terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Dalton Trevisan, 99

A Curitiba de Dalton foi do porre ao pó, da tara à curra, do sabiá à barata leprosa 

Quem eram os deuses desse artista negativo? Quem ele execrava? 

Mario Sergio Conti, fsp, 13/12/2024

Quem fez as contas informa que Dalton Trevisan publicou cerca de 700 contos que se passam em Curitiba, burgo onde "a chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos". Ali nasceu, viveu 99 anos e morreu na segunda-feira (9/12/2024). Foi com extensíssimo conhecimento de causa que escreveu:

"Não permita Deus que eu morra

Sem que daqui me vá

Sem que diga adeus ao pinheiro

Onde já não canta o sabiá".

São versos da sua "Canção do Exílio", que parodia a de Gonçalves Dias. Se o ufanismo do parnasiano exalta as aves que aqui gorjeiam, a chacota de Dalton azucrina a Curitiba das "baratas leprosas com caspa na sobrancelha", dos "ratos piolhentos de gravata-borboleta".

Embora o bom humor acentue o deboche, a energia que move a "Canção" e a literatura do Vampiro é bem outra: a negatividade. Conciso, cáustico, abrasivo, ele mereceu a coroa de loas dos obituários. Seu estilo incisivo, todavia, estava a serviço da negação do modo de ser dos curitibanos, esses brasileiros.

São todos uns calhordas, João e Maria, rameiras e rufiões, mansos e pulhas. "A humanidade, a meu ver, se compõe em grande maioria de filhos da puta," disse numa carta. Escrevia por que, então? "Não escrevo para mudar a vida, melhorar o mundo ou salvar minha alma. Escrever é a única justificativa que encontro para estar vivo."

Dalton escrevia e reiterava o que via e vivia. O que essa operação produzia era muitas vezes torpe, penoso de ler. A repetição a que se entregava normalizava a degradação, fazia girar o abominável carrossel dos contos com curras e pedofilia.

Na antologia "Gente de Curitiba", dois contos em sequência relatam um mesmo estupro, do ponto de vista da estuprada e do estuprador –uma mãe e seu filho. Nunca se leu nada imundo assim, nem a monstruosidade moral foi tão explícita. Detalhada, a atrocidade roça o sadismo.

Bruna Barros/Folhapress 

Antes dos dois contos, está "Ei, Vampiro, qual é a Tua?", um bate-boca irritado de Dalton consigo mesmo, no qual oscila entre se justificar e reprovar. Diz que "com bons sentimentos se faz a pior literatura", mas "não bastam maus pensamentos para cometer boas letras".

Termina o texto (conto-confissão, diálogo-dialética, arranca-rabo?) dando a entender que não deveria fazer o que – contudo!– faz: relatar o estupro da mãe pelo filho com minúcia e distância, fundir arte e horror. Não foi à toa que escreveu: "O escritor é irmão de Caim e primo distante de Abel".

Ao longo da décadas, Dalton radicalizou o estilo. Abreviou os contos. Reduziu as tramas a esqueletos. Limou adjetivos. Liofilizou-se em aforismos: "Ai de Sansão, fosse bom amante, não o trocaria Dalila por um filisteu qualquer". "No mundo dos cabotinos um toque de modéstia é a gota de sangue na gema de ovo." "O falo ereto –única ponte entre duas almas gêmeas."

A fragmentação da prosa mimetizou o estilhaçamento de Curitiba, a cidade sem charme que sintetiza o Brasil brutal. Os curitibanos foram do porre à fissura por pico, pó, pedras; do folclore à crueldade; do mito ao real. Das taras de antanho às curras por toda parte: "Podem me condenar, babacas e bundões. O que eu faço? Tudo o que vocês gostariam. Eu sou um de vocês".

Ninguém é humano na humanidade rebaixada. Não existe redenção para aqueles cuja única inquietação espiritual provém da leitura do horóscopo. Já eram a lírica da alma singular e a épica da ação coletiva. Salve-se quem puder? Nem isso: salvação não há.

Mas eis que uma frase bela brota na sua obra: "o amor é uma corruíra no jardim –de repente ela canta e muda toda paisagem". Mas logo tromba com uma sentença ácida: "o amor é uma faca no coração; cada dia se enterra mais fundo, que não deixe de sangrar". No fim, quem vinga é o casal que um dia se amou, hoje convive às turras e só se fala por bilhetes.

Quem eram os deuses desse artista negativo? O Machado de "Dom Casmurro"; o Joyce de "Dublinenses"; o Pedro Nava de "Baú de Ossos"; Cervantes, Rubem Braga e Proust inteiros.

Quem execrava? O Machado de "Esaú e Jacó" ("ai, que livro mais chato"); o Guimarães Rosa de "Grande Sertão: Veredas" ("a forma é inovadora, mas o fundo reacionário"); o García Márquez de "O General em seu Labirinto" ("fecho de ouro em cada parágrafo –para dizer o quê?").

Quem era o homem? O carinha de 19 anos que rachou o crânio quando a caldeira da olaria do pai explodiu. O aventureiro de 25 que fez uma viagem iniciática de quatro meses pela Europa. O Dalton de quase um século que no mês passado relia Ivan Lessa e ria, feliz da vida.

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Morre o escritor Dalton Trevisan, o lendário vampiro de Curitiba, aos 99 de idade
Um dos maiores contistas do país, ele venceu o Jabuti e o Camões, a láurea máxima a autores de língua portuguesa 

Etel Frota, fsp, 09/12/2024

Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. 

O conto é mais importante que o contista


O escritor Dalton Trevisan, em uma de suas raras fotografias - Reprodução

Morreu nesta segunda-feira, aos 99 anos, o escritor paranaense Dalton Trevisan, um dos maiores contistas do país, informou sua família, na conta do Instagram do escritor. O velório será aberto ao público, atendendo a um desejo do autor, mas ainda não há lugar ou horário definidos, ainda segundo sua agente literária, Fabiana Faversani.

A causa da morte não foi revelada. "Tentamos dar o máximo de privacidade como era seu desejo", disse a agente. "Todo vampiro é imortal. Ou, ao menos, seu legado é", escreveu a família do escritor em um post publicado no Instagram.

 
O escritor Dalton Trevisan em frente à Livraria do Chain, em Curitiba, em 2008

A casa de Trevisan, certa vez, foi pichada. Providenciada a camuflagem do vandalismo, não houve a pretensão de melhorar o aspecto com mais uma demão de tinta. Os rabiscos acrescentaram um acento punk ao tom cinza de decadência que o lugar ostentou por décadas.

O episódio, além de enriquecer a mitologia daltoniana com mais um fato de recorte vampiresco, serviu para comunicar aos interessados que o escritor continuava vivo, desperto e a postos para defender suas indevassáveis muralhas.

Era assim, por meio de sinais indiretos e esporádicas fotos à traição, que se acompanhava a vida e as excentricidades do contista.

Principais obras de Dalton Trevisan

Publicado em 1965

Trevisan cultivou uma aversão especial à imprensa, e sua última entrevista data de 1972. Paradoxalmente, viveu sua fase adulta em endereço certo e sabido, em Curitiba, no cruzamento de duas movimentadas avenidas.

O portão da frente era baixo e vazado, a poucos passos da porta de entrada. Qualquer passante teria podido espiar o interior da casa sem recuo, através das janelas abertas diretamente para a calçada, não fossem as cortinas invariavelmente cerradas.

1985

Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925, irmão de Derson Trevisan e Hilton Dácio Trevisan. Os três, filhos do proprietário da Fábrica de Louça, Refratário e Vidro, João Evaristo Trevisan, e de Catarina Stocchero Trevisan.

O escritor trabalhava na fábrica do pai, em 1945, quando uma explosão causou sérios ferimentos a seu crânio e o obrigou a uma longa recuperação. Há indícios de que desse confinamento tenha emergido o escritor maduro. Nesse mesmo ano, lançou seu primeiro título, "Sonata ao Luar".

No ano seguinte publicaria "Sete Anos de Pastor", definido por Sérgio Milliet como "a maior invenção expressiva desde Clarice Lispector". Trevisan viria, posteriormente, a renegar ambos os livros.
Paralelamente aos seus trabalhos, ele se formou em direito pela Universidade Federal do Paraná, em 1947. Permaneceu filiado à Ordem dos Advogados do Brasil até 1964.

2010

Em 1946, fundou a Revista Joaquim, "de pôr água na boca", segundo escreveu, na Folha da Manhã, a cronista Helena Silveira. No segundo número, a Joaquim publicou uma carta de Carlos Drummond de Andrade, que comemorava "as revistas de moços". "Que delícia uma revista cuja redação é na rua Emiliano Perneta, 476, e que promete publicar em seu segundo número um artigo sob o título 'Emiliano, poeta medíocre'!"

Na coluna ao lado da carta de Drummond, a Joaquim trazia, efetivamente, o artigo em que Trevisan desconstruía Emiliano Perneta, o chamado príncipe dos poetas do Paraná, que em sua opinião teria produzido uma "versalhada farinhenta", para ser "recitada nas sessões litero-musicais dos colégios em festa no dia da árvore".

O jovem escritor também trocou correspondência com Pedro Nava, Antonio Callado e outros importantes nomes da literatura. Segundo o jornalista Sandro Moser, da Gazeta do Povo, a Revista Joaquim foi a "trincheira de onde [Trevisan] iria atacar o paranismo beletrista e cafona da província".
Em 21 edições, de 1946 a 1948, a publicação pôs Curitiba no circuito literário nacional e não deixou pedra sobre pedra na crítica ao movimento que, nas palavras de Trevisan, "em nome de santas tradições, amputou as mãos e furou os olhos dos jovens artistas".


1969

Depois de um hiato, só em 1959 o contista voltaria a publicar em livro. "Novelas Nada Exemplares" resultou em seu primeiro Prêmio Jabuti de Literatura. "O Vampiro de Curitiba" foi publicado seis anos depois. O personagem Nelsinho fala da solidão atormentada de um compulsivo sexual. "Eu vos desprezo, ó virgens cruéis. A todas eu poderia desfrutar. Ser eunuco, ai quem me dera."
Há 50 anos, Nelsinho viria a ganhar o rosto e trejeitos do ator Carlos Gregório, no longa-metragem "Guerra Conjugal", de Joaquim Pedro de Andrade, com roteiro também escrito por Trevisan.
O escritor teve, ainda, várias seleções de seus contos levados ao teatro. Entre as montagens, se destacam a de Marcelo Marchioro, "O Ventre do Minotauro", em 1998, e "Pico na Veia", em 2005.
Por quatro vezes Trevisan venceu o Jabuti. Conquistou também, em duas oportunidades, o prêmio Portugal Telecom, amealhando também o APCA, o Machado de Assis e o prestigioso Camões, pelo conjunto da obra. Nunca compareceu a nenhuma das cerimônias de premiação.
Trevisan publicou até os 90 anos de idade com uma regularidade espantosa, imune às oscilações do mercado editorial.

2023

Segundo amigos, Trevisan nunca foi recluso. Eles contam que o escritor saía todas as manhãs para a sua caminhada e adorava o frisson das mocinhas estudantes de letras da Universidade Federal do Paraná quando o reconheciam. Mas o autor, ele mesmo, afirmou "só a obra interessa". "O autor não vale o personagem. O conto é mais importante que o contista."

1940

Os textos de Trevisan foram encolhendo, numa busca obsessiva pela concisão extrema. "Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta. Nunca termino uma história. Cada vez que a releio, eu a reescrevo", declarou o autor em 1965.

Seu conto "Eucaris a dos Olhos Doces", publicado em 1945 no primeiro número da Revista Joaquim, reapareceu em "O Beijo na Nuca", uma edição da Record de dez anos atrás, rebatizado de "Eucaris", com 229 palavras. A primeira versão tinha mais de mil.

1964

Curitiba se despede de seu vampiro — vegetariano, flâneur, amante das edições artesanais, "monstro moral" em sua autodefinição. Seus livros hoje estão disponíveis pela editora Record e, a partir do ano que vem, serão reeditados pela Todavia

Trevisan foi casado durante mais de quatro décadas com Yole Bonato, morta em 1998. A filha mais nova, Isabel, morreu de câncer antes dos 40 anos. Bonato morreu logo em seguida, pela mesma doença.
O escritor deixa a filha Rosana e as netas Katiuscia e Natasha. Sua morte também deixa órfãs várias safras de contistas, que de muito bom grado teriam dado a ele a jugular para morder.


Diário com Dalton Trevisan por Mario Sergio Conti, FSP, 07/06/2024 In Pílulas 20

1984 
 
O escritor Dalton Trevisan, autor de "O vampiro de Curitiba" que não se deixa fotografar, em uma de suas raras fotografias. Reprodução
 
O escritor Dalton Trevisan caminha pelo centro de Curitiba em maio de 2015. Folhapress
 
1945

 

 

 


 



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