segunda-feira, 29 de maio de 2023

Mulher engenheira?

Meninas encaram machismo com projeto premiado na área de engenharia

Estudantes de edificações da Etec de Americana criaram concreto que se autorregenera; presença feminina cresce em cursos técnicos 

Laura Mattos, Folha de São Paulo, 29/05/2023

Mulher engenheira? É com desconfiança que as mulheres ainda são vistas no ramo da construção civil, na avaliação de três garotas que se formaram em um curso técnico de edificações e foram premiadas por criar um concreto que se autorregenera.

"As pessoas pensam assim: ‘Vamos confiar em uma mulher para fazer o cálculo de um prédio? Mulher escolhe o porcelanato, a cor da parede, o lustre’", diz Lívia Colossal Rodrigues Sciascio, 18, uma das alunas que desenvolveram o concreto premiado, produzido com uma bactéria capaz de fechar fissuras que surgem ao longo dos anos.

O projeto do bioconcreto foi apresentado como trabalho de conclusão de curso da Etec (Escola Técnica Estadual) de Americana, no interior de São Paulo. O trabalho recebeu quatro prêmios na Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia), maior mostra de trabalhos científicos para alunos do ensino fundamental e médio, promovida pela Escola Politécnica da USP em março.

Maria Clara Trindade, Lívia Sciascio e Letícia Percio Miguel, que se formaram em edificações na Etec de Americana, mostram o concreto sustentável criador por elas - Eduardo Knapp/Folhapress

Até na feira, quando apresentavam o projeto, as estudantes da Etec se depararam com o preconceito. "Três mulheres fazendo concreto?", ouviram de uma pessoa que assistiu à apresentação. "Ah, gente, vamos acordar para a vida?", comenta Lívia.

"Chega de tabu. Podemos ser engenheiras, astronautas, pedreiras, o que a gente quiser", diz a estudante, que se formou em dois cursos no ensino médio. Além de edificações, que cursava das 7h30 às 15h10, fez design de interiores à noite, das 18h50 às 22h. Ela agora faz cursinho e seu sonho é estudar arquitetura na USP.

Outra autora do projeto do bioconcreto, Letícia Persio Miguel, 17, está cursando engenharia civil na Faculdade de Americana, a FAM, e trabalha como estagiária em uma construtora, na qual atua em obras de prédios. "É um ambiente muito masculino", ela diz. "Mas eu me sinto valorizada porque sou muito organizada, bem mais do que os funcionários homens, e gosto de assumir responsabilidades."

Letícia está acostumada com ambientes em que a presença dos homens predomina desde o começo da adolescência, quando decidiu que queria ser jogadora de futebol e passou a treinar no Rio Branco, clube de Americana. "Sofri muito bullying. Diziam que futebol era coisa para homem, me desprezavam", conta Letícia, que teve de abandonar o esporte depois de sofrer uma lesão no joelho.

Maria Clara Leme Trindade, 17, também autora do bioconcreto premiado, trabalha em uma outra construtora de Americana, convivendo, da mesma forma que Letícia, com um ambiente em que os homens são a maioria. "Nós, mulheres, temos que ir quebrando tabus e ocupando espaços para conseguir ganhar mais respeito", diz ela, que está fazendo faculdade de história na PUC de Campinas.

Na sala de aula das três estudantes na Etec, as meninas já eram a maioria, em torno de 60% da turma, o que reflete o crescimento das matrículas do gênero feminino em cursos técnicos nos quais há, historicamente, uma predominância masculina.

Levantamento do Centro Paula Souza, autarquia do governo de SP que administra as 224 Etecs e as 75 Fatecs (Faculdades de Tecnologia), mostra como cresceu, na última década, a presença de meninas em cursos antes vistos como "de meninos".

Em edificações, o curso em que Lívia, Letícia e Maria Clara se formaram no ano passado, o total de meninas dentre os estudantes passou de 33%, em 2012, para 45% em 2022. Em agropecuária, a presença feminina subiu de 28% para 46% nesse mesmo período. O crescimento foi ainda maior no curso de programação de jogos digitais: em 2012, as meninas eram apenas 6% do total e, em 2022, passaram a 29%.

As estudantes que criaram o bioconcreto contam que, na Etec, elas já não sentiam preconceito. O estranhamento vinha mesmo de fora, especialmente com o fato de se destacarem em matérias de exatas. "Sim, eu sou mulher e domino cálculo", provoca Letícia. "Sim, vamos colocar na mão na massa, vamos fazer concreto."

A professora Denise Alvares Bittar, que orientou o projeto, emocionou-se a cada prêmio recebido pelas garotas na Febrace –o mais importante deles foi o 2º lugar na categoria engenharia (o 1º foi dividido entre dois estudos sobre poluição e tratamento de água). A orientadora ressaltou o fato de as alunas terem se esforçado tanto na parte teórica da pesquisa quanto para colocar a ideia em prática no laboratório.

Maria Clara Trindade (à esq.), Lívia Sciascio (blusa branca) e Letícia Persio Miguel, que se formaram na Etec de Americana e foram premiadas na Febrace (Feira Brasileira de Ciências e Engenharia) - Eduardo Knapp/Folhapress 

Logo no 1º ano, em pleno 2020 da pandemia, Lívia, Letícia e Maria Clara começaram a pensar no TCC, já com a ideia de desenvolver algo ligado à sustentabilidade. Descobriram, então, um estudo sobre o bioconcreto do cientista holandês Henk Jonkers, que usa bactérias vulcânicas capazes de regenerar as rachaduras. "Desenvolver o mesmo concreto no Brasil seria muito caro em razão da importação dessa bactéria vulcânica", conta Lívia. "Nós, então, passamos a buscar uma bactéria que estivesse disponível no Brasil e pudesse ter uma ação semelhante."

Foi aí que chegaram à Bacillus subtilis e a compraram para a experiência. Onde? "No Mercado Livre", contam, rindo. "Jogamos lá [na busca] e achamos". Em uma pesquisa realizada pela Folha, uma embalagem de 1 kg foi encontrada por R$ 385, e a descrição do produto explica que pode ser usado em plantações para reduzir os danos da seca.

Na composição do concreto, a bactéria é colocada encapsulada com seu alimento (lactato de cálcio). Sobrevive "adormecida" nas edificações por até 200 anos. Em caso de trincas, entra em contato com a umidade e com o oxigênio, "desperta", alimenta-se e, na digestão, produz o carbonato de cálcio, que "cicatriza" as fissuras.

Elas agora pretendem registrar a patente do produto e buscar apoio de empresas para levar a ideia ao mercado. "Estamos animadas com a ideia de que o bioconcreto possa ter um impacto na engenharia", diz Letícia. "Nosso projeto também é importante para incentivar as meninas, mostrar que podem fazer o que querem, em qualquer área."


Primeira mulher negra a se formar engenheira no Brasil aprendeu a ler aos 12 anos

Enedina Marques contrariou as estatísticas e marcou a história da área; paranaense vai ganhar estátua em Curitiba

Douglas Gavras, FSP, 26.nov.2022.  Atualizado: 13.jan.2023

Empregada doméstica, aluna que passava a noite copiando os livros da faculdade, professora da rede pública e engenheira que vistoriava obras com uma arma na cintura. A primeira mulher negra a se formar em engenharia no Brasil parece ter passado a vida tendo de provar que merecia estar ali.

Enedina Alves Marques faria 110 anos nesta sexta-feira (13) e ganhou uma homenagem feita pelo Google com um desenho que substitui a logomarca do buscador.

Ela nasceu em Curitiba em 1913. Seus pais tinham vindo do interior, com o êxodo provocado após o fim da escravidão. Sua mãe, dona Duca, era lavadeira e empregada doméstica. Enedina se alfabetizou por volta dos 12 anos, com a ajuda do dono de uma das casas em que sua mãe trabalhava. Ela foi babá e trabalhadora doméstica em casas da elite curitibana, desde a infância até a faculdade.

Mais tarde, ingressou no curso normal e trabalhou durante a década de 1930 como professora, enquanto se preparava para realizar o sonho de ingressar na Faculdade de Engenharia do Paraná. Sem condições de comprar os livros, pegava emprestado o material dos colegas de faculdade e copiava os textos durante a madrugada, segundo um trabalho de conclusão do curso de História de Jorge Luiz Santana, da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

"Na época, uma outra mulher estudava engenharia no Paraná, mas Enedina foi a primeira diplomada. É até difícil dimensionar a pressão e a discriminação que ela sofreu", diz Nelson Gomez, presidente do Instituto de Engenharia do Paraná.

Enedina Alves Marques, considerada a primeira mulher negra a se formar em engenharia - Arquivo Público Rio Negro (PR)

Com esforço, concluiu o curso de engenharia civil em 1945, aos 32 anos, sendo a única mulher da turma. Logo conseguiu um emprego na Secretaria de Viação Obras Públicas paranaense e fez carreira no serviço público do estado.

Ela foi chefe de hidráulica e chefe da divisão de estatística na Secretaria de Educação e Cultura. "Por conta disso, ela foi transferida para o Departamento Estadual de Águas e Energia Elétrica em 1947, trabalhando no Plano Hidrelétrico e no aproveitamento das águas dos rios Capivari, Cachoeira e Iguaçu", segundo artigo da PUC-PR.

No serviço público, ela pôde participar de uma das principais obras de sua carreira, a Usina Capivari-Cachoeira (atualmente Usina Hidrelétrica Governador Pedro Viriato Parigot de Souza). A usina impressiona ainda hoje: maior hidrelétrica subterrânea da região Sul do país, localizada no município de Antonina (a 83 km de Curitiba) ela foi inaugurada em 1971 e é alimentada pelo represamento das águas do rio Capivari.

Segundo a Copel (Companhia Paranaense de Energia), que administra o local, o reservatório tem 16,3 km² e são 750 metros de queda entre ele e a usina.

Para gerar energia, a água atravessa um túnel de 15 quilômetros escavado na Serra do Mar, passa pela chaminé de equilíbrio e leva água até as turbinas. Três grandes cavernas foram escavadas onde estão a sala de máquinas, a dos transformadores e a das válvulas, diz a companhia. Os geradores produzem energia para suprir o consumo de 500 mil pessoas.

Uma afilhada que conviveu com Enedina desde a infância relatou para um documentário produzido sobre ela que a engenheira ia para a obra de revólver na cintura. Quando os peões começavam a zombar dela, dava tiros para o alto para se defender e ser respeitada.

Admirador da trajetória da Enedina, o supervisor da Copel e coordenador da modernização da usina, Lorival Antunes da Silva Júnior, 37, diz que ainda se comove com o duplo desafio enfrentado por ela — o de ser a primeira engenheira negra do país e ter participado da obra mais importante do estado na época.

Enedina Alves Marques, durante construção da usina Capivari-Cachoeira - Arquivo Crea/PR

"A história dela, além de inspiradora, traz orgulho para os paranaenses e tem muito a nos ensinar sobre resiliência. É justo que ela fique para sempre ligada a uma obra que é um desafio de engenharia."

Apesar de sua importância para a engenharia, a biografia sobre a paranaense ainda é escassa.

Autora do livro "Enedina Marques: Mulher Negra Pioneira na Engenharia Brasileira" (Editora Inverso, R$ 45), que chegou a ficar entre os cinco finalistas do Prêmio Jabuti na categoria juvenil, a professora Lindamir Casagrande lembra que a história das mulheres não é contada como deveria e é preciso formar uma espécie de colcha de retalhos para que se chegue ao real significado. "Embora nacionalmente não seja conhecida, ela é uma referência no Paraná, é um nome que sempre aparece, quando se pensa em representatividade. Ela foi a sexta mulher a se formar engenheira no país e o fato de ser uma mulher preta, pobre, descendente de escravizados libertos, acaba se destacando bastante."

Casagrande reforça que a história de Enedina precisa ser contada como uma prova de que a educação muda a vida das pessoas. "Só que meritocracia não existe, não adianta ter capacidade sem ter oportunidade. E é preciso pensar em quantos talentos não foram perdidos por falta de oportunidade."

Enedina morreu em Curitiba, em 1981. Ela morava sozinha e foi encontrada morta alguns dias depois, quando o porteiro do prédio em que vivia, no centro da cidade, sentiu falta dela.

"A imprensa sensacionalista da época anunciou como crime passional, já que a mulher negra não é respeitada nem depois de morta. Mas a família disse que ela sofreu um ataque cardíaco", afirma Casagrande.

O Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques foi fundado em sua homenagem, tendo por objetivo a luta contra a invisibilidade racial. Ela também foi lembrada com uma placa na UFPR e irá ganhar uma estátua no calçadão da rua XV de Novembro, no centro de Curitiba, prevista para ser entregue em 2024.

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