sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os humanos não são animais.

Reproduzo aqui o texto integral do blog SEM FONTEIRAS de Wálter Fanganiello Maierovitch (1) de 27/05/2011.

Swat mata herói americano por engano, e na frente da família


José Guerena tinha 26 anos. Morava com a esposa e dois filhos no Arizona. Ele era um ex-mariner. Havia sido condecorado por bravura por atuações no Afeganistão e no Iraque. No Afeganisão, o mariner Guerena, conforme grafado no seu currículo militar, combateu alqaedistas e talebans.
 
 
 
Ontem, Guerena foi enterrado com honras militares. Ele não foi morto pelos talebans. Nem por membros da Al-Qaeda. Muito menos por iraquianos eversivos. Apenas a Swat do Arizona conseguiu matar Guerena. Aliás, covardes, despreparados e insensíveis agentes da Swat, a Special Weapons and Tactics do Arizona.
 
 
 
O ex-mariner Guerena restou morto por policiais da badalada Swat na sua casa. Teve o corpo perfurado por 60 projéteis de arma de fogo de grosso calibre. Segundo a perícia técnica, Guerena foi atingido 60 vezes em sete segundos. Pior ainda. Os agentes da Swat não deixaram Guerena ser atentido por médico, enquanto agonizava. O médico chamado pelos vizinhos só pode entrar na casa de Guerena depois que os milicianos da Swat constataram que era falsa a denúncia anônima. Uma denúncia de que na casa de Guerena funcionava um ponto de venda de maconha.
 
 
Quando da invasão da Swat, por volta das 9h30, o ex-mariner estava na companhia da esposa e do filho de três anos. O filho mais velho, de seis anos, estava na escola. Guerena só teve tempo de empurrar a mulher e o filho para um quarto, pois pensou tratar-se de ladrões.
 
 
Sem sucesso, o ex-mariner Guerena tentou apanhar uma espingarda. Os policiais da Swat invadiram o domicílio atirando. E prova técnica demonstrou que a espingarda não foi acionada.
 
 
No computador de Guerena, consoante informou a perícia, os agentes da Swat não encontraram nenhum indicativo de que traficava ou consumia maconha. E nem outra droga proibida. Na casa, toda remexida pelos membros da Swat, nada se encontrou.

PANO RÁPIDO. No final de semana, a polícia militar de São Paulo atacou os participantes da chamada Marcha da Maconha. Seus comandantes de tropas desconhecem o dispositivo constitucional que permite a liberdade de manifestação e de associação.
 
 
Wálter Fanganiello Maierovitch

O filme Expresso para o inferno (Runaway train) de 1985, dirigido por Andrey Konchalovskiy com John Voight (Manny) narra a fuga de dois presidiários que acabam num trem sem controle. Num certo instante os dois se atracam na presença de uma mulher e Manny surra o companheiro sem piedade. Ela desesperada com a briga diz para Manny: você é um animal? Ele responde: Não. Sou bem pior. Sou humano.


Edson Pereira Cardoso
Maio de 2011
 
 
 





terça-feira, 24 de maio de 2011

Mariana Librina: a tia-tetravó barretense

- Este é o taperão do meu sogro

Esta frase foi dita por Mariana Cândida de Jesus, mais popular como Mariana Librina, ao seu neto Joaquim Freitas Borges. O sogro é Francisco José Barreto, um dos dois fundadores da cidade de Barretos. O outro foi Simão Antônio Marques, pai de Mariana. O taperão era a casa do Francisco quando da doação das terras ao patrimônio do Divino Espírito Santo, origem da cidade. Hoje o taperão estaria nas imediações da Rua 8 com a Avenida 15. O caso eu conto como o caso foi relatado por Osório Rocha.(1)

Barreto dizia aos seus filhos e genros: vocês dão escritura ao Divino, mas este pastinho de baixo fica reservado, meio alqueire ao redor da minha propriedade.

Mariana Cândida é minha tia-tetravó. Sou filho da Orípia Pereira de Carvalho que é filha da Maria Cândida de Jesus que é filha do Jerônymo José Marques que é filho do Joaquim Simão Marques que é filho do Simão Antônio Marques.(2) Portanto minha mãe é trineta de Simão e sobrinha-trineta da Mariana e eu sobrinho-tetraneto (ou sobrinho-tataraneto). Para refrescar a memória: Simão Antônio viveu no período 1782 – 1873 e a cidade de Barretos fundada em 25 de agosto de 1854.

Mariana foi uma das cinco filhas e cinco filhos que Simão teve com Joaquina Cândida da Conceição. Foi irmã de Maria Leocádia, Inocêncio, Joaquim, José Antônio, João, Valentim, Inácia, Rita e Francisca. Não tenho informações precisas sobre a data de seu nascimento, mas estimo lá pelos idos de 1830, o ano em que apareceu o fósforo. E Mariana tinha fogo. Veremos a seguir.

Mariana Librina (3) casou-se pela primeira vez com seu primo, José Francisco Marques (Zé Librina). Moravam às margens do córrego do Paiol. Tiveram três filhos: Manoel Marques, Maria Bárbara de Jesus e Izabel Cândida de Jesus. Esta última nasceu em junho de 1850 e batizada, junto com a irmã, em 1852.

"Izabel - Aos vinte tres de Abril de mil oitocentos e cincoenta e dous baptisei, e pus os Santos Olios a IZABEL filha legitima de Jose Francisco Marques e de Mariana Cândida de Jesus: Padrinhos: Cipriano Garcia de Oliveira e Maria Silveira de Oliveira, todos desta. Pe. Justino Ferreira da Roxa" Livro N. 1 de batismos da Paróquia de Jaboticabal (1843-1874); ACDJ.

Zé Librina morreu de picada de cobra, em 1850. Mariana, viúva, voltou a morar com o pai na sede da fazenda Monte Alegre. Mariana casou-se pela 2ª vez, no dia 20 dezembro de 1850, com José Francisco Barreto, filho de Francisco José Barreto. Não ficou meio ano viúva. Izabel, sua última filha do casamento anterior tinha sei meses.

Osório Rocha conta como Mariana e José Francisco se encontraram. Ele vinha de Jaboticabal, a cavalo, e ao passar pela morada de Simão Librina pediu um copo de água e conversou um pouco. Tinha pressa e seguiu viagem. Estava chovendo muito e logo adiante o cavalo escorregou caiu com o cavaleiro e escoiceou-o machucando-o muito. Levado para a casa de Simão o moço foi cuidado pela enfermeira da hora: Mariana. Ficou por lá até se restabelecer das feridas do corpo. Mas este convívio lhe havia aberto outras chagas muito mais graves no coração. Logo o noivado foi oficializado e o casamento realizado em Jaboticabal.

Mariana e José Francisco foram muito felizes no casamento. Conta-se que às vezes os dois punham-se a relembrar aquelas cenas do copo d’água, a queda do cavalo, o coice e depois os cuidados da enfermeira e o amor nascido disto tudo. José Francisco concluía:

- Coice feliz...
- É mêmo... dizia a carinhosa esposa.

Deste casamento Mariana teve mais oito filhos. São eles: Ana (Nh’Aninha), Antônia, Joaquina Cândida de Jesus, Tomásia, João, Valentim José Barreto, Simão Marques Barreto (conhecido por Dezenove, por lhe faltar um dedo grande do pé) e Francisco José Barreto (vulgo Chico Taturana).

Antônia, nascida em maio de 1859, foi casada com Antônio José Borges e teve os filhos: Maria, Umbelina,, Durval e Mariana. Esta última casou-se com Joaquim Freitas Borges e tiveram Juliana, Orestes, Alvina, Quintina, Urbano, Ibanez e Maura. Vejam que as iniciais destes nomes formam um acrônimo: JOAQUIM. Além destes filhos tiveram mais dois: Antônio e Isabel (A de Antônia e I de Isabel, as duas avós maternas).

O Dezenove foi casado com Ana Eulália dos Santos que faleceu em março de 1879. Casou-se pela 2ª vez com Antônia Delfina da Conceição. Morava na Rua 8 com a Avenida 21.

Mariana casou-se pela 3ª vez, no Arraial do Chapéu (Morro Agudo) com seu sobrinho afim João Alves Rosa, filho de Francisco Isaias da Silveira e Maria Rosa de Jesus, irmã de José Francisco Barreto (o 2º marido de Mariana). Mariana casou-se com o filho e depois com o neto de Francisco José Barreto. Foi a pessoa que mais conviveu a relação dos Marques Librinas e com os Barreto. Deste 3º consorcio não houve descendência.

Conta-se que já bem idosa para a época Mariana não quis exigir do esposo fidelidade canina e sacrifícios sobre humanos mostrando ao contrário uma tolerância cativante e tácita.

- Oia João Rosa, sou véia demais pra ocê. Há muita moça por aí.


Parece que ele, se bem ouviu, melhor executou a sugestão.

Mariana Librina faleceu no dia 17 de novembro de 1899, na casa de seu genro Antônio José Borges na Rua 8. Foi a última pessoa sepultada no velho cemitério da Avenida 21 entre as Ruas 20 e 22, demolido em 1908.

A densa e vasta árvore genealógica de Mariana está abaixo. Este mapa foi construido utilizando o software cmap (http://cmap.ihmc.us/)















Edson Pereira Cardoso
Dezembro de 2010


(1) Osório Rocha, "Barretos de Outrora", São Paulo, 1954.

(2) Nilson Cardoso de Carvalho, "Os Marques Librinas de Barretos", 1999. Osório Rocha fez a árvore genealógica dos Barreto. Nilson Cardoso Carvalho fez, com mais detalhes, a genealogia dos Marques Librinas.

(3) Librina: as origens do nome. Nilson Carvalho relata: No seu "Barretos de outrora" Osório Rocha, em pitoresca narração, conta o porquê do apelido "Librina" adquirido pelos Marques, povoadores de Barretos. A alcunha teria surgido da resposta de um Marques a um padre que lhe perguntara porque havia crescido tanto. "— O que me fez deste porte, siô Padre, foi as librina da madrugada. Sempre fui homem dos que entram na labuta à hora em que os galos prispia a amiudar..."
O epíteto "Librina", que o dicionário Aurélio dá como alteração popular de "neblina", pegou, e seu uso ficou tão incorporado que os próprios apelidados passaram a denominarem-se Marques Librina, conforme vi nos assentos de batizados da freguesia de Batatais. Outro indicativo que demonstra a importância do apelido foi o seu uso corrente para designar a origem ou raça de um tipo de cavalo criado pelos Marques na Fazenda Monte Alegre; seus animais eram denominados "librinas", tal como se menciona no inventário de Manoel Serafim da Silva possuidor de uma "poldra librina".
 
 

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Loser

Carlos é um professor universitário em fim de carreira. Foi casado três vezes e teve alguns casos amorosos com algumas mulheres. Considera-se um perdedor na vida. Foi comunista orgânico, militante sindical e por um bom tempo lutou por uma concepção de universidade democrática, socialmente comprometida e competente. Porque perdedor? Perdedor porque o Brasil continua esta droga malhada de sempre, com seu eterno IDH na casa dos 70. E a universidade para ele representa, hoje, muito pouco do que lutou durante anos. Continua burocrática em todos os níveis, com dirigentes carreiristas e incompetentes, com a meta apocalíptica e colonizada do "publish or disappear".

Carlos se considera um perdedor, mas não um fracassado. Não fracassado em termos. Daqueles casos amorosos dois gostaria de esquecer. Apagar da memória.
Memória: com a palavra Umberto Eco no belo livro "A misteriosa chama da rainha Loana", Record, 2005.
Temos dois tipos de memória: uma se chama implícita e a outra explícita. A memória implícita nos permite executar sem esforço uma série de coisas que aprendemos como escovar os dentes e ligar o rádio. Quando a memória implícita nos ajuda, não temos nem consciência de que recordamos. Agimos automaticamente.

A memória explícita é aquela com a qual recordamos e sabemos que estamos recordando. Esta memória se divide em duas: a semântica e a episódica ou autobiográfica. A semântica é a memória coletiva, aquela através da qual se sabe que uma andorinha é um pássaro e que os pássaros voam e têm penas e que Napoleão morreu em 1821. Ela se forma quando criança. A criança aprende rapidamente a reconhecer uma máquina, ou um cão, e a formar esquemas gerais. Portanto se viu um pastor alemão uma vez ela dirá cachorro mesmo quando vir um labrador.

A memória episódica ou autobiográfica estabelece um nexo entre o que somos hoje e o que fomos, senão, quando disséssemos eu, estaríamos nos referindo apenas àquilo que sentimos agora, não ao que sentíamos antes.

Carlos gostaria de apagar algumas memórias episódicas.

O cinema já mostrou algumas experiências sobre desaparecer com memórias indesejadas ou necessárias. Cito dois filmes:
O pagamento(Paycheck) de John Woo / Philip K. Dick em que um engenheiro de software (Ben Affleck) permite que a cada serviço sua mente seja localmente apagada por motivos de sigilo industrial. É mais uma idéia genial de Philip K. Dick.
O outro filme: Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind) de Michel Gondry / Charlie Kaufman. Neste filme Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) formavam um casal que durante anos tentaram fazer com que o relacionamento entre ambos desse certo. Desiludida com o fracasso, Clementine decide esquecer Joel para sempre e, para tanto, aceita se submeter a um tratamento experimental, que retira de sua memória os momentos vividos com ele.

Carlos decidiu agir. Viajou para São Paulo com o fim de se submeter a um tratamento que apagasse algumas memórias indesejadas. Foi para a clínica de um neurocirurgião de nome Pedro Kaufman. Ele estudou com o neurocientista André Fenton da Universidade Estadual de Nova York. O tratamento consiste em injetar uma substância de nome ZIP que destrói entre os neurônios as conexões responsáveis por partes da memória.

Carlos pediu que apagassem de sua memória os dois casos amorosos que teve com as mulheres, os seus fracassos. E de sobra pediu também que apagasse os "arquivos" referentes às reuniões que participou em seu departamento na universidade onde trabalha. O tratamento foi realizado com êxito.

Depois do acontecido Carlos recebeu uma ligação no celular. Era uma mulher chamada Francisca.

- Ei, Carlos, tudo bem? É a Francisca. Que tempo, heim!

- Francisca? Respondeu Carlos

- Sim, Francisca. Lembra de mim não?

- Lembro não. Acho que nunca vi ou conheci uma mulher com este nome.

- Carlos, é a Quica que você carinhosamente me chamava. Tivemos aqueles dois anos de um belo e tórrido caso. Você quase não saia do meu apartamento.
Carlos não entendeu nada. Tórrido caso. Eu heim! Esta mulher é maluca, pensou.

- Francisca, não estou entendendo nada do que você está dizendo, desculpe.

Francisca já nervosa responde.

- Olha aqui seu babaca vai à merda. E desligou o telefone.

Carlos ficou revoltado com a grosseria daquela mulher.
Pô, não conheço e nem sei de onde veio e desliga o telefone na minha cara? Espera aí, tenho que dar o troco e rapidinho liga de volta.

- Francisca, estou sendo sincero contigo, quando digo que não te conheço e nunca te vi é verdade.
E Carlos teve a resposta final.

- Ô cara, vá para puta que te pariu.

Mas Carlos se vingou. Antes do... te pariu, desligou o celular.

E continuou sem entender coisa alguma da conversa.


"O passado é indestrutível. Mais cedo ou mais tarde as coisas retornam… e uma delas é o plano de destruir o passado" Jorge Luis Borges



Edson Pereira Cardoso

Setembro de 2010



Gerônimo: não basta abater o homem para anular o exemplo

Luis Fernando Veríssimo na crônica "Matem o cavalo!" publicada em O Globo de 22/11/2007, trata de como são perigosos os símbolos representativos dos ídolos populares. É preciso trucidar a sua memória, emporcalhar a sua legenda e apagar qualquer vestígio simbólico da sua rebeldia, escreve Veríssimo. No filme Viva Zapata (1952) dirigido por Elia Kazan, escrito por John Steinbeck, com Marlon Brando no papel do revolucionário mexicano, o intelectual Fernando Aguirre (interpretado por Joseph Wiseman) antigo aliado dos zapatistas trai o guerreiro e insiste para que os soldados não deixem escapar com vida o cavalo branco de Emiliano Zapata. "Matem o cavalo! Matem o cavalo" grita em vão. A última cena do filme é a do cavalo branco solto numa montanha, um símbolo não muito sutil do espírito que sobreviveu ao sacrifício do dono para inspirar outras gerações e outras revoltas. O intelectual entende que símbolos são perigosos e que não basta abater o homem para anular o exemplo.

O irônico ou o trágico da história: "Zapata" foi o nome escolhido para uma das empresas de George Bush, o pai. Arrisco uma explicação: é porque George, texano, gostava das botas e do chapéu do Emiliano.

Na recente execução de Osama Bin Laden (maio de 2011) a operação militar da Marinha dos EUA tinha qual nome? GERÔNIMO. Foi com o código "Geronimo-E KIA", uma contração de "Geronimo Enemy Killed in Action" (Inimigo morto em ação), que a Casa Branca recebeu o comunicado da missão do comando das forças militares.

Sobre o tema Jânio de Freitas escreveu na Folha de São Paulo de 05/05/2011: "O nome-código dado a Bin Laden para a comunicação de sua morte à Casa Branca –Gerônimo - não suscitou curiosidade até agora. Mas sua escolha tem significações ricas. Não é nome de brancos nem de negros americanos, em tempo algum. É nome indígena. Foi o nome de um dos mais ou o mais bravo chefe a resistir, e vencer muitas vezes, às tropas que conquistavam terras da América do Norte para os colonizadores com o genocídio dos habitantes originais. Gerônimo foi transformado em objeto de ódio branco que lhe deu lugar destacado na história das guerras dos Estados Unidos listadas pelo Departamento de Defesa. Chamar Bin Laden de Gerônimo foi injustiça com o dono autêntico do nome, mas o conceito de justiça parece aplicar-se, no episódio atual, apenas às afirmações de Obama e de Bush, segundo os quais a morte do terrorista fez justiça."

Loretta Tuell, assessora chefe do Comitê de Assuntos Indígenas do Senado dos EUA lamentou "O emprego impróprio de ícones da cultura indígena é muito comum em nossa sociedade. Suas consequências sobre o espírito das crianças indígenas e não indígenas é devastadora".

O espírito indianismo hostil nos Estados Unidos remonta aos primórdios do cinema em Hollywood. Os filmes tratavam os índios como bandidos assassinos e não como rebeldes que lutavam por terras e alimentos. Índio bom é índio morto. No entanto a partir da década de 1970 alguns filmes produzidos em Hollywood fizeram um mea culpa. Cito dois: Pequeno grande homem (Little big man) de 1970 dirigido por Arthur Penn e Gerônimo: uma legenda americana (Geronimo: an american legend) de 1993 dirigido por Walter Hill. Recomendo este último para entender Gerônimo, o rebelde com causa.

Goyathlay, mais conhecido pelos brancos como Gerônimo (1829 – 1909), era um apache bedonkohe. Depois de um tempo considerava-se um chiricahua. Viveu com sua gente entre o sudoeste dos EUA (Arizona) e nordeste do México. Os apaches lutaram décadas contra a imposição pelos brancos de reservas tribais. Além de Gerônimo, nestes embates são notórias as figuras de Cochise (1815 – 1874) e Victorio (1825 -1880). A história mostra que os indígenas, ao contrário do senso comum, depois de muita luta queriam viver em paz. Assinaram acordos com o governo que geralmente eram descumpridos. Houve tentativas de apaziguar os rebeldes. Lideranças ligadas ao exército tentaram cumprir os acordos firmados. Eram os "corações divididos". Cito alguns: General George Crook, John Clum, Hugh Scott. Mas os gaviões de Washington não eram divididos. Queriam o confinamento dos rebeldes, seus seguidores e familiares.

No livro Dee Brown, Bury my heart at Wounded Knee, (Enterrem meu coração na curva do rio, L&PM, 2010) relata um depoimento singular do General Crook: "Com todos os interesses que estão em jogo, não podemos nos dar o luxo de combatê-los (os apaches). Somos culpados demais, como nação, pela situação atual. Isso quer dizer que devemos mostrar-lhes que doravante serão tratados com justiça e protegidos da invasão dos brancos." No filme Gerônimo, uma legenda americana, um dos "corações divididos", (Britton Daves, interpretado por Matt Damon), ao final da Campanha Gerônimo, conclui: "Transporto na memória aqueles dias de coragem e crueldade, de heroísmo e engano. Ainda tenho de enfrentar uma verdade inquestionável: um modo de vida que durara milhares de anos tinha terminado."

O final da história: Gerônimo e outros guerreiros foram prisioneiros em 1887 e confinados na Florida. Ele nunca retornou à terra onde nasceu. Morreu de pneumonia em 1909 e enterrado como prisioneiro de guerra. Os chiricahuas estavam marcados para a extinção; haviam lutado demais para que mantivessem a liberdade.

Diz a lenda que ao se ver encurralado na borda de uma ribanceira, Gerônimo, em vez de se render, tomou impulso e saltou, montado em seu cavalo. Na queda, antes de afundar no pequeno rio que passava lá embaixo, o índio gritou seu nome com toda a força: "Gerônimooooooooo!". Ele e o cavalo se recuperaram da queda e escaparam a galope.

Gerônimo (e seu cavalo) se foi, mas o herói é reverenciado até hoje em qualquer lugar do mundo. Mas não tenho dúvida, é uma canalhice associar o seu nome com à execução de Bin Laden.


Edson Pereira Cardoso

Maio de 2011

domingo, 22 de maio de 2011

Tô puta

Meia noite, fim de semana. Alba Lívia não consegue dormir. A semana de trabalho foi atribulada e aí pintou de volta aquela convulsão mental. Convulsão, não confusão. Confusão é falta de ordem, tumulto. Convulsão é cataclismo mental.

Alba liga para Alfredo, o namorado.

− Alfredo, desculpe a hora, mas liguei porque não consigo dormir. Estou puta da vida. Fico andando prá lá e pra cá como um zumbi na madrugada.

Alfredo é um rapaz bonito, 1,8 metros de altura e bem humorado. A luz acendeu quando ouviu "estou puta...". Ficou imaginando coisas. Caso você me perguntar: Alfredo é um cafajeste? Sim ou não? Terei cá minhas dúvidas sobre a segunda alternativa.

− Espera aí, meu amor. Te encontro logo mais, pode ser?

− Sim, espero você, respondeu Alba.

Alfredo vestiu a camisa Richard mais nova, uma calça jeans, um sapato italiano e zarpou. Quando a porta do apartamento da namorada abriu ficou estupefato, sem acreditar no que via. Alba apareceu fulgurante. Um resplendor da santa natureza deslumbrante e bela.

Passo a descrever o que Alfredo viu.

Alba estava num vestido Dolce & Gabbana, 38, tubo, vermelho, com alça de 0,5 cm; bolsa preta Nancy Gonzales no ombro e uma sandália gladiadora Jimmy Choo, preta, salto 6. E combinando, um cabelo curto bem despojado e moderno. Alba gladiadora sim, mas não para acabar com as feras, para soltar as feras.

E lá foram balançar o corpo numa danceteria. Foram para a Jungle Box, uma boate da moda. Muitas garotas bonitas e garotos idem. Muita luz multicolorida e estroboscópica. Sentaram numa mesa e pediram a primeira marguerita. Dançaram madrugada adentro ao som de, entre muitas,
Scissor Sister (I don’t feel like dancing), The Killers (Somebady told me), Reflekt (Need your love),
David Guetta (Sex bitch), Madonna (Celebration), Lady Gaga (Bad romance), Robyn (Dancing on my own), Whitney Houston (I Didn’t Know My Own Strength) e DJ Mister Junior Project (Everybody Dance).

Depois de três margueritas e muita dança Alba estava como o diabo gosta. Três e meia da madrugada saíram da boate e foram para o apartamento de Alba.

A partir daí só Anaïs Nin pode explicar.

Alba ficou de pé no quarto e Alfredo a despiu. Segurou a cintura da namorada e explorou avidamente seu corpo com as mãos. Sentiu a vigorosa plenitude do quadril de Alba. Ao se deitarem na cama ela teve a sensação de que o cheiro, o toque de peles e a bestialidade de Alfredo estavam combinados. Deitou-se nas peles beijando os seios apalpando as pernas, o sexo e as nádigas da namorada. Depois se moveu para cima de Alba e colocou o pênis em sua boca. Ela sentiu os dentes pegando de raspão enquanto ele avançava para dentro e para fora. Alfredo gostou e ficou assistindo e acariciando a amada com as mãos por todo seu corpo. Com os dedos buscou tudo o que pudesse a conhecer completamente. A seguir colocou Alba de quatro e penetrou por trás com as mãos em concha sobre os seios acariciando e penetrando ao mesmo tempo. Estavam incansáveis numa excitação sem fim retardando o gozo final, pois queriam prolongar ao máximo aquele momento de prazer incomensurável. Num movimento rápido Alfredo ficou em cima de Alba e começou a penetrar com violência avançando para o crescente e selvagem ápice do orgasmo. Alba gritou e gozaram quase ao mesmo tempo. Caíram de costas entre as peles, aliviados. E terminaram com um beijo prolongado e carinhoso. Alfredo aplaudiu. Pelo que acabaram de fazer mereciam mesmo aplausos.

Manhã de domingo ensolarado. Alba acordou ao meio dia. Alfredo já não estava. Alba espreguiçou na cama refletindo o que fizera na madrugada. Pensou no significado de soltar as feras e se libertar das amarras. Pensou na mulher que às vezes se livra da asfixia da vida monótona e à ordem ruim do dia a dia. Existe ordem boa sem asfixia, pensou.

Alba levantou Alba, não levantou puta.

Feliz e leve como um beija-flor.


Edson Pereira Cardoso

Agosto de 2010

sábado, 21 de maio de 2011

Projeto: a banalização de um conceito

Deu na Folha de São Paulo de 15 de maio de 2011: "Semanas antes de assumir o cargo mais importante do governo Dilma Rousseff, o ministro Antonio Palocci (Casa Civil) comprou um apartamento de luxo em São Paulo por R$ 6,6 milhões. Um ano antes, Palocci adquiriu um escritório na cidade por R$ 882 mil. Os dois imóveis foram comprados por uma empresa da qual ele possui 99,9% do capital. Em 2006, quando se elegeu deputado federal, Palocci declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio estimado em R$ 375 mil, em valores corrigidos pela inflação. Ele tinha uma casa, um terreno e três carros, entre outros bens. Com o apartamento e o escritório, Palocci multiplicou por 20 seu patrimônio nos quatro anos em que esteve na Câmara-período imediatamente posterior à sua passagem pelo Ministério da Fazenda, no governo Lula."

Será que esta empresa na qual o dono tem 99,9% existe para a lavagem de dinheiro como nos tráficos de drogas e armas? E qual o nome da empresa do Palocci? PROJETO. Segundo os registros da Junta Comercial de São Paulo, a PROJETO Administração de Imóveis foi criada como consultoria e virou administradora de imóveis dois dias antes de Palocci chegar à Casa Civil. O ministro disse que os dois imóveis que comprou são os únicos que a PROJETO administra.

O conceito projeto me infernizou durante um bom tempo da minha vida de docente universitário. Fiz uma tese de doutoramento cujo título é "Projetos de aprendizagem mediados por ambientes virtuais no ensino de Engenharia Elétrica". Um dos focos desta pesquisa é a metodologia de projetos aplicada à aprendizagem em engenharia baseada nas formulações da John Dewey. Projeto neste contexto corresponde a uma ação planejada e com metas propostas pela motivação e interesse dos estudantes.

Numa pesquisa no Google (maio de 2011) a palavra projeto teve 84 milhões de citações ou resultados. Em inglês, project, tem 1.600 milhões . Não é pouco. Tem projeto para Deus e o Diabo. Projeto: de pesquisa, de lei, de vida, de construção, tecnológico, pedagógico, de gestão, político, de trabalho, de formação, de investimento, de sociedade, cultural etc.
Jean Pierre Boutinet, no livro Antropologia do Projeto (Artmed, 5ª edição, 2002), escreve: "Além de seu uso abusivo, além das figuras patológicas que engendra na maneira como declina em seu interior as condutas de idealização, o projeto, essa propriedade tipicamente humana, tem o mérito de nos auxiliar a rever o estatuto psicológico da ação. (...) As condutas de projeto revelam um contexto cultural, justamente aquele de culturas de projeto que, por razões que devem ser arroladas, leva a uma incompreensão, até mesmo a uma má utilização dos processos de idealização. Nossa inabilidade para dominar esses processos não deixa de provocar desvios patológicos, aqueles que se desenvolvem diante dos nossos olhos quando recorremos a um uso intempestivo do projeto ou daquilo que o substitui."

Projeto, no sentido amplo, significa intenção, planejamento, organização do trabalho, propósito, objetivo, alvo. A origem deste termo remonta ao período quatrocentista italiano, no início do século XV, e tem sua expressão vinculada ao projeto arquitetônico. O arquiteto era um intelectual afastado do canteiro de obras e responsável pela concepção do que se pretendia realizar. Sua missão é elaborar um plano claro, inteligível e equilibrado que responda à concepção que se pode ter do belo. Em tal contexto, o projeto, na medida em que é antecipação da realização, desempenhará para a execução o papel de norma operatória (Boutinet, 2002, p. 37).

Assim, o projeto se propõe como um guia eficaz para a ação e em sua origem estabelece uma clara separação entre concepção e execução. A partir do século XVIII, com o iluminismo e o progresso tecnológico, o conceito de projeto se amplia e se estende para além da norma operatória. É como uma intenção de antecipação, mas indispensável à ação. É o projeto como um guia operacional perceptível em uma metodologia mais ou menos explícita. Surge o projeto-método.

Estudando sucintamente as práticas profissionais hoje existentes, as quais recorrem ordinariamente à metodologia do projeto, poderemos identificar três delas, contrastadas em sua configuração, mas ávidas por estabelecer, cada uma a seu modo, a legitimidade de sua ação pela utilização do projeto. De um lado, trata-se das práticas arquiteturais e de ordenamento; de outro, das práticas pedagógicas e de formação e por último, das práticas de gestão organizacional e tecnológica. Diríamos que, hoje, o conceito de projeto, para além dos atributos acima citados, poderia ser a ação a ser conduzida, a antecipação operacional ou a mudança a ser operada.

Na PROJETO do Palocci a ação a ser conduzida é: como usar do tráfico de influência e o valor de mercado (outra palavra banalizada e bastarda) que o ministro teve quando fora do governo. A mudança a ser operada é: como multiplicar por 20 o patrimônio da empresa em quatro anos. 
E xô Boutinet. 

Edson Pereira Cardoso
Maio de 2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Alma salva Alba


Tenho medo do domingo maldito que me liquidifica, disse Alba, parafraseando Clarice, numa sexta em final de expediente. Alba Lívia é professora universitária, capixaba, mulher bonita, boa filha e no passivo dois casamentos. É cheia de tarefas a cumprir e de uma incessante vida dedicada ao trabalho. Seria nossa personagem uma pessoa viciada em trabalho? Sei não, mas o que interessa é a vida e não o vício.

Dona Alma é a da mãe de Alba e Seu Tobias, o pai. Não imagino a segunda sem a primeira e o terceiro. Impossível. No cotidiano de Alba o trabalho e a família se entrelaçam. A rotina é modificada por encontros com amigos, amigas e colegas de trabalho. Um cineminha aqui, um jantar ali e a vida segue. Namorados? Ah, deixa prá lá, depois conversamos sobre.

Num dia normal de trabalho a agenda de Alba tem a seguinte cara: levanta as oito, café da manhã às 8h30min, chega as nove na Universidade, almoço as doze, aula às 14h, conversa com estudantes às 16h, pesquisa e outras atividades as dezoito e volta para casa as 20h. Segunda, terça, quarta, quinta e sexta, sempre assim a rotina desta mulher.

Tenho tanta coisa para fazer neste fim de semana! Não sei nem por onde começar me disse Alba numa outra sexta. Prova para corrigir, projeto para escrever, tese para ler, supermercado etc. E, claro, as visitas à família, compromisso inadiável.

E nas férias? O que fazia nossa divina e graciosa Alba Lívia. Bem, quando não viajava ficava remoendo tarefas universitárias não cumpridas. Dívidas a pagar, deveres não realizados que estão lá, marcados, na agenda.

Passo agora a relatar o que o que aconteceu numa destas férias de Alba. O caso eu conto como o caso foi.

Domingo de praia.

Deus me fora tão clemente aqui nesse ambiente de luz. A luz e o olor da rosa de Pixinguinha se intrometem quarto adentro dizendo bom dia. Era o resplendor da luz do sol de verão em Vitória, o sol dos fotógrafos. Alba Lívia acorda, espreguiça, dá um tempo e levanta. Passa pela sala e vai até a cozinha tomar água. Volta para a sala e se detém na agenda em cima da mesa. Folheia e vê a página do dia 28, domingo. Vazia, sem nada escrito. Não lembrava que estava em férias. Estava no automático.

Mas, como? Sem nada pra fazer? Não acredito! Perambula pela sala, vai até o quarto e veste uma bermuda e uma blusa de malha branca. Que saco! Diz para si mesma como uma fera enraivecida.

Alba e não ter o que fazer corresponde ao imponderável. É mais ou menos estar próximo de um buraco negro. Um corte epistemológico: no interior de um buraco negro as leis do universo desintegram-se literalmente. Tempo e espaço se desmoronam. O inexplicável, o desconhecido, reside nas entranhas deste monstro capaz de alimentar-se de estrelas e para alguns, acabar por engolir o universo.

O universo de Alba estava com problemas naquele dia. Ela tem pavor de monstro e naquele domingo ele estava solto. Liga a TV e passeia por 13 canais diferentes em 13 minutos. Nenhum interessante. Liga o computador, vai para a internet ver email e nada, só lixo. Lá pelas 11 continua indo e vindo pelo seu belo apartamento do 5º andar. Uma boa idéia, um livro de Clarice Lispector. Folheia, folheia e nada. Nem Clarice entenderia aquela louca manhã de domingo. Ansiedade, palpitação, medo de perder o controle, confusão, sudorese, vertigem, dificuldade de respirar, medo de morrer. Péra aí, pânico? Xô! Mas a coisa estava feia.

Até que, infelizmente, Alba não se conteve. Terminar tudo, acabar de vez com o problema. Correu para a sacada do apartamento e sem pensar fez o movimento fatal. Ia se jogar. Disse bem, ia. Porque naquele momento toca o telefone. Ei minha filha, como vai? O que você está fazendo? diz Dona Alma. Nada mamãe, E ESTE É O PROBLEMA! Estou ligando para te convidar para almoçar aqui em casa, retrucou Alma.

E foi assim que a Alma salvou a Alba naquele domingo maldito.


 
Edson Pereira Cardoso

Setembro de 2010

 

 




Marlon



 O grande motim (Mutiny on the Bounty) de 1935, dirigido por Frank Lloyd, ganhou o Oscar de melhor filme e teve como intérpretes principais Charles Laughton (William Bligh) e Clark Gable (Fletcher Christian). Uma sinopse do filme: em 1787 o navio Bounty deixa Portsmouth (Inglaterra) com destino ao Taiti, para trazer o maior carregamento possível de fruta-pão. O capitão do navio (William Bligh) fica de tal forma obcecado em cumprir sua missão que, em virtude dos seus métodos extremamente rígidos, provoca um forte descontentamento na sua tripulação, o que acaba resultando em um motim. Quando a tripulação chega no Taiti Christian se apaixona por uma nativa de nome Tehani (interpretada pela mexicana Maria "Movita" Castaneda).

Houve uma refilmagem desta estória em 1962 com direção de Miles Milestone, Marlon Brando (Fletcher Christian) e Trevor Howard (William Bligh). Neste filme a nativa tem nome Maimiti e é interpretada pela taitiana Tarita Teriipia. Antes de optar por fazer O grande motim ofereceram a Marlon Brando o papel de Lawrence da Arábia (filme dirigido por David Lean). Não aceitou porque não queria ficar seis meses no deserto. No lugar da areia preferiu as águas das ilhas da Polinésia. Particularmente considero Lawrence da Arábia uma obra prima. O grande motim, não.

Marlon casou-se com Maria "Movita" Castaneda (7 anos mais velha) em 4 de junho de 1960. Tiveram dois filhos. Durante as filmagens no Taiti, Brando se apaixonou por Tarita Teriipia. Casaram-se no dia 10 de agosto de 1962. Este casamento durou até 1972. Tiveram dois filhos. Tai uma questão: a paixão foi pela personagem ou pelas atrizes que fizeram a personagem? Em se tratando de Marlon tudo é possível.


 O grande motim não é o melhor filme feito por Marlon, mas tem uma marca em sua vida. Além das personagens e atrizes envolvidas, depois do filme ele comprou uma ilha de nome Tetiaroa na região do Taiti e viveu por lá na década de 1960. Gostava da natureza, dos nativos e da vida isolada do tormento que considerava o ambiente em Hollywood. O naturalismo não se apresentava apenas na vida do cidadão Marlon Brando. Estava também na arte.

"É costume dizer que um ator representa bem um personagem, mas isto é noção de amador. Elaborar a caracterização de um personagem não é uma simples questão de maquiagem, de indumentária ou de encher as bochechas de lenços de papel. Isto que os atores costumavam fazer denominava caracterização. Ao representar tudo emerge da pessoa, do que você é ou de algum outro aspecto do ser, do quem você é. Tudo faz parte da própria experiência do ator. É um espectro amplo e a tarefa do ator é penetrar nessa variedade de emoções e sensações escolhendo as que são adequadas ao personagem e à história". Esta dissertação sobre o que pensava a respeito da arte de representar está em sua autobiografia "Brando: canções que minha mãe me ensinou" (Brando: songs my mother taught me) da Editora Siciliano, 1994.


Portanto nada de colírio para representar chorando e sim elaborar uma técnica mental "que me permitia que eu me dirigisse a certas partes de mim mesmo, escolhesse uma emoção e enviasse do cérebro para o corpo algo semelhante a um impulso elétrico que me habilitava a sentir uma determinada emoção". Tai, explicitado, o conceito sobre a forma naturalista (Actor’s Studio) de representar. Por isso que a personagem e o ator foram surrados nas cenas de violência em filmes como Sindicato dos ladrões (On the Waterfront) de 1954, A face oculta (One-Eyed Jacks) de 1961 e A caçada humana (The Chase) de 1966. Outro exemplo desta forma de atuar é relatado na autobiografia: "Na cena de morte de O grande motim eu quis parecer que estava em estado de choque depois de uma queimadura fatal. Pedi à equipe de filmagem que preparasse bastante gelo e deitei-me até o meu corpo ficar gelado e eu tremendo a ponto de bater os dentes. Enquanto o corpo reagia fisicamente ao frio, pensei no quanto amava a taitiana pela qual me apaixonara no que eu tanto amava nela e depois na dor, no assombro e na surpresa de morrer." Detalhe: durante as filmagens Marlon se apaixonou por Tarita Teriipia. O caso entre Fletcher Christian e Maimiti era o que acontecia, na época, entre ator e atriz.

Brando começou no teatro com sua forma naturalista (o método) de representar. Era o naturalismo que buscava o entendimento da essência humana e maior vivacidade cênica, a qual havia sido congelada pela tradição acadêmica. Na literatura o naturalismo é uma escola conhecida por ser a radicalização do realismo baseando-se na realidade e na experiência. Os naturalistas acreditavam que o indivíduo é um mero produto da hereditariedade e o seu comportamento é fruto do meio em que vive e sobre o qual age. Marlon tinha uma visão naturalista, sobre sua função no mundo. As feministas ficariam enlouquecidas com esta pérola de seu pensamento: "Acho que não nasci para ser monógamo. Acho que a monogamia não faz parte da natureza humana de nenhum homem. Os chipanzés, que são nossos parentes mais próximos, não são monógamos, do mesmo modo que babuínos e gorilas. A natureza humana não é mais monógama do que a deles. Em qualquer sociedade humana os homens são compelidos (por impulsos que são ordenados geneticamente e por isso incontroláveis) a distribuir as próprias sementes para o maior número de mulheres possível de mulheres. O sexo é a força primordial de nossa espécie e de todas as outras. O nosso desejo mais forte é replicar os nossos genes e perpetuar a espécie. Diante disso nós nada podemos fazer e somos programados para fazer o que fazemos."

A relação de Marlon com as mulheres é um caso clínico que Freud gostaria de analisar. Na adolescência teve uma convivência conturbada com a mãe e o pai. Ela era alcoólatra e ele um grande cafajeste com as mulheres. O filho adorava a mãe e teve alguns momentos na vida que desejava surrar o pai. Foi casado com Anna Kashfi (de 1957 a 1959), Maria Movita Castaneda (de 1960 a 1962) e Tarita Teriipia (de 1962 a 1972). Teve um filho com Anna, dois com Movita e dois com Tarita e sempre casou quando (ou porque) as mulheres estavam grávidas. Além destes, teve três filhos com Maria Christina Ruiz, sua governanta, no período de 1989 a 1994. E mais: um adotado (1972) e quatro de mães desconhecidas no período de 1967 a 1982. Marlon teve filho aos 70 anos. Foi sua contribuição na perpetuação da espécie.

Uma pista para entender a relação de Brando com as mulheres, além de sua concepção naturalista, é a sua relação com a mãe. Diz ele que uma mulher que mexeu muito com seus sentimentos foi Weonna. É mais uma personagem de sua autobiografia. Na verdade Weonna no mundo real chama-se Jill Banner. Foi uma atriz pouco conhecida. Assisti dela dois filmes. Um chamado Spider Baby or, The Maddest Story, 1968, de Jack Hill (na época ela tinha 22 anos). Descaradamente trash. O outro foi Un uomo, un cavallo, una pistola, 1967 de Luigi Vanzi. Um spaghetti western. Jill morreu em 1982 de acidente com automóvel. Marlon em sua autobiografia diz que ela morreu de acidente com um cavalo. Nem pensar entender por que ele deu esta versão.

O caso de Marlon com Weonna foi conturbado e cheio de idas e vindas, mas ele dizia que ela era a mulher de sua vida. Depois de uma briga com Weonna ele percebeu que se quisesse se perdoar por tudo que fizera de mal com as mulheres teria que perdoar a mãe. Foi o que fez e a partir daí suas relações com as mulheres melhoraram. Será? Só perguntando para as mulheres pós Weonna. O espectro cafajeste (com as mulheres) que acompanhou a vida de Brando recomenda dúvidas sobre esta afirmação.

Domingos de Oliveira em 2004, quando da morte de Brando aos 80 anos escreveu: "Marlon impõe a sua personalidade acima de tudo, usando, para isso, variados recursos, dentre os quais o sexo sempre foi o principal. Ele queria seduzir sexualmente a platéia. Homens e mulheres. Era um bissexual assumido. Os analistas hoje em dia, quase em sua totalidade, afirmam que o bissexualismo não existe. Coisa de grego, forma disfarçada de homossexualismo. Então Marlon era grego."

A vida de Brando fora das telas e de suas relações afetivas tinha outras idiossincrasias. Sempre esteve engajado em defesa das minorias injustiçadas. É notória sua participação em defesa dos índios (socialmente excluídos até hoje) e dos negros estadunidenses. Quando visitou a Índia ficou horrorizado com a miséria e a presença das crianças neste ambiente. Brando afirmava que o melhor filme em que atuou foi Queimada (Burn) de Gillo Pontecorvo. Este filme tem um viés explicitamente marxista. Marlon não era marxista, mas tinha preocupações sociais próximas dos indignados com a realidade em que vivia. Era um rebelde com causas.

No final da vida Brando tinha uma posição pessimista quanto à humanidade. Ele assistiu e gostou do filme Expresso para o inferno (Runaway train) de 1985, dirigido por Andrey Konchalovskiy com John Voight (Manny). Narra a fuga de dois presidiários que acabam num trem sem controle. Num certo instante os dois se atracam na presença de uma mulher e Manny surra o companheiro sem piedade. Ela desesperada com a briga diz para Manny: você é um animal? Ele responde: Não. Sou bem pior. Sou humano.

Marlon era rebelde, arrogante, brilhante em pelo menos meia dúzia de filmes que fez, cafajeste, intratável, instável, sexy e engajado. Era humano.

Edson Pereira Cardoso

Maio de 2011