1. Animação – curtas metragens
2. Chaplin and Keaton Violin and Piano Duet
3. Jacqueline du Pré
4. Woody Allen & Max Born
5. Mariana Salomão Carrara vence prêmio São Paulo de Literatura
6. Morre Jimmy Cliff aos 81 anos
7. Morre Udo Kier aos 81
8. Vídeo da tornozeleira é epitáfio surreal da era Bolsonaro
9. COP30 escancara a mais nova versão da mentira
10. Pablo Neruda entrevistado por Gabriel García Márquez
11. 'Vou para Hollywood, se Deus quiser' Tânia Maria, 78, cotada ao Oscar por 'O Agente Secreto'
12. Dona Onete mudou a música do Pará
13. Macron pede a Lula que compense perdas das empresas por cortes de energia renovável
14. Mundurukus protestam em frente à COP30 contra plano de hidrovias do governo Lula
15. O editor 'maluco' que peitou a ditadura militar
16. Condenação da BHP em Londres dá esperança para reverter absolvição de réus da tragédia de Mariana, dizem atingidos
17. ‘Não acabamos com a ditadura militar a partir de casa’, diz Silvio Meira | Roberto D’Ávila
18. Por uma COP da verdade, que promova a transformação da realidade
19. Planejaram meu velório': remédio contra HIV está no SUS por causa dela
20. Surfando na excelente onda de filmes brasileiros
21. 'Manas’ é um filme necessário sobre abuso, silêncio e resistência feminina
22. Livrarias de rua engrandecem São Paulo
23. O estado da cinefilia / Os melhores westerns
24. 'Agente Secreto' capta a atmosfera de um Brasil sem rumo
25. O degelo do paraíso
26. Marisa Monte transmite leveza a plateia receosa em 1º show com orquestra em SP
27. Venho falando pretuguês, afirma escritora Ana Maria Gonçalves em posse na ABL
28. Indígenas caminham para o abismo e COP não vai ajudar, afirma Daniel Munduruku
39. 'O Doce está morto': tragédia de Mariana enterrou renda, lazer e cultura centenária ligados ao rio
30. Usina em Aimorés tenta renovar licença desde 2021 e pode perder concessão
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1. Animação – curtas metragens
Rubato - por ESMA
Lost Sheep by Lukas Rooney
Father and Daughter - by M. Dudok de Wit
O Pescador (2018)
"Boles" - Short Film by Špela Čadež
AFTER THE RAIN | Omeleto
Curta metragens
imdb aqui
"Two" by Satyajit Ray
imdb aqui
KAVI – Filme de curta-metragem indicado ao Oscar
imdb aqui
Meu amigo Nietzsche - Um Curta Metragem de Fáuston Da Silva - Filme Completo (Drama Comédia) - imdb aqui
Animação - longa metragem
imdb aqui
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2. Chaplin and Keaton Violin and Piano Duet - vídeo
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Jacqueline du Pré - Dvořák Cello Concerto – London Symphony Orchestra cond. Daniel Barenboim
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4. Woody Allen & Max Born
Woody Allen expõe o que Tremembé não teve coragem de falar - vídeo
Max Born, o físico quântico que alertou o mundo sobre 'a causa de todos os males' - vídeo
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5. Mariana Salomão Carrara vence prêmio São Paulo de Literatura pela segunda vez
Paulistana foi coroada por 'A Árvore Mais Sozinha do Mundo'
Marcílio França Castro ganha em melhor romance de estreia
O Prêmio São Paulo de Literatura divulgou seus vencedores nesta segunda (30), em uma cerimônia na biblioteca do parque Villa-Lobos, na capital paulista.
Pela segunda vez, a escritora Mariana Salomão Carrara ganhou na categoria romance, dessa vez com o livro "A Árvore Mais Sozinha do Mundo", publicada pela Todavia. A paulistana havia sido premiada há apenas dois anos por "Não Fossem as Sílabas do Sábado", da mesma editora.
Na sua obra mais recente, Carrara tece uma narrativa sensível que acompanha uma epidemia de suicídios no Sul do país, contando a vida de uma família de agricultores pelo ponto de vista dos objetos ao seu redor.
A autora é defensora pública de carreira e já publicou outros romances populares como "É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém" e "Se Deus me Chamar Não Vou", estes pela editora Nós.
Mariana Salomão Carrara, vencedora do prêmio São Paulo de Literatura fotos
Já na categoria de romance de estreia, o vencedor foi o livro "O Último dos Copistas", de Marcílio França Castro, publicado pela Companhia das Letras.
O mineiro já lançou outros três livros de contos antes da vitória como romancista, tendo ganhado o prêmio da Biblioteca Nacional por "Breve Cartografia de Lugares sem Nenhum Interesse", editado pela 7Letras em 2011.
Em seu primeiro romance, Castro retraça a história de uma figura esquecida do século 16, o copista Ângelo Vergécio, e seus efeitos na amizade de um revisor e uma ilustradora numa pequena editora contemporânea.
Cada um dos vencedores receberá um prêmio de R$ 200 mil, o maior montante individual concedido a autores de ficção no Brasil, e irá à Feira do Livro de Guadalajara do próximo ano.
Criado em 2008, o Prêmio São Paulo de Literatura é concedido pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do governo paulista. Houve 323 inscrições para as duas categorias do prêmio neste ano.
Veja abaixo a relação dos dez finalistas do prêmio São Paulo de Literatura 2025.
Melhor Romance
Vencedor:
"A Árvore Mais Sozinha do Mundo", de Mariana Salomão Carrara, editora Todavia
"Os Grandes Carnívoros", de Adriana Lisboa, editora Alfaguara
"No Muro da Nossa Casa", de Ana Kiffer, editora Bazar do Tempo
"Guerra I - Ofensiva Paraguaia e Reação Aliada - Novembro de 1864 a Março de 1866", de Beatriz Bracher, editora 34
"Vento Vazio", de Marcela Dantés, editora Companhia das Letras
"Escalavra", de Marcelino Freire , editora Record
"Casa de Família", de Paula Fábrio, editora Companhia das Letras
"Rio Sangue", de Ronaldo Correia de Brito, editora Alfaguara
"Ressuscitar Mamutes", de Silvana Tavano, editora Autêntica Contemporânea
"Krakatoa", de Veronica Stigger, editora Todavia
Melhor Romance de Estreia
Vencedor:
"O Último dos Copistas", de Marcílio França Castro, editora Companhia das Letras
"Neca", de Amara Moira, editora Companhia das Letras
"Lia", de Caetano W. Galindo, editora Companhia das Letras
"Avenida Beberibe", de Claudia Cavalcanti, editora Fósforo
"O Embranquecimento", de Evandro Cruz Silva, editora Patuá
"Fora da Rota", de Evelyn Blaut, editora Todavia
"O que Resta a Partir Daqui", de Flávia Braz, editora Aboio
"A União das Coreias", de Luiz Gustavo Medeiros, editora Reformatório
"A Infância de Joana", de Mariana Ianelli, editora Maralto
"As Fronteiras de Oline", de Rafael Zoehler, editora Patuá
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6. Morre Jimmy Cliff, um dos maiores nomes da história do reggae, aos 81 anos
Lucas Brêda, fsp, 24.11.2025
O cantor e compositor jamaicano Jimmy Cliff, pioneiro do reggae e um dos responsáveis por popularizar a música de seu país ao redor do mundo, morreu aos 81 anos, segundo comunicado publicado nesta segunda-feira (24) em sua conta oficial no Instagram.
A nota, assinada por sua mulher, Latifa, informa que o artista "cruzou para o outro lado após uma convulsão seguida de pneumonia". No texto, ela agradece a familiares, amigos, artistas, colegas de trabalho e fãs que acompanharam a trajetória do músico.
"Seu apoio foi sua força ao longo de toda a carreira. Ele apreciava profundamente cada fã", escreveu. Latifa também mencionou o trabalho da equipe médica que cuidou do cantor durante o período crítico.
O comunicado pede respeito à privacidade da família e afirma que mais informações serão divulgadas posteriormente. Jimmy Cliff ficou conhecido por clássicos como "Many Rivers to Cross" e "The Harder They Come", e por ter sido fundamental no processo de globalização do reggae.
Nascido em Saint James, em 1944, Cliff viveu de perto os movimentos que fizeram a música jamaicana se transformar e ser reconhecida ao redor do mundo, a partir dos anos 1950. Ele começou a carreira no início da década de 1960, depois de se mudar para Kingston, a capital do país, aos 14 anos.
Veja fotos de Jimmy Cliff, um dos maiores nomes do reggae
Algumas de suas músicas já faziam algum sucesso na capital, mas Cliff só ficou mais conhecido quando conseguiu chamar a atenção do produtor Leslie Kong. A família do empresário de ascendência chinesa tinha uma loja de discos chamada Beverley's. Foi o cantor quem o convenceu a gravar artistas locais, fazendo de Kong um dos produtores mais importantes na história do reggae —e foi Cliff quem apresentou Bob Marley a ele, em 1962.
São dessa época músicas como "Miss Jamaica" e "Hurricane Hatty", que captavam tanto o ska, que crescia desde a década de 1950, quanto o rocksteady, estilo que se estabeleceu naquela década de 1960.
À Folha, há quatro anos, Cliff disse que essa revolução na música acompanhou o processo de independência da Jamaica —até 1962 a ilha era colônia britânica. "A música na época era o ska, que expressava o espírito das pessoas, que estavam animadas. Tipo ‘olha, somos independentes’. Depois daquilo, a música ficou mais lenta, o rocksteady. Era assim ‘que independência é essa?'. Não somos independentes! Nada melhorou."
Bob Marley (1945-1981) webstories
Foi quando veio o reggae –Cliff, inclusive, esteve na primeira audição de Bob Marley em estúdio. "Começamos a buscar algo que nos tornasse independentes. Olhamos para a África. E aí veio o reggae, uma música entre o rocksteady e o ska. E junto veio o rastafarianismo, que é da cultura indígena jamaicana."
Em 1964, Cliff foi o primeiro jamaicano a chamar a atenção da Island Records, emblemática gravadora britânica que se tornou a vitrine do reggae em Londres —e o resto do mundo. Ele se mudou para a capital inglesa aos 20 anos e lançou o primeiro álbum.
"Hard Road to Travel", o primeiro álbum de Cliff, de 1967, foi feito para um público britânico consumidor de rock, já que reggae, ska e rocksteady eram desconhcidos por lá, e trouxe uma influência forte também do soul e do funk da Motown dos Estados Unidos. O jovem jamaicano foi a Londres cheio de ambições. "Ia ser maior que Beatles e Stones, mas não aconteceu", ele disse a este repórter.
Ele mudou de rumo quando veio ao Brasil pela primeira vez —e estabeleceu uma relação profunda e duradoura com o país. Chegou em 1968 para cantar no Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro. Ia ficar duas semanas, mas acabou ficando por quatro meses e ainda lançou o disco "Jimmy Cliff in Brazil", de 1968 —com três versões de canções brasileiras, incluindo "Andança", conhecida na voz de Beth Carvalho, que virou "The Lonely Walker" com o jamaicano.
JIMMY CLIFF "The Lonely Walker (Andança)" - vídeo
As experiências no país motivaram duas de suas músicas mais conhecidas —"Wonderful World, Beautiful People", a partir da memória do Maracanãzinho explodindo de alegria ao vê-lo cantar mesmo mal o conhecendo, e "Many Rivers to Cross". Esta segunda tem relação com o que Cliff tinha ouvido sobre o racismo no Brasil.
Segundo o cantor disse em diversas entrevistas, ele ficou sabendo que não havia discriminação contra os negros, que conviveriam em paz com os brancos. Ao chegar aqui, Cliff percebeu que apesar da beleza superficial, havia um segredo por trás dessa suposta harmonia.
"É um país lindo, tudo é bonito, mas existe um segredo por debaixo disso. Os pretos não lutavam contra as pessoas que os oprimiam. Eu entrava no banco e não via uma pessoa negra. Era opressor de tantas maneiras que eu não conseguia entender como eles não se revoltavam", ele afirmou a este jornal.
Foi um momento de virada em sua carreira. A música "Wonderful World, Beautiful People" chegou ao sexto lugar das paradas britânicas em 1969 e se tornou um dos primeiros sucessos daquela então nova música jamaicana fora da Jamaica. Também alavancou o disco de mesmo nome, e o levou até o cinema.
Cliff imortalizou a subcultura de gangues de Kingston na pele de Ivanhoe "Rhyging" Martin, um dos mais famosos rudeboys do país, no filme "The Harder They Come" — ou "Balada Sangrenta"—, de 1972. O cantor viveu na pele o auge das disputas entre gangues, muitas delas armadas, na capital jamaicana, e já disse que quase permaneceu nessa vida.
Os rudeboys eram jovens das camadas mais pobres, que ouviam ska e rocksteady, tinham uma postura combativa de nunca abaixar a cabeça e resolviam seus problemas através da violência —incluindo as rivalidades entre os donos de sound systems e produtores de discos da época.
Além de captar esse estilo de vida, o filme do diretor Perry Henzell ficou famoso pela trilha sonora, tida como uma das obras fundamentais para tornar a música jamaicana conhecida fora de seu país de origem. Cliff cantou boa parte das faixas, e se destacou especialmente pela otimista "You Can Get it if You Really Want", além da faixa-título.
Dali em diante, ele seguiu como uma espécie de embaixador daquela cena musical vibrante da Jamaica —na década de 1970, já com Bob Marley e o reggae famosos mundo afora. Em 1975, quando seu filme saiu nos Estados Unidos, ele cantou na temporada de estreia do programa "Saturday Night Live", e depois viajou à África, sob influência do escritor jamaicano radicado na Nigéria, Lindsay Barrett.
Veja imagens de Bob Marley - imagens
Cliff se converteu ao islã, e essas experiências acabaram dando o tom do disco "Give Thankx", de 1978. É desse período a música "Bongo Man", que marca o aprofundamento de uma busca espiritual em sua obra.
Criado num lar cristão, ele disse recentemente ao jornal jamaicano Jamaica Star que não encontrou a verdade na religião. "Eu segui e estudei o islã por um tempo, mas ainda não encontrei a verdade. Não satisfez minha alma. Então, fui para a Índia, cheguei a morar em um Ashram [um local para retiro espiritual] e estudei o hinduísmo. Por conta própria, pesquisei sobre o budismo. Eu os chamava de escolas [de conversão]".
A partir dos anos 1980, ele ficou realmente popular no Brasil. Fez uma turnê memorável com Gilberto Gil, lotando arenas e estádios no país, conforme o tropicalista absorvia e divulgava o reggae.
O show deles no estádio Fonte Nova parou Salvador. "A expectativa era de 15 mil pessoas, e deu mais que o dobro. Quebraram tudo. Foi notícia nacionalmente durante uma semana", disse à Folha Geraldo Badá, fundador do afoxé Badauê, que trabalhou naquele evento, segundo ele, numa estrutura precária. À época, Nelson Motta disse, em especial feito pela TV Globo, que o show reuniu 60 mil pessoas.
Segundo o Diário de Pernambuco, o show de Cliff e Gil no Recife foi alvo de inquérito policial, por apologia de crime, quando cantaram uma versão de "Legalize It", de Peter Tosh. Era o auge do reggae, e boa parte do público de 20 mil pessoas aproveitou o momento para acender um cigarro de maconha.
O jamaicano apareceu no Chacrinha e virou trilha de várias novelas —entre elas "Love I Need", em "Água Viva", de 1980, "Reggae Night" em "Voltei pra Você", de 1983, "Hot Shot" em "Ti Ti Ti", em 1985, "Now and Forever" em "Brega & Chique", de 1987, e "Rebel In Me" em "Rainha da Sucata", em 1990. Também tocou na segunda edição do Rock in Rio, em 1991.
Jimmy Cliff - Rock in Rio - vídeo
O músico baiano Lazzo Matumbi se tornou percussionista de Cliff nessa época. "Ele aqui não era tratado como estrela, como uma superestrela", ele afirmou a este repórter há quatro anos. "Em Paris e Nova York, era tratado como estrela."
O baiano recordou à Folha uma história de como Cliff valorizava a música de sua terra. Era 1991, no Festival de Jazz de Montreux, e o palco abrigava uma jam session de lendas como Ray Charles, Chaka Khan, George Benson, Al Jarreau e Paul Jackson Jr., entre outros.
"Eles saíram do palco, deixou aquele vazio. No alto-falante disseram, ‘senhoras e senhores, não vão embora ainda porque temos a presença do Mr. Jimmy Cliff’. E eu, como brasileiro, vendo toda nossa história negra ser massacrada e oprimida, falei a um amigo, ‘e agora, como sobe no palco?’. Aí o baixista da banda me disse, ‘ei, Lazzo, relaxe meu irmão, a gente toca música original da Jamaica’. Aquilo me deu um tesão! A gente não tem esse tesão aqui no Brasil."
Maior sucesso composto por Lazzo, em parceria com Gileno Felix, "Me Abraça e Me Beija" foi gravada por Margareth Menezes em parceria com Jimmy Cliff. Em 1984, o cantor gravou o clipe de "We All Are One" no Rio. Em 1991, registrou o álbum "Breakout", lançado no ano seguinte, em Salvador. Hoje fora dos serviços de streaming, o disco teve participação do Ara Ketu na faixa "Samba Reggae", que trata do rimo que está na base da axé music.
Ele também gravou com o Olodum antes de Michael Jackson e Paul Simon. O jamaicano participou de "Reggae Odoyá", que o Olodum lançou em 1991 no álbum "Da Atlântida à Bahia... o Mar é o Caminho". Depois, em 1999, cantou a versão do bloco afro de "No Woman No Cry", sucesso de Bob Marley, no disco "A Música do Olodum - 20 Anos".
Também morou na Bahia, onde criou sua filha brasileira, Nabiyah Be. Ela nasceu em 1992, fruto da relação do músico com a psicóloga e artista plástica Sônia Gomes, que o cantor conheceu em uma cerimônia de ayahuasca na praia, em Salvador. Hoje ela é atriz de sucesso, com carreira em Hollywood e em plataformas de streaming —como os papéis no filme "Pantera Negra" e na série "Daisy Jones and the Six". Nabiyah Be também lançou neste ano seu primeiro disco, "O Que o Sol Quer".
Jimmy Cliff - Samba Reggae - vídeo
Em paralelo, Cliff empilhou hits ao redor do mundo. O disco "The Power and the Glory", de 1983, emplacou "Reggae Night" e "Roots Woman". No ano seguinte, com o LP "Cliff Hanger", do sucesso "Now and Forever", ganhou o primeiro de seus dois prêmios Grammy de melhor álbum de reggae —o segundo foi com "Rebirth", de 2012, que tem produção de Tim Armstrong, do Rancid.
Ao longo da carreira, Cliff se distanciou do reggae, dub, ragga e dancehall que eram feitos na Jamaica. Desde cedo, ele morou fora do país, e partiu da música criada lá para fundi-la ao rock e ao pop que eram mais reconhecidos ao redor do planeta.
Ele arriscou à Folha algumas explicações de como uma ilha tão pequena pôde fazer uma música tão influente. "Foi um país em que os escravizados se rebelaram contra os opressores. É o espírito de ‘você sabe quem eu sou?'. 'Não vou abaixar a cabeça para você’. Sempre tivemos isso. A Inglaterra teve que nos dar um pedaço de terra, porque não podiam nos controlar. A música sai desse espírito. Mesmo pequenos, influenciamos o mundo."
Bruce Springsteen regravou a música "Trapped", de Cliff, e a tornou ainda mais conhecida depois que ela fez parte do álbum "We Are the World", de 1985. Em 1993, ele voltou a fazer sucesso com uma versão de "I Can See Clearly Now", de Johnny Nash, que integrou a trilha do filme "Jamaica Abaixo de Zero".
Ao longo da carreira, Cliff trabalhou com diversas estrelas da música internacional, incluindo os Rolling Stones, Sting, Joe Strummer, Elvis Costello e, mais recentemente, Wyclef Jean, rapper e produtor que integrou o Fugees. Eles colaboraram no último disco do jamaicano, "Refugees", de 2022.
O cantor tinha planos de escrever dois livros –uma autobiografia e outro volume sobre a história do reggae, dando luz a personagens menos conhecidos, como o influente engenheiro de som King Tubby.
Cliff é um dos poucos músicos, ao lado de Bob Marley e outros, a receber a Ordem de Mérito da Jamaica. Ele foi agraciado em 2003, pelo então primeiro-ministro do país, Andrew Holness, que chamou o cantor de "um verdadeiro gigante cultural cuja música levou o coração da nossa nação para o mundo… Jimmy Cliff contou nossa história com honestidade e alma. Sua música elevou as pessoas em tempos difíceis, inspirou gerações e ajudou a moldar o respeito global que a cultura jamaicana desfruta hoje."
Em 2010, ele também passou a fazer parte do Hall da Fama do Rock and Roll, nos Estados Unidos.
Cliff deixa a esposa, Latifa Chambers, e os filhos Aken, Lilty e Nabiah Be.
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7. Morre Udo Kier, ator alemão que estrelou 'O Agente Secreto' e 'Bacurau', aos 81
Leonardo Sanchez, fsp, 23.11.2025
Morreu na manhã deste domingo (23), aos 81 anos, o ator alemão Udor Kier, atualmente em cartaz com "O Agente Secreto" e que havia estrelado "Bacurau", ambos filmes do pernambucano Kleber Mendonça Filho —o último também tem direção de Juliano Dornelles. A informação foi confirmada por seu companheiro, o artista Delbert McBride, à revista americana Variety.
Detalhes sobre a causa da morte não foram divulgados. Kier, porém, seguia como figura ativa no cinema mundial e com frequência fazia aparições públicas. No ano passado, apareceu nas redes sociais de Mendonça Filho, numa série de fotos feitas pelo cineasta em Recife, enquanto preparava "O Agente Secreto".
"Udo Kier, para sempre na memória. Não existirá nunca jamais outra pessoa e artista como Udo Kier. Que senso de humor, que bom gosto, que alegria de viver. Que sorte a nossa. Um enorme abraço para seu companheiro", escreveu Mendonça Filho em suas redes sociais, após o anúncio da morte.
Kier ganhou status cult ao trabalhar com alguns dos diretores mais importantes do cinema mundial, transitando por diversos gêneros e idiomas. No longa nacional premiado em Cannes, alternou entre o alemão e o português, mesmo que carregado de sotaque, ao viver um judeu que se refugia no Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Ao longo da carreira de quase seis décadas, Kier colecionou mais de 250 personagens de cinema e televisão. Também virou figura pop ao manter laços com artistas musicais como Madonna, Gwen Stefani, os Goo Goo Dolls e os membros do Supertramp, estrelando os clipes "Deeper and Deeper", "Let Me Blow Ya Mind", "Naked" e "You Win, I Lose", nesta ordem.
Já com Andy Warhol, uma das figuras mais importantes da cena cultural do século passado, estrelou "Sangue para Drácula", de 1974, e "Carne para Frankenstein", de 1973. Com produção do artista americano por meio de sua Factory, os longas de Paul Morrissey escandalizaram, à época, pela alta voltagem sexual, além da violência gráfica. No segundo caso, o uso do ainda escasso efeito 3D potencializou o aspecto macabro da obra.
O erotismo, aliás, não era um problema para Kier, que mesmo em décadas mais conservadoras pôs seu corpo à disposição de fotógrafos e cineastas experimentais. Mais uma vez ao lado de Madonna, estrelou fotos provocativas de seu livro "Sex", uma reunião de cliques pornográficos de Steven Meisel e Fabien Baron.
"Ela assistiu a 'Garotos de Programa', de Gus van Sant, e praticamente me alugou para as fotos. Ela é um dos maiores fenômenos da cultura de nossos tempos, e mal conversamos durante as fotos. Mesmo assim, ainda participei do videoclipe de 'Deeper and Deeper'", disse ele a este jornal em 2001, ao relembrar o projeto.
Kier também foi transgressor em sua vida pessoal. Viveu sua homossexualidade de maneira pública desde cedo, falando sobre o tema apesar do tabu que o cercava. Assim, se aproximou de diretores também gays, como Van Sant e Rainer Werner Fassbinder, com quem viveu um romance na juventude e com quem fez "Lola", "Lili Marleen" e "A Terceira Geração".
O alemão trabalhou ainda com outros dos maiores cineastas de seu país, Werner Herzog e Wim Wenders, em "Meu Filho, Olha o Que Fizeste!", no caso do primeiro, e "O Fim da Violência" e "Um Truque de Luz", no segundo. Já na filmografia do italiano Dario Argento, aparece em "Suspíria".
Foi com o polêmico diretor dinamarquês Lars von Trier, porém, que Kier manteve uma de suas parcerias mais férteis. Ao seu lado, encarnou personagens de "Epidemia", "Medéia", "Europa", "Ondas do Destino", "Dançando no Escuro", "Dogville", "Manderlay", "Melancolia", "Ninfomaníaca" e da série "O Reino".
Ele também integrou o elenco de "Dimension", projeto de longa duração de Von Trier que começou a ser gravado em 1991 e deveria estrear em 2024, mas acabou sendo interrompido e lançado de forma não finalizada em 2010, em DVD.
Nem por isso Kier deixou o cinema mais comercial de lado. Afeito aos filmes de gênero, estrelou "Armageddon", de Michael Bay, "Halloween - O Início", de Rob Zombie, e "Blade: O Caçador de Vampiros", de Stephen Norrington, um entre seus vários filmes de vampiro, numa herança do trabalho em "Sangue para Drácula".
Em seus planos estava ainda protagonizar o novo jogo do japonês Hideo Kojima, o terror "OD", em parceria com Jordan Peele, em mais uma prova de sua versatilidade pop, além de meia dúzia de filmes em diferentes estágios de desenvolvimento.
Um dos trabalhos mais premiados de Kier foi o recente "Brilho para a Eternidade", filme de Todd Stephens lançado há quatro anos, em que viveu um cabeleireiro gay idoso que peregrina por uma cidadezinha para fazer o último corte de cabelo de uma antiga cliente que morreu.
Graças a essa proximidade com o cinema queer, que por vezes o levou a longas de nicho de qualidade duvidosa, recebeu um Teddy, prêmio voltado ao cinema queer, especial no Festival de Berlim, há uma década.
Na mesma entrevista à Folha de 2001, em meio à homenagem que receberia na nona edição do Festival MixBrasil, voltado à cultura LGBTQIA+, Kier pediu que lhe arranjassem um diretor brasileiro com quem trabalhar — a espera seria longa e o desejo só se concretizaria com "Bacurau"— e sintetizou os tipos que viveu ao longo da vida: "Eu gosto de decadência, adoro tudo o que é decadente".
Udo Kier imdb [276 créditos + 7 próximos]
Filmografia
La stagione dei sensi (1969), Proklisis (1970), Hexen bis aufs Blut gequält (1970), Erotomaneis (1971), Anilikes amartoles (1972), The Salzburg Connection (1972), Flesh for Frankenstein (1973) / Andy Warhol's Frankenstein (1973), Blood for Dracula / Andy Warhol's Dracula (1974)´,Der Letzte Schrei (1975), Story of O (1975), Exposé (1976), Spermula (1976), Suspiria (1977), Hungarian Rhapsody (1979), Nárcisz és Psziché (1980), Docteur Jekyll et les femmes (1981), Pankow '95 (1983), Der Unbesiegbare (1985), Verführung: Die grausame Frau (1985), Egomania - Insel ohne Hoffnung (1986), Epidemic (1987), Medea (1988), 100 Jahre Adolf Hitler - Die letzte Stunde im Führerbunker (1989), My Own Private Idaho (1991), Europa (1991), Terror 2000 - Intensivstation Deutschland (1992), For Love Or Money (1993), Ace Ventura: Pet Detective (1994), Rotwang muß weg! (1994), The Kingdom (1994) (minissérie), A Trick of Light (1995), Ausgestorben (1995), Johnny Mnemonic (1995), Nur über meine Leiche (1995), United Trash (1996), Barb Wire (1996), Breaking the Waves (1996), The Adventures of Pinocchio (1996), Betty (1997), Prince Valiant (1997), The Kingdom II (1997) (minissérie), Armageddon (1998), Blade (1998), Modern Vampires (1998), Killer Deal (1998), End of Days (1999), Final Run (1999), History Is Made at Night (1999), Besat (1999), The Debtors (1999), Unter den Palmen (1999), The New Adventures of Pinocchio (1999), Critical Mass (2000), Citizens of Perpetual Indulgence (2000), Shadow of the Vampire (2000), Dancer in the Dark (2000), Red Letters (2000), Just One Night (2000), Doomsdayer (2000), Double Deception (2001), Die Gottesanbeterin (2001), Invincible (2001), Megiddo: The Omega Code 2 (2001), All the Queen's Men (2001), Revelation (2001), Auf Herz und Nieren (2002), Broken Cookies (2002) (também diretor), FeardotCom (2002), Mrs Meitlemeihr (2002), Pigs Will Fly (2002), Montewood Hollyverità (2003), Love Object (2003), Dogville (2003), Gate to Heaven (2003), Paranoia 1.0 (2004), Sawtooth (2004), Jargo (2004), Modigliani (2004), Evil Eyes (2004), Dracula 3000 (2004), Surviving Christmas (2004, Children of Wax (2005), One More Round (2005), Headspace (2005), Wit's End (2005), Manderlay (2005), John Carpenter's Cigarette Burns (2005), BloodRayne (2006), Pray for Morning (2006), Holly (2006, Crusade in Jeans (2006), Fall Down Dead (2007), Grindhouse (2007, Halloween (2007), The Mother of Tears (2007), Pars: Operation Cherry (2007), Tell (2007), Far Cry (2008), 1½ Knights -- In Search of the Ravishing Princess Herzelinde (2008), Lulu and Jimi (2009), Night of the Templar (2009), House of Boys (2009), Inglourious Basterds (2009), Soul Kitchen (2009), Metropia (2009) (voz), My Son, My Son, What Have Ye, Done? (2010), Chuck (2010), Die Blutgräfin (2011), Iron Sky (2011, Melancholia (2011), Bacurau (filme) (2019), O Agente Secreto (2025)
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8. Vídeo da tornozeleira é epitáfio surreal da era Bolsonaro
Decisão de Moraes soou extrema ao se amparar na vigília convocada por Flávio, mas imagem da PF mostra fraude grave
Ex-presidente adianta sua estadia no sistema prisional, dando boa notícia para herdeiros que querem enfrentar Lula em 2026
Igor Gielow, 22.11.2025
Vídeo mostra avarias na tornozeleira eletrônica que era usada pelo ex-presidente Bolsonaro
Em 1939, Winston Churchill definiu a União Soviética famosamente como "uma charada envolta em mistério dentro de um enigma". A prisão preventiva de Jair Bolsonaro (PL) neste sábado (22) parece se encaixar na definição.
As dúvidas se multiplicam à medida que as informações do caso vão sendo divulgadas. Pela manhã, a justificativa da decisão do ministro do Supremo Alexandre de Moraes era toda centrada na convocação de uma "vigília de orações" pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) em favor de seu pai.
Era citada a suspeita de violação da tornozeleira eletrônica que o ex-presidente enverga desde julho, quando a campanha contra o Brasil promovida nos Estados Unidos por outro de seus filhos, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), sugeria um risco aumentado de fuga antes mesmo de ser condenado pela trama golpista.
Ao longo da tarde, talvez em reação às dúvidas acerca da dosimetria da medida de Moraes, a Polícia Federal passou a vazar detalhes. A culminação é um vídeo com aspectos surreais, um epitáfio das bizarrices da era Bolsonaro.
Se antes parecia que Moraes tinha se inspirado na unidade que prendia criminosos antes do delito, baseada em videntes, descrita no filme "Minority Report - A Nova Lei" (Steven Spielberg, 2002), o registro mostra que havia motivos suficientes para a decretação da medida.
Isso dito, há muitas dúvidas a serem respondidas. Primeiro, por que Moraes não enfatizou a questão da violação e preferiu dedicar sua prosa aos aspectos deletérios à democracia da reunião de evangélicos dados a golpismos?
Parece evidente em termos práticos que ele quis evitar o trauma da fuga da deputada bolsonarista Carla Zambelli e do condenado Alexandre Ramagem. Mas o foco na questão da vigília como tergiversação garantiu fôlego argumentativo à defesa de Bolsonaro na manhã do sábado, com alegações até de perseguição religiosa.
Segundo, e mais importante, é a natureza do que ocorreu na casa de Bolsonaro. Ele disse à agente da PF que o abordou que tinha começado a queima do aparelho de monitoramento na tarde de sexta (21). A imagem mostra claramente o dano à volta da caixinha.
O ex-presidente achou o quê? Que isso não seria detectado pelos sensores da PF? Quem entregou o ferro de solda a ele, já que não exatamente um eletrodoméstico de uso comum? Mais importante: o que guiou sua decisão?
Aí entramos no denso cipoal descrito pelo homem que lideraria o Reino Unido numa difícil aliança com os soviéticos na Segunda Guerra Mundial contra Adolf Hitler.
Aliados de Bolsonaro fizeram circular rumores de que ele estaria em surto psicótico, algo que soa mais desespero do que qualquer outra coisa.
Com vigilância da PF em sua residência e a tornozeleira em ação, a ideia de que ele quis inutilizar o equipamento e fugir em meio à bagunça de seus fiéis não encontra lastro na lógica. Se era para se livrar do instrumento, teria de agir na hora em que fosse tentar fugir para a embaixada de algum país simpático à sua causa.
Fazê-lo horas antes denota uma falta de sofisticação compatível com o nível do bolsonarismo em geral, mas ainda assim parece incompreensível a esta altura.
Enquanto o foco estava nas vigílias, havia até um ensaio de estratégia. Moraes afinal havia mordido a isca deixada por Flávio Bolsonaro, garantindo ao senador uma linha de oxigênio final antes do oblívio programado de seu pai.
O clã se complicou ainda mais. Seja lá o que tentou fazer neste sábado, parece improvável qualquer resultado além de adiantar sua estadia sob a custódia do Estado de forma ostensiva, dando uma boa notícia para os herdeiros presumidos ávidos para iniciar a disputa com Lula (PT) em 2026.
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9. COP30 escancara a mais nova versão da mentira
Indígenas são usados como símbolos, pois suas vozes são ignoradas em decisões cruciais
Menos de 1% do financiamento climático global é destinado diretamente às comunidades indígenas
Txai Suruí, fsp, 21.11.2025
A COP30, pela primeira vez na amazônia, foi marcada por profundo contraste: de um lado, discursos oficiais celebrando "maior participação indígena da história" e anúncios de políticas governamentais; de outro, a indignação e o ceticismo de líderes indígenas, que denunciam a falta de uma voz real e de respeito a seus territórios. A perspectiva indígena sobre a conferência revela um abismo entre a reconhecimento formal de seu papel e a efetiva implementação de seus direitos.
A imagem do povo munduruku bloqueando a entrada da Zona Azul resume o sentimento de exclusão. A crítica era clara: projetos de grande impacto, como o Plano Nacional de Hidrovias, que afeta os rios Tapajós, Madeira e Tocantins, avançam sobre seus territórios sem consulta prévia, ferindo o seu direito.
Essa ação não foi isolada. A percepção geral é que suas imagens são usadas apenas simbolicamente, mas suas vozes são ignoradas em decisões cruciais. Embora o governo brasileiro tenha se esforçado para viabilizar uma participação recorde, líderes indígenas argumentam que quantidade não se traduz em poder de decisão.
Juliana Kerexu Guarani criticou a abordagem que reduz povos indígenas a elementos culturais: "A participação dos povos indígenas em uma COP não é apenas mostrar nossas pinturas, nossos cocares."
Líderes como Ruth Alipaz, da Bolívia, não têm expectativas: "Em 30 anos não houve capacidade de fazer mudanças substanciais... Esta COP30 é mais uma versão da mentira".
Enquanto na COP o governo anunciava a demarcação de algumas terras indígenas, comunidades relataram que processos de demarcação iniciados, como o do povo guarani kaiowá, estão paralisados. Essa contradição ilustra a desconexão entre a publicidade em eventos globais e a burocracia e entraves políticos enfrentados no dia a dia.
Marcha Global dos Povos Indígenas abre a segunda semana da COP30 imagens
A própria transição energética global, frequentemente sugerida como solução, é vista com cautela. Líderes alertam que a demanda por minerais para energias "limpas" pode repetir antigos padrões de exploração, criando novas "zonas de sacrifício" em terras indígenas.
Muito além de críticas, os povos indígenas apresentam propostas concretas, baseadas em conhecimentos ancestrais e em pilares essenciais.
Financiamento direto: hoje, menos de 1% do financiamento climático global é destinado às comunidades indígenas. Proteção territorial: demarcação de terras não é só justiça histórica, é a mais eficaz estratégia de mitigação disponível. Reconhecimento do conhecimento tradicional: propomos modelos alternativos de relacionamento com a natureza, como o "kawsak sacha" (selva viva) do povo kichwa de sarayaku, que vê a natureza como sujeito consciente de direitos, oferecendo uma perspectiva diferente sobre sustentabilidade.
Se a COP30 não será lembrada pelos anúncios feitos nos pavilhões, será pela clareza e pela força com que seus povos denunciaram as estruturas de poder que os mantêm à margem das decisões que mais afetam suas vidas e territórios. O sucesso futuro das conferências climáticas não será medido pelo número de indígenas presentes, mas pela sua capacidade de "reflorestar as mentes" e de transformar suas demandas por terra, voz, voto e financiamento em ações concretas e irreversíveis.
Sem isso, o risco é que as COPs continuem sendo, nas palavras daquela liderança, "mais uma versão da mentira".
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10. Pablo Neruda entrevistado por Gabriel García Márquez
Por Revista Prosa Verso e Arte, 23 de setembro de 2023
Dois dias depois de ter recebido, em Estocolmo, o Prêmio Nobel de Literatura, o poeta chileno Pablo Neruda se encontrou com seu colega e amigo colombiano Gabriel García Márquez para um bate-papo. Essa conversa que transcorreu em ritmo de entrevista foi gravada pela emissora Televisión Macional de México. Eternizada, vocês podem assistir agora o encontro entre essas duas geniais figuras.
Quando realizou a entrevista, García Márquez estava já há 16 anos afastado do jornalismo, dedicado inteiramente à literatura. Ele iniciou como jornalista em 1948, no jornal diário El Universal, de Cartagena e, em 1954, já no âmbito nacional, no El Espectador. Entre 1959 e 1961 ajudou o jornalista argentino Ricardo Masetti que, a pedido de Che Guevara, estava organizando a Agência Prensa Latina.
Conversaram sobre a realidade do ponto de vista de cada um no universo em que viviam: poesia e literatura. “O poeta tende a se distanciar da realidade viva, da realidade atual” disse Neruda e arrematou em seguida, “invejo a condição do novelista (romancista) que, de uma maneira ou outra, tem o acesso direto ao relato a ser contado coisas que foi abandonada na poesia”.
García Márquez, por sua vez, fez uma reflexão sobre a forma em que o lírico aparece em seu trabalho: “tenho, verdadeiramente, a tendência a converter o relato, a novela, em poesia… quase estou conseguindo e o que aspiro com meu trabalho é encontrar melhores soluções poéticas que narrativas”.
Desde o início da conversa, Neruda insiste na necessidade de retornar à poesia épica, na forma como a faziam os clássicos, como Homero e Dante, a poesia que contava uma história, e que, penso eu, foi perdida por essa nova geração de escritores, assim como a poesia didática. Eu me propus fazer com que ensinassem coisas com minha poesia”
Gabo enfatiza sobre a necessidade de coexistirem o romancista com o poeta, porém, de maneira pacífica. Propõe que “os poetas sejam a cada dias mais narradores e os romancistas cada vez mais poetas”, enquanto Neruda reitera que se sente incapaz de relatar em prosa as coisas e que tem momentos em que desejaria ter perto de si alguém para quem contar milhares de histórias que fluem por sua cabeça.
Uma conversa de 15 minutos que vale a pena ver e guardar como um grande legado da literatura dos povos de nossa América.
(por revista Diálogos do Sul)
Entrevista - vídeo
Gabriel García Márquez entrevista Pablo Neruda (espanhol) Fonte: Fundación Gabo
“…e para não tombar, para afirmar-me sobre a terra, continuar lutando, deixa em meu coração o vinho errante e o pão implacável da tua doçura.”
– Pablo Neruda, em “Canto general”. vol. 1, 1955.
“A escrita tornou-se então fluida, e tanto que às vezes me sentia escrevendo pelo puro prazer de narrar, que é talvez o estado humano que mais se parece à levitação.”
– Gabriel García Márquez, no prólogo “Doze contos peregrinos”.
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11. 'Vou para Hollywood, se Deus quiser', diz Tânia Maria, 78, cotada ao Oscar por 'O Agente Secreto'
Atriz conquistou público brasileiro e internacional por atuação ao lado de Wagner Moura no novo filme de Kleber Mendonça Filho
Interpretação naturalista e desbocada de artesã do Rio Grande do Norte tem feito plateias caírem na gargalhada
Rodrigo Salem, fsp, 16.11.2025
[RESUMO] Repórter foi até o Seridó nordestino, região semiárida no interior do Rio Grande do Norte, para conhecer a trajetória de Tânia Maria, artesã de 78 anos cujo nome desponta entre os cotados ao Oscar de 2026 de melhor atriz coadjuvante por sua atuação em "O Agente Secreto", novo filme de Kleber Mendonça Filho.
Os amantes da cartografia dizem que o mapa do estado do Rio Grande do Norte se assemelha à figura de um elefante. Natal, sua capital litorânea, ficaria nas proximidades das nádegas do animal, enquanto a tromba ilustraria o sertão na divisa com o Ceará. Já nas patas do elefante repousa o Seridó, região conhecida não apenas pelos cenários semiáridos, mas também por suas iguarias gastronômicas, como os queijos de coalho e a carne de sol.
Parelhas ficaria, com certo esforço criativo, no calcanhar do paquiderme. Incrustada no terreno baixo da Depressão Sertaneja sob a sombra do Planalto da Borborema, a cidade, que representa uma das últimas paradas antes do deserto da caatinga profunda, fica distante quatro horas de Natal e já serviu de cenário para a série "Cangaço Novo", da Amazon Prime Video.
Mas não espere clichês do sertão: a área é coberta por oiticicas e cabreiras que duelam com xiquexiques para impor um verniz verde-escuro ao cinza bronzeado da terra dura.
A viagem do litoral ao Seridó é repleta de atrações. Há o delicioso pastel de Tangará, salgadinho de massa fina e recheio farto, em que se recomenda o tradicional sabor de carne de sol com nata; em Santa Cruz, de longe é possível observar a estátua de Santa Rita de Cássia, uma imponente construção com 56 metros de altura, considerada a maior do mundo dedicada a uma santa católica; e, nas proximidades de Parelhas, há açudes majestosos que alimentam boa parte da região durante os períodos de seca, como Boqueirão e Gargalheiras — este último, cenário de "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Se o Seridó potiguar cedeu o visual pós-apocalíptico para "Bacurau", o longa de 2019 devolveu ao cinema algo ainda mais impressionante: Sebastiana Maria de Medeiros, ou simplesmente Tânia Maria, costureira de um pequeno povoado da região que hoje, aos 78 anos, chama a atenção de Hollywood atuando ao lado de Wagner Moura em "O Agente Secreto", novo filme solo de Kleber Mendonça Filho, em cartaz nos cinemas.
Tânia Maria virou uma atração tão grande que seu busto pintado passou a estampar um muro com figuras notáveis de Santo Antônio da Cobra — ou simplesmente Cobra — a 20 km de Parelhas, onde mora com a filha, Shyrley Azevedo, e a neta, Jácylla.
Seu nome rivaliza em fama, hoje em dia, com um parque temático local que abriga piscina, tobogãs e 18 esculturas de dinossauros, reflexo da importância da área e dos seus sítios arqueológicos, com pinturas rupestres e fósseis.
Encontramos dona Tânia, como todos ao seu redor a chamam, perto de um desses sítios, na entrada da imponente barragem do Boqueirão, cheia até a borda, motivo de felicidade para a população de Parelhas.
Pouco antes da água, uma estrada de terra exibe o convite para a pousada Vale dos Voadores, empreendimento de um parente com jardins verdes e cabanas aconchegantes no sopé de uma colina rochosa. Estamos a 20 minutos da casa de Tânia. Um local bem diferente do povoado natal da atriz. "Aqui é melhor porque tem pista. Na Cobra, são 18 km de terra", explica ela, nos guiando na direção de uma mesa de café da manhã com uma farta variedade de bolos.
Conheça Tânia Maria, estrela de 'O Agente Secreto', de Kleber Mendonça Filho - imagens
A torta de pé de moleque é cortesia da própria Tânia Maria. "Quando ela soube que vocês vinham, saiu correndo para comprar rapadura", diz Shyrley. "A senhora gosta de cozinhar?", pergunto. Tânia Maria responde com a sinceridade cômica e absolutamente natural que está conquistando não apenas o Brasil, mas também o público internacional: "Não, odeio!".
Em seguida, pega uma das garrafas térmicas com café e explica que já vem adoçada. "É o que bebo. Não tenho diabetes, não tenho nada. Só ansiedade. Aí fico cansada. Bora sentar", ordena, com simpatia.
Quando estreou em "Bacurau", Tânia Maria nunca tinha atuado diante das câmeras. Duas palavras foram suficientes para mudar isso.
"Renata Roberta [produtora de figuração do filme] foi lá em casa atrás de figurante. Eu estava costurando e, quando cheguei na sala, falei: ‘Boa noite’. Ela olhou para mim e disse: ‘É da senhora que estamos precisando’. No outro dia, estava filmando", lembra. "Entrei em ‘Bacurau’ por causa da minha fala."
A descobridora confirma a gênese da estrela. "Precisei esperar a chuva forte cessar e, a convite da filha e da neta de dona Tânia, entrei na casa dela para um café. A curiosidade dela sobre o funcionamento do filme me chamou a atenção e fiquei magnetizada por sua voz rouca e presença marcante", explica Roberta, que contratou a atriz amadora imediatamente, fugindo dos protocolos da produção, porém seguindo sua metodologia de pesquisa de elenco.
"É sobre a criação de um corpo-coral de atores que, embora não profissionais, carregam em si a vida dos lugares em seus gestos e suas expressões. Ela é baseada no relacionamento com as pessoas dos locais onde filmamos e seus desejos de estar diante de uma câmera", diz.
E esse desejo de Tânia Maria, que ela nem sabia que existia, tomou conta do seu corpo franzino e da face expressiva, adornada por imensos óculos graciosos e marcas do tempo, reforçadas pelo clima semiárido e por mais de 60 anos de consumo exagerado de cigarros.
"Queria fazer aquilo todos os dias. Cinema é bom demais", exalta a atriz, que ia para as filmagens de "Bacurau" em um jipe da produção, por 34 km de terra e asfalto, para ganhar a diária de R$ 50. Ficou marcada pela cena em que grita, de improviso e com sua voz inconfundível: "Que roupa é essa, menino?".
E de roupa, ela entende. Tânia Maria costura desde os 15 anos, no entanto começou a vida profissional, em 1973, como orientadora de saúde, depois de fazer um curso na cidade de Assú, a 200 km da Cobra.
Um ano depois, envolveu-se com um homem recém-separado e ficou grávida de Shyrley, mas nunca quis levar a relação adiante. "Foi apenas um caso. Eu tinha 27 anos e queria um filho, não me importava quem seria o pai", afirma. "Depois que engravidei, não quis mais saber dele."
Essa mentalidade progressista e independente, porém, não combinava com a Parelhas de meados da década de 1970. Ao descobrir que a funcionária da prefeitura estava grávida, mas sem um casamento tradicional, parte da população começou um abaixo-assinado exigindo sua demissão do posto de saúde da Cobra. "Naquele tempo, ser mãe solteira era um tabu", confirma.
Depois que uma amiga a avisou do que estava acontecendo pelas suas costas, ela caminhou 18 km, durante a madrugada de uma sexta-feira, para pedir o desligamento diretamente ao prefeito, que insistiu para que ficasse. Não adiantou. "Não queria ser expulsa e passar vergonha", explica. "Quando foram me expulsar, viram que eu não trabalhava mais lá."
Com o espírito atribulado pela falta de emprego, Tânia Maria pegou a filha e foi para João Pessoa (Paraíba) trabalhar como costureira particular de famílias com dinheiro suficiente para sustentá-la durante os meses da tarefa —normalmente, vestimentas personalizadas para casamentos chiques.
"Não foi difícil criar uma filha sozinha. Não tinha dinheiro para comprar leite, então ela mamou até os quatro anos. Em João Pessoa, toda casa onde costurava tinha crianças, então sempre lhe davam alimentação", lembra, sem o menor traço de vitimização.
A naturalidade da potiguar diante das câmeras pode ter sido descoberta tardiamente pelo cinema, mas sua veia dramática a acompanha desde a juventude. Nas folgas da confecção dos vestidos de noiva e das calças sociais, aproveitava o Carnaval em Tambaú, principal praia da capital paraibana. Em um deles, passou três dias fingindo ser deficiente auditiva com duas amigas para não pagar a conta das bebidas e das comidas, bancada por um homem surdo.
Quando estava trabalhando na casa de uma médica costurando batas brancas, sentiu uma dor forte e achou que estivesse com problema na coluna. "Como não tinha INSS, fiquei sem saber o que fazer para me operar", relembra. Decidiu deixar Shyrley com a avó da menina, na Cobra, e partiu para São Paulo ("com a cara e a coragem"), onde arranjou emprego em uma fábrica de embalagens.
"Me lasquei todinha me abaixando e levantando umas 15 vezes, mas passei no teste. O rapaz só me disse que eu precisava passar 30 dias sem ficar doente."
Quando o período de experiência passou, Tânia Maria entrou no banheiro da fábrica, chutou o balde do papel higiênico, deitou-se no chão e deixou a veia artística, movida pelo desespero, tomar conta.
"Como estava chovendo, disse que tinha caído e meti a coluna no vaso sanitário. A segurança me colocou nos braços e me levou para o hospital", conta ela, sem esconder o sorriso maroto. "Mas não era coluna, era um cisto no útero. Me operaram no mesmo dia. Fiquei três meses me recuperando e, quando fiquei boa, pedi demissão e vim embora para casa."
Até o início dos anos 1990, passava a semana costurando em João Pessoa; nas sextas-feiras, pegava carona nas carrocerias de caminhões de cimento ou de telha que faziam o percurso de mais de cinco horas até Parelhas. Depois, passou a se dedicar inteiramente, em casa, aos conjuntos de banheiro que ama criar.
Costura desde o momento em que se levanta da cama ("odeio acordar cedo, me levanto umas 11 horas") até ficar cansada, no comando de uma das duas máquinas que abriga na sala.
Por dia, dona Tânia produz cinco conjuntos de R$ 50, disputados por lojinhas e supermercados da região. "As pessoas procuram pelo produto, não pode faltar", diz a artesã, sem nenhuma modéstia, e garantindo que a fama no cinema não afetará seu negócio principal. "Não vou aumentar os preços. Aumento as máquinas, mas não os preços. Sou a mesma pessoa, não mudei nada. Mas, se viesse um pouquinho mais de dinheiro, seria bom."
Depois da participação em "Bacurau", Tânia Maria nem teve tempo para aproveitar a fama repentina. Em 2020, durante a pandemia, ela se isolou por três meses com a família na pousada onde conversamos e começou a ter ataques cada vez mais fortes de ansiedade.
Não ajudava o fato de fumar 40 cigarros por dia ("no mínimo"), algo que a levou ao hospital depois de uma noite de respiração ofegante e insônia.
Como não havia médico particular atendendo na cidade, os parentes pediram para ela usar seus talentos e "fingir que estava muito mal", de modo a ser examinada mais rápido. A atuação foi tão convincente que até a família começou a considerar sua internação. "Falei: ‘Você que me pediu para fingir. Não tô mal assim, não!’", diverte-se a atriz.
Não demorou muito para ela retornar à atuação profissional. Primeiro, em um papel no docudrama "Seu Cavalcanti", dirigido por Leonardo Lacca, com quem trabalhou em "Bacurau" e uma espécie de "mentor" da atriz. O papel a fez rever seu passado e as decisões de vida que afetaram sua filha —Shyrley só conheceu o pai aos 15 anos e foi reconhecida duas décadas depois. "A mulher que fez essas coisas já morreu", afirma.
Em seguida, veio "O Agente Secreto", novo filme de Kleber Mendonça Filho, com Wagner Moura no papel principal. Tânia Maria interpreta Sebastiana, a síndica do prédio que abriga "refugiados", tanto da ditadura quanto da sociedade da época, inclusive o personagem do astro do cinema brasileiro.
Nos três meses de filmagens, ela fez 15 viagens de nove horas entre a Cobra e Recife. Chegou um dia antes de todo mundo para participar da oficina de elenco com Lacca.
Membros da equipe de produção evitaram revelar que ela dividiria cenas com Moura para não deixá-la nervosa. Mudaram de ideia com medo do susto do encontro —afinal, ela completa 79 anos em janeiro— e avisaram: "Dona Tânia, a senhora vai atuar com Wagner Moura".
"Quem é esse?", perguntou, para espanto geral. "A última novela que vi foi ‘Pai Herói’ [1979], com Tony Ramos", justifica a artesã que virou atriz. "Agora, adoro ele. Que homem bom e generoso."
Quando finalmente chegou à capital pernambucana, em meados de 2024, o ator baiano encontrou sua colega de set e disse: "Dona Tânia, a senhora não me conhece, mas eu já lhe conhecia".
"Dona Tânia foi a atriz mais espetacular com quem trabalhei recentemente", exalta Wagner Moura, que, entre outras, atuou com Kirsten Dunst e Elisabeth Moss nos últimos anos. "Ela é de uma verdade e carisma enormes. É tudo que qualquer ator quer ser. Fora que é uma pessoa linda. Fiquei muito apaixonado e impressionado com ela."
A naturalidade também vem da personagem, escrita para ela. "Me identifico com tudo da Sebastiana, até quando reclamo do buraco do gato. Aquilo é minha vida real, muitas palavras são minhas. Elas estavam no roteiro, mas eu adaptava. Kleber ria e mandava falar, não reclamava." Ela tinha uma tática especial para amaciar o diretor: abraçá-lo e dar um "xêro". "Eu falava: ‘Adoro filmar com você’. Ele ficava sem perna, é tímido demais."
Mesmo sem grande experiência como atriz, Tânia Maria diz que decora textos com facilidade. "A gente precisa escrever no papel para decorar rápido. Sei que é difícil encontrar uma pessoa de 78 anos que sabe decorar texto e é ativa, meu único problema é que ando meio desequilibrada", afirma.
Na cena do "vamos mudar esse clima, vou botar uma música", que já ficou famosa no trailer de "O Agente Secreto", ela teve dificuldades. "Decorei fácil, mas travei na hora de falar o nome do personagem de Wagner. Tive de repetir umas dez vezes", diz.
Dona Sebastiana nasceu cult. Com poucos dias em cartaz, o filme já gerou memes e pôsteres de spin-offs de fãs, um deles sobre a juventude rebelde de Sebastiana na Itália, onde ela foi "anarquista e comunista" e fez três coisas que não pode contar para ninguém.
Nas cenas dela, nos cinemas brasileiros ou internacionais, a plateia explode em risos que contrastam com a tensão do longa. Tânia Maria consegue até mesmo roubar a atenção que repousa em Wagner Moura. "Não lembro de ter roubado nenhuma cena", brinca ela.
Sua interpretação naturalista e desbocada começou a chamar a atenção dos veículos norte-americanos logo depois do Festival de Cannes 2025, em que Mendonça Filho saiu como melhor diretor e Wagner Moura como melhor ator. O nome de Tânia Maria passou a circular até mesmo entre as possíveis candidatas ao Oscar de melhor atriz coadjuvante, e os pedidos de entrevista precisaram ser controlados.
"Não quero ser famosa. Tenho medo, quero ser apenas eu mesma. Vejo como Wagner Moura sofre", diz, em tom sério. "Fico com raiva quando me falam que sou famosa. Um dia, pode ser."
Dona Tânia não está dando ataque de estrelismo. Durante a entrevista, seu telefone toca inúmeras vezes. Em uma ligação, pedem que grave um depoimento sobre folclore regional. Ela recusa. "Só quero falar sobre cinema."
"Não tenho medo da câmera. É bom demais me ver na tela. Depois disso, comecei a ver filmes. Falo pra Kleber que ‘Bacurau’ é ruim demais. Só gosto da parte em que apareço. Mas já vi ‘O Agente Secreto’ duas vezes e é bom, e não só porque apareço mais", diz, gargalhando.
Pode ser a dureza da mulher sertaneja falando mais alto, mas essa sinceridade também carrega valentia. Em maio passado, dona Tânia estava animada para sair do Brasil pela primeira vez, a convite do Festival de Cannes, mas não pôde ir porque não conseguiria ficar dez horas dentro de um avião sem fumar. Foi a gota d’água.
Pela primeira vez em 60 anos, decidiu que não iria mais fumar. "Parei de vez. O último cigarro foi em 30 de maio. Eu estava doente, cansada. Quando quero uma coisa, sou determinada", afirma. "Coloquei adesivos de nicotina. Fiquei tremendo. O primeiro saiu preto. Usei o último quando fui para Brasília encontrar o presidente, e saiu limpinho."
Ela adorou conhecer Lula. "Uma honra grande, bom demais. Ele perguntou do que eu estava precisando e disse que era de filme para eu ganhar dinheiro. Queriam que pedisse campo de futebol ou asfalto para Parelhas, mas pedi coisa para mim", diz.
A simplicidade de dona Tânia, no entanto, esbarrou no lado tóxico das redes sociais. "Apareceram comentários chatos, mas qualquer chateação, eu apago", afirma, inabalada, já com o espírito preparado para ler reações adversas ao filme. "Aceito as críticas negativas, mas ainda não encontrei nenhuma."
Dona Tânia só descobriu recentemente o que é o Oscar, mas não quer perder a oportunidade de participar da festa em Los Angeles, caso "O Agente Secreto" confirme seu favoritismo para figurar entre os cinco filmes internacionais da Academia.
Ela não sabe quem é Brad Pitt, Jennifer Lawrence ou Leonardo DiCaprio, mas está empolgada para mais uma etapa inesperada da sua vida de atriz.
"Já tinha ouvido falar do Oscar, mas não sabia como ia pro Oscar. Pra mim, tanto faz. Não me emociono com nada. Mandando a passagem, embarco na hora", anima-se ela, que já fez o primeiro passaporte e foi procurada pelos produtores do filme para viajar aos EUA com todos os cuidados, ao lado da neta ou da filha. "Vou pra Hollywood, se Deus quiser."
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12. Dona Onete mudou a música do Pará, mas antes teve de se livrar de um marido abusivo
Cantora de 86 anos só começou a fazer shows depois dos 60
Antes, foi professora e se envolveu com o movimento sindical
João Fellet e Felix Lima, fsp, 14.11.2025
Escalada para representar a música paraense na COP30 (30ª Conferência da ONU sobre Mudança do Clima), em Belém, a cantora Dona Onete, de 86 anos, só ganhou fama como artista depois de idosa.
Onete tinha mais de 60 anos de idade quando criou um grupo de danças folclóricas e começou a fazer shows. Era o início de uma carreira que lhe renderia o título de "rainha do carimbó", um dos principais ritmos amazônicos.
"[Me diziam:] 'Larga de ser professora, você canta muito bem'. E eu dizia: 'Não, primeiro eu vou me aposentar, porque e se não der?' Eu não tinha dinheiro e tinha dois filhos para criar'", ela lembra em entrevista à BBC News Brasil.
Antes de se tornar cantora e adotar o nome artístico Dona Onete, Ionete da Silveira Gama passou décadas lecionando para crianças disciplinas como Geografia, História, Português e Matemática.
Uma carreira que, mesmo sem alçá-la à fama, a levou para o movimento sindical —onde testemunhou o nascimento da CUT (Central Única dos Trabalhadores)— e permitiu que rompesse um relacionamento abusivo de 25 anos.
"Eu tive aonde me amparar: eu saí do meu casamento e entrei no movimento", diz Onete, que em 17 de setembro cantou em um palco no rio Guamá, em Belém, em um show preparatório para a COP30.
Também se apresentaram no evento a cantora americana Mariah Carey e as brasileiras Joelma, Gaby Amarantos e Zaynara.
Veja imagens de Dona Onete, ícone do carimbó
A BBC News Brasil entrevistou Onete no Espaço Cultura Casa das Onze Janelas, em Belém. A cantora chegou pontualmente, mas a entrevista atrasou porque havia uma escada no caminho e Onete estava em cadeira de rodas — equipamento que usa por conta de problemas na coluna.
Seguranças se ofereceram para conduzi-la escada acima, mas ela preferiu se levantar e vencer os degraus sozinha, caminhando. "Não me entrego para essa história de idade", disse, bem-humorada.
Criada pela avó
Nascida em 1939 em Cachoeira do Arari (PA), no arquipélago do Marajó, Onete tinha 4 anos quando perdeu o pai e 9 anos quando perdeu a mãe.
Ela foi criada pela avó paterna, Quitéria, uma parteira que morava em Belém e sempre viajava pelos interiores com a neta.
Foi com Quitéria e outras parentes que Onete aprendeu sobre "os chás de cura, unguentos, remédios naturais e saberes da cultura amazônica" — conhecimentos que mais tarde compartilharia com seus alunos da escola.
"As crianças precisam olhar mais para as estrelas, conversar com os animais, entender a floresta; precisam deixar a lua iluminar mais a sua imaginação", diz Onete em "Entre Banzeiros e Remansos: Memórias da Professora Ionete da Silveira Gama".
O depoimento faz parte da dissertação com que Josivana Castro Rodrigues, neta da cantora, obteve o título de mestre em Educação em Ciências e Matemáticas pela Universidade Federal do Pará, em 2023.
A obra descreve o período que Onete viveu entre ribeirinhos em Igarapé-Miri (PA) "rodeada pelo imaginário mítico amazônico, cheio de novidades e de contato com a fauna e a flora".
"O rio sempre foi minha escola. Muitas coisas que eu sei hoje foram graças a essas minhas travessias pelas águas do Marajó, Belém e Igarapé-Miri", ela disse à neta na dissertação.
Onete se mudou para Igarapé-Miri com os tios aos 19 anos. Lá, casou-se, teve dois filhos e passou a auxiliar a sogra, Merandolina, que era parteira e curandeira.
"Ionete era quem escrevia as receitas dos remédios que as entidades prescreviam em sua cabeça. As pessoas vinham de longe, muitas desenganadas dos médicos e, na maioria das vezes, passavam a estadia na sua casa, para alcançar a cura", conta a neta na dissertação.
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Dona Onete e Otto interpretam "Boto Namorador" no Altas Horas Especial Pará 2
Retorno às aulas
Enquanto acumulava saberes convivendo com os ribeirinhos, Onete também frequentava a escola para completar os estudos. Na infância, ela cursara só até a quinta série. "Minha avó dizia que já chegava, porque eu não ia ser doutora", diz.
Ela afirma, no entanto, que a decisão de voltar às aulas depois de adulta lhe "custou muito caro" por conta da reação do marido.
"Cada diplomazinho que eu pendurava na parede, ele dizia: 'Mais um diploma de burridade'", diz a cantora. "Ele estudou só até a quarta série primária, então, para ele, não era nada."
"É preciso ter muita coragem de você se acalmar na casa, suportar, sabendo que mais adiante você vai sobreviver", ela lembra.
Após concluir os estudos e se formar como professora, Onete passou a lecionar em escolas.
"Quando eu tinha 240 horas de aula de história, eu tinha o dinheiro para fazer as minhas coisas e mandei ele embora", ela conta. "Eu saí da vida dele."
Carimbó chamegado
O trecho em que fala do casamento é um dos raros momentos da entrevista em que Onete fica séria. Quando o assunto muda, porém, logo o bom humor e a postura afetuosa voltam.
Onete costuma interromper raciocínios com gargalhadas e chamar o interlocutor de "meu amor". Já outra expressão que faz parte de seu repertório, "meus pretos", ela diz que está tentando evitar para evitar mal-entendidos. "'Meu preto' é uma coisa gostosa para mim", diz. "Muita gente me chamava assim quando eu era criança: 'minha pretinha, faça isso'".
Onete diz que suas atitudes e música refletem o "chamego" presente na cultura paraense. "É um carinho que nós temos", explica.
A própria Onete cunhou a expressão "carimbó chamegado" para definir seu estilo musical —uma versão mais sensual e romântica do carimbó, gênero dançante e regido por tambores com influências indígenas, africanas e ibéricas.
"Chamego é aquele jeito gostoso de chegar, passar a mão na tua cabeça, te dar um cheirinho e ir embora. Não é namoro, não é nada", diz.
Foi este o tratamento dispensado à equipe da BBC News Brasil, que naquela tarde encontrava Onete pela primeira vez.
Onete sindicalista
Assim que se divorciou, Onete entrou no movimento sindical em busca de melhores condições para os professores paraenses. Ela conta que, certa vez, acompanhou uma colega que foi cobrar salários atrasados ao prefeito de Igarapé-Miri.
Segundo Onete, a colega tinha seis filhos e estava com dificuldades para pagar as contas. Ao confrontar o prefeito sobre os atrasos, no entanto, a mulher foi questionada sobre por que não buscava um trabalho que pagasse mais, já que tinha tantos filhos para sustentar.
"A gente sabia que ele não estava errado, mas a gente não gostou do jeito que ele disse", conta Onete. "Então nós prendemos o prefeito lá, batemos prego na porta", conta.
O prefeito escapou pela janela, mas acabou aceitando pagar os salários atrasados. "Não era fácil a briga", diz Onete.
Criação da CUT
No início dos anos 1980, ela teve um novo desentendimento —este, com a diretora da escola, que não queria liberá-la para participar de uma das primeiras reuniões da CUT (Central Única dos Trabalhadores), em Brasília.
Fundada em 1983, a entidade agregou diferentes categorias de trabalhadores e se tornou a maior central sindical da América Latina.
Onete venceu o embate com a diretora e foi para o encontro, interessada em filiar sua associação de professores à CUT e defender a construção de universidades no interior do Pará.
"Mas eles não queriam a gente, queriam só os trabalhadores rurais e metalúrgicos", ela lembra na entrevista à neta.
Onete diz que, na época, os dirigentes sindicais também resistiam em aceitar mulheres no movimento, pois o Brasil ainda estava sob a ditadura militar (1964-1985) e havia risco de confrontos. "A gente só sabia correr, mas não sabia atirar. Ninguém sabia o que podia acontecer", diz.
Mesmo assim, ela continuou frequentando os encontros e fez vários cursos oferecidos aos sindicalistas — experiência que depois aproveitou como professora.
Da escola ao palco
Onete sempre gostou de cantar, mas só depois da aposentadoria começou a se apresentar profissionalmente.
Em entrevista ao blog El Cabritón, em 2021, ela narrou um dos eventos que precipitaram o início da carreira musical. Onete diz que estava cantando sozinha em casa enquanto um grupo de carimbó ensaiava na rua. Quando a ouviram, os músicos a convidaram a cantar com eles.
"Não queria aceitar, mas meu segundo marido disse: 'Vai, pra você não ficar aí, idosa, deitada em uma rede, doente'. Ele sabia o que estava falando", disse a cantora ao blog.
Pouco depois, ela mudou de banda e virou a protagonista do novo grupo num momento em que a música paraense vivia uma espécie de boom, capitaneado por nomes como a banda Calypso e Gaby Amarantos.
Onete, porém, logo se destacou também no exterior. Seu primeiro disco, "Feitiço Caboclo" (2012), foi lançado quando Onete tinha 73 anos e chamou a atenção de críticos e produtores estrangeiros.
Em 2015, o jornal britânico London Evening Standard classificou a música de Dona Onete como "animada e dançante, conduzida por um saxofone marcante e acompanhada por uma percussão ágil."
Ela se apresentou em países como Estados Unidos, Portugal, França e Reino Unido — incluindo uma participação no programa LatAm Beats, na BBC em Londres, em 2014.
No Brasil, a carreira ganhou impulso com o sucesso de canções que celebram símbolos paraenses. Entre elas estão "Jamburana" (2013), que enaltece as propriedades do jambu —erva típica da culinária local—, e "No Meio do Pitiú" (2016), que narra um namoro entre um urubu e uma garça no Mercado Ver-o-Peso, em Belém.
Com a fama, músicas de Onete também passaram a ser gravadas por artistas famosas — caso de "Banzeiro", gravada por Daniela Mercury em 2023, "Mestiça", gravada por Gaby Amarantos, em 2012, e "Pedra sem Valor", por Fafá de Belém, 2015.
Em entrevista à revista Trip, Amarantos disse que Onete "oxigena a cena da música paraense, mantendo a chama viva".
Para Fafá de Belém, Onete "é o símbolo de todas as mulheres do Pará". "Ela carrega nela impressa toda a nossa natureza", afirmou a cantora à revista.
Aos 86 anos, Onete segue fazendo shows, mas com menos frequência. E deixou de atender os convites para se apresentar no exterior. "Foi difícil ter de andar de cadeira de rodas, mas não me entrego. Ainda me sinto como se tivesse uns 70 anos", afirma.
Um conselho
Depois de viver tantos acontecimentos ao longo de quase nove décadas, qual conselho Onete daria a si mesma jovem? "Não teria ido me casar para o interior para passar o que eu já passei, mas também foi este interior que me deu o que eu sou agora", afirma.
"Conhecimento, ser professora, ter toda essa música que eu canto..."
"Eu sou dona da minha história. Eu caminhei pelo caminho errado, mas depois eu me achei no caminho certo."
Este texto foi publicado originalmente aqui
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13. Macron pede a Lula que compense perdas das empresas por cortes de energia renovável
Ressarcimento pode custar cerca de R$ 7 bi e seria pago por consumidores de energia, com impactos na conta de luz e inflação
Procurados, governos não se manifestaram; Planalto disse a parlamentares que trecho será vetado
Alexa Salomão, 14.11.2025
O corte de energia no Brasil por causa do excesso de geração renovável, conhecido pelo termo em inglês "curtailment", ganhou projeção internacional nos bastidores de eventos que ocorrem em paralelo à COP30 em Belém, no Pará.
Segundo pessoas que acompanham a agenda da energia, durante sua passagem pela Cúpula dos Líderes, o presidente da França, Emmanuel Macron, pediu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que não vete uma emenda da MP (medida provisória) 1.304 que trata do ressarcimento às empresas que sofrem perdas financeiras com esses cortes.
O pedido de Macron aconteceu na semana passada, antes de o governo avisar a senadores que vetará essa indenização às empresas.
A preocupação de Macron é que as empresas francesas com investimento em energia renovável no Brasil possam sofrer perdas se não forem reembolsadas.
Na tarde desta quinta-feira (13), o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, foi de Belém a Brasília para uma reunião com Lula que tinha entre os temas discutir vetos na MP. O presidente não quer elevar a conta de luz, e o Planalto já avisou a senadores que o trecho será vetado. No entanto, a pressão pelo ressarcimento é grande. Ele tem até 24 de novembro para decidir.
O governo francês não se manifestou sobre o assunto, a assessoria da Presidência do Brasil disse que quem cuida da questão é o MME (Ministério de Minas e Energia), que, procurado, não comentou até a publicação deste texto
Segundo a Folha apurou, há alguns meses, um diplomata da França já havia reclamado do curtailment no MME. A queixa é que o acúmulo de perdas por causa dos cortes prejudica a estabilidade financeira dos negócios e a imagem da geração renovável brasileira no mundo e colocam em xeque investimentos futuros.
Apesar de diferentes fontes de energia sofrerem com o curtailment, entre as empresas mais impactadas estão parques eólicos e solares, muitos deles com acionistas estrangeiros, que fizeram aportes vultosos para estarem aqui.
Cinco pessoas com conhecimento das discussões disseram que vários países com investimentos em energia renovável no Brasil estão preocupados com o impacto financeiro dos cortes, mas a França é o país que tem sido mais vocal.
O governo Macron está especialmente preocupado com os investimentos em energia renovável feitos por empresas francesas no Brasil. Entre elas está a TotalEnergies, que tem 34% da Casa dos Ventos, uma das principais desenvolvedoras de projetos eólicos no Brasil. O negócio faz parte do portfólio de descarbonização da companhia francesa.
Procurada pela reportagem, a empresa respondeu que, "como companhia privada, não comenta temas políticos ou discussões entre países". Fundada em 1924, a TotalEnergies é uma gigante do setor de energia que nasceu como empresa pública, mas foi privatizada na década de 1990. Hoje mantém uma relação complexa com o Estado francês, porque vem sofrendo pressão da opinião pública e de setores do governo para acelerar a transição energética. As perdas com o curtailment no Brasil dificultam essa meta.
Usinas solares flutuantes ao redor do mundo imagens
NEGOCIAÇÕES
O relatório original sobre a MP, do senador Eduardo Braga (MDB-AM), limitava o ressarcimento a casos pontuais, que fossem associados a questões técnicas, como falta de linha de transmissão, um problema que afetou vários investidores.
Uma emenda aglutinativa apresentada pelo deputado Danilo Forte (União-CE) ampliou o benefício para outros tipos de cortes. O Ceará concentra projetos eólicos, e o deputado é conhecido no Congresso por sua ativa atuação em defesa do estado, especialmente da Casa dos Ventos.
A empresa atua em múltiplas frentes de energia renovável, incluindo o desenvolvimento de um grande data center em Pecém, que foi beneficiado recentemente por iniciativas do governo.
A forma e o valor do ressarcimento têm gerado controvérsias também.
A maioria dos participantes do setor diz que esse mecanismo será financiado pelos consumidores de energia via aumento na conta de luz. Ainda durante a tramitação da proposta, estimativas da Abrace, que representa grandes empresas de energia, estimou que as perdas com o curtailment, de 2023 até o final deste ano, possam somar cerca de R$ 7 bilhões, valor suficiente para acrescentar cerca de 3% de aumento na conta de luz, com efeitos sobre a inflação do Brasil.
A Abeeólica, que representa o setor eólico, afirma que as empresas já abriram mão de parte das perdas e aceitariam receber R$ 3,8 bilhões. A associação afirma que os recursos sairiam de um mecanismo da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) que faz compensações do mercado livre. A entidade diz que o setor de renováveis pode quebrar sem o ressarcimento.
Técnico da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), no entanto, que foi consultado pela Folha, afirma que mencionado recurso pertence aos consumidores e só pode ser liberado com aprovação do Congresso.
A MP 1304 fez uma reforma no setor de energia. O texto chegou a ficar parado no Congresso, mas depois foi aprovada em tempo recorde. Os grupos de interesse fizeram tanta pressão, inserindo diferentes dispositivos, que o ministro de Minas e Energia disse que era uma vitória do lobby.
Enquanto se debate o veto, o setor não resolve a origem do problema:o excesso de oferta de energia para pouca demanda, sustentada pelo avanço da geração nos telhados, conhecida no setor como MMGD (micro e minegeração distribuída). Um incentivo, que tem um longo prazo para acabar, mantém a expansão dos projetos. Esperava-se que a mesma MP 1304 apresentasse alguma nova restrição a esse benefício, o que não ocorreu.
O banco BTG publica relatórios sobre curtailment eólico e solar e divulgou um consolidado sobre o primeiro tremeste que ilustra o tamanho do problema. Até setembro, os cortes afetaram 20,4% geração eólica. Para os parques solares, o corte subiu para 34,1%, bem acima dos 23,8% do trimestre anterior e dos 16,5% registrados no terceiro trimestre e do ano passado.
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14. Mundurukus protestam em frente à COP30 contra plano de hidrovias do governo Lula
Acesso a área restrita foi fechado pelo Exército por algumas horas, gerando aglomeração e filas de milhares
Marina Silva e Sonia Guajajara, a pedido de Lula, tiveram reunião com lideranças indígenas para ouvir demandas
Mundurukus protestam em frente à COP30 contra plano de hidrovias do governo Lula - vídeo
fsp, 14.11.2025
A sexta-feira (14) amanheceu com um protesto de indígenas do povo munduruku em frente ao acesso principal da COP30, a conferência das Nações Unidas sobre mudança climática, em Belém (PA).
Eles querem a revogação do decreto que estabelece o Plano Nacional de Hidrovias, assinado neste ano pelo governo Lula (PT). O projeto inclui os rios Tapajós, Madeira e Tocantins como eixos prioritários para navegação de cargas.
"Chega de mercadoria com a nossa floresta", afirmou a líder Alessandra Munduruku à imprensa. "A COP tem [mais de] 190 países. Não é possível que alguém não vá nos ouvir. Não é possível que alguém não se sensibilize com essas crianças, que há dias e dias estão no sol quente esperando uma resposta. Não aceitamos ser sacrificados para o agronegócio."
Os manifestantes também pedem proteção contra grandes empreendimentos dentro do território e o cancelamento da Ferrogrão — projeto de ferrovia que vai de Mato Grosso ao Pará. Cerca de 40 pessoas participaram do ato pacífico, com a presença de muitas crianças.
Com a movimentação, o Exército brasileiro ocupou a entrada da COP por algumas horas, fechando o principal acesso à conferência. As pessoas credenciadas tiveram que entrar pela saída.
O presidente da COP30, André Corrêa do Lago, e a diretora-executiva da conferência, Ana Toni, dialogaram com os indígenas por volta das 8h30, pedindo a liberação da passagem.
Cerca de uma hora depois da chegada das autoridades da COP30, o ato foi dispersado. As lideranças indígenas foram convidadas para um encontro com as ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas) e membros da Defensoria Pública do Pará.
Segundo Marina, foi o presidente Lula quem pediu às duas ministras que se reunissem com as lideranças indígenas para ouvir as demandas. Corrêa do Lago caminhou para o espaço da reunião de mãos dadas com Alessandra Munduruku, ao lado de Ana Toni, e seguido pelos outros manifestantes.
As duas ministras tentaram responder a algumas demandas dos mundurukis. Marina explicou, por exemplo, que o não há licença liberada para Ferrogrão, uma vez que o processo de concessão do aval está judicializado. Disse ainda que encaminharia às pastas de Transporte e de Minas e Energia as queixas sobre mineração em terras mundurukus.
Já a ministra Sonia explicou os trâmites da demarcação de terras indígenas de dois territórios. Um deles, segundo ela, está nas mãos da Funai, que trabalha na contratação de uma empresa para fazer a demarcação física. O outro ainda está com o Ministério da Justiça, que precisa liberar o seguimento para as próximas etapas.
Depois da reunião com as ministras, Alessandra Munduruku voltou a falar com a imprensa e reforçou a necessidade de que os indígenas sejam mais ouvidos. Disse ainda que estava esperando que as ministras falassem com o presidente Lula.
Após a dispersão da manifestação, a porta principal foi liberada, mas filas imensas haviam se formado. Como é praxe em espaços das Nações Unidas, revistas individuais são feitas em bolsas e mochilas, mas o processo é demorado. Perto das 11h, o acesso ao prédio da zona azul, onde acontecem as negociações diplomáticas, foi normalizado.
Manifestantes invadiram zona azul da COP30 na terça-feira (11) - imagens
Na última terça-feira (11), um grupo de manifestantes invadiu a zona azul após participação em uma marcha sobre saúde e clima que ocorria nas ruas de Belém. Eles foram expulsos do local após confronto com seguranças.
O secretário-executivo da UNFCCC (o braço climático das Nações Unidas), Simon Stiell, assinou uma carta na quarta-feira (12) demandando que a proteção seja reforçada e que os problemas (como alagamentos e altas temperatura no ambiente) sejam resolvidos.
Na manhã desta sexta, a organização do evento chegou a emitir nota informando os participantes da COP sobre a situação. "Está ocorrendo uma manifestação pacífica na entrada principal da zona azul. Não há perigo", dizia o texto. O aplicativo oficial voltado a participantes da COP30 também enviou um alerta.
"Eles querem ser ouvidos na COP30. Eles estão em um situação de dificuldade. Querem também que seja combatida a exploração no território", afirmou o advogado da associação indígena Ipereg Ayu, Marco Apolo. "Apoiar as populações indígenas é apoiar a questão climática, ao menos aqui na Amazônia."
Danilo Verpa , Jéssica Maes , João Gabriel , Tayguara Ribeiro , Paola Ferreira Rosa , Augusto Pinheiro e Fábio Pupo
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15. O editor 'maluco' que peitou a ditadura militar
Ênio Silveira ganha biografia no centenário de seu nascimento
A Civilização Brasileira foi alvo de incêndio criminoso e atentado a bomba
Alvaro Costa e Silva, fsp, 14.11.2025
Durante a ditadura militar, o editor Ênio Silveira teve os direitos políticos cassados. Seus livros foram recolhidos, confiscados e queimados; sua livraria na rua Sete de Setembro, no Rio, e a editora Civilização Brasileira, alvos de incêndio criminoso, atentado a bomba e estrangulamento econômico. Um de seus principais autores, Carlos Heitor Cony, foi preso seis vezes pelo regime. Ênio conseguiu superar a marca: preso em oito oportunidades, acusado de "subversão cultural" e "propaganda comunista".
Na primeira delas, logo após o golpe de 1964, o interrogatório girou em torno da origem de seus bens. Os militares consideravam inconcebível que se pudesse obter lucro no Brasil com a publicação de livros sobre política e ciências sociais. Deviam desconfiar que Ênio estava garantido pelo que então se chamava "ouro de Moscou". Não faziam ideia de que a fortuna dele era de outro tipo — talento e tino comercial.
Seu centenário de nascimento transcorre na terça-feira (18), e sua trajetória de luta e livros está na biografia recém-lançada "Ênio Silveira: O Editor que Peitou a Ditadura", do também editor Sérgio França.
Descoberto por Monteiro Lobato, estudou nos Estados Unidos e estagiou com Alfred A. Knopf, com quem aprendeu a ser um publisher, assumindo as funções de diretor de aquisições e de logística, editor de textos preocupado com o design e o marketing. Ideologicamente formado pelo Partido Comunista americano, era um maluco, um suicida, na visão do seu amigo Jorge Zahar. Capaz de fazer, com tradução direta do alemão, a primeira edição completa de "O Capital" no país e, ao mesmo tempo, contratar uma agência de publicidade para promover o lançamento de "Lolita", de Nabokov.
Certa vez, ouviu de Luís Carlos Prestes: "Agora temos uma editora". Ênio rebateu na lata: "Não, a editora é minha". Isso explica por que "Pessach: A Travessia", de Cony, romance que acusa o PCB de traição, saiu trazendo uma orelha que se posicionava contra a obra. Um caso inédito no mundo.
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16. Condenação da BHP em Londres dá esperança para reverter absolvição de réus da tragédia de Mariana, dizem atingidos
Justiça britânica anunciou nesta sexta (14) que empresa responderá por rompimento da barragem de Fundão, há dez anos
MPF recorre de sentença criminal no Brasil, que argumentou pela ausência de provas
Artur Búrigo, fsp, 14.11.2025
A decisão em Londres que condenou a BHP pelo rompimento da barragem em Mariana (MG) foi recebida como uma nova esperança de que a absolvição dos réus no processo criminal seja revertida, afirmam os atingidos pela tragédia ouvidos pela Folha.
A Justiça britânica considerou nesta sexta-feira (14) a anglo-australiana BHP, uma das controladoras da Samarco junto com a Vale, responsável pelo episódio que matou 19 pessoas e despejou cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos no meio ambiente, há dez anos.
"Isso mostra para a Justiça brasileira que houve culpa e que as pessoas precisam ser responsabilizadas. Para além de uma reparação justa, que também buscamos, os culpados precisam ser punidos para que crimes como esse não se repitam", afirma a atingida Mônica dos Santos.
Ela se refere à decisão de novembro do ano passado da Justiça Federal que absolveu a mineradora Samarco e suas controladoras, Vale e BHP, além de outros sete réus pelo rompimento da barragem de Fundão.
O MPF (Ministério Público Federal) recorreu da decisão, mas a apelação ainda não foi analisada.
Na decisão britânica, a juíza Finola O'Farrell afirmou em um resumo de sua decisão que a BHP não deveria ter continuado a aumentar a altura da barragem antes de seu colapso.
O procedimento, segundo a sentença, foi "uma causa direta e imediata do colapso da barragem, dando origem à responsabilidade da BHP".
A empresa afirmou em comunicado que pretende recorrer da decisão e que "reforça seu compromisso com o processo de reparação no Brasil", assinado no ano passado por autoridades públicas e mineradoras.
Lembra que, desde 2015, já desembolsou cerca de R$ 70 bilhões em valores pagos diretamente a afetados, "incluindo 240 mil autores da ação no Reino Unido".
A atingida Luzia Queiroz, que era moradora do subdistrito de Paracatu de Baixo, afirmou que a decisão fez renascer nos atingidos um sentimento de justiça.
"Apesar de não ser na nossa, brasileira, mas na inglesa. É uma luz no fim do túnel, né, para entenderem que a base de tudo é esse pessoal que não foi criminalizado ainda, que está vivendo bem", afirma.
Mônica dos Santos, que era moradora de Bento Rodrigues, outro território atingido pelo rompimento da barragem, diz acreditar que o processo no exterior irá garantir uma indenização superior à prevista pelo acordo de repactuação assinado no Brasil.
"Eu estou desde o crime sem receber nenhum centavo, acreditando na ação inglesa. E com certeza vem coisa melhor, porque esse acordo de repactuação beneficiou as empresas, os estados e o governo [federal], não os atingidos."
'O Doce está morto': tragédia de Mariana enterrou renda, lazer e cultura centenária ligados ao rio - vídeo
Pelos termos do acordo firmado no Brasil, os atingidos que receberam a indenização teriam de renunciar a todos processos contra as mineradoras no país e no exterior.
Interlocutores da BHP afirmam que a decisão da Justiça britânica validou essas quitações e que, por isso, o processo corre na metade do tamanho previsto inicialmente, quando o volume de compensações pretendido poderia chegar a R$ 260 bilhões.
O próximo passo da ação, previsto para janeiro de 2027, irá discutir o tamanho do dano causado pelo rompimento da barragem aos atingidos. Só após essa etapa é que a Justiça britânica irá decidir sobre o volume das indenizações, algo previsto para acontecer entre os anos de 2028 e 2029.
Até lá, existe a possibilidade de um acordo entre os envolvidos.
Para Heider Boza, da coordenação nacional do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), a decisão desta sexta representa uma conquista diante do que ele considera como uma "postura de impunidade da Justiça brasileira".
O grupo lançou nessa semana, na COP30, o movimento internacional de atingidos por barragens, com integrantes de 42 países.
"As justiças desses países, incluindo o nosso, são muito frágeis ainda, diante de empresas de porte internacional. Essa decisão [na Inglaterra] abre precedente para os atingidos que estão montando esse movimento internacional conosco", afirmou Boza.
A condenação também foi comemorada pelo advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, que representa os quilombolas na ação. Ele afirmou que a decisão, além de trazer justiça aos atingidos, é histórica e abre precedente internacional no direito ambiental.
"É uma decisão histórica e de extrema relevância. Infelizmente, no Brasil muitos grupos não foram chamados para sentar à mesa de negociação. O que todos nós buscamos foi justiça. Especialmente para aqueles que não foram chamados para conversar no Brasil."
O criminalista ressaltou que o processo na Justiça britânica só pôde seguir com a ajuda de fundos de investimento que financiaram os escritórios no decorrer da ação. Para ele, o auxílio levou à paridade de armas entre os atingidos e a BHP e mostrou que é possível responsabilizar grandes companhias por danos ambientais.
"As poderosas empresas, no mundo inteiro, estarão atentas a este julgamento, e sabem que existem escritórios de advocacia e fundos com capacidade de investimento nesse tipo de causa. Seria impossível um quilombola conseguir enfrentar a BHP, não fossem os que acreditaram e investiram.
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17. ‘Não acabamos com a ditadura militar a partir de casa’, diz Silvio Meira | Roberto D’Ávila - vídeo
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18. Por uma COP da verdade, que promova a transformação da realidade
Jornal dos ECONOMISTAS, Nº 435, novembro de 2025
Clarice Campelo de Melo Ferraz*
A realização da COP30 em Belém tem exposto uma série de contradições entre o modelo de desenvolvimento atual e a urgente necessidade de reduzir os impactos ecológicos das atividades humanas.
A COP (Conferência das Partes) faz parte da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC), um tratado internacional para a cooperação climática, impondo limites aos aumentos médios da temperatura global. A UNFCCC foi criada na Rio-92 (Cúpula da Terra) e teve sua primeira reunião em Berlim, em 1995.
Como diz o seu nome, a COP se concentra no combate ao aquecimento climático, uma fração do problema ecológico que nos atinge. De acordo com a equipe de cientistas do Potsdam Institute for Climate Impact Research (PIK), é importante compreender os “níveis seguros para os sistemas e processos biofísicos que, com alta probabilidade, garantem condições de suporte à vida semelhantes às do Holoceno” [1]. A partir disso, foi desenvolvido o arcabouço analítico dos Limites Planetários (LPs). Divididos em nove pontos — clima, biodiversidade, uso da terra, ciclos de nitrogênio e fósforo, recursos hídricos, oceanos, poluição do ar, camada de ozônio e poluentes químicos, os LPs capturam as principais funções que regulam o sistema terrestre e tentam estabelecer os níveis de resiliência que assegurem que seus limites não sejam ultrapassados.
Está claro, e cientificamente comprovado, que o problema ecológico é muito mais amplo do que o grave problema do aquecimento climático, objeto da COP. Além disso, todos os limites estão interligados e se retroalimentam. O desmatamento de uma área de floresta nativa de caatinga para a instalação de um empreendimento de geração de energia eólica ou solar pode ocorrer sem aumento de emissões, mas provoca mudança do uso do solo, perda de biodiversidade e desequilíbrio hídrico, além de outros impactos socioambientais negativos. Assim – apesar de ser possível desmatar sem queima da vegetação e suas emissões poluentes, com motosserras e capina química (o que ainda agravaria o limite dos poluentes químicos) –, em um segundo momento, esses impactos promovem o agravamento das emissões, pois reduzem a capacidade do planeta de se regular e absorver naturalmente as emissões.
Neste ano em que somos anfitriões da COP30, recebemos ainda a gravíssima notícia que sete dos nove LPs já foram atingidos. “Mais de três quartos dos sistemas de suporte da Terra não estão na zona de segurança. A humanidade está ultrapassando os limites de um espaço operacional seguro, aumentando o risco de desestabilização do planeta”, afirma Johan Rockström, diretor do PIK.” [2]. A novidade deste ano foi o atingimento do limite de considerado seguro com relação à acidificação dos oceanos – o que, diga-se, explicita a incongruência da exploração de petróleo da Foz do Amazonas. Os pesquisadores mostram que todos os sete limites apresentam tendências de agravamento.
Assim, como disse o Presidente Lula, “A COP-30, em Belém, será a COP da verdade.
Será o momento de os líderes mundiais provarem a seriedade de seu compromisso com o planeta” [3]. É assim que a COP deve ser vista, como uma vitrine para a complexidade da crise ecológica e social e uma luta para preservar a Terra em condições que sejam favoráveis à vida humana. As Contribui ções Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), que definem a atuação de cada nação para diminuir suas emissões, devem ser estabelecidas olhando para os conflitos entre estratégias de redução de emissões que visem à redução do aquecimento climático e impactos sobre os demais limites planetários. A transição energética precisa ser ecológica.
Outro aspecto da verdade que convém ser discutido é a falta de justiça em torno das soluções de descarbonização propostas. Aos impactos ambientais no território se somam os impactos sociais. Os grandes empreendimentos prejudicam as condições de vida das populações que os circundam, provocando desde problemas de saúde a disputas dentro das comunidades atingidas.
A perda da vegetação nativa provoca a supressão da evapotranspiração e, consequentemente, a perturbação do ciclo hidrológico. A escassez de água é aprofundada pelo alto consumo realizado pelos empreendimentos para lavar os painéis solares, para retirar a poeira que provém do solo seco e sem cobertura vegetal, por eles mesmos suprimida.
A vulnerabilidade hídrica do semiárido tem aumentado e pode evoluir para processos de desertificação. Sem água e sem solo vivo, não há produção de alimentos. Nessa trajetória, além dos diversos problemas socioambientais já mencionados, avança-se para um problema de insegurança alimentar.
A questão é urgente. Dados do MapBiomas (2025) revelam que a expansão da geração solar no Brasil cresceu 43 vezes entre 2016 e 2024, totalizando 35,3 mil hectares, dos quais 44,5% resultaram de supressão de formações vegetais, sobretudo dos biomas Caatinga e Cerrado. Essa expansão foi intensificada em 2024, com um crescimento de 40% em relação ao ano anterior, totalizando 53 GW de capacidade instalada total da fonte naquele ano (ANEEL, 2025; ONS, 2025).
Trinta anos depois de sua primeira reunião, a constatação é de que o acordo internacional não foi capaz de manter o nível de aquecimento em níveis considerados seguros para a humanidade. As estratégias de mitigação adotadas até agora não foram suficientes.
Especificamente, as estratégias de transição energética baseadas unicamente na expansão da capacidade instalada das fontes de geração eólica e solar negligenciam aspectos essenciais de uma transição ecológica justa e sustentável. Importantes impactos socioambientais locais e regionais estão sendo invisibilizados ou negligenciados para atender às metas contábeis de emissões de carbono.
Atingimos 1,5°C de aquecimento antes do esperado e estamos caminhando para atingir temperaturas que o corpo humano, e diversas outras espécies, não suportam. Já sabemos que não se combate o problema das mudanças climáticas apenas com a redução de queima de combustíveis fósseis.
Agora, além do desafio da mitigação de danos ambientais e agravamento da crise climática, é preciso também que o modelo de desenvolvimento econômico prepare a população para lidar com chuvas torrenciais acima das médias históricas, prolongados períodos de estiagem e ondas de calor cada vez mais intensas e longas, produzindo forte perturbação do ciclo da água, da fertilidade do solo e das condições de reprodução da vida.
Não há dúvidas de que vivemos uma policrise. Como coloca Adam Tooze, “na policrise, os choques são díspares, mas interagem de modo que o todo é ainda mais avassalador do que a soma das partes” [4]. As crises ambientais, sociais, econômicas e políticas estão interligadas e se aprofundam mutuamente, numa sinergia perversa.
Espera-se que a COP30 não se limite à constatação da verdade. É preciso transformar a realidade. Para isso, a Conferência deve trazer soluções coerentes com um projeto de desenvolvimento que promova uma transição energética justa e sustentável.
* É professora da UFRJ e diretora do Instituto Ilumina.
[1] Rockström, J., Donges, J.F., Fetzer, I. et al. Planetary Boundaries guide humanity’s future on Earth. Nat Rev Earth Environ 5, 773–788 (2024). https://doi.org/10.1038/s43017-024-00597-z
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19. Planejaram meu velório': remédio contra HIV está no SUS por causa dela
Rafaela Polo, Universa, 13/11/2025
Nair Brito, 62, descobriu que era HIV positivo em 1992. E, se hoje existe tratamento gratuito no SUS para a doença, é por causa dela. Quando estava muito doente no hospital, Nair entrou na Justiça pelo direito de receber o antirretroviral sem custos, e ganhou. Sua iniciativa incentivou muitos outros a fazerem o mesmo.
"Eu cheguei a me deitar no meio da avenida Paulista em uma manifestação. Não tinha medo. Quando você não tem mais nada a perder, acredita que aquilo dá visibilidade. O importante era que as pessoas vissem que precisávamos de remédio, assistência e solidariedade", disse em entrevista a Universa.
Para a reportagem, ela recordou o caminho de perdas e dores que percorreu para conseguir estar viva há mais de 30 anos com o vírus.
Descoberta do diagnóstico
"Em 1989, me separei. Como tenho um filho, me senti pronta para começar a me relacionar novamente após três anos. E foi em uma dessas ficadas, em que transei sem preservativo, que contraí o vírus do HIV.
"Eu sabia que tinha uma epidemia acontecendo, mas a sensação era de que estava muito longe de mim. Que estava nos Estados Unidos, no universo de pessoas LGBTQIAP+, com as prostitutas e usuários de droga. Era isso que ouvíamos. Como mulher heterossexual, essa epidemia não me dizia respeito."
Descobri depois que comecei a me sentir mal e fui ao médico. Era como se estivesse com rubéola: muita febre, pele vermelha e cheia de bolinhas. Como lidava com crianças sempre em situações precárias e com diversos problemas de pele, achei que tinha pegado algo delas.
No consultório, o médico pediu para eu fazer o teste de HIV. Não achei nada demais. Nem questionei. Eu tinha me relacionado com três ou quatro pessoas após meu casamento e sabia que tinha transado sem camisinha. No meu subconsciente, entendi, naquele momento, que havia fios soltos na minha história que poderiam ter levado à contaminação.
"Fiz o exame e abri o resultado no estacionamento do laboratório. Deu positivo. Naquele momento, eu não tinha nenhuma rede de apoio para entender o que significava. A primeira coisa que pensei foi: 'Vou morrer'. Tudo o que eu sabia sobre esse vírus é que as pessoas morriam, e com muito sofrimento."
Eu precisava ir para casa, buscar meu filho na escola, fazer jantar para ele. Não entendia muito bem, tinha medo de contaminá-lo. Paralisei. Não consegui mais tocar em sua roupa, sua comida. Foi um dos momentos mais dramáticos da minha vida.
Rede de apoio e primeiros passos
Uma amiga me ajudou a buscar médicos, encontrar caminhos. Quando tudo o que você espera é a morte, tenta viver. Isso é inerente ao ser humano.
Comecei a procurar médicos. Fui paciente de Drauzio Varella por um longo período. Ele era muito doce, muito humano. Mas sabia-se pouco sobre o vírus, tudo era novo. E não tínhamos muito acesso a medicamentos e tratamentos. Na época, usavam um medicamento que também era usado para câncer.
Existiam alguns grupos que já estavam nesse ativismo há anos. O primeiro que participei foi o GAPA (Grupo de Apoio à Prevenção à Aids). Mas eu achava o trabalho um pouco assistencialista, sabe? E havia pessoas sendo abandonadas pela família ou perdendo empregos, que precisavam de ajuda.
Eu participei de muitos outros. No 'Mulheres pela Vida', por exemplo, começamos a nos articular, fazer reuniões, encontros, rodas de conversa. Percebemos que não bastava sobreviver, a gente precisava lutar. Lutar por remédio, por atendimento digno, por políticas públicas. E também lutar contra o machismo — porque, para mulher vivendo com HIV, a violência é dupla.
A dor da perda
"Era muito comum — e terrível — perder amigos. Tínhamos um grupo de teatro e saíamos pelos municípios e escolas falando sobre preconceito. Em um ano, o elenco todo morreu."
Para conseguir enterrar todos que precisavam, tínhamos que nos dividir, pois a maioria não tinha família. E pensávamos: 'Qual vai ser o meu momento?'.
Todos os amigos que perdi foram marcantes. Mas lembro especialmente de dois casos: Carla e Cláudia. A Carla vivia com a irmã em situação precária. Ajudava como podia. Um dia a levei para o hospital. Dois dias depois, ela morreu. Tive que reconhecer o corpo no IML, abrir a gaveta e olhar para ela.
A Cláudia, uma travesti, cuidava de todo mundo. Foi perseguida politicamente. Depois morou comigo, viramos muito amigas. Um dia me perguntou: 'Será que é para eu virar Cláudio, por isso que está acontecendo tudo isso comigo?'. Pouco tempo depois, ela morreu, sozinha. Não tinha ninguém. Fui eu e outra amiga enterrá-la. Essa solidão familiar me marcou profundamente.
A luta pelo medicamento que virou direito
Eu sobrevivia a trancos e barrancos, mas não parava. Já era ativista, focada nos direitos das mulheres vivendo com HIV. Fui a uma conferência no Canadá que falava de um medicamento novo. Antes disso, tinha estado na Tailândia e visto mulheres muito doentes. Seis meses depois, reencontrei as mesmas mulheres no Canadá e elas estavam bem.
"Fiquei impressionada. Quando acabou a conferência, voltei ao Brasil e disse: 'Eu quero esse medicamento'. Foi o primeiro momento em que senti esperança."
Em uma das vezes em que fiquei muito doente, tinha um fungo no pulmão e não conseguia respirar. Quase tive um colapso. Quando cheguei ao hospital, a saturação estava muito baixa. O CD4, que é o marcador das células de defesa, estava em oito — o normal é mil.
Procurei uma advogada que conhecia pelos grupos de apoio e pedi ajuda para conseguir o medicamento. Ela entrou com uma ação judicial. Enquanto isso, fui internada. Estava muito mal. Meu companheiro já estava se preparando para meu velório.
No mesmo momento, a revista 'IstoÉ' publicou uma matéria sobre a conferência e os medicamentos novos contra o HIV. O juiz que julgou meu caso estava com a revista na mesa quando minha advogada bateu à sua porta pedindo a liberação da droga. Ele entendeu tudo e deu liminar obrigando o Estado a me fornecer o medicamento, com multa diária.
O Programa Estadual de Aids acatou e providenciou. Isso fez eco. Todo mundo começou a entrar com ações, inclusive na América Latina.
Foram ganhando, um a um, o direito ao remédio. Hoje, 900 mil pessoas no Brasil tomam medicamentos contra o HIV gratuitamente. Na época, Sarney era presidente do Senado e apresentou esse projeto de lei para que pessoas com HIV recebessem remédio gratuitamente. Ela foi sancionada por FHC. Ela determina que esses medicamentos têm que ser distribuídos sem custos para quem vive com HIV pelo SUS.
"Eu sempre digo: deveria se chamar Lei Nair Brito. Não por vaidade, mas porque é a história legítima de uma mulher morrendo e lutando pelos seus direitos."
Busca pela cura
Hoje, minha luta é por cura. Sim, há tratamento. Mas eu sei que a cura é possível. Só que não há interesse global, porque os remédios alimentam milhões e milhões de dólares em lucro. É perverso.
"Eu tenho que sobreviver tomando tantos medicamentos porque alguém tem interesse que eu os tome. O custo mensal para me manter viva com antirretrovirais é de cerca de R$ 5.800. Imagine 900 mil pessoas no Brasil. É muito dinheiro em jogo."
Por isso, hoje, meu ativismo é para dizer: queremos a cura. Cura já."
Em tempo
Lembrei da ótima série 'Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente'
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20. Surfando na excelente onda de filmes brasileiros
Nos últimos dois meses passei por estes filmes brasileiros. O último (O agente secreto) assisti ontem (10.11.25) no Jardins. Considerações sobre a onda:
Manas, Marianna Brennand, 2024: impactante, obrigatório e o melhor dessa onda. Imprescindível.
A melhor mãe do mundo, Anna Muylaert, 2025: Anna sabe contar uma estória. Imperdível.
O último azul, Gabriel Mascaro, 2025: uma senhora rebelde que se recusa a ter uma morte vulgar. Um filme com a marca Gabriel Mascaro.
O agente secreto, Kleber Mendonça Filho, 2025: já vi filmes melhores do Kleber Mendonça.
Malês, Antônio Pitanga, 2024: Pitanga dá o tom. Belo filme. Dá luz a uma história discriminada e apagada. Na escola não tem, mas no filme tem.
O filho de mil homens: filme poesia. O melhor de 2025
O Filho de Mil Homens’ leva às telas sensibilidade de Valter Hugo Mãe: ‘Meditação sobre a solidão’
Valter Hugo Mãe: o pensamento indígena é um poema pronto
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21. 'Manas’ é um filme necessário sobre abuso, silêncio e resistência feminina
Giselle Costa Rosa, 15/05/2025
Há filmes que emocionam, outros que provocam. “Manas”, longa de estreia na ficção da documentarista Marianna Brennand, vai além: ele paralisa. Ambientado na Ilha do Marajó, no Pará, o filme mergulha nas entranhas de uma realidade negligenciada — a da violência sexual contra meninas em regiões ribeirinhas, onde o Estado é ausente e o silêncio, regra.
Vencedor de mais de 20 prêmios internacionais e ovacionado no Festival de Veneza, “Manas” não apenas denuncia, mas transforma seu público em testemunha de um ciclo opressor que atravessa gerações.
Sinopse do filme Manas
Marcielle — também chamada de Tielle e “Mana” — é uma menina de 13 anos que vive com a família em uma casa de palafita em Marajó. Dividindo o espaço apertado com pais e irmãos, ela tenta viver sua infância desenhando, tomando banho de rio e indo à escola. Mas a puberdade marca o início de uma mudança brutal. Incentivada a vender açaí nas balsas, ela se vê exposta a abusos. Em casa, a situação não é diferente: o pai se revela abusivo e a mãe, grávida e resignada, fecha os olhos diante do que acontece.
Entre a memória da irmã mais velha que “sumiu com um homem bom” e o desejo de escapar, Marcielle vai desvendando os horrores que cercam sua vida. À medida que as violências se acumulam, ela se vê forçada a crescer antes do tempo e, silenciosamente, procura uma saída — nem sempre possível, mas necessária.
Crítica de Manas (2025)
A força de “Manas” está no que ele se recusa a exibir. Marianna Brennand, vinda do documentário, compreende a responsabilidade de tratar de temas como abuso infantil com ética. Por isso, opta por uma mise-en-scène que protege tanto suas jovens atrizes quanto o público. Não há cenas gráficas, mas há tensão sufocante. O horror se insinua por gestos, olhares e silêncios — e o impacto é multiplicado.
A escolha de filmar com câmera na mão, em planos fechados e íntimos, nos coloca como testemunhas impotentes. Somos levados a observar tudo como se fôssemos parte da mata: presentes, mas incapazes de intervir. Essa estética se alia à montagem sensível de Isabela Monteiro de Castro e à fotografia precisa de Pierre de Kerchove, que constrói um contraste doloroso entre a beleza da natureza amazônica e a crueldade dos aconte
Uma protagonista inesquecível
Jamilli Correa entrega uma das atuações mais marcantes do cinema nacional recente. Aos 13 anos, em sua estreia, ela habita a personagem com um olhar denso, capaz de condensar medo, revolta, coragem e fragilidade em um único plano. É impressionante como sua presença domina a tela mesmo no silêncio. A cena em que encara a mãe — sem pronunciar uma só palavra — resume uma história inteira de abandono e
Rômulo Braga, como o pai abusivo, está igualmente perturbador. Sua atuação foge do maniqueísmo: ele é odioso, mas também humano — o que o torna ainda mais assustador. Já Fátima Macedo constrói uma figura materna que dói: sua resignação nos fere tanto quanto a violência explícita. E Dira Paes, ainda que com pouco tempo de tela, carrega com dignidade o papel de uma delegada inspirada em pessoas reais de resistência na região.
A denúncia que não vira panfleto
Ao tratar de uma temática tão sensível, “Manas” poderia facilmente cair em armadilhas panfletárias. Mas não o faz. O roteiro — assinado por um coletivo de roteiristas — é firme na denúncia, mas nunca gratuito. A narrativa cresce aos poucos, saindo de uma calmaria aparente para um crescendo de agonia. Quando o suspense se instala, a tensão é quase insuportável, e o final, embora contenha um fio de esperança, não oferece catarse. É um final que nos deixa remoendo, ruminando, com um gosto amargo na boca.
O simbolismo também é uma ferramenta poderosa no filme. Um batom, um coral gospel, um gesto trivial — tudo ali carrega camadas. A religiosidade, a estrutura patriarcal, a opressão silenciosa que naturaliza o abuso estão presentes com sutileza, sem didatismo.
Limites e críticas possíveis
Apesar da força de sua proposta, o longa não escapa de algumas limitações. A população retratada no filme, por exemplo, poderia ser mostrada com maior pluralidade. Há uma falta de aprofundamento nas tradições culturais locais — que aparecem mais como pano de fundo do que como elementos vivos da narrativa.
Ainda assim, a obra escapa de exotismos e jamais finge dar conta de tudo. Escolhe seu foco e permanece fiel a ele: a história de uma menina que decide romper um ciclo.
'Manas' é chute no estômago com elenco brilhante e sensibilidade sobre abuso sexual
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22. Livrarias de rua engrandecem São Paulo
Estabelecimentos lançam mapa com 37 endereços que merecem ser visitados
Proprietários querem aprovação de lei para regulamentar setor
Vicente Vilardaga, fsp, 10.11.2025
Enquanto grandes redes quebraram, como a Cultura e a Saraiva, ou diminuíram de tamanho nos últimos dez anos, as livrarias de rua em São Paulo apresentam crescimento consistente e voltaram a ser, como em outros tempos, importantes espaços comunitários e de troca de conhecimento onde se promove o debate cultural.
Em vez de circular em shoppings, muitos consumidores estão preferindo buscar lugares aconchegantes e especializados para comprar livros, passar o tempo tomando um café ou participar de algum evento. É o resgate de algo que ameaçava se perder. Nesses estabelecimentos menores se combina a paixão com o negócio.
Para facilitar a vida dos caminhantes, um grupo de 37 livrarias, principalmente na região central e da zona oeste da cidade, produziu um mapa com suas localizações que será lançado no fim de novembro com versão impressa e online. O objetivo é conectar leitores e estimular o turismo literário.
O mapa, que tem tiragem de 40 mil exemplares, coroa um esforço das livrarias de rua para se unir em torno de interesses comuns, como enfrentar a concorrência das plataformas digitais e das feiras universitárias de livros.
As primeiras perturbam por combinar descontos agressivos sobre os preços de capa com logística de entrega rápida. Já as feiras, que são muito populares e atraentes para o consumidor, incomodam o negócio, segundo Adalberto Ribeiro, proprietário da Livraria Simples, na Bela Vista, por oferecerem "preços de fábrica" praticando uma espécie de dumping.
"Apesar desses problemas, nosso maior incômodo é não ter uma lei que impeça as editoras de venderem ao consumidor final e as plataformas de darem descontos sem limites", diz João Varella, dono da Banca Tatuí. "Há dez anos, aguardamos a tramitação da lei Cortez, que estabelece um teto de 10% para descontos em lançamentos durante 12 meses, o que evitaria a desvalorização precoce dos livros."
Mesmo com a situação longe do ideal, principalmente pela perda de margens de lucro, as livrarias físicas, inclusive as de rua, têm ganhado mercado, aberto filiais e avançado sobre o comércio online.
A última pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial, encomendada pela CBL (Câmara Brasileira do Livro) e pelo SNEL (Sindicato Nacional dos Editores de Livros) para o instituto Nielsen, mostra que a receita bruta desses estabelecimentos com obras gerais (ficção e não ficção) subiu 9,2% entre 2023 e 2024.
Além disso, a participação das livrarias exclusivamente virtuais em faturamento com essas obras caiu de 51,8% para 48,8% no período, enquanto a das livrarias físicas subiu de 27,1% para 29,3%. Em volume de livros vendidos, a participação das virtuais caiu de 48,3% para 44,8% e a das físicas, subiu de 28,9% para 31,3%.
Na lista de livrarias presentes no mapa entram nomes como Ponta de Lança, Mundos Infinitos, Casa Cosmos, Cidade de Papel, Eiffel, Megafauna, Diálogos, Tapera Taperá, Simples, Banca Tatuí, Martins Fontes, Travessa, da Vila, entre outras. A iniciativa também é apoiada por diversas editoras, como a Companhia das Letras, a Rocco e a Todavia.
Embora a maior parte dos endereços esteja concentrada no centro expandido e na zona oeste, há lojas nas zonas sul e leste e também redes, como a Travessa e a da Vila, que têm filiais em shoppings, mas mantêm suas raízes na rua. A Megafauna abriu recentemente uma filial no teatro Cultura Artística. E a Martins Fontes ocupa um grande imóvel na avenida Paulista.
O mais importante, porém, é que o mapa se mostra uma estratégia singela para chamar atenção para um fenômeno altamente positivo em São Paulo. Com mais livrarias de rua, pelo menos duas dezenas foram abertas desde 2020, a cidade fica muito mais humana e charmosa.
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23. O estado da cinefilia / Os melhores westerns
Ugetsu 07: O estado da cinefilia vídeo
UGETSU 6: Os melhores westerns (para um deles, os de John Ford são hours concurse).
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24. Agente Secreto' capta a atmosfera de um Brasil sem rumo
Thriller intrigante e surreal de Kleber Mendonça Filho atravessa o país da ditadura, que buscava um futuro
Filme é obra sólida que proporcionou terremoto no público e na crítica
Marcelo Rubens Paiva, fsp, 09.11.2025
[RESUMO] Zeitgeist do Brasil de 1977 é o protagonista de "O Agente Secreto", escreve Marcelo Rubens Paiva, que elogia a profusão de atores espetaculares, cenas de suspense, a trilha sonora, o mistério da trama e o roteiro sem muitas explicações do novo filme de Kleber Mendonça Filho, que acaba de estrear no Brasil.
Em "Nunca Fomos Tão Felizes", filme de Murilo Salles de 1984, um pai busca o filho órfão em um colégio interno religioso e o leva para um apartamento sem móveis de Copacabana. Não sabemos o que o pai faz. Está envolvido na luta contra a ditadura? Está clandestino, se preparando para fugir com o filho para o exílio?
O que movimentava a narrativa era justamente o desconhecido. "O Agente Secreto" narra, também na ditadura, a história de um pai em fuga, Marcelo, que vai em busca do filho órfão na casa do avô, para fugirem do Brasil. Foge por quê? Como morreu a mãe?
Tudo na época dos telefones grampeados era dito em metáforas. Ninguém sabia quem era o quê? Era prudente agir com introversão e sutileza. A verdade era a conveniente. Me permite o testemunho de alguém que viveu naquela época claustrofóbica e ainda por cima andou (no banco de passageiro) em um camburão exatamente como o do filme.
Dois países se colidiam: aquele em que o Estado tratava seu povo como inimigo, tacando o terror sem controle, e aquele de uma parcela do povo acuada, que era solidária, amorosa, que mesmo arriscando a vida ajudava quem precisasse.
Marcelo se instala em um conjunto de casas de pessoas também escondidas, como o garoto que fugiu porque o queriam "homem do jeito que eles querem, o garoto é homem, mas não do jeito que eles querem", local tocado por dona Sebastiana, a pessoa mais amorosa da cidade.
Muitos da resistência que entrevistei pela vida me contaram do carinho e amor que uns sentiam pelos outros nos aparelhos, escondidos, ou nas prisões. É difícil descrever essa atmosfera de amor e horror. Atrás de tanta maldade, tinha muita solidariedade.
Naquele período, muita coisa era sem explicação. Assim é o filme de Kleber Mendonça Filho, com "Culto à Terra" na trilha, do disco esquecido de Zé Ramalho e Lula Cortês, "Paêbirú", de 1975, em uma cena de perseguição que parece ter sido feita para ela.
O magnum opus do rock psicodélico brasileiro, que ninguém comprou, sumiu das prateleiras, cuja primeira tiragem foi destruída em uma enchente, é o espelho da identidade sincretista brasileira, do duelo entre modernidade e passado, em que se jogava bola com uma manga: luz e obscuro, mito e razão, lamento e júbilo.
O disco fala da trilha milenar do povo guarani, que ligava o Atlântico ao Pacífico. Cinquenta anos depois, está no filme que atravessa o Brasil que buscava um futuro, de Chacrinha, Tarcísio Meira aos filmes "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia" e "Iracema: uma Transa Amazônica", homenageados na abertura.
Mendonça é um caso sério. Seu cinema não passa em branco, porque é antropológico, é história, é raiz, é conflito social centenário, é coração. Quem gosta de cinema conhece seus longas e manifesta opiniões exaltadas.
"O Agente Secreto" acelera no circuito de obras sólidas que marcam, nos fazem pensar e debatem o país das contradições e choques de placas tectônicas, proporcionando um terremoto no público e na crítica.
Juliette Binoche, presidente do júri deste ano do Festival de Cannes, que confessou que queria dar um prêmio maior para o longa, disse que o filme tem muitas camadas.
Nos tempos da ditadura e censura, a imprensa sensacionalista foi a salvação das empresas de comunicação. Jornais, programas de rádio e TV viraram um circo de aberrações. Está sempre no pano de fundo em "O Agente Secreto", amplificando o ruído da época.
Aproveitava-se do Brasil místico, supersticioso, assustado. A notícia de que uma perna decepada com unhas grandes e podres perseguia as pessoas na madrugada e as atacava dando chutes virou núcleo no filme.
Na música "Banditismo por uma Questão de Classe", Chico Science fala de um tempo em que se glorificava o progresso, bandidos e a televisão. Em um certo momento, canta: "Galeguinho do Coque não tinha medo da perna cabeluda."
Perna Cabeluda é uma lenda urbana do Recife, cuja paternidade é disputada. Gilberto Freyre, em "Assombrações do Recife Velho", relatou a relação nostálgica e afetiva com o passado pré-aldeia global, de uma sociedade que tratava as assombrações como parte da alma e da memória, cultuada e popularizada em cordéis.
Outra camada: policiais do esquadrão da morte desovam cadáveres pelos rios e açudes. Um tubarão é encontrado com uma perna cabeluda no estômago. Perna de algum dos corpos desovados.
Enquanto isso, no cinema São Luis, o filme "Possessão" leva as pessoas a surtos, como "Tubarão", sim, o de Spielberg, "King Kong" e "O Magnífico" ou "Agente Secreto", uma sátira francesa do cinema de espionagem, com Jean-Paul Belmondo.
Tubarão, perna cabeluda, Marcelo (Wagner Moura) chegando no Recife em 1977 durante o Carnaval, atravessando uma estrada em um canavial, garotas pesquisando essa história no presente, compõem algumas camadas desse thriller intrigante e surreal.
Por certo, o ponto de partida foi a atmosfera de um Brasil sem rumo. Marcelo se meteu com pessoas poderosas e volta para a terra da pirraça. Ele não é um dissidente de esquerda, mas um acadêmico que entra em conflito com o departamento da universidade. É no meio do filme que sabemos o real motivo da fuga.
Identidade e memória são temas recorrentes até o final. Cheguei a ler as críticas que saíram lá fora, para conjecturar a universalidade do filme.
O jornal Le Monde fala da metáfora do período da ditadura: "Este membro inferior, meio decomposto na câmara frigorífica, funciona como uma metáfora do período da ditadura, com seus desaparecimentos e cadáveres nas esquinas".
O crítico da badalada revista Telerama escreveu: "Nove anos depois de um grande filme que já havia marcado o Festival de Cannes e, em seguida, os espectadores franceses, 'Aquarius'', o diretor Kleber Mendonça Filho reencontra a preciosa alquimia: um personagem central em dificuldades, tão cativante quanto encantador; uma história de suspense que se enraíza nos meandros da história do Brasil e se desenrola ao longo de décadas; uma qualidade de olhar excepcional, que dá vida a todos os protagonistas e locais filmados".
The Guardian: "Este filme, visual e dramaticamente soberbo em todos os aspectos, avança pela tela com uma confiança tranquila, fazendo pausas para saborear cada bizarro toque de comédia ou desvio erótico, ou nota de páthos, em seu caminho sinuoso até o violento desfecho".
O zeitgeist da época é, para mim, o protagonista do filme. A munição de Mendonça foi uma profusão de atores espetaculares, cenas de suspense, muita música, o mistério da trama e um roteiro sem muitas explicações. É daqueles filmes que o espectador pensa: "Preciso ver de novo". Se quer ver de novo, é porque é bom.
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25. O degelo do paraíso
Ruy Castro, fsp, 09.11.2025
Reportagem mostra o colapso dos blocos e o mar crescendo na nossa direção
A Groenlândia pode já ter derretido em 2099, mas seus habitantes parecem estar contentes com isso
Não sei se é assim em outras cidades litorâneas do Brasil, mas os moradores da orla carioca têm observado de suas janelas a incidência de mar revolto, o recuo da faixa de areia e as frequentes bandeiras vermelhas nas praias. No final do Leblon, a água quebrando na pedra parece chegar a cada dia mais perto do topo. As ressacas, fenômeno de uma ou duas vezes por ano — os moradores saíam de casa para admirá-las —, agora parecem normais. Não demora, polvos serão encontrados em garagens.
Há anos ouvimos que, com o aquecimento do planeta, o mar iria subir. Prevê-se que a temperatura aumente até 2,6ºC até o fim do século (já estamos em 1,5ºC acima da era pré-industrial), a fazer com que o mar suba acima de meio metro —suficiente para que a vida tenha de se mudar para o segundo andar. E, se 2099 parece distante, uma ótima reportagem de Sônia Bridi para o Fantástico deveria nos alertar para a certeza de, um dia, água nas canelas de nossos netos.
Bridi revisitou há pouco um território que conheceu a trabalho em 2010: a Groenlândia. Já então o degelo do Ártico era preocupante. Hoje, 15 anos depois, gigantes de gelo que ela esperava rever derretiam a seus olhos, abriam-se em fendas colossais ou já tinham se despedaçado e desaparecido. Até há pouco, era normal que as geleiras se retraíssem no verão e se refizessem no inverno, mas, agora, o verão se estende pelo ano. As imagens de Pedro Zero mostram os blocos colapsando e sendo engolidos pelo mar, o qual, inexoravelmente, avança em nossa direção.
Talvez nós, litorâneos e à distância, sejamos os únicos apreensivos com a perspectiva dessa tragédia. A Groenlândia parece feliz com ela —o degelo está beneficiando a economia. Sua indústria de pesca festeja a chegada de novas espécies, e os fabricantes de barcos se desdobram para entregar embarcações maiores e mais fortes para enfrentar os blocos flutuantes.
E o prefeito de uma ilhota, entrevistado por Sonia, não escondia sua alegria pelo aumento de turistas a fim de assistir à morte de seu paraíso.
Derretimento do gelo na Groenlândia pode elevar em 25 cm o nível dos oceanos - galeria
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26. Marisa Monte transmite leveza a plateia receosa em 1º show com orquestra em SP
Cantora fez espetáculo elevando música brasileira e próprio repertório com ‘Phonica’ e 60 músicos no palco. Ela segue para uma segunda apresentação neste domingo, 9
Por Sabrina Legramandi, 08/11/2025
A cantora Marisa Monte se mostrou leve na sua primeira apresentação de Phonica, espetáculo em que é acompanhada por banda e orquestra, neste sábado, 8, em São Paulo. O Parque Ibirapuera foi tomado por um público receoso - a Defesa Civil, na sexta, 7, havia emitido um alerta severo para chuvas e rajadas de vento devido a um ciclone extratropical.
A T4F, produtora responsável pelo show, divulgou um comunicado no sábado informando que as apresentações do fim de semana estavam mantidas. Houve gente, nas redes sociais, que se contrapôs à decisão, afirmando risco de segurança. Quem foi, porém, enfrentou apenas uma garoa irônica que começou logo após Marisa se despedir do público.
Setlist de Marisa Monte em São Paulo
Vilarejo
O que você quer saber de verdade
Infinito particular
Carnavália
Maria de verdade
Ao meu redor
Sua Onda
Ainda bem
Aliança
Amor I Love You
Diariamente
Beija eu
É você
De mais ninguém
Depois
Ainda lembro
A sua
Gentileza
Segue o seco
Panis et circenses
Cérebro eletrônico
Feliz, alegre e forte
Lenda das sereias, rainha do mar
Magamalabares
Velha infância
Não vá embora
Carinhoso
Em dias sem clima propício, cabe ao palco abrir o céu pesado. Marisa conseguiu logo nos primeiros acordes de O Vilarejo. A partir daí, ela não pararia de sorrir e os presentes não parariam de dançar.
Sessenta estrelas a acompanharam no palco, somando os 55 músicos da orquestra, o regente André Bachur e o tradicional quarteto que forma a banda da cantora. É impossível não se emocionar com uma orquestra no palco, mas com Marisa ela se torna ainda mais especial: é prova de que suas músicas, que tanto fazem parte do imaginário popular, podem chegar a patamares ainda maiores de beleza.
Repertório que a valoriza
Sem surpresas e sem mudar nada do setlist em comparação aos shows que fez em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, a cantora ofereceu uma calculada imersão em seu infinito particular. Escolheu músicas que não a valorizam apenas como cantora, mas como intérprete e, principalmente, como compositora.
A cantora mostrou a musicalidade que apenas a língua portuguesa tem em Maria de Verdade. Afinadíssima como a orquestra, regia o público que entoava seus sucessos com gestos teatrais, um vestido rosa choque e flores no cabelo. Tudo isso sem apelar para os efeitos pirotécnicos quase obrigatórios em shows atualmente.
Sua paixão pelos apaixonados teve uma seção especial: ao violão, emendou Beija Eu, É Você e De Mais Ninguém. Mas também houve espaço para a sofrência dos corações partidos com Depois e Ainda Lembro.
Provou a atemporalidade da música brasileira com covers, como a tropicalista Panis Et Circenses, dos Mutantes, e a provocativa Cérebro Eletrônico, de Gilberto Gil. Claro que houve músicas dos Tribalistas. “Essa aqui todo mundo conhece”, disse antes de cantar Velha Infância.
O público de São Paulo, já nos momentos finais do show, a pegou de surpresa cantando à capela o refrão de Não Vá Embora. Era a penúltima música. “Vocês estão com energia, mas quero que vocês vão embora com o coração quentinho” foi a deixa para a última.
Marisa disse que queria uma canção que os brasileiros cantassem “decor” para encerrar o show. A escolhida foi Carinhoso, de Braguinha e Pixinguinha. Com a pompa e a erudição de uma orquestra, letras como essa, cantadas com paixão, são a prova cabal de que a música popular brasileira é sofisticada.
Marisa Monte e Paulinho da Viola - Carinhoso (Pixinguinha) - vídeo
Com o fim do show, tão pontual como o começo, os presentes ainda se uniram para cantar. Mesmo debaixo da garoa, não era incomum ver desconhecidos se abraçando e se unindo em rodas para entoar os sucessos de Marisa ou Doce Vampiro, de Rita Lee, tocada nas caixas de som depois que a cantora deixou o palco. Afinal, como ela canta em Feliz, Alegre e Forte: “O que importa se a noite esfriou?”
Marisa segue para uma segunda apresentação de Phonica na capital paulista no domingo, 9. Os ingressos estão esgotados.
Marisa Monte | Feliz, Alegre e Forte (vídeo)
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27. Venho falando pretuguês, afirma escritora Ana Maria Gonçalves em posse na ABL
Autora de 'Um Defeito de Cor' é a primeira mulher negra eleita
Mineira acena a Lélia Gonzalez e Conceição Evaristo em fala
Yuri Eiras, fsp, 07.11.2025
Ana Maria Gonçalves agradece aos pais em discurso de posse na Academia Brasileira de Letras - vídeo
A escritora mineira Ana Maria Gonçalves, 54, tomou posse nesta sexta-feira em sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. A autora de "Um Defeito de Cor" é a primeira mulher negra em 128 anos de existência da ABL.
A eleição foi em julho, com 30 votos para Gonçalves contra um para a escritora indígena Eliane Potiguara. Havia outros 11 concorrentes.
A escritora abriu o discurso pedindo bênção à mãe. A fala cerimonial acenou para intelectuais negras. A escritora usou expressões cunhadas por Lélia Gonzalez, Leda Maria Martins e Conceição Evaristo.
"Venho falando pretuguês, escrevendo a partir de noções de oralitura e escrevivência", afirmou.
Ela citou nominalmente Conceição Evaristo, autora cuja tentativa de candidatura a uma cadeira na ABL em 2018 gerou debates sobre a pouca presença de pessoas negras. Conceição, que estava na plateia, foi aplaudida de pé.
"Quero fazer avançar na Academia as coisas que nela sempre critiquei, como a falta de diversidade."
Ana Maria Gonçalves toma posse na ABL - imagens
Sua cadeira é a 33, antes do gramático e linguista pernambucano Evanildo Bechara, morto em maio.
"Um Defeito de Cor", publicado pela Record em 2006, abriu novos flancos na literatura brasileira para discutir a diáspora africana.
Tema de uma exposição, a história narrada pela protagonista Kehinde virou enredo na Marquês de Sapucaí, com o desfile da Portela. Logo depois do Carnaval, as vendas do livro dispararam na Amazon, plataforma online de vendas.
O vestido usado por Ana Maria Gonçalves, inspirado no verde do fardão da ABL, foi produzido por costureiros do barracão da Portela. João Vitor Lacombe, Carolina Bomfim, Rayane Costa e Anthony Albuquerque, sob coordenação do carnavalesco André Rodrigues, produziram a peça.
"A Portela deu uma visibilidade ao livro que nenhuma outra festa ou evento literário deu. Tirou realmente o livro da bolha e atingiu gente que só a literatura não atingiria", disse Gonçalves.
A escritora cumpriu os ritos: tomou a sopa com os imortais, fez a fotografia oficial, preparou discurso e foi conduzida ao salão nobre pelas imortais Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro e Míriam Leitão. Eram seis as imortais mulheres na cerimônia. A plateia era de maioria negra.
Após o lançamento de "Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim", sua estreia de 2002, Ana Maria Gonçalves se dedicou a escrever "Um Defeito de Cor" durante cinco anos — dois deles foram de pesquisa, um de escrita e outros dois de reescrita.
O resultado das 952 páginas é uma história que contempla a vida de Kehinde como símbolo de milhões de vítimas sequestradas na África e escravizadas no Brasil. Kehinde vive em busca do filho perdido, Omotunde. A trama é inspirada em Luiza Mahin e seu filho Luiz Gama.
"Nossos arquivos são muito masculinos, muito brancos, muito ocidentais. A literatura faz as vezes da memória e da história, e Ana conta muitas histórias no seu livro", afirmou a historiadora Lilia Schwarcz nesta sexta.
"Estamos vivendo o luto dos complexos do Alemão e da Penha e a gente pode considerar que Kehinde talvez seja uma dessas mulheres negras que perderam um filho. A Folha mostrou que a maior parte dos mortos tinha apenas a descendência feminina [não tinham registro paterno na identidade]. Essas mães perdem os filhos, procuram seus filhos, mas não perdem a esperança."
Mais de 200 mil exemplares de "Um Defeito de Cor" foram vendidos até hoje. Após publicação do livro em 2006, Gonçalves diz ter travado no processo de escrita durante sete anos. A autora mineira focou no teatro e na publicação de textos esparsos, sem lançar um novo romance desde sua grande obra. Pretende publicar uma nova leva de livros em breve.
Relembre os imortais da Academia Brasileira de Letras - imagens
Em votação da Folha com 101 especialistas convidados, "Um Defeito de Cor" foi escolhido como o melhor livro da literatura brasileira do século 21.
Antes de Gonçalves, ocuparam a cadeira 33 Domício da Gama, que morreu aos 63 anos, Fernando Magalhães, morto aos 66, Luís Edmundo, aos 83, Afrânio Coutinho, aos 89, e Evanildo Bechara, aos 97 anos.
"Como podemos ver, há uma progressão. Rumo à verdadeira imortalidade", brincou a nova eleita.
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28. Indígenas caminham para o abismo e COP não vai ajudar, afirma Daniel Munduruku
Escritor dá guinada à literatura adulta com livro 'Fantasmas'
Romance é protagonizado por homem que teve povo dizimado
Walter Porto, fsp, 07.11.2025
Escritor premiado, Daniel Munduruku não é muito de oferecer palavras de conforto. "Se posso fazer uma leitura do que vem pela frente, eu diria que os indígenas estão caminhando para o abismo do desaparecimento."
É só uma das análises pesarosas que ele faz ao longo dos 40 minutos de conversa com o repórter sobre seu novo livro, carregado do pior tipo de pessimismo —o que se baseia em fatos concretos.
Se, como o autor lembra, o Brasil oferece aos indígenas o reconhecimento de suas culturas e o direito à diferença, tendo a Constituição de 1988 como um marco fundamental, isso está longe de garantir sua manutenção perene.
"O que o estado democrático faz é reconhecer que existe a diferença, mas se você não oferece condições para que a diferença exista, a tendência é que ela continue nas periferias, nos guetos", afirma o escritor celebrado de 61 anos e dezenas de livros, que também é vereador em Lorena, no interior paulista, eleito pelo PDT.
"Se o Estado não demarcar terras, aos pouquinhos a integração à cultura brasileira vai acontecer de maneira violenta, como sempre aconteceu, e fazer desaparecer muitas culturas", diz o autor. "Vão continuar no povo brasileiro, mas não terão mais voz autônoma, que exista por si mesma."
A história de Daniel Munduruku - imagens
É o mesmo tom implacável que domina seu novo livro, "Fantasmas", uma guinada à literatura voltada ao público adulto por parte de um escritor que já ganhou três Jabutis por seu trabalho infantojuvenil.
O último desses prêmios foi recebido na semana passada, pelo livro infantil que realizou com a ilustradora Marilda Castanha para a editora Moderna, "Estações". O romance que sai agora é sua estreia na Record, um dos maiores grupos editoriais do país, e traz um enredo muito pautado pelo assombro de desaparecer.
Na história, um homem indígena sobre quem se sabe pouco é detido após cometer um crime que só fica claro conforme a narrativa se desenrola. O que se sabe desde o começo, no depoimento que ele dá a seu advogado, é que sua comunidade foi toda dizimada num massacre que vitimou seus pais e sua mulher grávida.
Os fantasmas do título têm muitos significados —é a maneira como o protagonista se refere aos brancos com quem tem o primeiro contato pouco antes do morticínio de seu povo, mas também se refere aos mortos de quem sente uma saudade tão desoladora que o leva a querer, ele mesmo, sumir. O homem, que depois descobrimos se chamar Peixe, tem um tanto de alma penada.
Munduruku afirma que os indígenas possuem uma espécie algo cínica de "dupla nacionalidade" no Brasil, um traço bem descrito em um trecho de "Fantasmas".
"O Estado o mantinha preso por uma simples confissão, na qual admitia um crime que o tornava uma pessoa perigosa para viver em sociedade. Mas qual sociedade? A sua, de origem, já não existia fazia tempo", diz o livro. "Por outro lado, a sociedade nacional também era sua, mas não o considerava assim, justamente por ele pertencer a um outro povo."
O modo como o país vê os indígenas sempre se dividiu em uma faca de dois gumes, entre o que Munduruku chama de "uma visão ideologizada e uma romantizada".
"O romântico é: o índio é legalzinho, vive lá na floresta, tem uma espiritualidade super avançada e tal. E o ideologizado é que o índio é preguiçoso, o índio tem muita terra, o índio não sabe o que fazer com ela, o índio é selvagem e precisa ser ou integrado à sociedade e virar trabalhador, que é o cinismo da colonização, ou afastado sem nenhum direito."
O fundamento disso não mudou, mesmo que nos últimos tempos haja uma projeção maior de escritores, políticos e colunistas que são indígenas, o que Munduruku vê como um sinal mirrado de esperança. "A gente serve muito mais enquanto formação de identidade ao Brasil que para manutenção das nossas culturas."
"Eu sempre falei que escrevo para público não indígena. Porque o meu público indígena me lê também, mas já conhece basicamente o que eu escrevo. Eu escrevo para as crianças da sociedade branca, dando uma ferramenta para serem humanas melhores, para que possam viver a sua experiência de humanidade de uma maneira mais mais plena, conhecendo a diversidade."
Só que isso não significa que ninguém vai se tornar ativista pela causa indígena. Pelo contrário, diz o escritor, já que o conhecimento adquirido pela literatura pode ser instrumento para afiar melhor as armas da colonização.
O discurso verde que se enxerga por todo canto nesse mês de COP30 em Belém é um exemplo do jogo de espelhos que não comove o autor. Afirma de bate-pronto não ter "expectativa nenhuma" para o evento.
"Eu já conheço bem essas essas dinâmicas de outros carnavais", afirma o escritor, que já bateu ponto com frequência em eventos de alcance global na linha de frente da defesa do patrimônio cultural dos povos originários.
Os dias de COP são protocolares, quase ritualísticos, nas suas palavras. As discussões relevantes de verdade acontecem antes, entre representantes das delegações que amarram o que vai ser assinado. É óbvio, diz ele, que vai render "uma coisinha ou outra, uma palavra nova vai surgir, como surgiu sustentabilidade, economia verde, economia circular".
"Mas já é a COP30. Houve 29 antes, e todas elas seguindo a mesma lógica que acabou por nos trazer aonde estamos hoje. O mundo continua à beira do caos."
O evento acontecer em Belém, região onde ele nasceu, até faz sentido por ser a única cidade amazônica com porte para organizar algo assim. "Mas é pior para a floresta e melhor para o governo do estado. E é pior também para os povos tradicionais que o habitam e que precisam da floresta em pé."
Preço R$ 59,90 (144 págs.), Autoria Daniel Munduruku, Editora Record
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29. 'O Doce está morto': tragédia de Mariana enterrou renda, lazer e cultura centenária ligados ao rio
Samarco diz que monitoramento indica qualidade da água com parâmetros semelhantes à fase pré-rompimento
Artur Búrigo & Pedro Ladeira, fsp, 04.11.2025
De frente para o encontro dos rios Carmo e Piranga, na formação do rio Doce em Minas Gerais, a pescadora Maria da Penha Rocha lamenta.
"Quem é ribeirinho, mora em roça, depende do rio. Eu não sei como as pessoas não entendem o valor que tem isso aqui. O que nos foi tirado", diz ela, na divisa entre os municípios de Rio Doce, Ponte Nova e Santa Cruz do Escalvado, na Zona da Mata mineira.
Há dez anos, a rotina dela e de outras pessoas da região que mantinham relação direta com o rio foi revirada com o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana, cidade distante a mais de 100 quilômetros.
Os cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos que se desprenderam da barragem da Samarco https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/02/afetados-por-rompimento-da-barragem-da-samarco-perderam-2-anos-de-expectativa-de-vida-saudavel.shtml em 5 de novembro de 2015 passaram pelos rios Gualaxo do Norte e Carmo e chegaram na manhã do dia seguinte ao Doce.
'O Doce está morto': tragédia de Mariana enterrou renda, lazer e cultura centenária ligados ao rio - vídeo
A lama seguiu seu trajeto na bacia e chegou ao litoral do Espírito Santo no dia 21 daquele mês, em episódio considerado pelo MPF (Ministério Público Federal) como o maior desastre ambiental do país.
Penha, que é presidente da associação de pescadores de Santa Cruz do Escalvado e participa do conselho do governo federal sobre o rio Doce, detalha como os rejeitos que chegaram há dez anos ainda impactam diariamente a comunidade local.
"Nós pertencemos ao rio, e hoje não temos vida. As lembranças são muito boas para estar hoje nesta situação de não poder usar a nossa casa. Isso aqui não era só uma fonte de renda, era tudo. Tudo a gente extraía do rio. O peixe, a faiscação [forma de garimpo artesanal], o lazer, as amizades", afirma.
Procurada, a Samarco afirma que o monitoramento hídrico na bacia do rio Doce indica que a qualidade da água apresenta parâmetros similares àqueles anteriores ao rompimento da barragem de Fundão.
Além de ter causado impactos financeiros, a inviabilidade de atividades no rio deixou traumas na comunidade, que viu aumentar as pessoas dependentes de álcool e drogas, afirma a presidente da associação. "É uma maior tristeza quando sei que uma pessoa que vivia aqui, que tinha uma vida saudável, hoje está com uma vida totalmente destruída porque a cabeça foi fraca. Ela se sentiu perdida sem o rio", diz Penha.
Ela afirma que a situação tende a piorar após março de 2026, quando está previsto que a Samarco deixe de pagar um auxílio mensal para pescadores e faiscadores que perderam renda com o rompimento da barragem.
O fim do benefício, que garante um salário mínimo e uma cesta básica para os atingidos e mais um adicional para dependentes, está previsto no acordo de repactuação assinado por governos e mineradoras.
"Como é que a gente vai fazer se o rio ainda não está bom para pescar? Quem está lá fora [referindo-se aos órgãos que assinaram a repactuação] não enxerga isso", diz.
A Samarco afirma que além do auxílio, o novo acordo previu pagamento de cerca de R$ 885 milhões para "ações e medidas estruturantes" para faiscadores. Os recursos poderão ser acessados pela comunidade caso opte pela reparação definitiva em processo que deve acontecer em até seis meses.
A mineradora não detalhou qual opção restará aos pescadores, que seguem sem a possibilidade de alcançar renda a partir do rio.
O senso de comunidade citado por Penha era ainda mais presente entre os faiscadores. A prática consiste em uma forma artesanal e manual de garimpo, praticada às margens de rios, em que são procuradas pequenas partículas de ouro misturadas à areia
"Muitas das vezes você ficava a semana toda na beira do rio. Porque ia fazer a faiscação e fazia um acampamento para pescar à noite, principalmente nos finais de semana. Hoje é até difícil encontrar com os colegas, porque não tem esse encontro marcado no rio", diz Geraldo Marcelino de Souza, conhecido como Ladinho.
A tradição, que foi repassada entre gerações naquela região, foi interrompida desde o primeiro dia que o rejeito atingiu o rio, afirm
"Faiscação aqui acabou. Não existe, não tem como mais. Às vezes, as pessoas ainda saem tentando em algum canto de barranco, mas não adianta, não consegue", diz.
Tuzinho e Ladinho dizem que a tradição não deve seguir pelas próximas gerações porque não acreditam que todo o rejeito que está depositado no leito do rio e em suas margens será um dia retirado. Para eles, assim como para Penha, o Doce está morto.
A discussão sobre a retirada de rejeitos motiva debates e estudos entre especialistas e autoridades ambientais.
A grande discussão consiste sobre o que fazer a respeito dos cerca de 10 milhões de metros cúbicos que estão depositados em área da usina hidrelétrica Risoleta Neves.
Mais conhecida como usina de Candonga, ela fica no limite entre as cidades de Santa Cruz e Rio Doce e voltou a operar em 2023.
O acordo de repactuação assinado no ano passado por autoridades públicas e mineradoras determinou que caberá ao Ibama decidir sobre o licenciamento ambiental da área e sobre a retirada total, parcial ou a manutenção dos rejeitos.
"Retirar os rejeitos implica também transportá-los para um outro local e haver uma disposição [armazenamento], então há uma série de impactos relacionados a isso", afirma Edmilson Maturana, coordenador-geral de licenciamento ambiental de empreendimentos fluviais e pontuais terrestres do Ibama.
Ele explica que os rejeitos depositados na usina contêm uma porção de lama significativa, que torna difícil o armazenamento desse material em pilhas, mais adequadas para a estabilização do material.
Ao mesmo tempo, Maturana diz que o rejeito que está na usina não é inerte, ou seja, pode liberar substâncias prejudiciais ao meio ambiente, principalmente em períodos de chuva. O técnico afirma, porém, que o material não apresenta toxicidade crônica.
"A gente como técnico percebe que há uma dificuldade nessa tomada de decisão", diz.
Deformidades em animais marítimos que estariam relacionadas à tragédia de Mariana - imagens
O acordo de repactuação determina que, caso o Ibama conclua que uma parte do material não será retirada da usina, caberá à Samarco ressarcir os cofres públicos em R$ 450 o metro cúbico do sedimento que ficará na usina.
"Mas não é com esse cenário que a gente trabalha, a gente está focado na retirada mesmo e no trabalho de avaliação", diz Sergio Domingues, superintendente do Ibama em Minas Gerais.
Ele afirma que as decisões do Ibama serão baseadas em consultas públicas e avaliações junto à comunidade afetada. A decisão sobre a retirada dos rejeitos está prevista para ser tomada de dois anos meio a cinco anos.
Outra preocupação é sobre os rejeitos que estão nas margens dos rios e que são levados para o leito em períodos de chuva.
Miguel Felippe, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), afirma que o rio Doce nunca retornará às condições que existiam antes do rompimento, mas que a solução ideal passa pela retirada total do rejeito.
"A opção não é simples, considerando que há uma necessidade de maquinário, tem de ser feito com critério, conjunto técnico adequado, mas essa era de fato a melhor opção. Apesar de ser a mais custosa do ponto de vista financeiro, do ponto de vista ambiental é a única opção possível", afirma.
O professor diz que a estratégia da retirada dos rejeitos das margens também é necessária para a melhora da qualidade da água ao ponto de a pesca ser restabelecida no Doce.
"Caso contrário, a gente começa a enxugar gelo. Tenta melhorar a qualidade da água, mas vem a chuva e leva os rejeitos de novo para o rio".
Doenças da barragem imagens
A preocupação com a permanência dos rejeitos se estende por todo o trajeto do rio Doce, até o Espírito Santo.
Para José Carlos Loss Júnior, presidente do comitê da bacia hidrográfica do rio Doce, a situação é semelhante a de "um paciente que ainda está com a bala dentro do corpo".
Ele cita os municípios de Colatina (ES) e Governador Valadares (MG), que têm restrição de fontes alternativas de abastecimento além do Doce e onde a população ainda não tem plena confiança no consumo da água, mesmo dez anos após a tragédia.
A Samarco diz que estão em processo de recuperação ambiental mais de 160 hectares, em mais de 180 propriedades, nos municípios de Mariana, Barra Longa, Ponte Nova, Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce.
"Os trabalhos de cercamento e proteção atualmente alcançam 42,7 mil hectares de um total de 50 mil previstos para reflorestamento compensatório, além de 3,9 mil nascentes protegidas em toda a bacia", diz a empresa.
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30. Usina em Aimorés tenta renovar licença desde 2021 e pode perder concessão
Ibama vê descumprimento reiterado de condicionantes ambientais e diz que pode recomendar cassação de licença
OUTRO LADO: Empresa diz que cumpre obrigações estabelecidas em licenciamento e que apresenta suas ações ao órgão federal
André Borges&Pedro Ladeira, fsp, 03.11.2025
Há quatro anos, o descumprimento reiterado de compromissos ambientais tem impedido que a concessionária Aliança Geração de Energia, que hoje pertence à mineradora Vale e ao fundo americano de investimentos GIP (Global Infrastructure Partners), consiga renovar a licença de operação da usina Aimorés junto ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Em agosto deste ano, após sucessivos pedidos apresentados pela empresa, analistas do órgão federal apertaram o cerco e exigiram uma solução que dê fim ao dano ambiental causado pelo regimento da usina. A Folha teve acesso a esse relatório técnico.
Cidade de Aimorés (MG) convive com o leito seco do rio Doce desviado pela Vale vídeo
No documento, os analistas dão prazo de 120 dias para que a empresa apresente um novo estudo sobre o volume de água que deverá ser liberado no trecho seco da cidade. A proposta deve considerar, ainda, o derramamento da água localizada na superfície do reservatório, e não de água profunda. Não se trata de um detalhe técnico. Foi apontado que a cidade vinha recebendo água de baixa qualidade da barragem, por ser liberada de pontos que concentram mais sedimentos e menos oxigênio.
Caso as exigências não sejam atendidas, os analistas dizem que vão rejeitar a renovação da licença da usina, além de enviar à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) uma recomendação para que a concessão seja cassada.
Cidade sem rio
Entenda o drama ambiental causado pela usina
"Há trechos com água parada ou estagnada, onde formam-se inúmeras poças, alevinos são aprisionados e prevalece um ambiente insalubre, devido ao acúmulo de sólidos, lixo e esgoto, a proliferação de larvas, insetos e urubus; ambiente propício à transmissão de doenças", afirma o relatório.
O Ibama diz ainda que "a não efetivação do espelho d'água na cidade ocasiona impactos socioambientais significativos à comunidade afetada (impacto visual, prejuízo às atividades de lazer e pesca), a deterioração da qualidade das águas e proliferação de vetores nas poças".
Em sua conclusão, o documento afirma que "o meio ambiente continua, desde 2005, sofrendo os impactos ambientais decorrentes da não execução ou falta de efetividade das medidas mitigadoras inicialmente propostas pela empresa".
Naquele ano, indígenas do povo krenak que vivem na região até hoje chegaram a interditar a Estrada de Ferro Vitória-Minas para reivindicar compensações e indenizações relativas a desocupações provocadas pela instalação da hidrelétrica.
Até setembro do ano passado, a concessionária Aliança Energia pertencia à Vale e à Cemig, quando esta vendeu a fatia de 45% que detinha no negócio para a mineradora, por R$ 2,74 bilhões. No anúncio de venda, declarou que "foi negociada na modalidade de 'porteira fechada', exonerando a Cemig GT de qualquer eventual indenização relativa à Aliança".
Em setembro deste ano, foi a vez de a Vale vender 70% da concessionária para o grupo americano GIP (Global Infrastructure Partners), por US$ 1 bilhão (R$ 5,4 bilhões), mantendo 30% das operações sob seu comando.
Nos últimos anos, a usina de Aimorés foi alvo de multas milionárias do Ibama. Apesar de todo o histórico de autuações e do caos flagrante que ainda se observa na orla de Aimorés, a empresa nega as acusações.
Vidas Secas - fotos
À Folha a usina declarou que "cumpre rigorosamente todas as obrigações estabelecidas no licenciamento ambiental do empreendimento, apresentando periodicamente ao Ibama todas as ações relacionadas à execução dos programas ambientais e condicionantes, que comprovam as ações realizadas".
Questionada sobre a razão técnica que levou ao desvio da água do rio Doce, em vez de mantê-lo em seu leito natural, a empresa declarou que a escolha "decorre do arranjo técnico e construtivo da usina, aprovado pelo órgão ambiental".
A despeito de todos os apontamentos do Ibama, a empresa também nega problemas com a qualidade da água que entrega à população e atribui responsabilidade à prefeitura. "Análises técnicas indicam que a operação da usina não tem contribuído para a degradação da qualidade da água no trecho de vazão reduzida, a qual sofre influência de fatores externos como variações climáticas e lançamento de esgoto sanitário do município sem tratamento", afirmou.
Questionada sobre o fato de não ter cumprido a promessa de manter um espelho d’água no trecho, a empresa declarou que "este foi avaliado e considerado inviável devido a restrições técnicas e de segurança para a população". Essa conclusão, porém, como admite a própria companhia, só chegou seis anos após o início das operações da usina, quando a hidrelétrica já era um fato consumado.
"Essa decisão foi debatida de maneira aprofundada com o Ibama e comunicada à população em reunião pública, realizada em 05/11/2012", afirmou a empresa.
Sobre o esgoto de Aimorés, a companhia declarou que houve tratativas com a prefeitura entre 2023 e 2024, com proposta de repasse financeiro para execução das obras, mas que, em 2025, "houve mudança no posicionamento do município, e novas tratativas estão em andamento, sendo que a usina de Aimorés aguarda definição da gestão do município para que um acordo seja firmado".
A reportagem procurou o prefeito de Aimorés, Adriano Garcia (PL), que está em seu primeiro ano de mandato. Foram feitos contatos por email e telefone, mas não houve retorno.
A presidência do Ibama, em resposta encaminhada à Folha, declarou que seus relatórios "indicam o descumprimento reiterado de condicionantes da Licença de Operação por parte da empresa responsável" e confirmou ter dado 120 dias para a empresa apresentar medidas efetivas. O prazo para as resposta se encerra neste mês.
Segundo o órgão ambiental, foram aplicadas duas multas contra a empresa, diante das irregularidades constatadas por operar em desacordo com o que prevê a licença. "O instituto também estabeleceu multa diária no valor de R$ 10 mil até a comprovação do cumprimento das medidas exigidas", afirmou.
"O Ibama segue atuando rigorosamente na esfera administrativa e avalia, caso não haja atendimento das obrigações dentro do prazo estabelecido, a possibilidade de recomendar a caducidade da licença de operação da usina hidrelétrica Aimorés".
A Aneel e o Ministério de Minas e Energia não se manifestaram sobre o assunto.


































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