quarta-feira, 7 de junho de 2023

Satyajit Ray, 100

O centenário de Satyajit Ray

02/05/2021, Estado da Arte

Na noite de 30 de março de 1992, para uma plateia de bilhões de pessoas em todo o mundo, a atriz Audrey Hepburn, em sua elegância e charme únicos, surgiu no palco do 64º Prêmio da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood — o OSCAR — para apresentar o prêmio especial para um dos maiores artistas do século XX. Em sua breve fala, disse Audrey Hebpurn:

Este ano, o Conselho de Governadores da Academia votou por atribuir um OSCAR Honorário ao grande cineasta indiano Satyajit Ray. Mr. Ray faz filmes há quase quatro décadas. A Academia reconhece no senhor Ray o raro domínio da arte da imagem em movimento e o seu profundo humanismo, que teve influência indelével em cineastas e público em todo mundo. Ele disse que pretende capturar tanto o que é único na experiência indiana quanto o que é universal.

Infelizmente, Mr Ray não está bem de saúde e não pode estar conosco aqui esta noite. Mas ele pode falar conosco agora…

Satyajit Ray recebe o OSCAR Honorário

Ao agradecer, diretamente do seu quarto de hospital, em Calcutá, com a icônica estatueta do OSCAR em suas mãos, Ray prestou um tributo ao cinema americano, com o qual, segundo ele, aprendeu tudo o que sabe, assistindo filmes de diretores como o grande Raoul Walsh e aproveitou para confessar ter escrito a Billy Wilder e que o cineasta não lhe respondeu.

Satyajit Ray morreu três semanas depois, em 23 de abril, dez dias antes de completar 71 anos.

Corta. 1968. Satyajit Ray está na Austrália, como participante do Festival de Cinema de Sydney de 1968 e cuja obra será tema de uma próxima temporada do National Film Theatre da cidade.  Ray já tem uma carreira consolidada, reconhecida pelos grandes festivais do mundo e está na plenitude de sua expressividade cinematográfica, fazendo jus ao qualificativo de que o seu cinema é universal em sua dimensão indiana.

Para o catálogo preparado para o evento, diz o cineasta:

Antes de fazer meu primeiro filme — Pather Panchali — eu tinha apenas um conhecimento superficial de como era a vida em uma aldeia bengali. Agora sei muito sobre isso. Eu conheço seu solo, suas estações, suas árvores e florestas e flores. Sei como funciona o homem do campo e como as mulheres do poço fofocam; e eu conheço as crianças no sol e na chuva, comportando-se como crianças em todas as partes do mundo. Minha própria cidade de Calcutá também, conheço muito melhor, sei que fiz um filme sobre ela. Não é como qualquer outra cidade do mundo para se olhar. Mesmo assim, as pessoas nascem aqui, vivem, fazem amor e ganham o pão, como fazem em Londres, Nova York e Tóquio. E é isso que mais te surpreende e te faz sentir em dívida para com o cinema: esta descoberta de que embora tenhas raízes aqui — em Bengala, na Índia — faz parte ao mesmo tempo de um grande plano, de um padrão universal.

Sobre isso, escreveu na ocasião o grande crítico australiano John Flaus:

Esse tipo de manifesto já foi ouvido de dramaturgos, romancistas e outros autores. Ficamos desconfiados quando ouvimos a expressão de tais sentimentos; com muita frequência, eles serviram como um disfarce para as preocupações pessoais mais íntimas do artista ou se mostraram muito amplos para focalizar respostas válidas dentro de um contexto artístico.

Satyajit Ray repetidamente fez jus a esse manifesto. Ele não se ilude com estereótipos ou pretensões; ele vê com clareza. Por que um homem assim seria tão raro?

Na visão de Satyajit Ray do mundo, a compaixão não é uma reação a outra coisa, não é uma reparação ao medo, horror e crueldade: é ela própria uma motivação primária não condicionada.

Ray é o grande humanista do cinema.

Há exatamente 100 anos, em 2 de maio de 1921, nascia Satyajit Ray.

No dia de seu centenário, o Estado da Arte publica um ensaio inédito e exclusivo de Rodrigo de Lemos sobre como o mundo indiano de Satyajit Ray se fez universal em seu humanismo.

Enjoy!

Satyajit Ray dirigindo

100 anos de Satyajit Ray: Entre a Índia e o mundo

por Rodrigo de Lemos

Os bengaleses contam que Louis Malle (1932-1995), captando em Calcutá uma cena de tumulto para seu documentário Índia fantasma (L’Inde fantôme, 1969), foi abordado por um policial furioso: “Quem você pensa que é?”, perguntou o homem, tentando quebrar sua câmera; “Louis Malle”; “Ah, sim, o de Zazie no metrô….”.

Verdadeira ou não, a anedota resume um pouco da reputação tradicional de Calcutá (e da região de Bengala) como um lugar alto da cultura. Muito antes de ser associada a imagens de miséria abjeta e à benemerência de Madre Tereza, Calcutá foi um dos centros irradiadores da intelligentsia indiana. Nos séculos XVIII e XIX, serviu de palco à chamada Renascença Bengalesa, movimento cultural da maior importância para o mundo moderno, surgido no contato de intelectuais indianos abertos ao exterior com estudiosos britânicos reverentes diante da grandeza cultural de Bengala e tendo como palco centros de estudos da importância de um Colégio do Forte William ou de uma Sociedade Asiática (simplesmente: foi nela que seu fundador, o célebre filólogo William Jones, a partir dos seus estudos de sânscrito, formulou a hipótese do indoeuropeu…). Em seguida, a partir das revoltas de 1857 e com o estabelecimento do Raj Britânico (1858), Calcutá é um dos focos da resistência anticolonial, efervescente com jornais e debates entre grupos revolucionários. No ápice do imperialismo britânico, durante os primeiros anos do século XX, é também de Bengala que emerge o nacionalismo indiano; configurado no movimento swadeshi (autossuficiência), inspirará desenvolvimentos centrais à história moderna do país, da doutrina do swaraj (autogoverno), de Gandhi, à política de substituição de importações, nos primeiros tempos de Independência, sob Nehru. O sujeito dessa trajetória intelectual e política brilhante: o tipo social do bhadralok, membro ilustrado das classes média e alta oriundas das metrópoles bengalesas, de educação liberal e de refinamento evidente nas maneiras e na cultura.

Satyajit Ray (1921-1992), de quem se celebra neste dois de maio o centenário, foi o homem de Bengala por excelência. Polímata (cineasta em primeiro lugar, mas também roteirista, escritor, editor, compositor, calígrafo e ilustrador), não é incomum que se refiram a ele como o último homem da Renascença bengalesa. Epítome do bhadralok, seus filmes herdam o humanismo de sua cultura natal, trazendo à baila, a partir da história indiana, as relações entre o universal e o particular, o Ocidente e o Oriente, a Índia e mundo, com ironia, erudição e um apuro visual que fazem deles uma festa para os olhos e para o intelecto.

A Trilogia de Apu

O autor da clássica Trilogia de Apu (1955-1959) se engaja no cinema ao descobrir Jean Renoir (1894-1979) e Ladrões de Bicicleta (1948), de Vittorio de Sica (1901-1974). Daí, o primado do tema social na sua trilogia de estreia, reminiscência do neorrealismo italiano e do cinema francês dos anos 30, os quais ele adorava. Essa tônica não se manterá em todos os seus filmes subsequentes. Eles se debruçarão frequentemente sobre o passado indiano, como Devi (1960), que trata do mundo rural em Bengala no século XIX, ou Charulata (1964), situado no mesmo período.

Seu olhar sobre a história indiana se expande aos grandes eventos nacionais nos seus filmes dos anos 70, como em O Jogador de Xadrez (Shatranj Ke Khilari, 1977), adaptação de um conto do Imperador dos romancistas indianos, Munshi Premchand (1880-1936). Estamos em 1856, às vésperas dos motins anti-britânicos de 1857, que levarão à retirada da corrupta Companhia das Índias Orientais inglesa e à formação do Raj Britânico, sob controle direto da Coroa. O reino islâmico de Oude, governado por Wajid Ali Shah (1822-1887) — um nawab esteta, mecenas das artes e das letras, também poeta — tem sua frágil independência ameaçada pela voracidade imperial de Lorde Dalhousie (1812-1860), que se serve da infame “Doutrina do Lapso” para violar antigos tratados e anexar o reino, com o pretexto da má gestão de um rei artista, quem sabe negligente. Nesse momento fundamental da história indiana (a anexação de Oude é um dos catalizadores das revoltas de 1857), o que fazem Mirza (Sanjeev Kumar) e Mir (Saeed Jaffrey), dois nobres inseparáveis e orgulhosos dos feitos bélicos de seus ancestrais?

O mundo desaba, e eles jogam xadrez.

Nenhum dos lados sai incólume da sátira de Ray. Os indianos aparecem como cruéis, fracos, ociosos, divididos, ineficientes, confiantes por demais na sua grandeza cultural (têm orgulho de haverem supostamente inventado o xadrez!). Simpático, o nawab Wajid Ali Shah (Amjad Khan) incarna os limites e as contradições de seu povo: rei poeta, sensível à dança e à música, inflige punições cruentas a quem o desobedeça; mostra-se mais propenso ao luxo do que ao governo ou ao embate. Entenda-se: seu poder real é limitado por suas circunstâncias desonrosas; o próprio reino lograra sua independência quanto à Companhia mediante o vil metal; os recursos drenados do tesouro pelos britânicos serviam a campanhas contra outros reinos na própria Índia. Não são apenas Mirza e Mir os amigos que se confrontam no tabuleiro; a divisão dos indianos é total face aos invasores. É como se os britânicos nem precisassem dividir para conquistar; os indianos já fizeram a primeira parte do trabalho.

O retrato dos britânicos por Ray não é mais favorável. Sob Dalhousie, os invasores não são mais os mesmos do tempo de William Jones, reverentes e curiosos ante uma rica cultura milenar. Movidos por um brutal utilitarismo, inspirado em Bentham e em Stuart Mill, querem reformar de cima para baixo a sociedade indiana, que eles consideram como inferior e primitiva, relegando as línguas tradicionais em favor do inglês e proclamando a superioridade das suas próprias literatura e cultura sobre as do subcontinente. No filme, a arrogância, a ignorância e o etnocentrismo que em parte caracterizaram o imperialismo oitocentista transparecem na figura do General James Outram (Richard Attenborough). Residente britânico na capital Lucknow, move as peças do xadrez para a anexação de Oude e trata o nawab com aquela altivez e com aquele desprezo que também encontramos em muitos franceses, belgas e holandeses durante a colonização do Magrebe, do Congo, de Java ou do Sumatra.

O Jogador de Xadrez

O conflito entre o Residente e o nawab reproduz na realidade histórica a oposição que há entre Mirza e Mir no plano puramente mental e sem consequências do xadrez. Salvo que, entre Outram e Shah, está em questão o destino de milhões de homens, e o indiano se mostra um jogador tudo salvo pertinaz. Shah é tão mais impotente porque no lado oposto havia um poder britânico treinado em um outro Grande Jogo em outro Grande Tabuleiro contra outro Grande Jogador: a Ásia Central, disputada no Great Game pela Grã-Bretanha com uma Rússia czarista em plena expansão e separada da Índia britânica apenas pela barreira fina (mas inexpugnável!) do Afeganistão. Havia como o pequeno nawab resistir a esse jogador experiente nas artimanhas do xadrez colonial?

Mais do que simplesmente dois poderes assimétricos, no jogo de xadrez colonial criado por Ray, opõem-se dois modos de vida. De um lado, Lord Dalhousie e seu preposto Outram, com suas locomotivas e seus telégrafos, mas também com seu provincianismo cultural satisfeito de si, arrogante e autocentrado; de outro, Shah e, também, Mirza e Mir, cultores dos refinamentos mentais e sensoriais de uma civilização antiga, mas condenados à inoperância diante do novo e avassalador poder. “Quantos reis ingleses já compuseram, como eu, canções que todo o povo canta?”, pergunta a seu séquito o nawab ao ser confrontado com as exigências britânicas. Todo o contraste entre os dois jogadores cabe nessa questão.

Esse confronto entre a Índia e o mundo ressurge em mais um dos grandes filmes históricos da fase final de Ray, A casa e o mundo (Ghare-Baire, 1985). Temos aí novamente uma adaptação literária, agora de um romance epônimo escrito por outro fruto universal da Renascença bengalesa, Rabindranath Tagore (1861-194, Prêmio Nobel de Literatura em 1913). Nesse filme tardio, também o contraste entre dois amigos espelha o confronto entre dois mundos (e entre duas Índias). Estamos agora em Bengala, ao início do século XX, não mais num momento de derrota dos indianos face aos ingleses (como em O jogador de xadrez), mas no de sua reação. A decisão desastrada do Vice-Rei, Lorde Curzon (1859-1925), de repartir Bengala em Ocidental e Oriental, em 1905, acaba por gerar o movimento swadeshi de resistência anti-britânica, que durará até 1917 e que, transformado, se expandirá, sob a égide de Gandhi, até a Independência. Os indianos rejeitam o divide and rule.

A Casa e o Mundo

Nessa Índia conflagrada, Nikhilesh (o mítico ator Victor Banerjee), um típico bhadralok bengalês, refinado e liberal, dispensa à sua esposa, Bimala (Swatilekha Sengupta), uma educação à inglesa, convencendo-a a deixar o isolamento reservado às mulheres na tradição indiana e a conviver com os homens. Nesse processo, ela conhece um velho amigo de Nikhilesh, Sandip (Soumitra Chatterjee, mais um mítico polímata bengalês). Sandip é um sedutor revolucionário swadeshi, orador talentoso que estimula as populações a boicotar os produtos britânicos para estimular a produção nacional. Bimala, evidentemente, não deixa de se apaixonar pela sua presença atraente, ficando entre ele e seu marido. Esse, diga-se, é também um independentista, embora seu bom senso o leve a resistir ao swadesh, considerando as consequências do boicote para os mais pobres. É assim que a posição de Bimala entre os dois homens remete alegoricamente à da própria Índia no processo rumo à Independência: seguirá a via swadeshi da autarquia e da autossuficiência, com o risco do fechamento em si e da exclusão do outro? Saberá, como parece querer o bhadralock Nikhilesh, perseguir um ideal de equilíbrio sensato entre a tradição e a modernidade ocidental – tanta prudência podendo, no caminho, fazer perder-se o ardor revolucionário necessário a sacudir o jugo britânico? Como se decidirá entre a casa e o mundo?

Não é certo que a pergunta tenha ganhado uma resposta definitiva na Índia de hoje. O último filme de Ray, O Estrangeiro (Angatuk, 1991), adaptado de um de seus contos, põe em cena novamente essa tensão entre o indiano e o outro, agora na época contemporânea. Conta a história de uma família de classe média alta de Calcutá que recebe a visita inesperada de um suposto tio desconhecido (Utpal Dutt). Ele se apresenta como antropólogo e viajante, e seus relatos de terras distantes trazem questionamentos ao mundo fechado e convencional da casa que o abriga. Estrangeiro pelos modos e pela identidade, a família não deixa de recebê-lo com desconfiança e mesmo com hostilidade — esse estrangeiro é realmente o tio distante? E não seria, ao mesmo tempo, um intruso?

O Estrangeiro

Dessa forma, Ray, em seu último filme — lançado quando ruíra o Muro de Berlim e enquanto a União Soviética se esfacelava ao som de salvas à globalização feliz —, permitia-se assinalar que talvez nem tudo fosse congraçamento universal num mundo que seria a casa de todos e numa casa em que estaria o mundo. Talvez viessem a persistir (e a recrudescer?) desconfianças, animosidades, ódios mesmo. Em uma Bengala (e em uma Índia) ao mesmo tempo casa de uma das grandes tradições culturais de todos os tempos e palco de uma experiência traumática de inserção colonial no grande mundo à força, Ray era um espectador privilegiado do que seriam nossos conflitos contemporâneos entre o particular e o universal. A Índia que vemos nos jornais, sob a liderança de um Primeiro-Ministro populista como Narendra Modi, palco de tensões étnicas e religiosas que só parecem se acirrar, lança uma luz melancólica sobre a filmografia de Satyajit Ray, cujo humanismo elegante e bem-humorado pareciam prenunciar um outro mundo e um outro país.

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