Morrer não é o fim
Seu Otavio está possuído pelo amor que sente por dona Augusta
Milly Lacombe 25/06/2022 UOL
Dona Augusta e seu Otavio foram casados por 50 anos. Tiveram dois filhos e viveram sempre na mesma casa, na rua Guayanases, em Tupi Paulista, interior de São Paulo. Augusta tinha 20 anos quando eles se casaram; Otávio, 28. A diferença de idade fez com que, já mais velhos, imaginassem que Otavio morreria antes. Mas foi Augusta que, aos 72, pegou Covid e faleceu.
Otavio ficou sem entender nada. "Homens morrem mais cedo, não faz sentido eu ficar viúvo, nenhum amigo meu ficou viúvo", repetia sem parar no velório. Os filhos, que moravam em São Paulo, preocupados com o pai, pediram que as três tias, irmãs caçulas da mãe, passassem a frequentar Otávio diariamente.
Dois meses depois da morte de Augusta, uma das tias telefonou para Eduardo com a voz tensa. "Precisamos conversar", ela disse. Eduardo achou que o pai tinha morrido, mas não era isso. "Seu pai agora passa o dia falando com sua mãe. Ele almoça papeando com ela, faz um prato pra ela, depois coloca a comida numa marmita e leva para a Igreja. Ele vê TV assuntando com ela. Ele ri de piadas dela antes de dormir. Ele caducou, Eduardo".
Eduardo, que era engenheiro eletrônico, se apavorou e pediu uma licença para ir até Tupi ver o que estava acontecendo. Em Tupi, levou Otavio a três médicos diferentes, submeteu o pai a uma série de exames, alguns bastante incômodos, e nada foi diagnosticado. "Papai, por que você fala com a mamãe?", Eduardo perguntou num fim de tarde. "Porque se eu não falar ela vai achar que tô bravo com ela, e eu não tô", Otávio respondeu.
Eduardo não sabia se deixava claro que a mãe tinha morrido, então optou por não responder. Mas, na noite seguinte, depois de voltarem de mais um exame e vendo o pai preparar uma xícara de chá para Augusta, não se conteve: "Papai, mamãe morreu. Ela tá morta!". Otávio, que estava indo para a sala com as xícaras de chá, apoiou as duas canecas sobre a mesa da cozinha e disse com muita calma: "Meu filho, eu descobri que as pessoas não morrem".
Eduardo quis saber como não, como não morrem se nós enterramos a mamãe, que bobagem era aquela. Depois, mais calmo e sentado com o pai em frente à TV, perguntou: a mamãe tá aqui agora? "Ela tá sempre aqui", Otavio respondeu sem virar o rosto e dando um gole no chá.
Naquela noite, Eduardo escutou o pai gargalhando antes de dormir e entrou no quarto. "O que foi?". "Sua mãe! Ela é muito tonta! Fica tentando me fazer rir. Eu disse que tá tarde e preciso dormir, mas ela não deixa". Eduardo fechou a porta e saiu preocupado.
No dia seguinte, uma das tias decretou com muita segurança que Otavio estava possuído. "É bom que a gente faça alguma coisa", disse. Fazer o que, Eduardo quis saber. E a tia explicou que poderiam levá-lo numa rezadeira que ela conhecia. Eduardo achou que estava dentro de um filme de terror de segunda linha, mas não sabia mais o que fazer e aceitou. Foram então todos até a rezadeira. Ela os recebeu e pediu para ficar sozinha com Otavio. Disse que precisava de pelo menos duas horas, que fossem tomar um café e voltassem ao meio dia.
Meio dia em ponto as três tias e Eduardo voltaram. Otavio estava sentado no sofá na sala e à sua frente havia três xícaras de chá. Eduardo balançou a cabeça nervoso. Enquanto todos se acomodavam, a rezadeira pegou Eduardo pelo braço e o levou para o jardim.
"Meu pai está possuído?", quis saber. "Totalmente", a mulher respondeu. "Pelo que, meu Deus?". "Pelo amor que tem por sua mãe. É só isso", ela disse.
Otavio e Augusta ainda moram na casa da rua Guayanases, em Tupi Paulista, interior de São Paulo.
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