Máximas marxianas - parte 2
Seguindo Máximas marxianas (ler aqui), os extratos selecionados por mim, do livro "Karl Marx: uma biografia" de José Paulo Netto.
No tocante à validez contemporânea da obra de Marx, penso que, nesta segunda década do século XXI, a teoria marxiana continua válida e absolutamente necessária para compreender o capitalismo dos nossos dias, mas, ao mesmo tempo, entendo que ela não é suficiente: para compreender o capitalismo contemporâneo, é preciso investiga-lo a partir não das conclusões marxianas, e sim da sua concepção teórica-metodológica. [1]
II - Paris: a descoberta do Grande Mundo (1843 - 1844)
A concepção filosófica-antropológica de Marx [2] é explicitada nos paragráfos que compõem o segmento "Trabalho alienado e propriedade privada", mas é objeto de novas desterminações no terceiro manuscrito; por isso, na exposição dela, já aqui recorreremos também a passagens deste último manuscrito. Clarificar essa concepção, num excurso necessariamente sumário, por certo contribui para a compreensão da concepção marxiana da alienação e dos próprios Manuscritos ;
Tal concepção filosófico-antropológica [3], que Marx desenvolve em 1844, assenta na ideia de que o ser do homem se constitui enquanto atividade vital consciente enquanto atividade livre consciente. A forma primária dessa atividade é o trabalho, a própria vida produtiva, traço distintivo do ser do homem em face do universo da vida animal. Lê-se nesse primeiro manuscrito:
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se diferencia dela. É ela. O homem faz a sua própria atividade vital objeto da sua vontade e da sua consciência. Não é uma determinidade com a qual ele se confunda imediatamente. A atividade vital consciente diferencia imediatamente o homem da atividade vital animal. [...] Decerto, o animal também produz. Constrói para si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo, produz apenas o que necessita imediatamente para si ou para a sua cria; produz unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; produz apenas sob a dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade da mesma. [...] O animal dá forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada species e sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objeto; por isto, o homem dá forma também segundo as leis da beleza.[4]
Mas o trabalho, atividade vital específica do homem - que o distingue da vida animal - não suprime da sua naturalidade. Para Marx, "o homem (tal como o animal) vive da natureza", tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, como na medida em que ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer a natureza na medida em que não é ela própria corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de permanecer em constante processo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem esteja em conexão com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da natureza. [5]
Notas de 67 a 70 [3]
......
Sob a luz de Marx, no primeiro manuscrito, relaciona o salariato, trabalho despossado (isto é, trabalho alienado) e a propriedade privada: "Salário é uma consequência imediata do trabalho alienado e o trabalho alienado é a causa imediata da propriedade privada"86; por isso a propriedade privada é vista "enquanto a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado". Linhas antes, todavia, Marx já desenvolvera com mais elementos tais relações:
Através do trabalho alienado, exteriorizado, o trabalho gera a relação de um homem alienado ao trabalho e postado fora deste trabalho. A relação de um homem alienado ao trabalho e postado fora deste trabalho. A relação do trabalhador gera a relação daquele com o capitalista [...]. A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a consequência necessária do trabalho exteriorizado [...]. A propriedade privada resulta, portanto, por análise, a partir do conceito de trabalho exteriorizado, i. é, do homem exteriorizado, do trabalho alienado, da vida alienada, do homem alienado.
É certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriorizado (da vida exteriorizada) a partir da economia nacional como resultado do movimento da propriedade privada. Mas a análise deste conceito mostra que, se a propriedade aparece como fundamento, como causa do trabalho exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também originariamente os deuses não são a causa, mas efeito do extravio humano do entendimento.
Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da propriedade privada se evindencia de novo o seu segredo, a saber: por um lado, que ela é o produto do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que ela é o meio através do qual o trabalho se exterioriza, a realização dessa exteriorização.
É fundamental observar que a relação entre trabalho alienado e propriedade privada é saturada pela divisão do trabalho (que já nos Cadernos, fora também posta como expressão alienada). Num importante fragmento dedicado a ela nos Manuscritos, Marx registra:
A divisão do trabalho é a expressão nacional-econômica da sociabilidade do trabalho no interior da alienação. Ou, dado que o trabalho é apenas uma expressão da atividade humana no interior da exteriorização, da expressão de vida como exteriorização de vida, assim também a divisão do trabalho não é senão o pôr alienado, exteriorizado, da atividade humana como uma atividade genérica real ou como uma atividade do homem como ser genérico. [A divisão do trabalho é a] figura alienada e desapossada da atividade humana como atividade genérica.
Divisão do trabalho que se conecta com a produção mercantil, que, de acordo com o segundo manuscrito, não apenas produz bens de troca, como também é a produção que produz o homem não só como mercadoria, a mercadoria-homem, o homem na determinação de mercadoria. [6]
Nota 86 [5]
Em Paris, no fim do verão de 1844, os caminhos de Marx e Engels, jovens de respectivamente 26 e 24 anos incompletos, se cruzaram para o compartilhamento de vida, lutas e obras, numa relação que se estendeu por praticamente décadas, até a morte do primeiro.
Vincularam-se de começo por razões políticas e logo construíram uma duradoura amizade, estabelecendo rara e fecunda colaboração intelectual. Amadureceram estimulando-se mutuamente e desenvolvendo as suas personalidades muito diferentes: Marx, um gênio obsecado pela pesquisa filosófica e em seguida pela teoria social, algumas vezes irritadiço e outras tantas impaciente, a cada dia mais preferindo o exame rigoroso de problemas e documentos a quaiquer mundanismos; Engels, uma inteligência brilhante e uma invejável capacidade de trabalho, coladas a uma generosidade pessoal ímpar e a um gosto refinado pelas boas coisas da vida [7]. A mais alta estatura intelectual de Marx nunca foi posta em questão por Engels, que, por seu turno, era um pensador de luz própria e interesses autônomos; Marx sempre foi profundamente grato ao amigo, quer pelo contributo que Engels deu à sua obra, quer pelo suporte material decisivo que dele recebeu [8]. O fundamento objetivo dessa amizade, para além da solariedade fraterna própria a ela, residiu na enérgica paixão revolucionária que os animava e na inquebrantável confiança no protagonismo histórico do proletariado. Não por acaso, na história do movimento socialista revolucionário, a relação entre Marx e Engels tornou-se reverenciada desde Lênin, para quem "as lendas da Antiguidade contam exemplos comoventes de amizade. O proletariado da Europa pode dizer que sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos" (Lênin, 1997, v. I, p. 33 [8]). [10]
Notas 131 e 132 [7]
Bibliografia
[1] Netto, José Paulo, Karl Marx: uma biografia, p. 33, Boitempo, 2020
[2] Obra citada, Nota 67 p. 557
[3] Obra citada, Nota 68 p. 557
[4] Obra citada, Nota 69 p. 558
[5] Obra citada, pp. 107-108
[6] Obra citada, pp. 112-113
[7] Obra citada, pp. 564
[9] Obra citada, pp. 571 e 572
[10] Obra citada, pp. 131 e 132
[8] Lênin, Vladmir Ilitch Uliánov, Obras escolhidas em três tomos, Lisboa/Moscou, Avante! Progress, 1977-1978





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