segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Morte vulgar

 Ao buscar a vida, eu criei a morte. (Frankenstein, o criador, o monstro). Não consigo morrer e não consigo viver. Não posso encarar um fim tão vulgar. (A criatura, a vítima)


3.700 dias 19 horas 56 min 04 segundos

Les eaux glacées du calcul égoiste

Victor era um burgês e por conseguinte um egoista. Não vivia em águas geladas. Pelo contrário, vivia num clima quente, escaldante, do interior do Estado de São Paulo. Já beirava os oitenta. Vivia só, mas não era gregário. Tinha sua turma. 

Cara, pare de fumar. Você quer antecipar tua morte? dizia um amigo.

E ele respondeu: morte? Neste inferno em que vivemos, a morte seria um alívio. Quem sabe existe um inferno melhor depois da morte, se é que tem existência post-mortem.

Revide do amigo: reclamando de barriga cheia. Tens uma boa aposentadoria, família, esposa, filhos e filhas, netos e netas e até bisnetos e bisnetas. Pessimismo não.

Você tem razão, pessimista. O que você disse da família é necessário, mas insuficiente. Convivo com um exterior de guerra de classes, de genocídios, de guerras fraticidas, de políticos filhos da puta e um crescente desastre ambiental. Para simplificar, num processo de auto-destruição, respondeu Victor.


3.304 dias 11 horas 56 min 30 segundos

A chave dos Lusíadas

Victor para uma roda de amigos e amigas: Sempre fui do livro. Desde criança lia muito. É de lá que lembro da História do mundo para as crianças de Monteiro Lobato. Foi minha primeira infantil visão de mundo. Mais tarde, já jovem, me enroscava no caderno de cultura do Estadão. Não entendia 40% do que lia, mas estoicamente, ia até o fim.

Vê-se que tem muitos livros mesmo. Quando estive na tua casa percebi. Peguei em alguns, disse uma amiga. Aliás cheguei a folhear o livro Luis de Camões, A chave dos Lusíadas, edição de 1907. Bem velhinho, mas conservado.

Pois é, deve ser uma bibliotecazinha de uns quinhentos livros mais ou menos, disse Victor. Aliás, não sei para onde vão estes livros, quando me for deste mundo para outro.


2.756 dias 17 horas 27 min 56 segundos

Ateu graças a Deus

Victor, tinha a fama na cidade de um leitor voraz. Num belo dia um professor o convidou para conversar com seus alunos e alunas. Sobre literatura.

Para uma turma de ensino médio ele disse:

"Minha cabeça deve a sua perfeição ou a sua imperfeição à literatura e ao cinema; à família; à interação (com as pessoas), à ação e à autonomia. Sou gregário, mas as vezes egoísta. Resumindo, só da literatura, o que me fez a cabeça? Dom Casmurro do Machado de Assis, Angústia do Graciliano Ramos, Cem anos de solidão do Garcia Márquez, Fausto do Goethe, Grande sertão: veredas do Guimarães Rosa, O manifesto comunista de Marx e Engels. E outros por aí".

Num momento da conversa um fedelho perguntou: o senhor tem religião?

De pronto Victor respondeu: "Não, sou ateu graças a Deus". E a sala toda caiu na gargalhada.


1.101 dias 9 horas 00 min 20 segundos

Elogio à tristeza

Um bicho contraditório. Nem bom, nem mau. Um homem humano. Assim era Victor. Em família tinha lá seus tempos de tirania. Liza, sua esposa, que o diga. Um drama gótico é o que ela dizia sobre o seu casamento com Victor. Mas tiveram tempo para filhos, netos e bisnetos.

Tudo misturado com melancolia, alegria, histeria e tristeza. Até que que veio a tempestade. Victor foi diagnosticado com enfisema pulmonar.

Tornou-se intratável e irascível. Um Mephisto faustiano. Pulsão de morte? Sim. Destruição e autodestruição. E quem pagou o preço? A família, que foi contaminada pela tristeza.

Antes desta tempestade, Victor dizia que gostaria de morrer bem. Com saúde. Não foi o que viria acontecer.

502 dias 13 horas 37 min 45 segundos

Se você morrer eu te mato

Conversando sobre Liza. Mulher calma, com uma paciência de Jó, mas se alguém pisar no calo ela explode. Victor sabia quem era sua esposa. Cinquenta e dois anos de convivência deixaram marcas. 

Tudo bem, querido, sei que tua doença tirou você do prumo. Agora sei também que você não pode extrapolar os limites da boa convivência agredindo, verbalmente, todo mundo. Conheço quem é você por baixo desta pele de cordeirinho. Disse ela a Vitor, ainda num dia de calmaria.

Olha aqui, eu também te conheço. Uma bruxa rabugenta com pacto com o diabo. Não me encha o saco, retrucou Victor.

Pisou no calo.

Com uma fúria indescritível, Liza replicou: olha aqui, seu filho da puta, vá para o inferno. Suportei você nesses anos todos para agora me condenar como a bruxa rabugenta? Agora sim, para eu estar certa, se você morrer, eu te mato. 

10 dias 05 horas 27 min 32 segundos

Morte vulgar

Notícia na TV: Um caminhão de lixo tombou na manhã desta segunda-feira (27) após bater em um veículo de passeio na pista próxima ao Rio Pardo, no sentido da Rodovia Washington Luís.

Victor estava neste veículo de passeio. Morreu instantemente. Não morreu bem como desejava, mas quase não sofreu. Liza lamentou não poder matar o morto. O corpo estava praticamente em cinzas.

Vida vulgar, morte vulgar

00 dias 00 horas 00 min 00 segundos

FIM


Dando nome aos bois

Ao buscar a vida, eu criei a morte. (Frankenstein, o criador, o monstro). Não consigo morrer e não consigo viver. Não posso encarar um fim tão vulgar. (A criatura, a vítima) É, mais ou menos, do filme Frankenstein, 2025 de Guillermo del Toro

Pluribus, série de TV, 2025, foi de onde tive a ideia de segmentar o texto em partes temporais (dia, hora, minuto, segundo)

Les eaux glacées du calcul égoiste (tradução livre: as águas geladas do cálculo egoísta) está lá no Manifesto comunista de Marx & Engels publicado em 1948

Se você morrer, eu te mato, surrupiei do livro Samuel Fuller, se você morrer, eu te mato! Ruy Gardner, Fundação Cultural Banco do Brasil, 2013.






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