domingo, 11 de agosto de 2024

Joaquim Ferreira dos Santos - pílulas

A rua que é a mais perfeita tradução do Rio

Por Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 01/07/2024 

Todo ano a revista Time Out escolhe as ruas mais legais do mundo e, embora nunca tenham me perguntado picles, vai daqui aos coleguinhas ingleses o meu voto para que a rua do Senado, na Lapa, seja a representante carioca no próximo pleito desse GPS editorial. Deixem de lado a fanfarronada arrogante da Dias Ferreira, esqueçam o estardalhaço barato da Arnaldo Quintela. A Senado aos sábados, naquele trecho que vai da Lavradio, passa pela Gomes Freire e quase chega na Inválidos, ela resume o Rio.

Rua do Senado aos sábados — Foto: Leo Martins

Até ontem vagava por ali, solitário e macambúzio, apenas o fantasma enfatiotado do escritor João do Rio, o espírito andarilho perdido entre escarradeiras e lampiões à venda nos antiquários. Tudo que fica velho a cidade manda vender na rua do Senado. Eis que de repente a esse suspiro nostálgico juntou-se o riso de uma multidão de jovens curtindo o que lhes é de praxe, a alegria dos bares, o lance dos modismos, o auê da música alta e a esperança no seja-lá-o-que-Deus-quiser-que-seja, mas que seja aqui e agora. A rua do Senado deu match entre o que foi e o que-será-que-será.

Uma cidade não se faz a reboque de portos maravilhas, de plano diretor concebido pelos crânios do urbanismo municipal. Ela se faz de surpresas, de inesperados ao dobrar uma esquina e das gentes que se ocupam de inventar nas calçadas. Madame Satã, e só não vê quem não tem Biotônico Fontoura na memória, ainda bebe seu traçado, a navalha já aberta, o rabo de arraia já no meio do caminho, no balcão do Armazém do Senado. Ao seu lado agora está, piercing nas narinas, aos beijos com uma namorada, a percussionista que logo mais vai tocar no vizinho Circo Voador.

Aos poucos os jovens foram chegando, sentando em cadeiras de praia abertas no asfalto, e é impossível não se arrepiar com esse redesenho da cidade porque logo ali ao lado, no número 100 da Lavradio, no prédio, onde está a Associação Luso Brasileira, morava o assaz citado João do Rio, o homenageado em outubro na Flip. No fabuloso “Alma encantadora das ruas”, escreveu que elas têm cheiro, algumas são honestas, outras covardes, havendo também “ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira”.

A carruagem de D. Pedro II passou por aqui, Noel Rosa frequentou uma casa de chope na esquina. Quando todo mundo achava que a Do Senado seria apenas mais uma dessas ruas tão velhas a contar como-era-gostoso-o-passado-que-eu-não-vivi, um museu de asas de borboleta à venda nos brechós, eis que ela pulsa também a evolução. Renova a cidade partida e aproxima os espíritos.

O artista plástico de vanguarda é dono do botequim, a roda de samba em frente vai de Fundo de Quintal, uma cadeira Niemeyer pega fuligem na esquina, o poeta Eucanaã Ferraz (“Me lembram lobos os seus cabelos/ dentro das noites entre meus dedos”) e o diretor de cinema suíço Georges Gachot (“Onde está você, João Gilberto?”) traçam em paz um croquete de língua regado com drink futurista de cachaça de jambu, limão, tônica e xarope de gengibre.

Há ruas esnobes como a serra pelada da Garcia D’Ávila, libidinosas como a Prado Júnior. A Ouvidor é dépassé total. Na rua do Senado, a cidade volta a se confraternizar. Tem sete vidas, como a obra de João do Rio

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Prefeitos, sigam o exemplo de Graciliano Ramos

Por Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 05/08/2024

O escritor Graciliano Ramos, que foi prefeito de Palmeira dos Índios (AL) — Foto: Arquivo

Agora que foi dada a partida para a grande olimpíada dos prefeitos, esses senhores que vão cuidar da trivialidade fundamental de como gastar nossos impostos no ordenamento de ruas e esgotos, quero anunciar solene: meu voto vai para aquele que no palanque se afirmar um seguidor fiel das posturas administrativas do coleguinha Graciliano Ramos

Ele foi prefeito do município alagoano de Palmeira dos Índios (1928-1930) e, antes de se tornar o grande autor de “Vidas Secas”, deu uma palinha do que vinha pela frente ao redigir relatórios com os feitos de cada ano de seu mandato. As contas públicas e o bom humor municipal nunca estiveram em tão boas mãos. Foi no tempo da delicadeza política, do decoro parlamentar. O fundo partidário e o orçamento secreto seriam pesadelos futuros.

A editora Record acaba de lançar esses textos de Graciliano Ramos em “O prefeito escritor – Dois retratos de uma administração”. Não incorrerei na ingenuidade de exigir do edil carioca a se eleger em outubro que ele se avizinhe de tamanho estilo (“evitei emaranhar-me em teias de aranha”), mas que pelo menos se aproxime dos princípios de honestidade, transparência de atos e zelo em investir nas coisas de interesse da população – pelo menos da que estivesse viva:

“Os mortos esperarão mais algum tempo”, relatou sobre o não construção de um novo cemitério, “são os munícipes que não reclamam”.

Graciliano não fez alianças espúrias com os pastores, com a oligarquia dos coronéis, com os agiotas exploradores do “pobre povo sofredor”, e ainda deu um piparote nesses bacanas por acharem, como os ricos de hoje, “que os impostos devem ser pagos pelos outros”. Rachadinha em família também não era com ele:

“Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados.”

Os relatórios chegaram ao sul-maravilha e o editor Augusto Frederico Schmidt percebeu o óbvio. Além de um bom prefeito (“Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram impossíveis”), por trás daquela prestação de contas devia haver um romancista – e, batata!, em 1933 lançou o romance inaugural de Graciliano, “Caetés”.

De vez em quando alguém pede exemplos de bons textos jornalísticos e eu costumo apontar estes do prefeito-escritor. Bons relatórios e boas reportagens se aproximam. São objetivos, mas não devem perder a oportunidade de molhar com graça e personalidade a terra seca dos dados informativos.

Com o Poder Legislativo, o alcaide de Palmeira dos Índios gastou 1:616$484: “Pagamento a dois secretários, um que trabalha, outro aposentado, telegramas, papel, selos”. Ele precisou também torrar valiosos 7:8000$000 com um contrato de fornecimento de luz da administração anterior: “Apesar de ser o negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras. Pagamos até a luz que a lua nos dá”.

Graciliano não aguentou a barra (“Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta”) e, restando dois anos para acabar o mandato, pediu o boné. A literatura ganhava um dos seus grandes, a política alagoana se abria para o sertão de Collors, Liras e Renans.

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Os cardápios contam a história do Rio e precisam ser preservados

Eles são uma espécie de escritura sagrada da cidade, versículos em torno dos quais giram memórias felizes da aldeia. Deviam ser textos imexíveis, cláusulas pétreas que ajudaram a erigir a civilização ao redor. Somos o que comemos

Por Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 22/07/2024 

Casa Urich, restaurante no centro do Rio — Foto: Ana Branco

A notícia saiu discretamente, no pé da coluna de gastronomia da Luciana Fróes, no RioShow de quinta-feira, e ainda bem que eu não sou editor do jornal. Se coubesse a um cronista de segunda a missão de escolher entre os assuntos do dia aquele que, pela importância, deveria subir à manchete, não tenho dúvida do que faria. A pequena nota galgaria o alto da primeira página. Eu, editor, daria a ela não só o direito de brilhar na manchete, mas o de se fazer acompanhar das exclamações eufóricas do jornalismo antigo: “A língua voltou ao cardápio da Casa Urich!!!”

Os cardápios dos restaurantes são uma espécie de escritura sagrada da cidade, versículos em torno dos quais giram comportamentos, culturas, personalidades e memórias felizes da aldeia. Deviam ser textos imexíveis, cláusulas pétreas que ajudaram a erigir a civilização ao redor. Somos o que comemos.

A dobradinha à moda do Penafiel na Senhor dos Passos, o cabrito que o publicitário Armando Strozenberg classificou de "divino" do 28 na Central do Brasil, a torta sacrapantina da Cantina Sorrento do Leme, o labskaus do Ficha na Teófilo Otoni, o sarrabulho da Lisboeta de frente para as cotias do Campo de Santana e a batida de amendoim do Tangará, da Cinelândia, porque somos também o que bebemos.

Todos esses salmos ao prazer, escritos nos cardápios do Rio, deviam ter sido tombados, páginas de glória da história da aldeia, itens sem os quais a vida seria menos saborosa, mas infelizmente todos já se foram, assim como a Polonesa, o restaurante ao lado da delegacia da Hilário de Gouveia, em Copacabana. Era onde ia o delegado Espinosa, o herói ensimesmado dos romances policiais do Luiz Alfredo Garcia-Roza. Forrava o bucho com uma sopa gelada de beterraba, depois pedia um suflê de chocolate. Só então sentia-se em condições filosóficas para pensar como?, por quem?, foi morta a velhinha milionária do Bairro Peixoto.

A volta da língua com batata ao cardápio da Casa Urich, na São José, devia ser notícia de primeira página, e é uma pena não se poder manchetear também o get back do sanduíche aberto de arenque do Helsingor em Ipanema, o kassler com salada de batata do Bar Luiz na Carioca, o t-bone com farofa Dolabella na Carreta de Ipanema e mais o caldo verde, que nessas noites frias cairia tão bem, servido pela Lindaura aos bossanovistas do Beco da Fome de Copacabana.

Os americanos chamam de soul food, aquela comida que alimenta a alma e nos faz reconhecer quem somos, de onde viemos e de que maneira ela pode nos tornar mais fortes para seguir em frente. Não eram cardápios, mas a versão carioca das madeleines francesas do Proust, a historiografia mais gostosa dos nossos encontros à mesa, e através deles a cidade se reconhece para sempre com água na boca.

O sanduíche de pernil que o Pixinguinha comia na uisqueria Gouveia na travessa do Ouvidor, a bouillabaisse do Cazuza no Garcia&Rodrigues do Leblon, a picanha com arroz maluco da Plataforma do Tom, o filé boursin no Gourmet do Celidônio em Botafogo e a moqueca de siri do Oxalá, na Cinelândia, onde meu primo, José Ladeira, era garçom e um dia, ao servir a especiaria a Dorival Caymmi, recolheu a pérola, compartilhada por décadas nos almoços de família, que o mestre baiano não gostava de pimenta. 


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