quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Haja luz, e houve Fux

Já ganhei aposta com Fux. Ele nunca topou, mas perdeu e não pagou

Conrado Hubner, fsp, 11.09.2025

Luiz Fux é pai generoso. Ministro do STF, fez telefonemas para pedir nomeação de filha-advogada ao TJ-RJ ("É tudo que posso deixar para ela", disse a desembargador, segundo perfil da revista Piauí). Liberou filho-advogado para exercer advocacia de parentes no STF, ramo promissor da prática jurídica atual. Não ensinada nas faculdades, a habilidade exige laço de sangue.

Luiz Fux é colega generoso. Em liminar monocrática de 2014, jamais submetida ao plenário do STF, garantiu aos juízes do Brasil um aumento salarial oficioso por meio de auxílio-moradia ilegal. Cinco anos e bilhões de reais mais tarde, já negociado aumento com o Congresso, revogou a liminar. Sem perguntar ao plenário, sozinho "matou no peito", como fala. Herói da magistocracia.

Luiz Fux é generoso com citações de poesia. Em discurso, não desconfiou que o verso "recomeçar e só uma questão de querer, se você quer, Deus quer" talvez não fosse de Carlos Drummond de Andrade.
Luiz Fux só não é generoso com a clareza e a credibilidade de suas ideias.

Argumento é coisa séria em Estados de direito. A mais séria. É seu insumo, seu lubrificante, seu produto final. Alimenta a vida cívica e a legitimidade dos tribunais. Mas o Estado de direito também pede que os emissores de argumentos, sobretudo juízes, sejam levados a sério, tenham aparência de seriedade. Não é falácia "ad hominem", mas exigência de ética judicial.

Seriedade e aparência de seriedade são virtudes que Luiz Fux se esmera em não cultivar. Por isso, o voto de Fux está nu.

Inútil tentar classificar Fux por tipologias doutrinárias. Inútil perguntar se foi garantista ou punitivista, dicotomia que mais confunde o debate jurídico desde a Lava Jato. Garantista seria o juiz que manda soltar e absolver. Punitivista o que manda prender e condenar. Garantista que prende e punitivista que solta causam curto-circuito no senso comum autômato. Dicotomia que o jornalismo faria bem em abandonar. Melhor ler cada caso para além do resultado e observar variações argumentativas e factuais.

Fux não é punitivista nem garantista, apenas um casuísta. Resolveu deixar isso ainda mais claro no caso criminal mais importante da história nacional. Não é que o Fux de hoje discorde do Fux de ontem ou de amanhã. Fux não concorda nem discorda, apenas salpica ornamento verbal que dê alguma liga, alguma rima.

O voto de Fux não homenageou o direito de dissentir, o valor da divergência ou do pluralismo. Não ofereceu contraponto analítico numa deliberação sincera. Fux já condenou centenas de réus por tentativa de golpe no 8 de Janeiro. Quando julga seus líderes, diz que STF não tem competência.

Chico Anysio não se inspirou em Luiz Fux para inventar Rolando Lero. Dias Gomes não o conheceu para compor Odorico Paraguaçu ou Sinhozinho Malta. Luiz Fux se fez seu próprio autor. Não saiu da ficção, mas se matriculou, voluntariamente, na escola literária de onde saiu Pedro Malasartes. É o mais jurídico que se pode dizer de seu voto.

Em 2020, fiz aposta pública com Fux. Disse que, na presidência, não pautaria uma longa lista de casos delicados à sua agenda. Casos como dos penduricalhos de juízes fluminenses ("fatos funcionais") ou do "juiz de garantias". Jamais pautou e perdeu. Cobrei e jamais pagou.

Luiz Fux não merece ser levado a sério pelo que diz, mas pelo que representa.

sábado, 6 de setembro de 2025

Amazônia, região do rio Negro

Samambaias, pteridófitas, avencas, briófitas, musgos, epífitas, hemiepífitas, bromélias, orquídeas, cipó-titca, figueiras-mata-paus, piaçabas, bacabas, buritis, tucumãs, açais, pupunhas e bacabas

O deslumbre*

Ao visitar o Brasil a bordo do Beagle, Charles Darwin escreveu: “Deleite, entretanto, é uma palavra fraca para expressar os sentimentos de um naturalista que, pela primeira vez, esteve perambulando sozinho numa floresta brasileira”.

Durante as coletas, sempre gostei de me separar do grupo para momentos de contemplação silenciosa. Na mata fechada, basta nos afastarmos cinquenta metros uns dos outros para desparecermos atrás dos troncos. Dá aflição pensar como é fácil se perder. Desorientado especialmente como sou desde criança, muitas vezes precisei gritar para seguir a direção do gritos que me respondiam, conforme o combinado entre nós, por questão de segurança.

Para quem entra numa floresta do rio Negro, as belezas são reveladas de acordo com a direção para qual o olhar se dirige.

O chão forrado de raízes que entrelaçam e por uma camada espessa de folhas secas. As cores vão do verde aos vários tons de amarelo, marrom e cinza das que caíram há mais tempo. Sobre elas, juntam-se gravetos que estalam sob nossos pés e outros ainda úmidos que envergam sob o peso do corpo. É preciso estar atento a eles, porque, ao pisar numa extremidade, a outra pode se erguer do chão e travar o passo dado com perna oposta. Caí mais de uma vez por desatenção a esse detalhe.

Plantinhas com meia dúzia de folhas se esgueiram aqui e ali no meio da folhagem. Difícil imaginar que um dia serão árvores enormes, se lhes for concedida a luminosidade de que necessitam.

Esporos de samambaias de diversas espécies germinam nesse mar de folhas em decomposição. O ambiente lhes oferece o que mais desejam: sombra e umidade. O formato das folhas varia de acordo com a espécie, mas a distribuição espacial é semelhante: nascem em galhos finos e elásticos, mas resistentes. Na escala evolutiva, as pteridófitas constituem o primeiro grupo de plantas de vasos para conduzir a seiva. A depender da claridade, guardam distância umas das outras ou se aproximam em tufos de um metro de altura que contrastam com as mais jovens, de um palmo, e as recém-nascidas.

Na terra firme, avencas são raras, encontradas eventualmente junto a fragmentos de troncos decompostos ou nas bordas de pequenos cursos de água. Nas matas do rio Jaú, vi uma pedra de três metros de altura, sobre a qual escorriam filetes de água, coberta de avencas de folhas miúdas. Eu nunca tinha visto tantas num lugar só.

Completam esse tapete de folhas mortas, que repousa sobre uma rede de raízes conectadas umas às outras para constituir o arcabouço de sustentação da floresta, os troncos que se quebram e o galhos que despencaram das arvores. São úmidos, revestidos de fungos que formam manchas cinzentas e esverdeadas, salpicadas em toda a sua extensão. Com eles dividem esse habitat buquês com estruturas semelhantes a pequenas folhas coladas ao tronco. São os líquens, quimeras estranhas resultantes da associação mutualística entre algas e fungos, nas quais a alga faz fotossíntese e o fungo contribui com água e minerais.

Entremeadas às manchas desses habitantes, há microflorestas verdes, grudadas aos troncos, sem raízes nem vasos para conduzir a seiva. São as briófitas, os vegetais mais antigos do planeta, cujos ascendentes provavelmente estão na base da evolução de todas as plantas terrestres. Dão a impressão de tapetes lisos, homogêneos, mas têm uma diversidade enorme. Um dos seus três grandes grupos, os musgos, reúne mais de 14 mil espécies já descritas, que ocupam 1 % da superfície terrestre, desde as florestas tropicais até as tundras canadenses. Em nosso laboratório temos estudado espécies colhidas na Antártida pelo botânico Mateus Paciência.

As briófitas têm grande importância ecológica, por armazenar carbono e umidade e por serem consideradas espécies pioneiras: ao se instalar num local, criam nichos ecológicos para insetos e plantas. Elas não se limitam a viver apenas nos substratos do solo, sobem pelos caules das árvores ao redor. Com uma lente de aumento que ganhei de seu Luiz Coelho, nosso saudoso mateiro, aprendi a observar as características dessas miniplantas que conseguem se fixar aos troncos mesmo sem ter raízes, formando microflorestas que imitam as verdadeiras: algumas são arbustos com folhas minúsculas, outras parecem samambaias ou arvorezinhas e palmeiras quase microscópicas. É possível passar horas a admirar essas micropaisagens de plantas ancestrais.

Nas trilhas aparecem flores miúdas e frutos que denunciam as espécies das árvores, dos cipós e dos arbustos de onde caíram. Como as temperaturas variam pouco no decorrer do ano, as chuvas é que comandam a floração, mais frequente nos meses secos. É um prazer pega-las nas mãos para admirar a delicadeza da anatomia, a sutileza das cores e imaginar que tipo de inseto é capaz de polinizá-las.

Frutos que vão do tamanho de uma pitanga ao de um abacate jazem no solo à espera do primeiro mamífero com fome que levará suas sementes no aparelho digestivo, para germiná-las à distância.

O olhar que sobe tem acesso a outra floresta, formada por troncos, arbustos, palmeiras, cipós, casas de formigas e de cupins, epífitas e hemiepífitas agarradas aos galhos que lhes oferecem sustentação.

As primeiras forquilhas nas ramificações dos troncos são os locais preferidos das bromélias, que formam touceiras das quais emergem flores vermelhas e amarelas de longa duração. A água armazenada entre as folhas compactas tem importância na multiplicação de mosquitos de interesse em saúde pública, outros insetos e até na sobrevivência de pequenos anfíbios, que se aproveitam das condições locais para se alimentar e reproduzir.

Ao lado das bromélias, vivem as epífitas verdadeiras, que passam todo seu ciclo de vida apoiadas nas árvores que as hospedam. Epífitas com folhas curtas ou longas, de todos os formatos, agarram-se às forquilhas. Algumas são rasteiras, parecem grama aderida aos galhos, outras têm folhas compridas e pedentes.

As orquídeas dão um show à parte com sua festa de flores amarelas, lilás, vermelhas cor de sangue, inteiramente brancas ou com pintas avermelhadas. O perfume pode ser sentido a metros de distância. Orquídeas de flores únicas, grandes, reinam soberanas junto a outras miúdas, que formam cachos para atrair abelhas, vespas, morcegos e besouros de hábitos diurnos e noturnos. Difícil eleger a mais linda, dá vontade de levar todas para casa e passar o resto da vida no meio delas.

As hemiepífitas, por outro lado, podem germinar nas árvores, levadas pelos pássaros, e lançar suas raízes até alcançar o solo ou seguir o caminho inverso: nascer no chão e ascender pelos caules. Nas duas possibilidades, em algum momento do ciclo de sua vida, perderão o contato com o solo para viver como epífitas verdadeiras.

O cipó-titca, de valor comercial, é uma dessas hemiepífitas, uma trepadeira que escala o tronco de uma árvore até atingir a copa, local em que suas raízes começam a crescer na direção do solo. Essas raízes aéreas são cortadas pelos ribeirinhos, os rolos colocados na canoa e levados para os comerciantes, que os transformarão em cestos, peneiras, móveis e objetos decorativos.

Germinar no topo das árvores também é a estratégia das figueiras-mata-paus, árvores com raízes que, ao alcançar o solo, irão se desenvolver e comprometer o crescimento daquela que lhe deu suporte, até sufoca-la e ocupar sua posição à luz do sol. Tenho uma foto de uma dessas árvores assassinas, com folhagem exuberante, ao lado de um esqueleto quase seco que um que um dia foi a árvore majestosa que ela sufocou.

A alguns metros do chão, formigueiros e cupinzeiros enormes abraçam os caules. A primeira vez que vi seu Luiz abrir uma brecha num deles com um golpe de terçado, achei que seus habitantes levariam dias para reparar o estrago. Imediatamente, saiu uma multidão de formigas alvoroçadas, caminhando em zigue-zague, esbarrando suas antenas umas nas outras, como um exército bem treinado. Quando voltamos, duas horas depois, o formigueiro estava íntegro, nem sinal de corte. A mesma capacidade de reparação coletiva da vivenda é compartilhada com os cupins.  

As palmeiras preenchem o espaço visual entre os troncos. Na mata fechada predominam as de baixa estatura. Algumas são quase rasteiras ou têm poucos metros de altura. Outras têm alturas intermediárias como é o caso das piaçabas, palmeiras de interessa comercial que não passam dos quinze metros. Quando há fartura de luz e espaço, bacabas e buritis podem chegar a atingir vinte ou trinta metros de altura. Tucumãs, açais, pupunhas e bacabas, entre outras, dão frutos consumidos em toda a bacia do rio Negro e em outras regiões da Amazônia.

Pupunha é minha preferida. A polpa tem um gosto que mistura coco com milho verde. São fáceis de descascar com a mão, a casca se desprega da polpa com facilidade. Combina tão bem com café preto que, numa manhã, cheguei a comer quinze. Nem almocei naquele dia. Quando soube que cada unidade tem entre noventa e cem calorias, tomei um susto.

Numa conversa que tive com o arqueólogo Eduardo Neves, da USP, ele me explicou que os indígenas do Alto Rio Negro desenvolveram diversas epécies de pupunha que dão frutos maiores, entre elas uma variedade sem caroço. Só de pensar fiquei com água na boca.

Se em terra firme olhamos para o céu, o azul é recortado pelo dossel da floresta em milhares de fragmentos. Há copas tão fechadas que impedem a passagem do sol. As árvores de troncos grossos do filme Fritzcarraldo, que povoam o imaginário popular, são raríssimas. O diâmetro do tronco da maioria delas não passa de algumas dezenas de centímetros. Plantas que vivem em competição pela luz não gostam de desperdiçar energia no crescimento horizontal; preferem investi-la no vertical. O sucesso dependerá menos da grossura do tronco do que na rigidez de suas fibras, que o protegerão das intempéries. Impossível quebrar com as mãos mesmo troncos jovens de quatro, cinco centímetros de diâmetro.

Mateus Paciencia descreveu assim a visão do teto da floresta:

São espirais, braços de um polvo, com folhas opostas, alternas, em zigue-zague ou dispostas ao acaso, nos ápices dos ramos mais altos ou distribuídas simétrica e parcimoniosamente por toda a planta, até o dossel. Ao lado das que perdem as folhas e deixam a luz entrar, outras não permitem que penetre um raio de sol sequer.

Das copas pendem inúmeras variedades variedades de cipós, plantas que desenvolveram a estratégia de se apoiar nas outras para chegar ao dossel ou de seguir o trajeto inverso: germinar nas copas e lançar suas raízes para baixo. Algumas espécies têm caules da grossura de uma cobra, em outras eles lenhosos, tão grossos quanto o caule da árvore que lhe dá suporte.

No alto, podemos identificar a folhagem exuberante de alguns cipós que são indistinguíveis das copas frondosas da vizinhança. Suas raízes aéreas podem ser tantas e descer tão paralelas que imitam cordas de um instrumento musical gigante.

Há árvores com galhos forrados de briófitas, fungos e línquens, que servem de suporte para samambaias, orquídeas, bromélias, cupinzeiros e formigueiros onde entram e saem formigas apressadas, transitando para cima e para baixo. Essas plantas protegem e se beneficiam da presença de seus habitantes.

Cada uma delas é um nicho ecológico. A floresta é composta de bilhões desses nichos dispersos em toda a extensão de suas infinitas partes.

Os indígenas e a biodiversidade

O homem chegou à Amazônia há pelo menos 12 mil anos. A ocupação humana dessa região é tão antiga quanto a de outros locais da América do Sul, ocorrida na transição do Pleistoceno para o Holoceno.

Dos primeiros grupos de caçadores-coletores ás migrações das populações sedentárias que desenvolveram as plantações de mandioca, as terras da bacia do rio Negro foram ocupadas por sucessivas populações que se deslocavam à procura de condições de subsistência mais favoráveis.

Numa conversa com o indigenista Marcos Wesley, que dirige o ISA em São Gabriel da Cachoeira, falávamos sobre a diversidade das plantas do rio Negro, quando ele expôs a fragilidade da visão científica a respeito da floresta:

- Você esquece que os indígenas vivem na região há milhares de anos. Impossível analisar as florestas do rio Negro sem considerar a intervenção de mãos no plantio e no espalhamento, ao redor das aldeias e das trilhas na mata, de espécies em que tinham interesse.

Em minha ignorância, jamais havia pensado nessa possibilidade. Para mim, a floresta era um organismo praticamente intocado pelo povos originais. Wesley acrescentou:

- Para entender a biodiversidade da floresta é preciso analisar as evidências arqueológicas que contam a história antiga dos povos indígenas e de como eles modificaram o meio, numa época em que os europeus ainda viviam em cavernas. Você precisa conversar com o Eduardo Neves.

Eduardo Góes Neves é professor no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Um dos principais pesquisadores dedicado à Amazônia, ele escreveu livros e publicou diversos artigos sobre o tema em revistas internacionais de primeira linha.

Eduardo atribui o mau conhecimento da cultura dos povos originais do período pré-colonial à falta de documentação e de estudos arqueológicos:

- Considerar que se tratava de uma cultura mais “primitiva”, por não ter relatos escritos, é desconhecer a história da humanidade. O Homo sapiens surgiu há cerca de 300 mil anos, enquanto a habilidade para escrever foi adquirida há apenas 4 mil ou 5 mil anos. Portanto o analfabetismo nos acompanhou 98,5% do tempo da existência da nossa espécie. A tradição oral dos indígenas brasileiros antecede em milênios a formação do que chamamos de povo português.

São muitas as evidências do papel dos povos originais na formação das florestas que habitaram por tanto tempo.

Em várias regiões do rio Negro existem manchas de terra escuras de consistência oleosa que contrastam com os solos arenosos predominantes nos rios da região. Chamadas de terras pretas, elas ocupam áreas que vão de um hectare até noventa hectares, com profundidades de um metro a três metros, que os arqueólogos tem estudado com muito ineresse. Diz Eduardo Neves:

- Terras pretas são sítios arqueológicos que acumulam restos de esqueletos de animais e de seres humanos, de objetos de uso doméstico, dejetos e fragmentos de cerâmicas de importância histórica. Essas terras devem ter se formado por compostagem, às custas da matéria orgânica desprezada por povos que viveram nesses locais. Constituem solos mais estáveis, que permitem sucessivas plantações de roças sem perda de fertilidade depois de três ou quatro anos, como ocorre com terras de solo arenoso que predominam na região.

Nas ruinas que conheci no Baixo Rio Negro, como as da vila de Velho Airão e do leprosário de Paricatuba, há árvores enormes no interior das casas desabadas. Sempre achei que se tratava de um fenômeno natural a floresta tomar de volta o espaço que lhe fora roubado. Os arqueólogos consideram que a atividade humana interferiu, como explica Eduardo:

- Esses locais, ricos em refugos orgânicos de seus habitantes, acumulados no decorrer de séculos por caçadores-coletores e, mais tarde, por habitantes de grandes aldeias e pelos migrantes nordestinos, continham sementes que germinaram na vizinhança e no interior das casas abandonadas.    

Por milhares de anos, a intervenção dos indígenas na composição das matas ao seu redor, por meio do fogo controlado, da plantação dos pomares, da domesticação de espécies úteis às suas necessidades e da eliminação das que eram nocivas ou sem utilidade prática, ao redor das casas e ao longo das trilhas, alterou a biodiversidade sem romper o equilíbrio ecológico.

No decorrer dessa longa convivência, as sociedades indígenas desenvolveram tecnologias não só para adaptar o ambiente à sobrevivência delas como para otimizar sistemas de produção de alimentos, os quais acabaram por se incorporar à paisagem atual.

Eduardo Neves resume:

-        A Floresta Amazônica deve ser entendida como uma agrofloresta, um patrimônio biocultural dos brasileiros.

Durante pelo menos 12 mil anos, os povos originais conviveram em harmonia com as florestas. Em apenas meio século – 1970 a 2020 –, o homem branco destruiu 20 % da floresta. Na seca de 2024, mais de 1500 focos de incêndio concomitantes foram registrados na região amazônica. Nós é que somos civilizados?

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·       Drauzio Varella, O sentido das águas: histórias do rio Negro, pp. 136-146, Companhia das Letras, 2023

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

O Manifesto Comunista

O Manifesto do Partido Comunista

Tradução livre de "Le manifeste du Parti communiste"

“Esta obra expõe com notável clareza e vigor a nova concepção do mundo, o materialismo consequente estendido à vida social, a dialética, a ciência mais vasta e profunda da evolução, a teoria da luta de classes e o papel revolucionário atribuído na história mundial ao proletariado, criador de uma nova sociedade, a sociedade comunista.” Lenin, 1847


Um espectro assombra a Europa: o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa se uniram em uma Santa Aliança para perseguir esse espectro: o papa e o czar, Metternich e Guizot [1] , os radicais da França e os policiais da Alemanha.

Que oposição não foi acusada de comunismo pelos seus adversários no poder? Que oposição, por sua vez, não atribuiu aos seus adversários de direita ou de esquerda o epíteto infamante de comunista?

Daí resulta uma dupla lição.

O comunismo já é reconhecido como uma potência por todas as potências da Europa.

É chegada a hora de os comunistas exporem ao mundo inteiro suas concepções, seus objetivos e suas tendências; de oporem ao conto do espectro comunista um manifesto do próprio Partido.

É com esse objetivo que comunistas de várias nacionalidades se reuniram em Londres e redigiram o seguinte Manifesto, publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês.

I. Burgueses e proletários [2]

A história de toda sociedade até os dias de hoje [3] tem sido apenas a história das lutas de classes.
Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, barões e servos, mestres de guilda e companheiros, em suma, opressores e oprimidos, em constante oposição, travaram uma guerra ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma guerra que sempre terminava ou por uma transformação revolucionária de toda a sociedade ou pela destruição das duas classes em conflito.

Nos primeiros períodos históricos, observamos em quase toda parte uma organização completa da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma antiga, encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores, vassalos, mestres de corporação, companheiros, servos e, além disso, em cada uma dessas classes, uma hierarquia particular.

A sociedade burguesa moderna, erguida sobre as ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Ela apenas substituiu as classes antigas, as condições de opressão e as formas de luta por outras novas.

No entanto, a característica distintiva da nossa época, a época da burguesia, é ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os burgueses das primeiras aglomerações urbanas; dessa população municipal surgiram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América e a circum-navegação da África ofereceram à burguesia emergente um novo campo de ação. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, a multiplicação dos meios de troca e, em geral, das mercadorias deram um impulso até então desconhecido ao comércio, à navegação e à indústria e, consequentemente, garantiram um rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário da sociedade feudal em dissolução.

O antigo modo de exploração feudal ou corporativo da indústria já não era suficiente para satisfazer as necessidades que cresciam incessantemente à medida que se abriam novos mercados. A manufatura tomou o seu lugar. A burguesia industrial média suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações deu lugar à divisão do trabalho dentro da própria oficina.

Mas os mercados continuavam a crescer: a demanda aumentava constantemente. A manufatura, por sua vez, tornou-se insuficiente. Então, o vapor e as máquinas revolucionaram a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura; a burguesia industrial média deu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento do comércio, da navegação e das vias de comunicação. Esse desenvolvimento, por sua vez, repercutiu na expansão da indústria; e, à medida que a indústria, o comércio, a navegação e as ferrovias se desenvolviam, a burguesia crescia, multiplicando seu capital e relegando para segundo plano as classes herdadas da Idade Média.

A burguesia, como vemos, é ela própria o produto de um longo desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e nos meios de comunicação.

A cada etapa da evolução pela qual a burguesia passou, correspondeu-lhe um progresso político. Classe oprimida pelo despotismo feudal, associação armada que se administrava a si mesma na comuna [5], aqui, república urbana independente; ali, terceiro estado tributável e sujeito a corvarias da monarquia, depois, durante o período manufatureiro, contrapeso da nobreza na monarquia feudal ou absoluta, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, finalmente se apoderou da soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno é apenas um comitê que administra os assuntos comuns de toda a classe burguesa.

A burguesia desempenhou um papel eminentemente revolucionário na história.

Em todos os lugares onde conquistou o poder, ela pisoteou as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal aos seus “superiores naturais”, ela os rompeu sem piedade, para não deixar subsistir outro laço entre o homem e o homem senão o frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os arrepios sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Transformou a dignidade pessoal num mero valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, tão caro conquistadas, pela única e impiedosa liberdade do comércio. Em suma, em vez da exploração mascarada por ilusões religiosas e políticas, ela colocou uma exploração aberta, descarada, direta, brutal.

A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades que até então eram consideradas veneráveis e vistas com santo respeito. O médico, o jurista, o padre, o poeta, o cientista, todos eles foram transformados em assalariados a seu serviço.

A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que cobria as relações familiares e as reduziu a meras relações monetárias.

A burguesia revelou como a manifestação brutal da força na Idade Média, tão admirada pela reação, encontrou seu complemento natural na mais crassa preguiça. Foi ela a primeira a mostrar do que a atividade humana é capaz. Ela criou maravilhas muito diferentes das pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos, das catedrais góticas; ela realizou expedições muito diferentes das invasões e das cruzadas [6]

A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, ou seja, as relações de produção, isto é, o conjunto das relações sociais. A manutenção sem mudanças do antigo modo de produção era, ao contrário, para todas as classes industriais anteriores, a condição primordial de sua existência. Essa contínua revolução da produção, essa constante agitação de todo o sistema social, essa agitação e insegurança perpétuas distinguem a era burguesa de todas as anteriores. Todas as relações sociais, congeladas e cobertas de ferrugem, com seu cortejo de concepções e ideias antigas e veneráveis, se dissolvem; as que as substituem envelhecem antes de poderem se ossificar. Tudo o que tinha solidez e permanência se transforma em fumaça, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a encarar suas condições de existência e suas relações recíprocas com olhos desiludidos.

Impulsionada pela necessidade de novos mercados, a burguesia invade o mundo inteiro. Ela precisa se estabelecer em todos os lugares, explorar em todos os lugares, estabelecer relações em todos os lugares.

Ao explorar o mercado mundial, a burguesia confere um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande desespero dos reacionários, ela retirou da indústria sua base nacional. As antigas indústrias nacionais foram destruídas e continuam a sê-lo todos os dias. São suplantadas por novas indústrias, cuja adoção se torna uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não utilizam matérias-primas indígenas, mas matérias-primas provenientes das regiões mais distantes, e cujos produtos são consumidos não só no próprio país, mas em todas as partes do globo. No lugar das antigas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades, que exigem para sua satisfação os produtos das regiões e climas mais distantes. No lugar do antigo isolamento das províncias e nações autossuficientes, desenvolvem-se relações universais, uma interdependência universal das nações. E o que é verdade para a produção material não o é menos para as produções do espírito. As obras intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis e da multiplicidade das literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.

Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e a melhoria infinita dos meios de comunicação, a burguesia leva até mesmo as nações mais bárbaras para o fluxo da civilização. O baixo custo de seus produtos é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais obstinadamente hostis aos estrangeiros. Sob pena de morte, ela obriga todas as nações a adotarem o modo burguês de produção; ela as obriga a introduzir em seu território a chamada civilização, ou seja, a se tornarem burguesas. Em suma, ela molda um mundo à sua imagem.

A burguesia submeteu o campo à cidade. Ela criou enormes cidades; aumentou prodigiosamente a população das cidades em relação à do campo e, com isso, arrancou grande parte da população da estupidez da vida rural. Assim como submeteu o campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países civilizados, ela subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia elimina cada vez mais a fragmentação dos meios de produção, da propriedade e da população. Ela aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade nas mãos de poucos. A consequência total dessas mudanças foi a centralização política. Províncias independentes, apenas federadas entre si, com interesses, leis, governos e tarifas alfandegárias diferentes, foram reunidas em uma única nação, com um único governo, uma única lei, um único interesse nacional de classe, atrás de uma única barreira alfandegária.

A burguesia, ao longo de seu domínio de classe de apenas um século, criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que todas as gerações anteriores juntas. A domesticação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as ferrovias, os telégrafos elétricos, o desmatamento de continentes inteiros, a regularização dos rios, populações inteiras surgidas do solo — que século anterior poderia suspeitar que tais forças produtivas dormiam no seio do trabalho social?

Eis o que vimos: os meios de produção e de troca, sobre os quais se construiu a burguesia, foram criados dentro da sociedade feudal. A um certo grau de desenvolvimento desses meios de produção e troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em suma, o regime feudal de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Elas impediam a produção em vez de promovê-la. Transformaram-se em correntes. Era preciso quebrá-las. E elas foram quebradas.

Em seu lugar surgiu a livre concorrência, com uma constituição social e política adequada, com a supremacia econômica e política da classe burguesa.

Hoje assistimos a um processo semelhante. As condições burguesas de produção e troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que criou meios de produção e troca tão poderosos, assemelham-se ao mágico que já não sabe dominar as forças infernais que evocou. Há décadas, a história da indústria e do comércio não é outra coisa senão a história da revolta das forças produtivas modernas contra as relações modernas de produção, contra o regime de propriedade que condiciona a existência da burguesia e seu domínio. Basta mencionar as crises comerciais que, com seu retorno periódico, ameaçam cada vez mais a existência da sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não apenas uma massa de produtos já criados, mas também grande parte das próprias forças produtivas já existentes. Uma epidemia que, em qualquer outra época, teria parecido um absurdo, se abate sobre a sociedade: a epidemia da superprodução. A sociedade se vê subitamente reduzida a um estado de barbárie momentânea; parece que uma fome, uma guerra de extermínio lhe cortaram todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E por quê? Porque a sociedade tem civilização demais, meios de subsistência demais, indústria demais, comércio demais. As forças produtivas de que dispõe já não favorecem o regime da propriedade burguesa; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para esse regime, que então lhes faz obstáculo; e sempre que as forças produtivas sociais triunfam sobre esse obstáculo, precipitam toda a sociedade burguesa na desordem e ameaçam a existência da propriedade burguesa. O sistema burguês tornou-se demasiado estreito para conter as riquezas criadas no seu seio. - Como é que a burguesia supera estas crises? Por um lado, destruindo violentamente uma massa de forças produtivas; por outro, conquistando novos mercados e explorando mais profundamente os antigos. A que isso leva? A preparar crises mais gerais e mais formidáveis e a diminuir os meios para preveni-las. As armas que a burguesia usou para derrubar o feudalismo hoje se voltam contra a própria burguesia.

Mas a burguesia não apenas forjou as armas que a matarão; ela também produziu os homens que manejarão essas armas, os operários modernos, os proletários.

À medida que a burguesia cresce, ou seja, o capital, também se desenvolve o proletariado, a classe dos operários modernos que só vivem na condição de encontrar trabalho e que só o encontram se o seu trabalho aumentar o capital. Esses operários, obrigados a se vender dia a dia, são uma mercadoria, um artigo de comércio como qualquer outro; estão, portanto, expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.

O desenvolvimento do maquinário e a divisão do trabalho, ao fazer com que o trabalho do operário perdesse todo o seu caráter de autonomia, fizeram com que ele perdesse todo o seu encanto. O produtor se torna um mero acessório da máquina, exigindo-se dele apenas a operação mais simples, mais monótona e mais fácil de aprender. Consequentemente, o custo do trabalhador se reduz, mais ou menos, ao custo do que ele precisa para se sustentar e perpetuar sua descendência. Ora, o preço do trabalho [7], como o de qualquer mercadoria, é igual ao seu custo de produção. Portanto, quanto mais repugnante se torna o trabalho, mais os salários diminuem. Além disso, a quantidade de trabalho aumenta com o desenvolvimento do maquinário e da divisão do trabalho, seja pelo aumento das horas de trabalho, seja pelo aumento do trabalho exigido em um determinado tempo, pela aceleração do movimento das máquinas, etc.

A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre artesão patriarcal na grande fábrica do capitalismo industrial. Massas de operários, amontoados na fábrica, são organizados militarmente. Simples soldados da indústria, eles são colocados sob a supervisão de uma hierarquia completa de suboficiais e oficiais. Eles não são apenas escravos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também, a cada dia, a cada hora, escravos da máquina, do capataz e, acima de tudo, do próprio fabricante burguês. Quanto mais esse despotismo proclama abertamente o lucro como seu único objetivo, mais ele se torna mesquinho, odioso, exasperante.

Quanto menos o trabalho exige habilidade e força, ou seja, quanto mais a indústria moderna progride, mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e das crianças. As distinções de idade e sexo não têm mais importância social para a classe operária. Não há mais do que instrumentos de trabalho, cujo custo varia de acordo com a idade e o sexo.

Depois que o trabalhador é explorado pelo fabricante e recebe seu salário, ele se torna presa fácil de outros membros da burguesia: do proprietário, do varejista, do penhorista, etc., etc.

Pequenos industriais, comerciantes e rentistas, artesãos e camponeses, toda a camada inferior das antigas classes médias, caem no proletariado; por um lado, porque seus fracos capitais não lhes permitem empregar os processos da grande indústria, sucumbem na concorrência com os grandes capitalistas; por outro lado, porque sua habilidade técnica é desvalorizada pelos novos métodos de produção. De modo que o proletariado se recruta em todas as classes da população..

O proletariado passa por diferentes fases de evolução. Sua luta contra a burguesia começa com sua própria existência.

A luta é travada primeiro por trabalhadores isolados, depois por trabalhadores da mesma fábrica e, finalmente, por trabalhadores do mesmo ramo industrial, na mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Eles não dirigem seus ataques apenas contra as relações burguesas de produção: eles os dirigem contra os próprios instrumentos de produção; destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e se esforçam para reconquistar a posição perdida do artesão da Idade Média.

Nesta fase, o proletariado forma uma massa espalhada por todo o país e fragmentada pela concorrência. Se os trabalhadores se apoiam mutuamente por meio de ações em massa, isso ainda não é resultado de sua própria união, mas da união da burguesia que, para atingir seus próprios objetivos políticos, precisa mobilizar todo o proletariado e ainda possui, provisoriamente, o poder para fazê-lo. Durante essa fase, os proletários não combatem seus próprios inimigos, mas os inimigos de seus inimigos, ou seja, os vestígios da monarquia absoluta, os proprietários de terras, os burgueses não industriais, os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico está, assim, concentrado nas mãos da burguesia; toda vitória conquistada nessas condições é uma vitória burguesa.

Ora, o desenvolvimento da indústria não só aumenta o número de proletários, como também os concentra em massas mais consideráveis; a força dos proletários aumenta e eles se tornam mais conscientes disso. Os interesses e as condições de vida do proletariado se igualam cada vez mais, à medida que as máquinas eliminam todas as diferenças no trabalho e reduzem os salários a um nível igualmente baixo em quase todos os lugares. Como resultado da crescente concorrência entre os burgueses e das crises comerciais que daí resultam, os salários tornam-se cada vez mais instáveis; o aperfeiçoamento constante e cada vez mais rápido das máquinas torna a condição do operário cada vez mais precária; os conflitos individuais entre o operário e o burguês assumem cada vez mais o caráter de conflitos entre duas classes. Os operários começam por formar coalizões contra os burgueses para defender seus salários. Chegam a constituir associações permanentes para estarem prontos para eventuais rebeliões. Aqui e ali, a luta explode em motins.

Às vezes, os trabalhadores triunfam; mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado de suas lutas é menos o sucesso imediato do que a crescente união dos trabalhadores. Essa união é facilitada pelo aumento dos meios de comunicação criados pela grande indústria, que permitem que os trabalhadores de diferentes localidades entrem em contato. Ora, basta esse contato para centralizar as numerosas lutas locais, que em toda parte revestem o mesmo caráter, em uma luta nacional, em uma luta de classes. Mas toda luta de classes é uma luta política, e a união que os burgueses da Idade Média levaram séculos para estabelecer com suas estradas vicinais, os proletários modernos realizam em poucos anos graças às ferrovias.

Essa organização do proletariado em classe, e portanto em partido político, é constantemente destruída pela concorrência entre os próprios trabalhadores. Mas ela sempre renasce, cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa. Ela aproveita as dissensões internas da burguesia para obrigá-la a reconhecer, na forma de lei, certos interesses da classe operária: por exemplo, a lei das dez horas na Inglaterra.

Em geral, as colisões que ocorrem na velha sociedade favorecem de várias maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em um estado de guerra perpétua; primeiro contra a aristocracia, depois contra as frações da própria burguesia cujos interesses entram em conflito com o progresso da indústria e, finalmente, sempre contra a burguesia de todos os países estrangeiros. Em todas essas lutas, ela se vê obrigada a recorrer ao proletariado, a reivindicar sua ajuda e, assim, a envolvê-lo no movimento político. De modo que a burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação, ou seja, armas contra ela mesma.

Além disso, como acabamos de ver, frações inteiras da classe dominante são, pelo progresso da indústria, precipitadas para o proletariado ou, pelo menos, ameaçadas em suas condições de existência. Elas também trazem ao proletariado uma série de elementos de educação.

Finalmente, no momento em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de decomposição da classe dominante, de toda a velha sociedade, assume um caráter tão violento e tão amargo que uma pequena fração da classe dominante se destaca dela e se une à classe revolucionária, à classe que traz consigo o futuro. Assim como, no passado, uma parte da nobreza passou para a burguesia, hoje em dia uma parte da burguesia passa para o proletariado, e, em particular, aquela parte dos ideólogos burgueses que se elevaram até a compreensão teórica do conjunto do movimento histórico.

De todas as classes que, atualmente, se opõem à burguesia, apenas o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes declinam e perecem com a grande indústria; o proletariado, ao contrário, é o seu produto mais autêntico.

As classes médias, pequenos fabricantes, varejistas, artesãos, camponeses, todos combatem a burguesia porque ela é uma ameaça à sua existência como classes médias. Portanto, elas não são revolucionárias, mas conservadoras; muito mais, são reacionárias: procuram fazer girar a roda da história ao contrário. Se são revolucionárias, é em consideração à sua iminente passagem para o proletariado: defendem então seus interesses futuros e não seus interesses atuais; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado.

Quanto ao lumpenproletariado [8], esse produto passivo da decadência das camadas mais baixas da velha sociedade, ele pode, aqui e ali, ser arrastado pelo movimento de uma revolução proletária; no entanto, suas condições de vida o levarão mais a se vender à reação.

As condições de existência da velha sociedade já estão destruídas nas condições de existência do proletariado. O proletário não tem propriedade; suas relações com sua esposa e filhos não têm mais nada em comum com as da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a escravidão do operário ao capital, tanto na Inglaterra como na França, na América como na Alemanha, despojam o proletário de todo o caráter nacional. As leis, a moral, a religião são, aos seus olhos, preconceitos burgueses por trás dos quais se escondem interesses burgueses.

Todas as classes que, no passado, se apoderaram do poder tentaram consolidar sua situação adquirida, submetendo a sociedade às condições que lhes garantiam seus próprios rendimentos. Os proletários só podem tornar-se senhores das forças produtivas sociais abolindo seu próprio modo de apropriação atual e, consequentemente, todo o modo de apropriação vigente até os dias de hoje. Os proletários não têm nada a salvaguardar que lhes pertença, eles têm que destruir toda garantia privada, toda segurança privada anterior.

Todos os movimentos históricos foram, até agora, realizados por minorias ou em benefício das minorias. O movimento proletário é o movimento espontâneo da imensa maioria em benefício da imensa maioria. O proletariado, camada inferior da sociedade atual, não pode se levantar, se reerguer, sem derrubar toda a superestrutura das camadas que constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, embora não seja, em essência, uma luta nacional, assume, no entanto, essa forma em primeiro lugar. Escusado será dizer que o proletariado de cada país deve acabar, antes de mais, com a sua própria burguesia.

Ao esboçar as fases do desenvolvimento do proletariado, traçamos a história da guerra civil, mais ou menos latente, que atinge a sociedade atual até o momento em que essa guerra explode em uma revolução aberta e o proletariado estabelece seu domínio através da derrubada violenta da burguesia.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, baseavam-se no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas, para oprimir uma classe, é preciso garantir-lhe condições de existência que lhe permitam, pelo menos, viver em servidão. O servo, em plena servidão, conseguiu tornar-se membro de uma comuna, assim como o pequeno burguês ascendeu à classe burguesa, sob o jugo do absolutismo feudal. O trabalhador moderno, ao contrário, longe de ascender com o progresso da indústria, desce cada vez mais, abaixo mesmo das condições de vida de sua própria classe. O trabalhador torna-se pobre, e a pobreza cresce ainda mais rapidamente do que a população e a riqueza. É, portanto, evidente que a burguesia é incapaz de continuar a desempenhar seu papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei reguladora, as condições de existência de sua classe. Ela não pode mais reinar, porque é incapaz de garantir a existência de seu escravo no âmbito de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo decair a ponto de ter que alimentá-lo, em vez de ser alimentada por ele. A sociedade não pode mais viver sob seu domínio, o que equivale a dizer que a existência da burguesia não é mais compatível com a da sociedade.

A existência e o domínio da classe burguesa têm como condição essencial a acumulação de riqueza nas mãos de particulares, a formação e o aumento do Capital; a condição de existência do capital é o salário. O salário baseia-se exclusivamente na concorrência entre os trabalhadores. O progresso da indústria, do qual a burguesia é agente sem vontade própria e sem resistência, substitui o isolamento dos trabalhadores resultante da sua concorrência pela sua união revolucionária através da associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria mina, sob os pés da burguesia, o próprio terreno sobre o qual ela estabeleceu o seu sistema de produção e apropriação. Acima de tudo, a burguesia produz seus próprios coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

Notas

[1] Pio IX, eleito papa em 1846, era considerado um “liberal”, mas não era menos hostil ao socialismo do que o czar Nicolau I, que, desde antes da revolução de 1848, desempenhava o papel de gendarme na Europa. Justamente nessa época, houve uma aproximação entre Metternich, chanceler do Império Austríaco e líder reconhecido de toda a reação europeia, e Guizot, eminente historiador e ministro francês ideólogo da grande burguesia financeira e industrial e inimigo intransigente do proletariado. A pedido do governo prussiano, Guizot expulsou Marx de Paris. A polícia alemã perseguia os comunistas não apenas na Alemanha, mas também na França, na Bélgica e até mesmo na Suíça, esforçando-se por todos os meios para impedir sua propaganda. (N.R.)

[2] Entende-se por burguesia a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social e que empregam mão de obra assalariada. Entende-se por proletariado a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, privados de seus próprios meios de produção, são obrigados a vender sua força de trabalho para subsistir. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888).

[3] Ou, mais precisamente, a história escrita. Em 1847, a história da organização social que precedeu toda a história escrita, a pré-história, era praticamente desconhecida. Desde que Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum da terra. Maurer demonstrou que ela é a base social da qual surgiram historicamente todas as tribos alemãs e descobriu-se, pouco a pouco, que a comuna rural, com posse coletiva da terra, foi a forma primitiva da sociedade desde a Índia até a Irlanda. Finalmente, a estrutura dessa sociedade comunista primitiva foi revelada em sua essência pela descoberta de Morgan, que revelou a verdadeira natureza da gens e seu lugar na tribo. Com a dissolução dessas comunidades primitivas, começa a divisão da sociedade em classes distintas e, finalmente, opostas. Tentei analisar esse processo de dissolução na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 2ª edição, Stuttgart 1886. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888).

Haxthausen, August (1792-1866), barão prussiano. O czar Nicolau I autorizou-o a visitar a Rússia para estudar o regime agrícola e a vida dos camponeses (1843-1844). Haxthausen escreveu uma obra dedicada à descrição dos vestígios do regime comunitário nas relações fundiárias da Rússia. (N.R.)

Maurer, Georg Ludwig (1790-1872), historiador alemão; estudou o regime da Germânia e da Alemanha na Idade Média e fez uma importante contribuição para o estudo da evolução da Idade Média. (N.R.)

Morgan, Lewis Henry (1818-1881), etnógrafo, arqueólogo e historiador americano. Graças aos numerosos dados etnográficos acumulados durante seu estudo do regime social e da vida dos índios da América, Morgan fundou sua doutrina sobre a evolução da gens como a forma principal da sociedade primitiva. A ele também pertence a tentativa de dividir em períodos a história da sociedade primitiva sem classes. Marx e Engels apreciavam muito a obra de Morgan. Marx fez um resumo de sua obra A Sociedade Antiga (1877). Em sua obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels cita os dados factuais fornecidos por Morgan. (N.R.) 

[4] Mestre de guilda, ou seja, membro de pleno direito de uma corporação, mestre do ofício e não jurado. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888.)

[5] Designava-se pelo nome de comunas as cidades que surgiram na França antes mesmo de terem conquistado aos seus senhores e mestres feudais a autonomia local e os direitos políticos do “terceiro estado”. De um modo geral, a Inglaterra aparece aqui como o país típico do desenvolvimento econômico da burguesia; a França, como o país típico do seu desenvolvimento político. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888.)

Era assim que os habitantes das cidades, na Itália e na França, chamavam sua comunidade urbana, uma vez que haviam comprado ou arrancado de seus senhores feudais seus primeiros direitos a uma administração autônoma. (Nota de Engels para a edição alemã de 1890.)

[6] Expedições militares e colonizadoras empreendidas no Oriente pelos grandes feudais e cavaleiros da Europa Ocidental nos séculos XI-XIII sob o pretexto religioso de libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. (N.R.).

[7] Em escritos posteriores, Marx e Engels substituem as expressões “valor do trabalho” e “preço do trabalho” pelos termos mais exatos “valor da força de trabalho” e “preço da força de trabalho” introduzidos por Marx. (N.R.)

[8] O lumpenproletariado (termo emprestado do alemão, onde a palavra “Lumpen” significa “trapos”), elementos marginalizados, bandidos, mendigos, ladrões, etc. O lumpenproletariado é incapaz de levar a cabo uma luta política organizada; a sua instabilidade moral e a sua propensão para a aventura permitem à burguesia utilizar os seus representantes como fura-greves, membros de bandos de pogrom, etc. (N.R.)

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