Publicada em 10/06/2022 por Morro do Moreno
Melhor se conhece uma casa pelo seu quintal, como dizia minha mãe, filosofando em torno do conhecimento humano. O jardim de frente, a sala-de-visitas, podem não responder exatamente a respeito da alma e dos hábitos de uma pessoa ou de uma família. E de uma cidade, por que não?
Em Cidades Invisíveis, Italo Calvino conta a história dos habitantes de Maurília, cidade criada pela imaginação do escritor italiano. Em Maurília os seus habitantes recebem os visitantes entretendo-os com postais antigos da cidade. Desta forma procuram evitar que o viajante não ocupe sua atenção com as faces mais atuais e feias da cidade. Tudo por amor ao belo passado. Postais são visões amáveis. Guardam em si a visão romântica, instigante e sentimental de outros tempos, melhores tempos, como quer o sonho dos que vivem da boa memória.
Uma cidade não deveria ser apenas um conceito de caráter geográfico. Por que não acolhê-la como um símbolo do homem e sua encarnação neste planeta? Assim imagino eu — habitante e viajante — que o mercado e a feira relatam mais fielmente o espírito de uma cidade que muitos dos seus monumentos, ruas, praças e arquitetura.
Reabro o passado. Deito-o sobre a folha de papel. Diante de mim os anos 40, o pós-Guerra. Minha mãe, viúva, três filhos, professora, troca a incandescente Rio de Janeiro por Vitória. Estamos na Vila Rubim (desde aqueles tempos, e ainda hoje, a cidade parece tentar desconhecer a existência da Vila Rubim). Espírito mais para o moleque do que para menino, descíamos em um grupo com destino ao mercado da Vila. Não o mercado de hoje, feio, triste e pejorativo. Falo de um lugar com espírito e fascínio próprios, nascido no século passado, mistura de mercado, feira e porto. Ali chegavam as canoas vindas de Caçaroca, Jucu, Tanque, Cariacica, via rio Marinho. Também vinham do rio Santa Maria.
Pequenas e grandes canoas, varejadas por dois, três homens queimados do sol rural, carregando areia de rio destinada a obras, café, madeira, tijolos, frutas, verduras, galinhas, porcos, bichos de caça, palha para cobertura de casas, telhas, carne salgada e famílias. As canoas eram as portadoras das novidades. Começavam a chegar cedinho, cinco, seis horas. Lá pelas três da tarde estavam voltando maré e rio acima. Ao lado delas, no cais de mangue da Vila, ficavam os barcos pesqueiros que vinham do mar. Os peixes mais nobres eram expostos nos balcões das peixarias, destinados aos hotéis, restaurantes e famílias que os podiam comprar. Os peixes mais baratos eram colocados em tabuleiros sobre as calçadas. Ali o povo podia chegar. Sardinhas, pescadinhas, piabas e peroás (deles, este último foi o que conseguiu melhor situação social, chegando aos cardápios de bons restaurantes, servido na forma de aperitivo ou prato de resistência).
Frutas, legumes, verduras ficavam expostas em bancas sobre cavaletes enfileirados. Pendurados à vista do comprador: buchas para banho, folhas e galhos de plantas medicinais, vidros de pimenta e de mel de abelhas, chapéus de palha, cachos e pelicas de bananas, tamancos, chinelos de palha. Em alguma parte da banca havia sempre lugar para um quadro ou uma imagem de São Jorge, São Benedito, São José, São Judas Tadeu, Santa Terezinha, Cosme e Damião ou Jesus Crucificado. Nós moleques pagávamos por uma ou duas bananas, muito pouco em comparação ao que consumíamos com milagrosa rapidez diante do ingênuo barraqueiro. E havia gaiolas, vazias ou ocupadas por pássaros, provocando-os com imitações nada convincentes. Comíamos banana-ouro, espremendo seu conteúdo pelo orifício de uma de suas extremidades. Depois enchíamos de ar a casca não rompida, deixando a banana inflada no mesmo lugar, à espera de algum ingênuo comprador. De longe apreciávamos a cena e ríamos do sujeito segurando a pequena banana que era só casca, e parecia tão saudável...
No final de dezembro o mercado da Vila Rubim recebia a procissão de São Benedito do Rosário. Aquilo, sim, era autêntica devoção popular, prestígio de massa. Comício político algum chega aos seus pés. O santo azeviche, à maneira dos abissínios, não tinha — como até hoje — somente prestígio entre os negros, os pobres e os oprimidos. Gente de toda espécie estava aos seus pés, acompanhando a longa procissão, um espetáculo único e extraordinário. Saía da igreja do Rosário, passava pela cidade como um rio caudaloso e barulhento para desembocar na Vila Rubim. No velho mercado, feira e porto, fazia sua mais longa parada. O foguetório era ensurdecedor. Os fogos vinham da casa do Zé Fogueteiro. Cantava-se, rezava-se e chorava-se. Aplaudia-se o santo gritando bem alto seu nome. O mercado era uma festa só. As barracas fechavam em sinal de respeito. Chorava-se e ria-se. "Que santo é aquele que vem no andor? É São Benedito mais Nosso Senhor", entoavam todos em meio a rezas e pedidos de graças. Gente nos telhados, varandas, janelas, sobre caminhões, caixotes, crianças sobre os ombros dos pais.
Para apreciar a passagem de São Benedito no mercado da Vila Rubim, minha mãe nos levava para a casa de uma amiga, a professora Zulmira Ferreira, uma mulher negra de muita personalidade e iniciativa para aquela época, compositora devota do santo. Ficávamos na varandinha do apartamento. D. Zulmira morava num prediozinho de três andares com vista completa do mercado, da ponte, da ilha do Príncipe e de parte da baía. Dali tinha-se uma visão completa da festa. Dona Semíramis, irmã da professora Zulmira, fazia café e bolinhos. Viam-se os fogos de artifício subindo num rastro branco e veloz, a fumaceira encobrindo o povo, os estandartes, os buquês de flores. Posso afirmar que São Benedito e o menino Jesus, à sua mão direita, riam e se divertiam também sobre os ombros dos homens que os carregavam com orgulho nos rostos. A Irmandade de São Benedito desfilava em ritmo lento, cadenciado, em tom solene, exibindo a bandeira do santo, o único santo com três procissões anuais, graças à disputa de prestígio de seus devotos fanatizados, divididos em tradicionalistas, peroás e caramurus. Mas esta é outra história, de inúmeros detalhes, parte da mitologia da gloriosa ilha de Vitória.
Quando a procissão de São Benedito deixava o mercado da Vila Rubim, a festa continuava, através de grupos musicais, tocando maxixes, congos, batuques e sambas. A colcha da noite trazia consigo as chamadas "mulheres da vida". A cachaça vinha dos balcões rústicos dos botecos, das sacolas penduradas nos lombos dos burros e cavalos. Os homens bebiam goles recitando "dois pra mim, um pro santo".
Dizia-se que era perigoso andar à noite no mercado da Vila Rubim. Não era. Nem se compara aos dias de agora. Não tínhamos pivetes, mas bêbados inofensivos. Não havia o aterro e a ponte levava rápido à ilha do Príncipe, onde famílias de pescadores e quitandeiros da Vila Rubim e oficinas para barcos dividiam o lugar com as casas das "mulheres da vida". Meninos lá não podiam ir, mas de tudo se sabia, do mesmo modo como se inventava. De dia, os rapazes mais corajosos pulavam da ponte, os demais mergulhavam à beira do cais do mercado, e um ou outro mais atrevido nadava até chegar à ilha do Príncipe. Havia mesmo um deles que chegou à Estação Pedro Nolasco, do outro lado da baia.
Mais vivido e apoiado na confiança em outros meninos espertos, conheci o mercado da Capichaba, assim mesmo, com ch. Um quarteirão construído em 1926 pelo inigualável Florentino Avidos. Não o mercado de hoje, apenas um apelido para o prédio tomado de assalto pelo comércio oportunista, sob a irresponsável conivência da administração pública desinteressada na memória da cidade, durante todos esses anos.
O mercado da Capichaba (Capixaba após os anos 60) atendia o centro de Vitória e os bairros mais distantes, como a Praia do Canto, onde se formava o núcleo mais rico de Vitória. Os serviços de bondes tinham um reboque-bagageiro nas linhas Centro-Santo Antônio e Centro-Praia do Canto. Assim, podiam-se carregar os produtos dos mercados e feiras sem atingir os carros destinados aos passageiros. Nós meninos da Vila Rubim pegávamos carona no bagageiro em troca de ajuda para botar ou tirar as caixas e cestas de verduras e frutas das feiras.
Mas o mercado da Capichaba oferecia uma atração especial. Na parte superior da sua fachada, pela avenida Capichaba, estava instalada a Rádio Espírito Santo, seus estúdios e auditório. Era um requinte da época. Passeando pelas lojas ou no interior do mercado podiam-se encontrar radialistas famosos em sua época: Bertino Borges, Cody Santana Có, os irmãos violonistas José e Maurício de Oliveira, Mundico e os músicos de sua orquestra, Maria Cibelli, dentre outros. Uns iam lá saborear um aperitivo, outros para fazer o jogo do bicho, outros tantos para reunir-se aos colegas da rádio e, também, apreciar os "rabos de saia" que glorificaram o local.
Tempo adiante, quando fui estudar na Academia de Comércio de Vitória (o prédio ao alto, nos fundos da Capitania dos Portos), o mercado da Capichaba era caminho e ponto obrigatório. Após as aulas de ginástica do professor Darci Grijó, carregávamos nossa exaustão física para o mercado, onde saboreávamos laranjas e bananas, pagando muito menos do que comíamos, ou seja, o velho método aprendido no mercado da Vila Rubim.
Empanturrados, os uniformes em desalinho, a bolsa, com cadernos e livros, jogada às costas, íamos apreciar o mar nos fundos do mercado (hoje avenida Princesa Isabel). Apostava-se quem jogava uma pedra mais longe ou soubesse quantos navios cabiam na barriga da baía de Vitória.
Os mercados da Vila Rubim — de gestação espontânea — e o da Capichaba — filho de projeto arquitetônico — estão nos pontos extremos da cidade por inspiração do acaso. São referências que dotam a cidade de memória, basta recolher seus antigos postais, mais bonitos que a imagem que hoje se pode ter deles ao vivo. Os habitantes de Maurília tinham razão.
Então, eis o enigma: como terminar essas lembranças de mercados e feiras? Diz-me o coração que por aqui devo parar. Sem despedidas, sem abraço ou aperto de mão. Sem palavras, somente uma interrupção. Ao leitor, deixo os postais.
Autor: Marien Calixte
FONTE: ESCRITOS DE VITÓRIA - Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória-ES, 1995
Prefeito Municipal: Paulo Hartung, Secretário Municipal de cultura e Turismo: Jorge Alencar
Coordenadora do Projeto: Silvia Helena Selvátici, Conselho Editorial: Álvaro José Silva, José Valporto Tatagiba, Maria Helena Hees Alves, Renato Pacheco
Bibliotecárias: Lígia Maria Mello Nagato, Cybelle Maria Moreira Pinheiro, Elizete Terezinha Caser Rocha, Revisão: Reinaldo Santos Neves
Capa: Mercado de São Sebastião restaurado pela Prefeitura Municipal de Vitória (1995), Foto de Leonardo Bicalho
Editoração Eletrônica: Edson Maltez Heringer, Impressão: Gráfica Ita
Compilação: Walter de Aguiar Filho, Junho/2022
Morre aos 78 anos o jornalista e escritor Marien Calixte, no ES, 25/12/2013
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