Ziraldo, o carente mais bem-sucedido do Brasil, tinha a receita para um País mais feliz
O cartunista Ziraldo morreu neste sábado, 6, aos 91 anos
Sérgio Augusto, O Estado, 06/04/2024
Ficamos 17 anos e três meses brigados. Mais precisamente, desde a minha saída do Pasquim ao enterro de Paulo Francis, em fevereiro de 1997. Quem brigou fui eu; quem providenciou as pazes foi o próprio Ziraldo - à beira do túmulo do Francis. Com um argumento irretorquível: “Estamos todos morrendo. Não podemos perder mais nenhum amigo.” Ziraldo morreu neste sábado, 6, aos 91 anos. https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/ziraldo-cartunista-criador-de-o-menino-maluquinho-morre-aos-91-anos-nprec/
Fazer as pazes era uma especialidade, quase uma obsessão, do Ziraldo; coisa de gente carente - e Ziraldo foi uma das pessoas mais carentes que já conheci. Só saber que alguém não gostava dele ou lhe fazia sérias restrições (ok, nem precisavam ser sérias) era motivo bastante para que seu sistema neurovegetativo entrasse em pane. Também por isso e por ser Ziraldo de uma simpatia avassaladora, aceitei o cachimbo, fizemos as pazes, nunca mais brigamos.
Ziraldo e Millôr entraram ao mesmo tempo na minha vida, no início de 1963, na redação de O Cruzeiro. Millôr já (ou ainda) era a estrela maior da revista e Ziraldo acabara de trocar o cargo de relações-públicas pelo de diretor de arte, a convite de Odylo Costa, filho, que assumira O Cruzeiro para uma reforma em regra no decadente semanário. Ziraldo não fez por menos: mudou o logotipo e transformou o miolo num mix de Look e Paris-Match.
Muito inventivo, fazia então três anos que criara a primeira revista de quadrinhos brasileira de um só autor, A Turma do Pererê, laboratório para o seu mais ambicioso e venturoso salto imortal, Menino Maluquinho, lançado em 1980.
Fora de O Cruzeiro arriscou-se como desenhista de cartazes de cinema (Mulheres e Milhões, Os Fuzis etc), tomou conta de uma página dominical no Jornal do Brasil e bolou toda a programação visual do I Festival Internacional do Filme, em 1965, incluindo o design de seu troféu, a Gaivota de Ouro. Do festival saiu com o status de designer. E as ofertas de trabalho começaram a chover em sua horta.
A revista semanal Visão sonhava com uma nova aparência gráfica, e lá foi Ziraldo atender às suas necessidades. O Jornal dos Sports planejava mudar seu logotipo, abriu um concurso, Ziraldo se inscreveu e levou a melhor. A direção do jornal afinal preferiu adotar o logotipo que ficara em segundo lugar, mas ninguém tirou dele o prêmio de viagem aos Estados Unidos. Ainda bem, pois era justamente de um périplo pelo circuito Helena Rubinstein que ele estava precisando.
Em Nova York, vendeu desenhos para as revistas Esquire e Mad. Em Londres, conheceu Bob Guccione, dono da revista masculina Penthouse, que o convidou para viver na Inglaterra. Não topou. Nem em Paris quis ficar. Agradeceu o convite das revistas Planète e Pléxus (em cuja capa puseram-no ao lado de Picasso, Salvador Dali e Saul Steinberg, em fevereiro de 1967), e voltou para o Brasil como se tivesse tirado a espada Excalibur daquela rocha com o dedo mindinho.
Quando se deu conta, já estava em 1969. Demorou um pouco a tomar consciência de que aquele seria o seu annus mirabilis. Na despedida da tumultuada década de 1960, Ziraldo criou a sua Capela Sistina: Flicts. Ganhou um prêmio em Caracas e o maior troféu do humor internacional (em Bruxelas); foi o primeiro artista gráfico sul-americano a desenhar o cartão de Natal da Unesco; e só não acabou diretor de uma revista em Nova York porque não quis. E ainda teve o Pasquim, lançado no meio do ano.
Especialmente perseguido pela ditadura militar, o legendário semanário humorístico carioca teve quase toda sua redação presa, sem explicações, durante os dois últimos meses do ano seguinte, na Vila Militar. Embora a embaixada americana lhe tivesse acenado com um green card, ao deixar a prisão Ziraldo preferiu ficar. “Ir embora agora é fugir do pau.” E foi ficando. O pau quebrou, parou de quebrar, e Ziraldo só fez ampliar seus domínios. Na imprensa, na televisão, na publicidade, no design, na literatura infantil—e até na educação.
Isto mesmo: educação. Ziraldo tornou-se o maior educador leigo do Brasil, uma espécie de ministro sem pasta (e itinerante) da Educação, cheio de ideias para melhorar a qualidade de nosso ensino e incentivar nas crianças o gosto pela leitura.
Além da volta do latim ao currículo médio, defendeu, obstinadamente, a primazia do ensino fundamental. Todo poder aos primeiros e formativos anos na escola, onde a criança se instrumentaliza para poder adquirir, fixar e acumular conhecimento. “Se o governo tiver, digamos, 100 mil reais para gastar com ensino, 60 mil deveriam ir para o ensino fundamental, 20 mil para o médio e 20 mil para o superior. Resolvido agora o problema do ensino fundamental, daqui a oito anos vai ser fácil resolver os problemas do ensino médio, e daqui a dez anos, os problemas do ensino superior, evitando que as universidades sejam invadidas por estudantes babacas e semiletrados, como hoje acontece”.
Para ele, foi um desastre acabar com os cursos primário e ginasial do seu tempo de estudante. “Sua substituição por oito anos sequenciais só trouxe desvantagens. Alegaram que era para acabar com a evasão de alunos, mas a evasão não só não acabou como a qualidade do ensino caiu a níveis lastimáveis. Hoje os alunos são aprovados automaticamente, como se escola fosse quartel, onde o sujeito entra cabo e sai general.”
Era esta a receita de Ziraldo para fazer o Brasil mais eficiente. E, sobretudo, mais feliz. Há tempos lhe disse que, se algum dia chegasse à presidência da República, ele seria meu ministro da Educação. A menos, é claro, que a gente estivesse brigado outra vez.
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Um 3X4 do Ziraldo
Trabalhar cercado de gente era, para Ziraldo, o suprassumo da solidão criativa
Por Sérgio Augusto, O Estadão, 14/04/2024
Quando conheci Ziraldo, ele, Vilma e Daniela (uma menina de 4 anos!) ainda moravam na Praça do Lido, em Copacabana. Acabamos vizinhos na Lagoa Rodrigo de Freitas, por mais de duas décadas. Da minha janela avistava a de seu ateliê, quase sempre acesa até altas horas.
Trabalhar cercado de gente – parentes, amigos, discípulos (dois deles, Caulos e Miguel Paiva, seus vizinhos de prédio por uns tempos) – era, para Ziraldo, o suprassumo da solidão criativa. Pilotando a prancheta e regendo a algaravia, ora com um lápis entre os dentes, ora a morder a ponta da língua no canto da boca como costumam fazer as crianças quando rabiscam alguma coisa a sério – eis a imagem mais marcante que do Zira operário do traço fixei na memória.
“Criança até hoje”, cheguei a comentar com outro habitué da casa (terá sido Antonio Pitanga ou Sérgio Ricardo?), ao notar o cacoete pela primeira vez. Na mesa da cozinha havia sempre café recém-coado e bolo para as visitas, uma open house mineira, com certeza. Por tudo isso, era sempre agradabilíssimo frequentar a casa de Ziraldo e Vilma, esposa e anfitriã perfeita.
Além do bairro, da rua, compartilhamos projetos, três ou quatro redações, folguedos (réveillon al mare na Baía de Angra, torneios de piscibol) e até um sobrenome, Pinto, embora isento de parentesco. Segundo Ziraldo, ao contrário do que sempre supus, não éramos cristãos novos; o nosso Pinto seria, como o Pinter do Harold, uma corruptela de Painter, pintor em inglês.
Nosso primeiro aperto de mão aconteceu em março de 1963. Ziraldo acabara de trocar a função de relações-públicas de O Cruzeiro pela direção de arte da revista, a convite de Odylo Costa, filho, a quem fora confiada uma reforma em regra no então decadente semanário.
Ziraldo, de cara, mudou o logotipo e transformou o miolo da revista num misto de Look e Paris-Match. Sem o mofo antigo e com uma redação renovada pela inclusão de Carlos Heitor Cony, Wilson Figueiredo e Carlos Leonam, entre outros, o novo e arejado O Cruzeiro foi uma experiência estimulante, até soçobrar, sete, oito meses depois, quando o então potentado do império Chateaubriand, Leão Gondim, enciumado, maquinou a saída de Odylo.
Um dia contarei como nasceram as Fotopotocas (as memes impressas daquele tempo), que Ziraldo e eu lançamos em duas páginas da revista e, mais tarde, em brochura. Com a saída de Odylo, Ziraldo assumiu a chefia da redação. Conseguiu editar apenas um número.
Bateu de frente com Accioly Neto, capataz vitalício da empresa, por causa do veto a uma reportagem. “Já reparou que o senhor sobrevive a todas as crises d’O Cruzeiro?”, jogou-lhe nas fuças Ziraldo. “Meu filho”, reagiu Accioly, “jornalismo é uma indústria de papel pintado. Deixe de tolos idealismos. Faça alguma coisa pra ganhar dinheiro; o resto é besteira.”
Ziraldo saiu da sala aos prantos. E, sem abrir mão de seu idealismo, foi acumular fama, glória e um bom dinheiro com suas besteiras.
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