorar la Biblia contra un bandoneón


Siglo veinte, cambalache, problemático y febril

El que no llora no mama y el que no afana es un gil

Dale nomás, dale que va

Que allá en el horno nos vamo' a encontrar

No pienses más, sentate a un lao'

Que a nadie importa si naciste honrao'

Es lo mismo el que labura

Noche y día como un buey

Que el que vive de los otros

Que el que mata o el que cura

O está fuera de la ley

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