domingo, 28 de maio de 2023

Cannes 2023

Personagens controversas e a terceira Palma para uma diretora

Flavia Guerra, UOL, 27/05/2023

"Anatomie d'une Chute" (Anatomia de uma Queda), da francesa Justine Triet, levou a Palma de Ouro 2023, em cerimônia encerrada há pouco na cidade da Riviera francesa. Esta é a terceira vez, em 76 edições, que uma cineasta vence o maior prêmio do maior e mais importante festival de cinema do mundo.

 
Justine Triet faturou a Palma de Ouro. Imagem: Kristy Sparow/Getty Images

O primeiro foi "O Piano", de Jane Campion, em 1993, e o segundo foi "Titane", de Julia Ducournau, em 2021, quando Spike Lee foi presidente do júri. Ducournau integrou o júri de Cannes neste ano, que foi presidido pelo cineasta sueco Ruben Ostlünd (Palma de ouro em 2023 por « Triângulo da Tristeza »).
Ainda que seja um grande motivo de comemoração, o júri concedeu apenas um prêmio para um filme dirigido por uma mulher entre sete da competição oficial (no total de 21 filmes). Cineastas como a italiana Alice Rohrwacher ("La Chimera"), a tunisiana Kaouther Ben-Hania ("Four Daughters") e a senegalesa Ramata-Toulaye não foram lembradas na premiação.

Mas a presença de mais mulheres no cinema mundial e em Cannes foi comemorada mesmo antes do anúncio da Palma por Jane Fonda, que entregou o prêmio a Triet. "É bom que as coisas mudem e ter sete diretoras este ano é um recorde", comentou Fonda.
"Anatomie d'une Chute" conta a história de Sandra Voyter (vivida pela alemã Sandra Hüller), uma escritora que, depois do marido cair do telhado da casa em que a família vive nos alpes e morrer, é acusada de assassinato e tem de provar sua inocência. Com um roteiro engenhoso, que, traz a versão do filho adolescente do casal (que não enxerga de um olho), em um caso sem testemunhas diretas da queda, o filme aposta em diálogos afiados, dinâmica de tribunal que foge do clichê do gênero e a construção de uma personagem feminina tridimensional.

Muito emocionada, Triet agradeceu a toda sua equipe, lembrou que inicialmente o projeto poderia ter sido uma série, mas que felizmente conseguiu fazer um longa-metragem. A cineasta ainda defendeu os movimentos sociais atuais na França e criticou a reforma da previdência e o perigo que ameaça o cinema francês atual. "A mercantilizaçãoneoliberal da cultura defendida pelo atual governo está a ponto de destruir a exceção cultural francesa (que permite o financiamento das produções de cinema no país)", bradou Triet em seu discurso de agradecimento e foi ovacionado pela plateia que lotou o Grand Téâtre Lumière.

Informada que o ministro da cultura francesa publicou um tweet considerando sua declaração injusta, Triet respondeu que respeita muito o pensamento livre e o direito de se expressar. "Não vi a internet nesta última hora. Precisamos defender a cultura francesa e a exceção cultural. Eu me beneficio dela, o país todo se beneficia, mas há quem tem dificuldade para fazer cinema e isso pode pôr a nossa produção de cinema em perigo", observou no encontro com a imprensa, após a premiação, a diretora, que concorreu pela primeira vez à Palma em 2019 por "Sybil", que saiu sem nenhum prêmio.
Sobre ser a terceira mulher a vencer a Palma, Triet comentou que ainda não processou a sensação e a importância do prêmio. "Estou muito feliz, claro. Não fiz o filme pensando em prêmios, claro, e é até estranho ser apenas a terceira mulher (a vencer Cannes), mas este prêmio nos dá a sensação de otimismo, de poder acreditar no futuro, na mudança", declarou.

Questionado sobre o porquê de premiar "Anatomia de Uma Queda", o júri se mostrou, se não unânime, feliz com a decisão. A atriz Brie Larson defendeu o debate que o time pôde ter sobre cinema. "Eu só posso dizer que foi difícil. Não acho que nenhum ano é fácil, mas não tinha está experiência nos anteriores. Eu realmente acredito que a gente teve uma seleção forte hoje", comentou Ostlund.

Mulheres complexas e reais

Oportuno observar que a seleção deste ano trouxe diversos filmes sobre e com mulheres complexas, imperfeitas e muitas vezes controversas. Além de Sandra de "Anatomie", a mesma Sandra Hüller interpretou uma nazista orgulhosa de sua posição na sociedade em "Zone of Interest", de Jonathan Glazer. Até mesmo a "real" Olfa, de "Four Daughters) ( ou "As Filhas de Olfa"), híbrido entre documentário e ficção, que levou o Prêmio de Melhor Documentário, o Coup D'Oeil, é uma mulher tão maltratada pela violência sistêmica do machismo vigente quanto também violenta com suas filhas.
Já francesa Lea Drucker vive uma advogada que tem um caso com o enteado adolescente em "L'été Dernier" (O último verão), da sempre controversa Catherine Breillat.

O envolvimento com adolescente também deu o tom a "May December", de Todd Haynes, em que Julianne Moore vive uma dona-de-casa norte-americana casada com um homem de 36 anos, com quem se envolveu quando ele tinha 13, o que foi um dos maiores escândalos do país. Como observou Breillat em entrevista a Splash, "mulheres estão longe de serem perfeitas e é isso que as torna personagens tão fascinantes". "É ótimo trazer uma mulher que é imperfeita, que erra, que ama, que nos tira do lugar comum. É isso que nos faz humanos. E é ótimo termos diretoras também construindo personagens femininas complexas e, sim, impopulares e que erram sim. O cinema só tem a ganhar com isso", declarou a Breillat.

Grande premio do júri

O segundo prêmio mais importante da noite, o Grande Prêmio do Júri, foi para o outro favorito da crítica e do público, "Zone of Interest" (Zona de Interesse), do inglês Jonathan Glazer que, desde "Sob a Pele", de 2013, não lançava um longa. Um dos filmes mais duros da competição, é baseado num romance de Martin Amis (que morreu durante o festival, mas que chegou a assistir ao filme).
"Zone of Interest" conta a história de uma família alemã que vive uma vida quase perfeita, em uma casa ampla, com jardim impecável e um pomar muito bem cuidado pela matriarca (também Sandra Huller). O único detalhe é que o chefe desta família é um oficial de alta patente do campo de concentração de Auschwitz e a casa é vizinha ao muro que cerca o local.

Com narrativa sofisticada, enxuta, sem margem ao melodrama, o longa não revela os horrores de Auschwitz, mas aposta no desenho sonoro e na incessante fumaça que se vê do belo jardim da casa.
O Prêmio do Júri foi para o turco "Fallen Leaves (Folhas Caídas), do finlandês Aki Kaurismaki, que não estava presente na cerimônia, mas foi representado pela sua dupla de protagonistas, a atriz Alma Pôysti e o ator Jussi Vatanen. Uma história de amor econômica, com diálogos precisos e humor peculiar, "Fallen Leaves" ganhou o coração dos frequentadores do festival e foi considerado um dos melhores filmes desta edição do evento.
A Palma de Melhor Atriz foi talvez um dos prêmios mais inesperados, com a escolha da turca Merve Dizdar, jovem estrela de "About Dry Grasses", do turco Nuri Bilge Ceylan ( Palma de Ouro em 2014 por "Winter Sleep").

Asiáticos

Se o ano é simbólico para as mulheres do audiovisual, o cinema asiático também sai fortalecido de Cannes 2023. a Palma de Melhor Direção foi para o franco-vietnamita Trân Ahn Hung por "Pot-au-Feu (La Passion de Dodin Bouffant)", em que Juliette Binoche vive uma sofisticada cozinheira, fiel assistente e companheira de um grande chef da França da Belle Époque, vivido por Benoit Magimel.
Diretor do sucesso "O Cheiro do Papaia Verde"(1993), Trän Ahn brincou que, apesar de ser apaixonado por comida, não havia comido nada o dia todo, pois estava preparando o almoço em sua casa em Paris quando a organização do festival telefonou o chamando de volta a Cannes.

A Palma de Melhor Ator também foi para um asiático, o japonês Koji Yakucho, protagonista de "Perfect Days". Dirigido pelo alemão Wim Wenders, o longa conta a história de um faxineiro que limpa banheiros públicos em Tóquio e revela, de forma sublime, mas também realista, como os grandes e pequenos prazeres, dores e amores da vida são parte de um equilíbrio complexo e sutil. Uma das poucas unanimidades desta edição do festival, "Perfect Days" traz Wenders ( de "Asas do Desejo", "Paris Texas", entre outros) de volta à forma e com seu cinema poético e emocionante.

A Palma de Melhor Roteiro foi para o japonês Yuji Sakamoto, por "Monster", de Hirokaku Kore-Eda, drama engenhoso e sensível sobre dois garotos que sofrem bullying na escola e que constroem uma amizade secreta e fascinante. O longa levou a Palm Queer, dado a histórias de temática LGBTQIA+.
O prêmio da Caméra D'Or (Câmera de Ouro), concedido ao Melhor Primeiro Filme, também foi para um asiático, o vietnamita Thien An Pham, por "Bên Trong Vo Ken Vang "(Inside the Yellow Coccon Shell). "Acho que os cineastas asiáticos têm um olhar de quem observa, quem ama muito seus personagens, que toma tempo para construir suas histórias", respondeu o jovem diretor quando questionado sobre o sucesso do cinema da Ásia nesta edição de Cannes.

Brasil

O cinema brasileiro não concorreu à Palma neste ano, mas teve Karim Aïnouz assinando a direção de "Firebrand", com Alicia Vikander e Jude Law, que não foi premiado. Já "Levante", dirigido por Lillah Halla, que concorria na seção Semana da Crítica, levou o Prêmio concedido pela crítica internacional, a Fipresci, como melhor filme das mostras paralelas do festival. "A Flor do Buriti" levou o Prêmio de Equipe na Mostra Um Certo Olhar, a principal mostra paralela de Cannes.

Palma de Ouro
"Anatomie d'une Chute", de Justine Triet
Grande Prêmio do Júri
"The Zone of Interest", de Jonathan Glazer
Prêmio do Júri
"Fallen Leaves", de Aki Kaurismäki
Melhor Direção
Tran Anh Hung, por "La Passion de Dodin Bouffant"
Melhor Roteiro
Yuji Sakamoto, por "Monster"
Melhor Atriz
Merve Dizdar, por "About Dry Grasses"
Melhor Ator
Kôji Yakusho, por "Perfect Days"
Melhor Curta-Metragem
"27", de Flóra Anna Buda

Menção honrosa para curta-metragem
"Fár", de Gunnur Martinsdóttir Schlüter

Mostra Um Certo Olhar
Melhor filme
"How to Have Sex", de Molly Manning Walker
Melhor equipe
"A Flor do Buriti", de João Salaviza e Renée Nader Messora
Prêmio do júri
"Hounds", de Kamal Lazraq
Melhor direção
Asmae El Moudir, por "The Mother of All Lies"

Nova Voz
"Augure", de Baloji

Prêmio Liberdade
"Goodbye Julia", de Mohamed Kordofani

La Cinef

 Primeiro lugar
"Norwegian Offspring", de Marlene Emilie Lyngstad
Segundo lugar
"Hole", de Hwang Hyein
Terceiro lugar
"Moon", de Zineb Wakrim

Prêmios das Mostras Paralelas
Câmera de Ouro
"Inside the Yellow Cocoon Shell", de Pham Thien An
Federeção Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci)
Competição oficial
"The Zone of Interest", de Jonathan Glazer
Um Certo Olhar
"Los Colonos", de Felipe Gálvez
Filme de estreia
"Levante", de Lillah Halla
Melhor documentário (empate)
"Les Filles d'Olfa", de Kaouther Ben Hania
"The Mother of All Lies", de Asmae El Moudir
Palma Queer
"Monster", de Hirokazu Kore-eda


Nenhum comentário:

Postar um comentário