Cem anos de solidão, 2018, Gabriel García Márquez (Autor), Eric Nepomuceno (Tradutor), Record
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O ladrão erudito
O mergulho
Sempre que mergulhamos no mar estamos trocando de mundos, nos alheando da realidade trivial — assim como fazemos ao mergulhar num livro
Por José Eduardo Agualusa, O Globo, 21/12/2024
Em agosto do ano passado um ladrão arrombou um apartamento, em Roma. Encontrou um livro, abriu-o, talvez pensando se valeria a pena levá-lo, e logo se esqueceu do tempo e das circunstâncias — foi preso, horas depois, mergulhado na leitura.
O episódio terminou beneficiando o escritor Giovanni Nucci, autor do livro que tanto interessara ao ladrão, uma releitura da “Ilíada” a partir da perspectiva dos deuses gregos: “Gli dèi alle sei: L'Iliade all'ora dell’aperitivo” (“Os deuses às seis: a Ilíada na hora do aperitivo”.
É fácil simpatizar com o larápio romano porque, no fundo, todos queremos acreditar no famoso provérbio, segundo o qual “bons leitores nunca roubam e ladrões não gostam de ler”. Um ladrão apaixonado por livros, além de uma improbabilidade estatística, é quase um herói romântico, uma espécie de Arsène Lupin.
Num dos principais festivais literários de Portugal, o Correntes d’Escritas, na Póvoa do Varzim (cidade onde nasceu Eça de Queirós), um ladrão erudito assalta, todos os anos, a livraria associada ao evento. No lugar de cada volume roubado, o amável rapinante deixa um presente para o livreiro — ilustrações retiradas de um herbário antigo. O ladrão da Póvoa rouba sempre os livros mais interessantes, umas vezes romances, outras ensaios, demonstrando afinada sofisticação e cultura. Vendo bem, os roubos dele valem como recomendações literárias. Alguns leitores procuram a lista dos títulos roubados, com a mesma ansiedade com que antigamente comprávamos os jornais para ler as colunas dos nossos críticos favoritos.
O que mais me fascinou na primeira história, quando a encontrei, nas páginas de um jornal português, foi o poder da leitura para nos retirar da presente realidade, lançando-nos no interior profundo de universos paralelos. É o que significa a expressão “mergulhar na leitura”. Sempre que mergulhamos no mar estamos trocando de mundos. Estamos nos alheando da realidade trivial — o mesmo ocorre quando mergulhamos num livro.
Ao abrir o livro de Giovanni Nucci, ao entrar dentro dele, o nosso larápio improvável deixou aquele apartamento burguês, em Roma, e reencarnou em Troia na pele de Aquiles. Estava em Troia, cercado por estranhos deuses e pelo fragor das batalhas, quando a polícia o deteve.
A minha mãe, Dorinda, foi professora de português. Leu muito a vida inteira. A partir de certa altura, com 86 anos, foi-lhe diagnosticada uma doença nos olhos, degenerativa e incurável. Aceitou a doença com um otimismo indestrutível: “o lado bom é que agora a casa me parece sempre limpa” — disse-me.
A funcionária que a ajudava nos trabalhos domésticos, Dona Bela, começou a ler para ela. Conversavam muito sobre os livros que iam lendo — os grandes clássicos da literatura universal, mas também as novidades do momento. Hoje, Dona Bela tem uma cultura literária (e uma biblioteca) que qualquer acadêmico invejaria. Aposentada, continua a visitar a minha mãe, todas as tardes, para lhe ler romances, contos, poesia.
É difícil saber se Dorinda, que há alguns anos sofreu um terrível AVC, ainda consegue acompanhar as leituras. Quero acreditar que sim. Quero acreditar que cada tarde mergulha em mundos novos, vendo, com olhos jovens e saudáveis, as paisagens autênticas, as vidas verdadeiras, que só a ficção pode criar.
Entrevista com José Eduardo Agualusa e Mia Couto
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João Reis vira referência LGBT no tênis: 'Minha voz é importante agora'
Alexandre Cossenza, UOL, 16/12/2024
Era para ser apenas um desejo público de feliz aniversário para o namorado, mas a postagem feita no dia 7 de dezembro por João Lucas Reis, o 11º mais bem colocado brasileiro no ranking mundial do tênis, pegou muita gente de surpresa. A maioria dos fãs da modalidade não sabia do relacionamento do pernambucano, e a repercussão foi muito além das expectativas do próprio atleta.
Do dia para a noite, João transformou-se no "primeiro tenista homem do mundo em atividade a assumir sua homossexualidade." Notícias sobre seu post no Instagram correram o planeta, preenchendo todo tipo de veículo jornalístico, do Pink News ao Daily Mail. Até o New York Times procurou o atleta.
Reis tornou-se uma referência mundial. Pioneiro para uns, inspiração e muito mais para outros. No meio disso tudo, precisava manter a cabeça no lugar e disputar um torneio importante: a Procopio Cup, em São Paulo, não dava pontos no ranking, mas premiava o campeão com um wild card - convite - para o Rio Open, um ATP 500, o mais importante torneio do circuito mundial na América do Sul.
Nesta segunda-feira, o brasileiro pode dizer que passou com notas máximas pela primeira semana de sua nova vida. Conquistou o título da Procopio Cup, ganhou o convite para disputar o qualifying do Rio Open, e fez tudo isso sem deixar que a fama recém-adquirida atrapalhasse seus objetivos. E foi depois disso tudo, na tarde de domingo, que conversamos rapidamente enquanto João se preparava para ir ao aeroporto, para falar sobre como viveu esses dias.
Conta um pouco da história e do timing desse post, João:
Eu saí do armário tem cinco anos. Foi quando eu comecei a contar para os meus pais, a minha família, meus treinadores, o pessoal do tênis também. Pra mim, sempre foi uma coisa natural depois disso. Eu namoro o Guilherme há dois anos, e sempre levei ele para os torneios. O pessoal dos torneios da América do Sul... Todo mundo já sabia, então para mim foi uma coisa natural. Nem pensei que [o post] ia tomar uma proporção tão grande. Foi só um post para o aniversário dele, e acabou que tomou essa proporção inteira. Muita gente me mandou mensagem me parabenizando, falando que me admira, falando que eu sou uma inspiração para muita gente, e eu fiquei muito feliz a semana inteira de receber essas mensagens. Por que agora? Foi meio natural. Como é uma coisa normal pra mim há um tempo já, acabei postando como já tinha postado Stories com ele também no dia dos namorados, e talvez o pessoal não tenha percebido. Mas enfim, é uma coisa que não escondo há muito tempo, tanto que levo ele para todos torneios que eu posso. Sempre quando a gente consegue ficar junto, ele está comigo, então foi meio que uma coisa natural. O bom é que a repercussão foi boa também. Muitas mensagens boas comparadas com as ruins, que foram nada.
Teve mensagem de ódio?
Teve. Sempre tem, mas se pegar no contexto geral, é 95% de mensagens boas, e 5% de ruins, então nem vejo direito. Fiquei muito feliz com a repercussão que teve.
E ele [Guilherme, o namorado], também recebeu?
Ele também recebeu muita mensagem de gente apoiando, mas acho que o foco foi mais eu mesmo. Ele ficou um pouco. Eu fiquei um pouco preocupado com ele também porque ele também não estava esperando aparecer em todas páginas de fofoca de tudo que é revista (risos). Foi uma coisa meio nova, mas a gente está lidando bem com isso.
Apareceu em tanto lugar assim? (risos)
Apareceu. Muita página de fora [do Brasil]. Tipo... teve um jornal da Holanda, tá ligado? Um cara holandês mandou assim "saiu aqui no jornal da minha cidade, uma cidade pequena." Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos... Por isso, teve muita gente mandando mensagem me parabenizando.
Já deu tempo de você entender e, de repente, abraçar esse papel novo, de exemplo, de alguém que está abrindo portas? Porque ainda que não seja novidade pra você, quem ficou sabendo agora está olhando para você assim, como um cara que está abrindo uma porta.
Pra ser sincero, estou tentando processar ainda porque foi uma semana muito louca. Foi uma semana em que eu recebi muitas mensagens, uma semana em que viralizou esse fato da minha vida, que para mim já era uma coisa normal, e ao mesmo tempo eu estava no meio de um torneio, muito focado em querer ganhar isso daqui... E sabe como é difícil manter a cabeça num torneio quando está tendo tipo um "escândalo" fora (risos)... Mas é uma coisa que eu preciso me preparar também. Eu sei que minha voz é importante agora nesse sentido. Eu vi em algumas matérias que sou a única pessoa que se assumiu enquanto estava jogando tênis, mas como falei: para mim, é uma coisa normal, não tenho problema nenhum em falar sobre isso, e espero que não atrapalhe a minha carreira. Uma das coisas que eu tinha medo antes era isso: perder patrocínios ou isso me impedir de desempenhar nos jogos, receber muito hate e essas coisas, mas por enquanto não estou recebendo nada [de ruim]. Só muitas mensagens de amor e carinho, e essa é a parte mais importante.
Olha, eu acho que pode acontecer o contrário, viu? Porque o tênis tem uma presença muito grande da comunidade LGBTQIAP+ entre os fãs. Acho que muito mais do que basquete, vôlei, outros esportes populares.
Para ser bem sincero, eu não sabia que existia essa comunidade inteira, mas vi esta semana que tem muita gente me apoiando e muita gente cuidando das minhas costas.
No vestiário, mudou alguma coisa?
No vestiário, não mudou nada. O pessoal sempre me tratou bem, mesmo depois. Para eles, é uma coisa normal. Todo mundo conhece meu namorado, todo mundo é amigo dele. Todos jogadores. Gente de fora, inclusive argentinos e todos.
E dentro de quadra, algum adversário já usou isso para te tirar do sério?
Não. Até hoje, isso nunca aconteceu. Em relação a minha homossexualidade, nunca aconteceu nada dentro de quadra.
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Indígenas do Canadá lutam para preservar memória de crianças mortas em escolas
Apesar de indícios de centenas de sepulturas, desafios para chegar a uma conclusão clara têm alimentado céticos
Ian Austen, fsp, 16/12/2024
Tk’emlups te Secwepemc, Colúmbia Britânica | The New York Times
A revelação abalou todo o Canadá.
Um radar no solo encontrou possíveis sinais de 215 sepulturas não identificadas em uma antiga escola residencial na Columbia Britânica, administrada pela Igreja Católica, que o governo usava para assimilar crianças indígenas retiradas à força de suas famílias.
Esta foi a primeira de cerca de 80 antigas escolas onde foram descobertos indícios de possíveis sepulturas não identificadas, algo que produziu uma onda de tristeza e choque em um país que há muito luta com o legado do tratamento que deu aos povos indígenas. O primeiro-ministro Justin Trudeau ordenou que as bandeiras fossem hasteadas a meio mastro, enquanto muitos canadenses usavam camisetas laranja com o slogan "Cada criança importa".
Três anos depois, no entanto, nenhum resto mortal foi exumado e identificado.
Muitas comunidades estão lutando com uma escolha difícil: os locais devem ser deixados intocados e transformados em terrenos memoriais, ou devem ser feitas exumações para identificar possíveis vítimas e devolver seus restos mortais às suas comunidades?
Embora haja um consenso amplo no Canadá de que crianças foram retiradas de suas famílias e morreram nessas escolas, à medida que as discussões e buscas se arrastam, um pequeno universo de ativistas católicos conservadores e de direita tem se tornado cada vez mais estridente ao questionar a existência das sepulturas. Eles também são céticos em relação a toda discussão nacional de como o Canadá tratou os povos indígenas.
Três anos após o anúncio sobre o local da escola de Kamloops, eles perguntam: por que nenhuma prova de restos mortais foi descoberta em qualquer lugar do país?
"Até agora, não há evidências de restos mortais de crianças enterradas ao redor das escolas", disse Tom Flanagan, professor emérito de ciência política da Universidade de Calgary e autor de "Grave Error: How the Media Misled Us (and the Truth About Residential Schools)", em uma entrevista. "Ninguém discute que crianças morreram e que as condições às vezes eram caóticas. Mas isso é bem diferente de sepultamentos clandestinos", acrescenta.
Os argumentos de Flanagan e outros céticos foram amplamente denunciados por autoridades eleitas de todo o espectro político, que dizem que as evidências claramente sugerem que há muitos locais com sepulturas não identificadas.
A cacica Rosanne Casimir da Nação 'Tk'emlups te Secwepemc, que fez o anúncio sobre o local de Kamloops, disse: "Os negacionistas são dolorosos. Eles estão basicamente dizendo que isso não aconteceu."
Seguranças protegendo os possíveis locais das sepulturas em sua comunidade afastaram pessoas que apareceram tarde da noite com pás, disse ela.
Casimir lembrou-se de segurar o pedaço de papel em suas mãos sobre os possíveis locais de sepulturas que ela leu para dar a notícia e sabia que isso reverberaria. "Eu estava pensando comigo mesma, 'Isso é horrível'", disse ela.
Agora sua comunidade está se movendo lenta e deliberadamente antes de decidir o que fazer a seguir. "Tivemos muitas conversas sobre exumar ou não exumar", disse Casimir. "É muito difícil e definitivamente muito complexo. Sabemos que levará tempo. E também sabemos que temos muitos passos ainda a seguir."
"Temos que saber com certeza", acrescentou, "que fizemos tudo o que podíamos para determinar: sim ou não, anomalia [do radar] ou sepultura?"
O governo canadense e o papa Francisco pediram desculpas pelo tratamento dado dos povos indígenas e pelas escolas residenciais onde as crianças sofreram tantos abusos.
Mas o trabalho para tentar estabelecer um número preciso de possíveis sepulturas provavelmente será difícil.
Murray Sinclair, um ex-juiz que liderou a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação para investigar o sistema de escolas residenciais, estima que pelo menos 10 mil estudantes nunca voltaram das escolas para casa, que foram estabelecidas pelo governo e operaram de 1880 até a década de 1990.
Durante esse período, o governo canadense removeu à força pelo menos 150 mil crianças indígenas de suas comunidades e as enviou para escolas residenciais, a maioria das quais era administrada pela Igreja Católica. Línguas e práticas culturais indígenas eram proibidas, às vezes usando força.
E quando as crianças morriam, o governo se recusava a pagar para devolver seus corpos às comunidades de onde vieram.
Em Ontário, uma busca de registros por investigadores que trabalham para o chefe legista da província identificou até agora 456 estudantes que morreram enquanto frequentavam 12 escolas residenciais. Alguns registros mostram onde os restos mortais podem estar enterrados, disse o legista, mas há incerteza sobre essas descobertas.
No local da escola de Kamloops, onde foi relatado um dos maiores números de possíveis locais de sepulturas, Casimir disse que sua comunidade ainda estava analisando os resultados de suas buscas no solo e em documentos antes de decidir se realizará exumações.
Fazer isso, acrescentou, seria "muito intrusivo".
Papa Francisco vai ao Canadá pedir desculpas por ação da Igreja em genocídio indígena
Kimberly Murray, advogada e membro de uma primeira nação Mohawk, foi nomeada pelo governo federal em 2021 para examinar as questões em torno de possíveis sepulturas indígenas e fazer recomendações sobre a proteção e homenagem dos locais.
Ela diz que lembra às comunidades que estão fazendo este trabalho porque "o governo sumiu propositalmente" com as crianças indígenas, "não mantendo registros adequados, não informando as famílias, recusando-se a enviá-las de volta para casa."
Muitas comunidades, disse Murray, expandiram suas buscas físicas e empregaram métodos adicionais para encontrar restos mortais. Um envolve a colocação de sondas no solo para detectar acidez específica do solo criada por restos humanos enterrados.
Outro processo envolve o uso de pulsos curtos de luz laser para escanear as superfícies de áreas onde registros do governo e da igreja, bem como as memórias de ex-alunos, sugerem que houve sepultamentos. O processo, usando uma tecnologia conhecida como lidar, pode revelar padrões consistentes com locais de sepultamento.
Algumas comunidades indígenas também trouxeram cães treinados para encontrar restos mortais.
Em alguns casos, Murray disse que havia evidências de que as escolas recorreram a enterrar estudantes em sepulturas coletivas devido a doenças que varriam as instituições ou para armazenar corpos até que o degelo da primavera tornasse possível cavar sepulturas.
Ainda assim, as comunidades indígenas enfrentaram obstáculos para encontrar sepulturas, disse Murray, enquanto lutam para obter acesso a registros sobre as crianças que morreram nas escolas do governo canadense e da Igreja Católica, apesar das promessas de cooperação.
Mesmo que as exumações descubram restos mortais, identificar corpos individuais ou determinar a causa da morte provavelmente será impossível, disse Rebekah Jacques, patologista forense que tem trabalhado com comunidades indígenas que têm possíveis locais de sepulturas.
Jacques conheceu membros de comunidades indígenas enquanto servia como membro de um comitê nacional sobre possíveis sepulturas em locais de escolas, e disse que a questão das exumações pesa sobre muitos grupos. "Eu nem sempre chego a um consenso sobre o que fazer", disse ela. "Então, para mim, esperar que nossas comunidades cheguem a um consenso — bem, eu realmente posso me identificar com isso."
Ela também acredita que nada do que as comunidades indígenas façam, incluindo exumações, satisfará os céticos.
Para Flanagan e outros que compartilham seu ponto de vista, sua descrença de que há muitos locais de sepulturas faz parte de um argumento mais amplo contra a conclusão-chave da Comissão de Verdade e Reconciliação: que as escolas residenciais eram um sistema de brutalidade que levou ao "genocídio cultural".
"A narrativa que foi construída destaca todas as histórias ruins e minimiza os benefícios das escolas residenciais", disse Flanagan, acrescentando que converter povos indígenas em nações colonizadas por europeus ao cristianismo e erradicar suas culturas era comum em todo o mundo.
"As igrejas acreditavam que era seu dever religioso, e os políticos pensavam que ajudava a civilizar os indígenas", disse ele. "Faríamos isso hoje? Não. Mas nossa compreensão não estava disponível para essas pessoas de 150 anos atrás."
Autoridades governamentais e especialistas dizem que tais pontos de vista são impulsionados por preconceito e falta de compreensão e sensibilidade sobre o que as crianças indígenas suportaram por mais de um século, até 1996. "Não há simplesmente nenhuma dúvida sobre o impacto horrível que a política das escolas residenciais teve sobre os povos indígenas", disse David Lametti, que era ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá quando Casimir anunciou as descobertas no local da escola de Kamloops.
Autoridades governamentais, acrescentou, têm poucas dúvidas de que muitas das anomalias de radar encontradas nos terrenos das escolas se revelarão locais de sepulturas. "Será que todas essas anomalias se revelarão sepulturas não identificadas? Obviamente não", disse Lametti, ex-professor de direito agora praticando advocacia em Montreal. "Mas já há evidências preponderantes suficientes que são convincentes."
Muitos indígenas que favorecem as exumações querem que suas comunidades se movam mais rapidamente para encontrar restos mortais.
Em seu rancho na nação Tk'emlups te Secwepemc, Garry Gottfriedson, poeta, acadêmico aposentado e cavaleiro de rodeio, disse que, como ex-aluno de escola residencial, ele quer mais transparência e progresso dos líderes.
"Pode se arrastar e se arrastar e, assim, morre", disse Gottfriedson sobre a discussão sobre o que fazer com os locais de sepulturas. "Estou dizendo: algo precisa acontecer", acrescentou. "Mas agora, parece que nada está acontecendo."
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Tarantino's Mind (curta 2006 HD)
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A história da mártir Anne Askew
Publicado por Ana Claudia Paixão em 16 de maio de 2023
O único retrato creditado como o de Anne Askew se chama ” Uma Dama Desconhecida”, pintado por Hans Eworth por volta de 1560 e descrito como “Sra. Thomas Kyme”, ou ‘Anne Ayscough/Askew’. O que reforça ser mesmo o rosto dessa mulher sofrida e marcante são os dizeres acrescentados à sua figura austera: RATHER DEATHE/THEN FALSE OF FAYTHE (Melhor a morte do que falso testemunho). Por anos achavam que a figura era a da Rainha Mary, da Escócia, mas hoje é aceita como o retrato da primeira mártir protestante que foi queimada na fogueira como herege em 1546 por se recusar a reconhecer que o Sacramento era o ‘carne, sangue e osso’ de Cristo. Mais ainda, por ter se recusado a entregar outros protestantes, incluindo a Rainha Katherine Parr, mesmo sobre assombrosa tortura antes da execução de morte.
A trágica história de Anne Askew é sempre uma rápida página como coadjuvante da última esposa de Henrique VIII, o que se repete no filme Firebrand, que vai estrear em Cannes e terá a talentosa Erin Doherty como Anne. Houve destaque à sua morte em The Tudors, mas apenas uma menção em Becoming Elizabeth. Ao lado de Margaret Pole, cuja história tampouco foi até o fim na série The Spanish Princess, Anne Askew foi vítima de falsas acusações e passou por uma violência tão assustadora que mesmo dentro do legado sangrento de Henrique VIII consta como uma das mais trágicas de todos os tempos.
A curta vida de Anne Askew terminou aos 25 anos de uma das maneiras mais trágicas para uma religiosa: acusada de heresia e queimada viva. Anne, que pode ter seu nome soletrado como Ayscough ou Ascue, ou até mesmo citada pelo nome de casada – Anne Kyme – foi escritora, pregadora e poetisa. Filha de um cavalheiro na corte do rei Henrique VIII, Anne teve sua vida determinada a partir de seu casamento, aos 15 anos. A união forçada marcou a uma aliança de sua família, de”linhagem antiga e nobre”, com os ricos Kyme. A escolhida tinha sido sua irmã mais velha, Martha, mas ela morreu inesperadamente e, para não perder a oportunidade, o pai determinou que Anne fosse a substituta.
Nem mesmo o nascimento dos dois filhos salvou a jovem de um casamento infeliz o que a levou a se dedicar ainda mais à religião protestante, onde encontrou alento para seu sofrimento. Anne, nascida católica, foi convertida quando a Bíblia foi traduzida para o inglês e passou de fervorosa à pregadora rapidamente, ganhando notoriedade e trazendo ainda mais problemas para seu marido, que era católico. Descrita como “teimosa” e “falante”, sofreu abusos físicos do marido, mas não cedeu, sendo expulsa “violentamente” de casa e perdendo o contato com os filhos. Ainda assim, considerava a liberdade inesperada como “uma dádiva de Deus” e a justificativa perfeita para buscar em Londres a autorização para o divórcio. Uma determinação que a levaria cruzar com a Rainha Katherine Parr e o Rei Henrique VIII.
Uma das várias ousadias de Anne para a época foi a de, uma vez separada do marido, não mais usar o nome de casada e voltar a ser Askew. Em Londres, se engajou no grupo dos ‘reformadores’ (incluindo Joan Bocher), que queriam acabar de vez com o catolicismo em terras inglesas e foi ganhando repercussão como “evangelisadora”. Mandou livros para a Rainha através das damas de companhia de Katherine, que também ajudavam Anne financeiramente. Foi essa ligação jamais confirmada que os inimigos de Katherine usaram para tentar destruir sua reputação e até instigar o perigoso Henrique VIII a executar (pela terceira vez), uma esposa. Em outras palavras, Anne Askew foi o bode expiatório de uma conspiração religiosa.
A prisão, a tortura e o martírio
A questão religiosa que mais à frente abalaria tanto a Inglaterra de Elizabeth I como a França de Catarina de Medicis (como acompanhamos em A Rainha Serpente), nasceu justamente do cisma criado pelo Rei quando quis se casar com Ana Bolena, criando uma polarização religiosa impossível de erradicar, com ambos os lados errando na mão. Os católicos eram os ‘tradicionalistas’ e os protestantes, os ‘reformadores’. Ambos tentavam eliminar o outro.
Henrique VIII tentou manter uma diplomacia entre ambas as fés, uma tolerância muito tênue que era frequentemente o estopim para violência e golpes. A essa altura de sua vida, o rei já queria voltar a ter uma melhor relação com Roma e por isso ouvia a corrente tradicional para ‘interromper’ ou desacelerar a ‘reforma’, o que foi usado para efetuar prisões e restrições para os protestantes, muitas delas lideradas por Thomas Wriothesley, Richard Rich, Edmund Bonner e Thomas Howard. Os quatro homens queriam cortar a crescente influência de Katherine sobre Henrique VIII e usaram suas suspeitas religiosas como o meio mais rápido.
Uma das regras mais absurdas dda época foi resumida pelo bispo Stephen Gardiner que dizia que franqueza ou firmeza de fala seria “uma tática usada pelo diabo para espalhar heresia”. Imaginem calar mulheres! Transformar discurso em pecado e perigo era uma artimanha eficaz para manter a submissão. A própria Katherine quase foi presa pelo marido quando ‘errou’ na intensidade de dua fala e seus inimigos queriam aproveitar a deixa. Para implicá-la, pressionaram suas damas de companhia: Katherine Willoughby, Anne Calthorpe, Joan Champernowne, Lady Hertford e até a irmã da rainha, Anne Parr.
Nesse cenário, a opinativa e dedicada Anne Askew virou presa fácil, sob o manto de figura ameaçadora justamente pelo discurso claro e eficaz dela, mais culta que seus próprios inquisitores. Isso foi percebido na primeira vez que Anne foi presa e que conseguiu desconcertar o bispo Edmund Bonner com respostas simples e precisas da Bíblia. Sem entregar o que queriam, foi solta, mas detida duas vezes nos meses seguintes. Seus inimigos conseguiram usar sua aversão à Eucaristia como prova de heresia (sob o ponto de vista Católico) e a transferiram para Torre de Londres, para ser torturada e “julgada”. Para escapar da fogueira, eles queriam a lista de mulheres que pensavam como ela, mas Anne se recusou a falar.
Os documentos oficiais da época detalham que houve dois “exames” antes de sua execução, que duraram dois dias completos. O interrogatório foi pessoalmente conduzido por Wriothesley, Gardiner e contou com as paricipações de John Dudley e Sir William Paget (o principal secretário do rei), deixando claro quem era o real alvo da investigação. Diante da recusa de Anne de entregar nomes, foi torturada de uma forma incrivelmente cruel até pelo relato dos carcereiros da Torre. Segundo eles, Anne foi levada para uma sala no porão da Torre Branca, onde ficava o temido “rack”, a máquina de tortura onde a pessoa amarrada é “esticada” até romper músculos e ossos. Despida na frente dos homens, ficando apenas de camisola, Anne chegou a ser levantada cerca de 5 polegadas acima de sua cama e esticada lentamente. Desmaiou de dor, foi reanimada e passou pelo procedimento mais duas vezes, sem citar um nome.
Há versões de que o Rei – ao saber disso – a teria perdoado, mas que Wriothesley e Rich decidiram trabalhar sozinhos mesmo assim, usando tanta força nas giratórias que “seus ombros e quadris foram puxados de suas órbitas e seus cotovelos e joelhos foram deslocados”. Os gritos de Anne Askew foram ouvidos por duas testemunhas que estavam no jardim, do lado de fora da Torre. Ainda assim, ela não citou ninguém. O perdão do Rei parece improvável porque em seguida veio a sentença final: ela seria queimada viva por heresia.
Assim, com apenas 25 anos, Anne foi levada amarrada em uma cadeira (não podia mais andar ou sentar” para estaca e queimada no dia 16 de julho de 1546, ao lado de três homens também condenados. Dizem que, por misericórdia, teriam amarrado pólvora ao redor de seus corpos para acelerar a morte.
Sem surpresa, Anne Askew virou uma mártir protestante, embora homens de sua época ainda a tenham descrito como “fraca”. Ela deixou textos que ainda hoje documentam com clareza como eram os conflitos do período mais sangrento do reinado de Henrique VIII. Nos textos de Anne, há seus confrontos com figuras masculinas de autoridade da época.
Todo sofrimento de Anne, no entanto, é usado como pano de fundo como a ameaça e o perigo que a Rainha Katherine Parr conseguiu escapar. Essa é a base da história em Firebrand, mas a presença da atriz Erin Doherty sinalizam que, como na série The Tudors, a triste e arrepiante história de Anne ganhe destaque, mesmo que em geral, seja um adendo na biografia de Reis e Rainhas.
BRUTALITY AND SADISM - The Torture And Execution Of Anne Askew
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CALMA URGENTE! - Saúde Privada, Sintomas Públicos
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A rota do cangaço, com Luiz Bernardo Pericás
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Exibição do filme - Utopia Tropical
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A geopolítica síria
Revolta síria pode ter entrado em seu capítulo final
Parte expressiva da população é tomada por euforia otimista, mas incerteza sobre caráter dos rebeldes tornam futuro do país nebuloso
Diogo Rodrigues Bercito, fsp, 07/12/2024
Após 13 anos de sangue e fogo, a revolta síria pode ter entrado em seu capítulo final. Forças rebeldes tomaram nos últimos dias algumas das principais cidades do país e ameaçam agora a capital, Damasco. A queda do ditador Bashar al-Assad parece ser inevitável, irreversível e iminente.
É um momento histórico para o país, governado por meio século por uma mesma família. Se Damasco cair, esta será a primeira vez que a dinastia Assad não governa a Síria desde que Hafez Al-Assad chegou ao poder, em 1971 — ele o deixaria de herança para seu filho, Bashar, em 2000.
Há, por isso, uma euforia otimista entre uma parte expressiva da população. O futuro, porém, é incerto. Os avanços rebeldes são liderados por uma facção chamada HTS (Organização para a Libertação do Levante, na sigla em árabe), que já esteve associada à rede Al Qaeda.
A revolta começou em 2011 na Síria. Seu estopim simbólico foi a prisão e tortura de um grupo de jovens manifestantes na região de Deraa, no sul. Hamza Al-Khatib, de 13 anos, foi morto e mutilado pelas forças de segurança sírias. As fotografias de seu cadáver incensaram a população.
Havia um movimento mais amplo de protestos no Oriente Médio chamado à época de Primavera Árabe. Ditadores foram derrubados na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen, para a surpresa de analistas e da comunidade internacional. Assad, porém, conseguiu se manter no poder.
A tática do ditador foi apostar na violência. Sabia que, em posse do maquinário do Estado, teria a vantagem no campo de batalha. O resultado foi a progressiva radicalização da oposição. O que tinha começado como uma série de protestos pacíficos logo virou uma ampla guerra civil.
A Síria foi destruída no processo. Os embates deixaram mais de meio milhão de mortos —o número exato é desconhecido. Outras 6 milhões de pessoas fugiram do país. O regime usou armas químicas contra a sua própria população em 2013, em um dos momentos mais dramáticos da guerra.
Do caos e do sangue derramado surgiram grupos extremistas religiosos. O Estado Islâmico, por exemplo, chegou a controlar parte do país. Mas Assad contava com o apoio da Rússia, do Irã e da facção libanesa Hezbollah, com o qual ele reconquistou uma boa parte do seu território.
A situação parecia ter se estabilizado nos últimos anos. Havia bolsões rebeldes, mas ainda assim o país estava sob o controle de Assad. Isso até a semana passada. Em um avanço repentino, forças de oposição foram tomando algumas das principais cidades da Síria, como Aleppo e Hama.
Neste ínterim, os aliados de Assad o abandonaram. A Rússia está concentrando suas forças na Ucrânia, enquanto o Hezbollah sofreu enormes derrotas no seus embates com Israel. O Irã tampouco está em condições de manter de pé uma casa que já parece fadada a desmoronar.
Neste sábado (7), os revoltosos ameaçavam Homs, uma cidade estratégica, e a capital, Damasco, sem as quais já não haveria como Assad se manter no poder. Rebeldes se estabeleceram também em partes do sul, abrindo novas frentes para um Exército sírio já desbaratado por uma tempestade de derrotas inesperadas.
A força rebelde mais importante hoje é a HTS. O grupo é um sucessor da Jabhat al-Nusra, um braço da Al-Qaeda. A credencial é alarmante. Por outro lado, seu líder, Abu Mohammad al-Jolani, tem insistido nestes últimos anos que conseguiu transformar a HTS em uma força moderada.
É sem dúvida um esforço de marketing, que inclui acenos seculares. Jolani sabe que precisa do apoio —ou ao menos da conivência — da comunidade internacional. Os Estados Unidos, por ora, consideram a HTS uma organização terrorista, o que dificulta a perspectiva de que liderem a Síria no futuro.
Para avaliar sua sinceridade, talvez baste olhar para a região de Idlib, governada pela HTS. Jolani foi de fato capaz de criar algumas instituições de governo ali, contra os prognósticos. Por outro lado, governou com o autoritarismo e o extremismo que diz ter abandonado.
Mas essas são ressalvas de quem enxerga a situação de fora. Os relatos que vêm de dentro da Síria incluem também demonstrações de esperança e de otimismo diante da possível queda de um regime que por longas décadas cometeu atrocidades contra o povo que dizia representar.
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Turquia vence na Síria, mas guerra está longe do fim
Irã e Rússia são os maiores perdedores depois da ditadura em fuga de Assad
Igor Gielow, fsp, 08/12/2024
A impressionante derrocada da ditadura de Bashar al-Assad confirma o vaticínio do premiê israelense, Binyamin Netanyahu, de que a guerra decorrente do 7 de Outubro redesenharia o Oriente Médio.
Nem o mais ativista opositor sírio poderia prever uma debacle tão rápida, que muito lembra a casca de ovo que era o governo afegão apoiado por 20 anos de ocupação americana, derrubado num estalo pelo Talibã em 2021.
De forma análoga, o problema para o mundo é que a colcha de retalhos da oposição síria seguirá a mesma, e a Turquia, grande vitoriosa nesta etapa da crise, terá de convencer o mundo de que ter uma organização considerada terrorista até pela complacente ONU na ponta de penca que arou o sanguinário regime de Assad é algo palatável.
Se não é o Estado Islâmico, cabe lembrar que a HTS (Organização para a Libertação do Levante) saiu de uma costela da rede Al Qaeda. A moderação vendida pelo seu líder em entrevistas não era conhecida nas ruas de Idlib, enclave que governava nos últimos anos.
Mesmo sua estrutura é fragmentária, tendo cinco milícias principais e seis, secundárias. Isso para não falar no resto das divisões do país: os cursos alinhados aos EUA a nordeste, seculares também apoiados por Ancara, o próprio EI e os remanescentes alaudistas do regime Assad.
Como em Cabul há três anos, a potência que faz as contas acerca de sua presença é a Rússia de Vladimir Putin, cujo foco na Ucrânia tornou impossível salvar Assad mais uma vez.
Ao constrangimento, soma-se um problema: os russos detêm ativos militares relevantes no país, onde têm 21 bases e 81 postos avançados, incluindo um importante centro de projeção de poder aéreo e o porto de Tartus. Tudo isso, mais do que ter feito Putin e Assad cantarem vitória juntos em 2017 na base aérea de Hmeimim, garantiu a Moscou um ponto de projeção no flanco leste da Otan, a aliança militar ocidental, no Mediterrâneo.
É presumível que os pífios esforços dos russos para ajudar Assad tenham sido precedidos por algum acordo com os turcos acerca desses equipamentos — com efeito, a região de Latakia, onde estão concentradas as forças russas, não foi atacada na ofensiva.
Como trata-se da terra dos alauitas, pode haver algum arranjo de divisão territorial do país, ao estilo da autonomia curda. Ou não, dado o sangue na mão dos aliados de Assad, e aí Putin vai ter de fazer uma retirada desesperada, ao estilo daquela que humilhou Joe Biden no Afeganistão.
Quem sorri é Donald Trump, que vê rivais enrolados e poderá retirar sem grandes problemas os cerca de 800 soldados que os EUA têm na Síria para em tese lutar contra o EI. O desengajamento é uma marca do republicano, e o mais difícil já foi feito, até que comecem ataques terroristas de grupos que tenham abrigo na Síria da HTS.
Este cenário, aliás, é outro ponto nevrálgico para Israel: um inimigo previsível como Assad pode se provar bem melhor para Tel Aviv do que um amálgama incontrolável de jihadistas na sua fronteira. Mas o maior derrotado na crise atual é o Irã, país que perdeu mais um elo do seu autoproclamado Eixo da Resistência contra Israel e os EUA.
Após o Hamas ser trucidado após a barbárie do 7 de Outubro e o Hezbollah ser quase dizimado no Líbano, Teerã perde o seu elo de ligação terrestre com os prepostos em torno do Estado judeu. Fragilizada internamente e pela troca de bombardeios com Israel, a teocracia se vê encurralada. O que acontecerá com suas 52 bases no antigo país de Assad é incerto agora.
A Turquia, por sua vez, ocupa de forma definitiva salvo na Síria, para desgosto dos israelenses, iranianos e turcos, para não falar nos curdos que combatem em casa e na Síria.
Desconfiados também ficarão os Estados do golfo Pérsico, que não vão querer ver os rivais do Irã deixarem de ser a potência dominante do Norte da região para assistir a uma volta simbólica do Império Otomano. Isso deverá afetar também o processo de normalização desses países, Arábia Saudita à frente, com Israel.
Mas a vitória pode ser de Pirro para o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, dado que a tentativa de estabilizar a nova Síria ficará na sua conta.
O exemplo da Líbia está aí para guiar os próximos passos, sugerindo que a guerra civil no país árabe pode estar longe do fim.
Rebeldes anunciam deposição do governo Assad na Síria
Beatriz Gomes, UOL, 08/12/2024
Rebeldes anunciaram a deposição do governo de Bashar al-Assad na Síria após avançar à capital do país, Damasco. O anúncio foi feito neste domingo (8) por meio de um canal de TV.
O que aconteceu
Rebeldes contrários ao regime do presidente sírio anunciaram sua deposição após 24 anos no poder. De acordo com a agência de notícias Reuters, Assad embarcou em um avião e deixou a cidade quando a ofensiva rebelde ainda estava se aproximando da capital. A informação foi baseada no relato de dois altos oficiais do exército sírio.
Destino de Assad é desconhecido, ainda segundo a Reuters. Até o momento, o governo sírio não se manifestou sobre o presidente ter deixado o país. [...]
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Inteligência natural deve comandar a artificial
Gol do Botafogo contra o Inter foi mistura de talento individual com planejamento ensaiado
Tostão, fsp, 07/12/2024
Neste domingo (8), última rodada, conheceremos o campeão brasileiro, os classificados para Libertadores e Sul-Americana e os rebaixados para a segunda divisão.
As principais equipes brasileiras são, a cada dia mais, uma seleção de jogadores sul-americanos. Os melhores vão para a Europa, e os logo abaixo estão no Brasil. Isso é resultante da enorme diferença financeira e de investimentos entre os clubes. Já no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o Brasil está abaixo de Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia, Equador e Peru.
O Corinthians deu um salto de qualidade com a chegada de reforços. Se não tivesse melhorado tanto a qualidade individual, o sistema tático e o treinador seriam bastante criticados, como ocorria quando o time estava na zona de rebaixamento.
O desenho tático do Corinthians, formando um losango no meio-campo, com um volante centralizado, um meio-campista de cada lado e um excelente meia de ligação (Garro), além da ótima dupla de atacantes (Memphis e Yuri Alberto), é uma maneira de jogar antiga que tem sido abandonada pelos esquemas táticos atuais, com dois pontas abertos e um centroavante.
O Real Madrid, nos seus melhores momentos da temporada passada, jogava como o Corinthians, com três no meio-campo, Bellingham entre os três e a dupla de atacantes formada por Rodrygo e Vinicius Junior. A dupla de atacantes já foi uma tradição brasileira, como a formada por Bebeto e Romário na seleção campeã do mundo em 1994. A ausência de pontas é um problema, pois o lateral tem de defender e avançar, além de não ter o auxílio de um ponta na marcação.
Todos os desenhos táticos usados hoje no Brasil e no mundo que usam uma linha de quatro defensores são resultantes do tradicional esquema tático com duas linhas de quatro e dois atacantes, utilizado pelo Brasil na Copa de 1994. Os dois jogadores pelos lados marcam ao lado dos dois volantes. A deficiência dessa formação tática é o fato de os dois volantes ficarem muito longe da dupla de atacantes, razão da presença posterior de um meia de ligação.
A Inglaterra, campeã do mundo de 1966, foi a primeira equipe a utilizar as duas linhas de quatro. Mas não havia pontas. Era uma linha de quatro armadores que, alternadamente, marcavam e avançavam.
Hoje, por causa da enorme intensidade e da movimentação dos jogadores, não há mais lugar para analisar a maneira de jogar da equipe pelo desenho tático. Muda a cada instante. Muito mais importantes são a capacidade de ter times compactos, de defender e atacar em bloco sem deixar muitos espaços entre setores, de alternar a marcação mais avançada e mais recuada, de variar o estilo de reter a bola, trocando passes, com as transições rápidas da defesa para o ataque, e vários outros detalhes. Como regra, tudo depende da qualidade individual.
O gol do Botafogo contra o Inter foi uma mistura de talento individual com planejamento ensaiado. Após um curto escanteio e um passe perfeito de Almada, Savarino, da entrada da área, acertou um belo e preciso chute. É a união da inteligência natural com a artificial. A natural deve comandar a artificial. Parafraseando Charles Chaplin, somos humanos, não somos máquinas.
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Quem é Eve Babitz, autora comparada a Joan Didion que agora vai sair no Brasil
Autora, que será publicada pelo selo Amarcord, viveu e registrou intensamente a contracultura californiana nos anos 1960 e 1970
Painel das Letras&Walter Porto, fsp, 06/12/2024
A Amarcord vai lançar pela primeira vez no Brasil um livro da americana Eve Babitz, furacão da contracultura que despontou com obras que mesclavam memórias e ficções breves sobre a cena underground da cidade de Los Angeles.
O selo editorial, que com um ano de atividade já lançou trabalhos de ponta de mulheres como Miranda July e Alana Portero, publica "Dias Lentos, Encontros Fugazes" no começo de fevereiro.
A obra originalmente lançada em 1977 agora ganha tradução de Cecilia Madonna Young para seus dez contos ambientados na efervescente cultura do oeste americano nas décadas de 1960 e 1970.
Babitz foi muito comparada a Joan Didion, sua contemporânea que também escreveu livros fundamentais de não ficção sobre a cultura da mesma época e lugar, como "O Álbum Branco" e "Rastejando Até Belém" — até suas mortes foram próximas, separadas por menos de uma semana em dezembro de 2021.
Mas seus estilos eram bem diferentes. Didion era uma autora próxima a círculos da elite intelectual, enquanto Babitz chafurdava mais na contracultura e na liberdade sexual, mostrando os bastidores de uma Hollywood de ponta-cabeça.
Teve affairs tórridos com gente famosa e aos 20 anos protagonizou uma foto icônica surgindo nua jogando xadrez contra o artista plástico Marcel Duchamp — uma figura transgressora para combinar com seus textos, que foram bem reconhecidos ao longo de sua vida, mas passam por um ressurgimento no mercado americano, agora alcançando também o Brasil.
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Brás Cubas, ora veja só
O romance maior de Machado é entronizado num respeitável cânone ianque
Mário Sérgio Conti, fsp, 06/12/2024
"Li poucos romances e, na maioria dos casos, só cheguei à última página pelo senso do dever", diz Jorge Luis Borges no seu "Ensaio Autobiográfico". Não obstante, a vida toda o escritor elogiou romances farta e fortemente e traduziu dois dos seus espécimes ilustres: "Orlando", de Virginia Woolf, e "Palmeiras Selvagens", de Faulkner.
O argentino achava "desvario trabalhoso e empobrecedor" escrever 500 páginas para expor uma ideia "cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos". É por isso que ele –"mais razoável, mais inepto, mais preguiçoso"– resumia, em contos curtos, livros enormes e imaginários.
A preguiça de Borges com romances o levaria a amar "Stranger Than Fiction: Lives of the Twentieth-Century Novel". Está certo que o livro tem quase 500 páginas, mas a maioria é de resumos de grandes obras, tanto no tamanho quanto na qualidade: os romances do século 20. Seu autor, o poeta e editor Edwin Frank, estudou em Columbia e Harvard. Fundou e dirige há 25 anos a coleção Classics, que publicou centenas de livros arrojados em idiomas que não o inglês –um deles foi "S. Bernardo", de Graciliano Ramos. Conhece bem o gosto dos leitores e todavia não caça nem comercia best-sellers.
Com um autor assim, "Stranger Than Fiction" agrada duas turmas. Uma é a das faculdades de letras; os versados em, digamos, Lukács, F. R. Leavis e Roberto Schwarz, três teóricos presentes na bibliografia. A outra turma é a dos leitores constantes de ficção; os leigos moderadamente cultos: uma colega, a tia que morreu, você, eu.
O romance condensa um processo geral num enredo particular (em "Guerra e Paz", a invasão napoleônica do ponto de vista de um punhado de russos); acompanha um ou vários personagens (Leopold Bloom em "Ulysses); todos o conhecem, nem que só de ouvir falar ("Robinson Crusoe"); velho, maravilha ("Dom Quixote").
Para o poeta-editor, o romance está no centro da cultura –tese que vem perdendo fôlego. Há quem diga que, no século passado, o cinema tomou o lugar do romance no alcance cultural. Hoje, acham que as séries de televisão são mais pertinentes. "Stranger Than Fiction" não entra nessa e defende uma hipótese mais controversa ainda: os romances do século 20 formam um gênero.
É um gênero que explodiu a forma literária para captar um mundo explosivo. Os romancistas viraram a narrativa do avesso (Joyce); falaram de sexo às claras (D. H. Lawrence); de ser mulher (Colette, Virginia Woolf) ou gay (Gide, Proust); de alienação (Kafka); das duas guerras mundiais (Remarque, Grossman); de colonialismo (Naipaul) e racismo (Ellison).
Não é preciso concordar com a ideia in totum para fruir o livro. Basta reconhecer que alguns romances são logo percebidos como típicos do século 20: os "sérios", "importantes", "difíceis". Podem não ter sido lidos, mas se lhes reconhece a relevância –como "O Homem sem Qualidades", de Musil.
É aí que entra a preguiça borgiana, também conhecida por "falta de tempo". Edwin Frank resume 31 livros e os comenta com argúcia e inteligência, procedimento que batiza de "crítica descritiva". Seu rol é subjetivo, só trata de obras que ama ou admira.
Como tem bom gosto, canja na literatura, e poucos leram tanto quanto ele, seu cânone recapitula romances esquecidos pelo leitor e serve de guia para o chorrilho dos que não leu. Graças a "Stranger Than Fiction", por exemplo, "O Mundo se Despedaça", de Chinua Achebe, será lido. No mais, cada leitora discordará disso ou daquilo. Nada de Joseph Conrad? O Thomas Mann de "Doutor Fausto" não está mais no século 20 que "A Montanha Mágica"? Que será "Kokoro", de Natsume Sōseki? Por que Annie Ernaux e Svetlana Alexijevich não foram canonizadas?
Dos romances arrolados e criticados por "Stranger Than Fiction", três são da América Latina. É pouco, mas não há nem um chinês, só um africano, um japonês e quatro norte-americanos – sendo que Fitzgerald, Steinbeck e Salinger ficaram de fora
Os latino-americanos superlativos do século 20 são "Os Passos Perdidos", de Alejo Carpentier, "Cem Anos de Solidão", de García Márquez e, ora, vejam só, "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, apesar de publicado em 1891. Estava literalmente na vanguarda.
A entronização do romance maior de Machado num respeitável cânone ianque foi feita por bons motivos. Erwin Frank sustenta que "Memórias Póstumas" é universal, diabolicamente inventivo e, o que mais conta na arte e na vida, é fiel ao Brasil – à crueza da escravidão e à crueldade de Brás Cubas.
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O absurdo do bife a cavalo
Nome do prato contraria a lógica elementar: são os ovos que estão na montaria, e o filé é o próprio cavalo
Marcos Nogueira, fsp, 05/12/2024
Na placa à entrada do boteco, que imitava um quadro-negro escolar, lia-se: bife à cavalo. Assim mesmo, com o "a" craseado.
Eu sei bem o que é um bife a cavalo e já vi a expressão um sem-número de vezes, mas aquela aparição atirou meu cérebro na escuridão. Mergulhei momentaneamente nas névoas da confusão mental. Primeira dúvida: o acento grave procede?
Pois a crase habita quase todos os filés do Brasil. À milanesa. À parmegiana. À cubana. À Oswaldo Aranha — nome masculino, assim como o cavalo. A crase vai meio que no automático, não dá para julgar o autor do cardápio em giz.
Mas calma lá. Para entender essa acentuação, é preciso ler as palavras que não estão lá. A crase se aplica devido à elipse de "moda" ou "maneira".
Assim, "à milanesa" quer dizer "à moda milanesa". Quanto ao seu Oswaldo, refere-se à maneira como o diplomata gostava de comer seus filés, presumidamente: com alho frito, batatas à portuguesa, farofa e arroz.
Para justificar a crase, um bife "à cavalo" teria de ser uma especialidade popular nos estábulos: com alfafa, talvez, e um torrão de açúcar. Em vez disso, vão ovos fritos sobre a carne. Não se trata de um filé à equina. Sem crase, definitivamente.
Daí a segunda dúvida: bife a cavalo, de onde tiraram esse nome?
Lembro-me vagamente de, criança, levar ao pé da letra certas metáforas de açougue. Lagarto. Patinho. Sério que vão me obrigar a comer esses bichos?
E por que alguém escolheria o colchão duro se o mesmo lugar vende colchão mole? Foi um bom tempo até descobrir que o certo era coxão, aumentativo de coxa.
O bife a cavalo, meu pai me tranquilizaria, não era carne de alazão.
"A cavalo", me explicaria o velho, era porque os ovos vêm montados sobre o bife. Nem ele mesmo engolia essa explicação.
A expressão "bife a cavalo" contraria a lógica elementar. Quem estão montados são os ovos. O bife, nessa encenação, é o próprio cavalo, apontou o pai. Fui pesquisar a origem do nome do prato. Descobri que é isso mesmo: "a cavalo" remete à montaria. Eu que não entendo patavina dos mecanismos da lógica e da linguagem.
O bife com ovo frito teria surgido na Europa, possivelmente na Inglaterra, mas foram os franceses que inventaram a alegoria equestre. Batizaram o prato de bife com ovos a cavalo.
Mas sabe como funciona a mente do "cerumano", né? Os ovos, por alongar o nome do prato, erodiram e acabaram omitidos na versão final. Caíram como caiu a moda da milanesa. Não importa que a expressão resultante careça de sentido.
Ninguém nota, ninguém liga. Só este chato aqui.
Em tempo, "a cavalo" tradicionalmente se refere à carne com dois ovos fritos. Quando é um ovo solitário, tem outro nome: à Camões, em referência ao bardo caolho português.
Aí, sim, faz todo sentido: um filé com um zoião.
FILÉ A CAVALO
Rendimento: 2 porções
Tempo de preparo: 15 a 20 minutos
Ingredientes
400 g de filé-mignon
2 ovos
Óleo para fritura
Alho frito a gosto (opcional)
Sal e pimenta-do-reino a gosto
Preparo
Aqueça frigideira em fogo alto. Tempere a carne com sal e pimenta
Grelhe no ponto desejado e reserve. Frite os ovos e disponha-os sobre o bife. Salpique com alho frito
Sirva com batatas
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Os quepes pelos coturnos
A obsessão pelas siglas e abreviaturas em seus comunicados pode ter frustrado o golpe dos militares
Ruy Castro, 05/12/2024, fsp
Woody Allen contou certa vez que a Revolução Russa, que já era para ter acontecido desde o encouraçado Potenkim, em 1905, só se realizou, em 1917, depois que os bolcheviques descobriram que o czar e o tzar eram a mesma pessoa. É no que dá depender de siglas e abreviaturas para definir alguém ou alguma função.
Os militares, por exemplo, abusam desses recursos em suas comunicações, seja por cacoete profissional ou para manter suas intenções a salvo de paisanos enxeridos. Foi o que pode ter se voltado contra eles na sua mais recente tentativa de golpe de Estado. Usaram tantas abreviaturas e siglas em tantas trocas de comunicados que acabaram metendo os quepes pelos coturnos e o golpe lhes saiu pela culatra.
A ideia era manter o PR [Bolsonaro, presidente da República] no poder através de uma GLO [Garantia da Lei e da Ordem] armada pelas FEEs [Forças Especiais do Exército, vulgo kids pretos], com a colaboração do BAC [Batalhão de Ações e Comando] e do CopEsp [Comando de Operações Especiais]. O start seria dado por uma CCEOSAEB [Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro], assinada por 36 gens, altes e TBs [generais, almirantes e tenentes-brigadeiros] e acoplada à OpPsico [Operação Psicológica] a cargo do 1º Bop Psc [1º Batalhão de Operações Psicológicas].
As informações seriam fornecidas pelo CIE [Centro de Informações do Exército] e pela Abin [Agência Brasileira de Inteligência], a partir do RESEVMD [Relatório do Sistema Eletrônico de Votação do Ministério da Defesa], justificando a Operação 142 [uma distorção do artigo 142 da Constituição]. A articulação seria da SGP [Secretaria-Geral da Presidência] e o governo seria entregue ao GIGC [Gabinete Institucional de Gestão da Crise], comandado pelo chefe do GSI [Gabinete de Segurança Institucional] Augusto Heleno e pelo VP [vice-presidente Braga Netto].
O PVA [Punhal Verde Amarelo] parecia um plano perfeito. O que faltou? Uma leitura mais atenta do GLTEPUNE [Glossário de Termos e Expressões Para Uso no Exército] e combinar com o fdp do GFG [general Freire Gomes].
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In Billy Wilder, Um repórter em tempos loucos, Noah Isenberg (org.), p. 137, DBA Editora, 2022
1st RECORDING OF: Rhapsody In Blue - Paul Whiteman Orch. & George Gershwin piano (1924 version)
Paul Whiteman - My Blue Heaven (1927)
1st RECORDING OF: Deep Purple - Paul Whiteman (1934)
Bix Beiderbecke With Paul Whiteman 1927-1928 (2001)
Die Stunde, 13 de junho de 1926
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Do Rio para zona leste de SP: Cartola teve bar na Vila Formosa
Beá Jordan, De TOCA, em São Paulo, 27/11/2024
Rolando o feed por aí, você já pode ter cruzado com uma foto intrigante de Cartola. Nela, o poeta aparece apoiado em um violão em frente ao Zicartola, mas o que chama atenção é que o cenário não tem nada a ver com a fachada do bar que fez história no centro do Rio de Janeiro na década de 1960.
A polêmica não é fruto de montagem nem produto da inteligência artificial, o registro remonta a uma fase da vida de Cartola e de dona Zica que se passou na zona leste de São Paulo, no bairro da Vila Formosa.
Em 1974, o casal de honra da Mangueira estava constantemente na terra da garoa para gravar o primeiro disco solo de Cartola, que só foi parar em um estúdio aos 65 anos, graças a Pelão, apelido do produtor musical João Carlos Botezelli.
Naquela época, o samba do morro ainda sofria discriminação. E as gravadoras não viam potencial em investir em nomes já conhecidos como Cartola, que apesar de não ter um álbum individual já tinha canções de sucesso interpretadas por outros artistas.
O lance na década de 1970 era apostar em nomes jovens que estivessem mais próximos do que bombava nos Estados Unidos. Conta a história que para convencer a gravadora Marcus Pereira a investir em Cartola, Pelão se ajoelhou aos pés de um dos sócios. Meses depois, o disco Cartola —homônimo ao nome do cantor— se tornou um dos mais vendidos de 1974.
Descrito como uma pessoa tímida e avessa a hotéis, em São Paulo o poeta preferia se hospedar na casa dos amigos Joca Chagas, Marília Chagas e seus 5 filhos. Localizada na rua Pretoria, na Vila Formosa, a casa simples oferecia o que Cartola considerada fundamental: uma cozinha às ordens de Dona Zica. "Ele não abria mão dos temperos e do cafezinho que só a tia Zica sabia fazer", conta Marcelo, segundo filho de Joca e Marília, casal já falecido.
A amizade dos pais de Marcelo com Cartola e dona Zica era antiga, vinha dos tempos em que Joca morava no Morro da Mangueira. Depois que conheceu Marília, ele se casou e veio morar em São Paulo, mas mantinha contato frequente com dona Zica, que o ajudou quando ele chegou órfão ao Rio na década de 1940.
A tia Zica sempre foi muito preocupada com o social, ela não deixava os meninos do morro desamparados, foi assim que ela ajudou meu pai. Marcelo Chagas
O sucesso do samba do morro na terra da garoa
Foi na cozinha de dona Marília, enquanto ela e dona Zica preparavam o almoço que surgiu a ideia de reabrir o Zicartola a poucos metros dali, em um salão vago em cima de uma padaria. A história é que Cartola topou a proposta na hora.
A iniciativa ganhou força quando o sr. Aires, dono da padaria e da sobreloja, não quis cobrar para alugar o espaço para o Cartola, afinal era o Cartola. E assim, em dezembro de 1974, quando a rua Guaxupé ainda era de terra, São Paulo ganhou sua versão do Zicartola. Ali, Nelson Cavaquinho, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e outros músicos notórios tocaram com artistas locais e viram o sol raiar enquanto o samba comia solto.
Marcelo, que na época tinha 14 anos, conta que o lugar lotava de carros e atraía muitos universitários e gente que percorria quilômetros para ouvir o samba do morro. Para ele, o sucesso do disco de Cartola, lançado em março de 1974, fez o som ecoar e trouxe para o sambista um público novo.
Mas a rotina para fazer o Zicartola acontecer aos finais de semana era puxada. Marcelo relembra que Cartola e dona Zica embarcavam no Expresso de Prata no Rio na quinta-feira à noite para estarem sexta-feira de manhã em São Paulo. No fim do domingo eles voltavam para o Rio.
Eles tinham muitos compromissos e com o sucesso do disco a agenda ficou ainda mais apertada, não tinham como morar aqui, mas em São Paulo meu pai fazia questão de levá-los onde fossem com seu Itamaraty. Marcelo
Cartola e Dona Zica tocaram o bar ao lado dos sócios Joca e Marília até 1976, mas a distância e os compromissos que só aumentaram depois do sucesso do primeiro álbum tornaram o Zicartola paulistano impraticável. Hoje o endereço carrega uma placa que não deixa os moradores esquecerem que aquela esquina tem história e, apesar das constantes ameaças da especulação imobiliária na região, o prédio segue firme e forte com uma padaria onde ainda é possível encontrar antigos frequentadores do Zicartola.
Vai lá, vai lá
Para não deixar a memória se apagar, o Centro Cultural da Vila Formosa inaugurou mais um capítulo da história do Zicartola no bairro. A fachada do equipamento público, construído em 1965 para ser a primeira biblioteca pública da região, ganhou uma releitura da famosa fotografia do Cartola.
A obra do artista Rafael Roque é parte da instalação Luzes Formosa, uma galeria a céu aberto, que reúne quadros de diferentes artistas do bairro para revitalizar o complexo cultural que abriga um teatro, biblioteca, cursos e atividades gratuitas para pessoas de todas as idades.
Agora, quem passa pela avenida Renata, na altura do número 163, confere de pertinho o trabalho dos artistas Tami Lemos, Soberana Ziza, Frosa Arte, Mes 3 Gamex, Rafael Roque, André Mogle e Lukin. A exposição é gratuita e ficará disponível por um ano.
Galeria aberta Luzes Formosa
Onde: Centro Cultural da Vila Formosa, na avenida Renata, 163, Vila Formosa, São Paulo
Quando: Saiba mais sobre o trabalho de cada artista no CCF, que está aberto de terça a sábado, das 9h às 21h, e aos domingos, das 9h às 20h. Quanto: Gratuito
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"Bach é o início e o fim de toda a música", diz regente
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Thelonious Monk - I Should Care
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Três em cada quatro trabalhadores atuam 40 horas por semana ou mais no país
Carlos Madeiro, UOL, 25/11/2024
No Brasil, aproximadamente 75% dos trabalhadores têm uma carga semanal de 40 horas de atuação ou mais, segundo dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio) Anual referente a 2022, a mais atual com esse tipo de dado divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas).
Apesar da média nacional ser de 39,2 horas, muitos trabalhadores excedem isso. Quase um terço (32,6%) trabalha mais do que 44 horas semanais, carga máxima definida pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Para entender essa dinâmica, e em meio ao debate sobre a redução da jornada, por causa da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) da deputada Erica Hilton (PSOL-SP), que prevê o fim da escala 6x1, o UOL consultou a economista Lúcia Garcia, especializada em mercado de trabalho e pesquisadora do Dieese.
Segundo Lúcia, a explicação para esse elevado percentual de trabalhadores acima da média da carga horária se deve à desigualdade laboral. "A média não reflete a distribuição de jornada", diz. A especialista chama atenção para os dados da PNAD que apontam a quantidade de trabalhadores que atuam por mais de 44 horas.
Existe muito o peso de segmentos que têm jornada menores, como os trabalhadores da educação, do setor de serviços e da administração pública. Mas temos, ao mesmo tempo, outros com jornadas muito elevadas, como no comércio. Lúcia Garcia
Ela afirma que o Brasil faz parte de um grupo de países com cargas de trabalho consideradas altas, em comparação ao padrão mundial (veja aqui a média dos países do G20).
"Temos, no cenário internacional, países com médias bem inferiores, com destaque para a Alemanha, com 34 horas semanais; e a França, que gira em torno de 35. O trabalhador brasileiro trabalha muito", afirma.
Mais dados
Na PNAD trimestral, entre abril e junho de 2024, o IBGE traz algumas outras estratificações complementares e mais recentes. Segundo o levantamento, a média de carga horária varia bastante quando comparados sexos e estados, por exemplo.
Por estado:
Por raça:
Branca - 39,8 horas semanais
Preta - 39,2 horas semanais
Parda - 38,7 horas semanais
Por sexo:
Homens - 41 horas semanais
Mulheres - 36,9 horas semanais
Por idade:
14 a 17 anos - 27,5 horas semanais
18 a 24 anos - 38,5 horas semanais
25 - 39 anos - 40,2 horas semanais
40 - 59 anos - 39,6 horas semanais
60 anos ou mais - 36,3 horas semanais
Por escolaridade:
Sem instrução - 36,5 horas semanais
Ensino fundamental incompleto - 37,7 horas semanais
Ensino fundamental completo - 39,1 horas semanais
Ensino médio incompleto - 38,7 horas semanais
Ensino médio completo - 40,3 horas semanais
Ensino superior incompleto - 38, 6 horas semanais
Ensino superior completo - 39,2 horas semanais
Lúcia Garcia diz que, além das desigualdades em termos de horas trabalhadas, há também diferenças em relação ao rendimento. No Norte e no Nordeste, por exemplo, trabalha-se e ganha-se menos, em comparação às demais regiões.
"Isso quer dizer que o trabalhador, para poder ter um ganho maior, estende a sua jornada de trabalho. É uma exploração absoluta, porque as jornadas já são muito longas", afirma.
Segundo ela, há espaço para se reduzir jornadas no país sem diminuir salários. Dessa forma, seria possível abrandar as desigualdades.
Sabemos que há, no Brasil, um grande potencial. Houve elevação da riqueza nacional, mas, ao mesmo tempo, a renda não se eleva e a jornada se estende. Então, há espaço para se chegar a um termo razoável, que permita manter salários e reduzir jornada. Lúcia Garcia
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