quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Pílulas 16

Graciliano Ramos e a fogueira
A 'sacanagem' com Graciliano Ramos e a fogueira como amiga leal

Rodrigo Casarin, Colunista de Splash, 21/02/2024

Só um tolo rirá da cara de alguém que colocar Franz Kafka como um dos maiores artistas dos últimos tempos. Em vida, o escritor publicou livros que ainda são lembrados ("Na Colônia Penal" e "Um Artista da Fome", por exemplo) e levou ao público uma das histórias mais marcantes da literatura no século 20: "A Metamorfose".

Mas o cara era inseguro. Desconfiava do próprio talento, não botava muita fé naquilo que escrevia. Largou histórias pela metade, queimou muitos dos seus rascunhos e engavetou outros tantos. Kafka deixou um pedido para Max Brod, seu grande amigo: quando se fosse deste mundo, que desse um fim em toda aquela papelada. Que ninguém fosse xeretar seus manuscritos.

Kafka partiu em 1924, aos 40 anos, após definhar por causa da tuberculose, um dos muitos tormentos de sua vida. Para alegria dos leitores, Brod ignorou o amigo morto. "O Castelo" e "O Processo", grandes romances, estavam entre os originais que deveriam ser destruídos caso a vontade do autor fosse respeitada. A literatura agradece a traição de Brod.
Se Kafka realmente desejava que ninguém lesse aquilo que escreveu e não publicou, por que, então, não destruiu a produção? Por outro lado, para um artista, como saber qual é o momento de abdicar da feitura de uma obra e, no lugar de engavetá-la para ter com ela uma segunda chance no futuro, simplesmente aniquilá-la? Ainda: não é legítimo que alguém, por mais genial que seja, possa escolher quais de suas criações deverão ser levadas ao público?

Poderia elencar dezenas de questões que emergem do caso de Kafka, provavelmente o mais famoso quando o assunto é publicação de livro à revelia do autor morto. O espólio deixado pelo tcheco e preservado por Brod virou quiproquó internacional. Em "O Último Processo" (Arquipélago, tradução de Rodrigo Breuning), Benjamin Balint conta a história das disputas em tribunais por parte do legado do judeu que nasceu na República Tcheca e escrevia em alemão.

Tem sido agitada a entrada da obra de Graciliano Ramos em domínio público. Com uma série de edições de clássicos como "Vidas Secas", "São Bernardo" e "Angústia", herdeiros encampam uma luta para que os escritos do velho Graça não sejam usados comercialmente sem que a família também ganhe alguma grana.

Junto disso, chega às livrarias um texto que Graciliano tinha pedido para que os responsáveis pelo seu espólio mantivessem longe dos leitores. "Os Filhos da Coruja" é um poema assinado por J. Calisto, pseudônimo do escritor que se via como um poeta sem grandes virtudes. Com a entrada em domínio público, sem precisar prestar satisfações a ninguém, a Todavia publicou uma edição dos versos por meio da Baião, seu selo de literatura infantil.

"Os Filhos da Coruja" foi escrito à mão em setembro de 1923, quase três anos depois de Graciliano ficar viúvo. "A Águia e o Mocho", do francês La Fontaine, é a principal inspiração para a breve história de tom fabuloso que se inicia com o encontro da comadre Coruja com o compadre Gavião, bichos de "vaga amizade".

O texto de Graciliano aparece inteiro numa espécie de encarte no centro do volume. O que segura o livro de pouco mais de 30 páginas são as ilustrações — bonitas, sem dúvidas — inspiradas no poema feitas por Gustavo Magalhães.

Em entrevista à Folha, Ricardo Ramos Filho, neto de Graça, considerou uma "sacanagem enorme" contrariarem o desejo de seu avô e publicarem o poema. Ricardo lembra: Graciliano costumava rabiscar os originais e até queimar palavras com a ponta do cigarro para que ninguém descobrisse o que resolvia cortar de seus textos.

Olhando para o que fizeram aqui em 2024, talvez devesse ter usado mais o cigarro contra as criações das quais não se orgulhava. Como Kafka deveria ter confiado mais na lixeira que em Max Brod para manter seus escritos em sigilo. A fogueira, sempre inimiga dos livros, é a companheira mais leal daqueles que não querem que seus textos sejam publicados.

Em todo caso, entre razões de cá e de lá, a literatura costuma agradecer quando o fogo não é aceso.


Os filhos da coruja, Graciliano Ramos, pinturas Gustavo Magalhães - 1ª edição, 2024

“Quem o feio ama, bonito lhe parece” foi a moral da história que Monteiro Lobato escolheu para finalizar sua versão da fábula “A águia e o mocho”, de La Fontaine, que também serviu de inspiração para o poema inédito de Graciliano Ramos. Publicado originalmente em 1923, Os filhos da coruja foi assinado por J. Calisto, um dos pseudônimos utilizados pelo escritor alagoano no início da carreira, e chega aos leitores neste ano em que sua produção entra em domínio público. O livro sai pelo Baião, selo infantil da editora Todavia, e integra a Coleção Graciliano Ramos — ao lado de clássicos como Angústia (1936) e Vidas Secas (1938) —, que tem pesquisa e organização de Thiago Mio Salla, um dos maiores especialistas na obra do autor. “Tu és sempre a coruja e os outros homens são gaviões” é a frase que encerra a versão da fábula escrita por Graciliano Ramos, em estilo inconfundível e bem menos pedagógico do que o adotado por Lobato. Nessa versão poética, o autor não poupa o leitor do fim trágico, tampouco da crítica ácida sobre a espécie humana, tão bem caracterizada no texto pela comadre coruja e pelo compadre gavião.  Cristiane Tavares 


Pinturas de Gustavo Magalhães para ‘Os filhos da coruja’ Divulgação

Os filhos da coruja, Graciliano Ramos

A comadre Coruja encontrou certo dia

O compadre Gavião.
Entre os dois existia uma vaga amizade,
Levara à pia
Daquele bicho fanfarrão
.....

Ao vê-lo, gritou logo:

- "Oh! meu belo compadre!
Que magnífico está! Tão garboso e gentil!
Que ótimas cores!
Que motivo tão forte o traz do imenso espaço
À terra escura e vil,
Onde a sorte acorrenta os bichos inferiores?
Aposto que fareja alguma festa."
- "Não.
Vou à caça, comadre",
Disse, estirando uma asa, o compadre Gavião.
"Aquilo lá por cima há muito tempo que que anda escasso.
Uma seca geral. É pior que o Nordeste.
Não há coisa comível,
E eu tenho - você sabe - o apetite terrível.
Sendo estação a estação ingrata
E não nos fornecendo o ar caça que preste,
A gente vai caçar à mata."
- "Vai à mata? Oh! meu Deus! Isto me dá cuidado.
Eu moro aqui assim por estas bandas. Tenho
Os rapazes em casa... e sós, longe de mim...
Não mos coma, senhor. Você conhece-os? Não?
É fácil conhecer. Por estes arredores
Não há outros assim.
São pequeninos
Lindos como um amores.
É num oco de pau que eu moro, meu adorado.
Não mos coma, valeu?"
- "Valeu, comadre. E então?
Pois eu sou lá capaz de comer-lhe os meninos?
Você sabe que eu venho
Como amigo."
- "Está bem, meu compadre, obrigada."
- "Lindos, hein?"
- "De encantar. Meu Deus! Se você visse!
É num oco de pau, não sei se disse."
- "Disse.
Pode estar descanssada.
Até mais logo. Adeus."
- "Sim, senhor. Passe bem. Dê lembranças aos seus."
.....

O Gavião foi à mata. E os primeiros viventes
Que por lá encontrou
Foram três animais miudinhos, pelados,
Feios como os pecados.
Três bicharocos repelentes.
Meteu, faminto, o bico agudo,
Feriu, espicaçou, matou, estrancinchou,
Fez em pedaços tudo.
.....

Homem que me escutaste
E não vês que tua alma é pequenina e feia;
Que imaginas, vaidoso, um fictício contraste
Entre a beleza dela e a fealdade alheia;
Que em vão tentas dourar a nódoa que te suja
E buscas transformar teus vícios em virtudes;
Como te iludes!
A que te expões!
- Tu és sempre coruja
E os outros homens são gaviões.

Os filhos da coruja, Graciliano Ramos, pinturas Gustavo Magalhães - 1ª edição, 2024

A águia e o mocho, La Fontaine, Jaime Pietor (Trad.)

 Um dia a águia disse ao mocho em ternas frases:
"O que lá vai, lá vai, é bom pormos-lhe ponto
E fazermos as pazes.
— Eu cá por mim, estou pronto".
Respondeu ele. — e os dois juraram, abraçados,
Respeitar um do outro os filhitos amados.
"Conheceis já os meus? — disse-lhe a ave da ciência.
— Não, respondeu a águia, e a ave da ciência
Disse: — Tanto pior. Se nada te resiste,
Como hão de, dize lá, contar os meus filhinhos
Com a tua clemência?

Não lhes queria estar na pele, coitadinhos!
Não, não me fio em ti, porque és rainha, e os reis
Sabem agora lá para que são as leis!
Vocês fazem o mal por um capricho reles.
Filhos do meu amor! Se acaso os vês, ai deles!
— Bem. Pinta-mos, então, e escusas de ter medo.
Que eu te prometo aqui não lhes tocar com um dedo".
O mocho respondeu: "Aqui tens os sinais:
São muito pequenitos,
Mimosos como a flor, esbeltos e bonitos
Como não achas mais;
Tão bem feitos, tão belos.

Que por este retrato hás de reconhecê-los.
Falta-me agora ver se tu és descuidada,
E me entra aí por casa a Parca amaldiçoada.
Hão de agradar-te, sei, mas faze a vista grossa
Bem sabes que sou pai e que os pais são assim.
E respeita-os por mim;
Ai! Quem meus filhos beija, a minha boca adoça!"

Deus dera prole ao mocho, e em noite desabrida,
Que ele batia mato a agenciar a vida,
A águia andando a corso avista de repente
Nuns velhos casarões, todos esburacados,
Uns monstrozinhos tais, de voz tão repelente,
Tão mal feitos de corpo e tão desengraçados,

Que ela disse consigo:
"Não há que recear; não são do nosso amigo".
E com um gesto guapo
A rainha gentil logo os meteu no papo.

Mas vem de volta o mocho, o mocho, que imagina
Ficar ali de vez,
Ao achar, pobre pai!, dos filhos só os pés.

Queixa-se, chora e pede aos deuses punição
Para ela, a assassina,
Que assim lhe veio encher de luto o coração!
"É tua a culpa, alguém então lhe disse, ou antes
É da lei que nos faz achar os semelhantes
A nós, só porque o são, amáveis, lindos, belos.
Por isso os filhos nós perdemos, nós os pais;
Se fizeste dos teus uns elogios tais,
Como podia, dize, a águia reconhecê-los?"

Fábulas de La Fontaine - Antologia, Vários tradutores


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Um pedaço de pouco

Assiti semana passada ao fime "Boy", 2010, do neozelandês Taika Waititi (Aliás, vale assistir dele o premiado "Jojo Rabbit", 2019). Conta a estória de um garoto, o Boy, que tem um pai maluco que, dentre outras coisas, é fanático pelos samurais. E qual a fonte? O livro "Shogum" que James Clavell escreveu em 1975.

Sine qua non, estou vendo a série "Xógum: a gloriosa saga do Japão", no Starplus, baseada no mesmo livro de Clavell. E qual o enredo? Trata da peleja colonialista estre portugueses, espanhois e ingleses no Japão do xogunato nos 1600. Aí leva junto a briga entre católicos e protestantes. Para os japoneses estes não nativos eram chamados de bárbaros. De resto o herói não nativo é ingles. Bom lembrar que James Clavell é australiano, mas se considerava ingles. Ninguém é de ferro, né.

Scorcese, no filme "Silèncio" de 2016, trata da severa perseguição de jesuitas pelos japoneses nos 1600.

Xógum: A Gloriosa Saga do Japão | Trailer Oficial | Star+

Silêncio, Silence, 2016, Martin Scorsese

No século XVII, dois padres jesuítas portugueses são enviados ao Japão à procura do seu mentor desaparecido. Com o país fechado ao exterior e o catolicismo proibido, eles enfrentarão perseguição em uma jornada de descobertas espirituais.
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Entrevista é clássica com o grande Marlon Brando

Qual filme você diria esse foi muito bom. Resposta de Brando: Burn (Queimada)

Entrevista completa com Marlon Brando (1994)

Quando Marlon Brando Foi ATERRADOR

  ASSIM MORREU O ATOR AMERICANO MARLON BRANDO (PODEROSO CHEFÃO) 

 
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Já viu DISCO de VINIL no MICROSCÓPIO? É IMPRESSIONANTE!


Você já viu como a música fica gravada no disco de vinil? Nesses tempos onde tudo é digital, é muito legal ver de perto como era na época da tecnologia analógica. Colocamos um disco antigo no microscópio para mostrar como ele era cheio de ranhuras. E o desenho delas é igual ao da onda sonora, que é exatamente o movimento que a caixa de som faz para reproduzir a música.
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Renda no Maranhão é menos de 30% da registrada no DF; veja ranking das UFs

 Rendimento em 2023
Valor nominal mensal domiciliar per capita, em R$

Distrito Federal     3.357
São Paulo     2.492
Rio de Janeiro     2.367
Rio Grande do Sul     2.304
Santa Catarina     2.269
Paraná     2.115
Mato Grosso do Sul     2.030
Goiás     2.017
Mato Grosso     1.991
Minas Gerais     1.918
Espírito Santo     1.915
Brasil     1.893
Tocantins     1.581
Rondônia     1.527
Amapá     1.520
Roraima     1.425
Rio Grande do Norte     1.373
Piauí     1.342
Paraíba     1.320
Pará     1.282
Sergipe     1.218
Amazonas     1.172
Ceará     1.166
Bahia     1.139
Pernambuco     1.113
Alagoas     1.110
Acre     1.095
Maranhão     945
Fonte: IBGE

O rendimento domiciliar per capita (por pessoa) da população do Maranhão equivale a menos de 30% do registrado no Distrito Federal, de acordo com dados divulgados nesta quarta-feira (28) pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

No estado nordestino, o valor mensal foi de R$ 945 em 2023. É o equivalente a 28,2% da renda per capita registrada no Distrito Federal: R$ 3.357.

Conforme o IBGE, o Maranhão tem o menor rendimento do país, enquanto o Distrito Federal responde pelo maior. No Brasil, o indicador foi calculado em R$ 1.893 por mês em 2023.
Os valores são publicados de forma resumida pelo IBGE em termos nominais (sem o ajuste pela inflação), o que dificulta uma comparação com anos anteriores.

O rendimento domiciliar per capita representa a razão entre o total das rendas domiciliares e o número de moradores. Nessa conta, o IBGE considera os recursos obtidos com o trabalho e outras fontes.

"Todos os moradores são considerados no cálculo, inclusive os pensionistas, empregados domésticos e parentes dos empregados domésticos", afirma o instituto.
A divulgação atende a uma lei complementar que estabelece os critérios de rateio do FPE (Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal). Os dados são repassados pelo IBGE para o TCU (Tribunal de Contas da União) anualmente.
Em 2022, o rendimento mensal domiciliar per capita havia sido calculado em R$ 1.625 no Brasil, também em termos nominais. Ou seja, ao chegar a R$ 1.893 no país em 2023, o indicador ficou 16,5% maior.

Sem considerar a inflação, o valor também aumentou nas unidades da federação de um ano para o outro. O Distrito Federal, conhecido por reunir servidores públicos com renda mais elevada, seguiu no topo do ranking, enquanto o Maranhão permaneceu na parte inferior da lista.

São Paulo é o segundo local com maior rendimento, alcançando R$ 2.492 em 2023. Rio de Janeiro (R$ 2.367), Rio Grande do Sul (R$ 2.304) e Santa Catarina (R$ 2.269) aparecem na sequência.

Entre os estados com rendimento menor, o predomínio é de integrantes do Nordeste e do Norte. Além do Maranhão (R$ 945), Acre (R$ 1.095), Alagoas (R$ 1.110), Pernambuco (R$ 1.113) e Bahia (R$ 1.139) também ocupam as últimas posições do levantamento.

.....

"Diga a si mesmo que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo" André Breton, Manifesto do Surrealismo

Quantos jovens sabem que o adjetivo ‘surreal’ deriva de um movimento centenário?

 O surrealismo foi um dos movimentos de vanguarda mais controversos e influentes do século passado

Sergio Augusto, O Estado, 25/02/2024

Quantos de nossos jovens saberão que o adjetivo “surreal”, por eles usado a torto e a direito para qualificar qualquer coisa que lhes pareça absurda, deriva de um dos movimentos de vanguarda mais controversos e influentes do século passado? Tão do século passado, que está fazendo 100 anos.
O surrealismo, fruto de uma época quase tão conturbada quanto a nossa e também assolada por uma pandemia (a gripe espanhola), nasceu oficialmente em 1924, impulsionado por um manifesto concebido por dois poetas franceses, André Breton e Philippe Soupault, sob influência de um terceiro (Apollinaire), morto seis anos antes.
Se não revolucionou, muito agitou a literatura, a poesia, as artes plásticas e cênicas, o cinema, o humor.
No tal manifesto, o primeiro de dois (o segundo sairia em 1930), Breton detonava o equilíbrio, o realismo (“hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral” e refúgio dos medíocres), proclamava a prevalência absoluta do sonho, do inconsciente, do instinto e do desejo, pregava a renovação de todos os valores filosóficos, morais, políticos e científicos, preconizando uma nova maneira radical de ver as artes, o mundo – e a vida. O artista surrealista por excelência seria aquele “capaz de visualizar um cavalo galopando sobre um tomate”.

 
Quadro de René Magritte 

”Não  é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio pau a bandeira da imaginação”, ameaçava Breton numa das melhores imprecações do manifesto, visceralmente antimilitarista (a Grande Guerra terminara seis anos antes) e anticlerical. Porém, esperançoso. Augurou que um dia a poesia decretasse o fim do dinheiro, utopia que a poesia não logrou, nem o Pix deverá consumar.
Um humor travesso, juvenil, perpassa suas criações, com relógios que se derretem, xícaras revestidas de pele animal, mas também lampejos que transcendem o onírico para “épater” de Salvador Dalí, o espertalhão do grupo, que Luis Buñuel rifou depois de Um Cão Andaluz.

Antecipando-se às celebrações do centenário na Europa, com Bélgica e Paris (Centro Pompidou) liderando a programação, a Yale University Press lançou mês passado um estudo de Mark Polizzotti sobre a relevância e o legado do movimento, Why Surrealism Matters. Os slogans pichados nos muros de Paris pela estudantada rebelde de Maio-68 tinham DNA surrealista, assim como os protestos anticolonialistas na França durante as guerras na Indochina e Argélia. Até nas reformas pedagógicas de Piaget e Montessori encontraram as digitais do surrealismo.

Os irmãos Marx, a poesia beat, o Teatro do Absurdo, Bob Dylan, Monty Python e David Lynch – todos estes, mais os brasileiros Ismael Nery, Cícero Dias, Tarsila do Amaral, Murilo Mendes, Roberto Piva e Sérgio Lima – nutriram-se da mesma seiva anárquica que nos premiou com as pinturas de Max Ernst e Magritte e os filmes de Buñuel, entre outros tesouros culturais. É muita relevância junta.


E mais
Surrealismo

O porquê de Finoca

A Finoca do título é o apelido da Orípia Pereira de Carvalho, 98 (21/09/1922 – 25/11/2020), minha mãe. Escrevi sobre ela neste Blog quando ela fez 89 anos. Leia aqui https://librinas.blogspot.com/search?q=Finoca

Boa parte da cabeça da Finoca foi feita num colégio de freiras. Teve sua educação formal no Colégio Anjo da Guarda em Bebedouro (colégio interno) no período de 1932 a 1942. Foram 11 anos de colégio interno divididos em quatro de primário, cinco de ginásio e dois de escola normal. Lá estudou Latim, Francês, Português, Geografia, História, Matemática, Física, Educação Moral e Cívica, Música, Trabalhos Manuais, Desenho, Sociologia, Pedagogia e Prática Pedagógica.

Casou-se com Sebastião Cardoso Carvalho Sobrinho, 66 (02/12/1919 – 11/03/1986), o Tatau. Orípia casou-se com Sebastião no dia 5 janeiro de 1946 e exonerou-se da escola durante o período de 1945 a 1948. Neste período tiveram Aluisio (1946) e Maria Cristina (1949). Sebastião pedira à esposa que ficasse em casa para cuidar dos filhos. Mas em 1949 Finoca voltou a trabalhar a contragosto do marido, para ajudar no sustento da família. Ela contrariou o pai para casar e agora contrariava o marido para voltar ao trabalho como professora. Isto na década de 1940. Ela seguiu a história de outras duas librinas porretas: Inácia Bernarda e Mariana Librina (tias-triavó de Finoca) sobre as quais já escrevi neste Blog. Só ler em Mariana Librina aqui e Inácia aqui

Depois a caminhada de Finoca seguiu. Até hoje (em fevereiro de 2024) na árvore genealógica dela e Tatau têm 8 filhos (4 mulheres e 4 homens), 17 netos (12 mulheres e 5 homens) e 17 bisnetos (10 mulheres e 7 homens).

Este texto tem a pretensão de resolver a seguinte questão. De onde veio o apelido da Orípia? Finoca apareceu quando e como?

Falhamos, nós ancestrais, em não perguntar sobre a origem do apelido quando viva Orípia estava.

Geralmente procuramos fontes de investigação sobre um tema em questão. No caso existem as correspondências (cartas) entre Orípia e Sebastião. São várias, mas até então não percebi pistas que respondem à pergunta. De onde veio Finoca?

Hoje tenho uma hipótese.

Imperativo dizer que, face ao conteúdo pedagógico do Colégio Anjo da Guarda, Orípia e colegas leram, e muito, Machado de Assis.

Já que estamos falando dele vem a tona o conto “Pobre Finoca!”. Ei-lo aqui

Lembrança importante. Orípia começou seus estudos com 10 anos e terminou 11 anos depois. Nas idas e vindas de Bebedouro a Barretos conheceu Sebastião e começou o namoro meio que a contragosto do pai. As cartas trocadas entre os dois documentam este idílio amoroso.

Mas voltando ao conto do Machado: Finoca, Alberta e Macedo formam um trio de personagens que se interagem. No princípio Macedo se interessava por Finoca e Alberta no papel de cupido.

Não, Finoca não tinha atração por Macedo. Ela o considerava um idiota. — Eu não disse desprezível, acudiu Finoca. — Você disse idiota. — Sim; idiota…

O que Alberta não esperava foi a desilusão com seu namorado. Ele estava em São Paulo e se engraçou com outra menina por lá.

Para onde foi a estória?

Quando Alberta notou que as cartas tinham cessado de todo, sentiu em si indignação contra o vil, e desligou-se da promessa de casar com ele. Casou três meses depois com outro, com o Macedo — aquele Macedo — o idiota Macedo. Pessoas que assistiram ao casamento, dizem que nunca viram noivos mais risonhos nem mais felizes.

Resumo da ópera. Alberta com Macedo e Finoca aliviada.

Sem ficção agora. Orípia sempre falava das amigas do Colégio Anjo da Guarda. E estas amigas leram o conto do Machado. Não deu outra. Orípia se tornou Finoca.

Tudo a ver.

 


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Suicídio no Brasil

Suicídio cresce no Brasil em 11 anos; população indígena lidera índice

Sarah Alves Moura, Do VivaBem, em São Paulo, 23/02/2024

O Brasil teve mais de 147 mil suicídios entre 2011 e 2022, apontou um estudo feito por pesquisadores da Escola de Medicina de Harvard (EUA) e do Cidacs/Fiocruz Bahia (Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz).

A pesquisa, publicada no periódico The Lancet no dia 15 de fevereiro, também mapeou casos de automutilação, quando a pessoa tenta amenizar o sofrimento psicológico por meio de ferimentos físicos e que, com o tempo, podem levar à tentativa de suicídio.

É a primeira vez que uma pesquisa organiza dados das duas ocorrências e de internações relacionadas a elas no Brasil. Esse mapeamento ajuda a planejar políticas de combate ao suicídio, um problema de saúde pública por aqui e no mundo.

Entre 2011 e 2022, o Brasil teve alta de 3,7% de suicídios (foram 147.698, no total) e 21,13% de autolesões (104.458 casos, no total). As informações são de três bancos de dados: Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação); internações por automutilação do SIH (Sistema de Informações Hospitalares) e dados de suicídio do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade).

O suicídio é um fenômeno multifatorial. Isso quer dizer que vários aspectos levam a ele, e não apenas a presença de transtornos psiquiátricos. Aspectos genéticos, faixa etária, apoio social e econômico influenciam o desfecho grave.

Flávia Jôse Alves, uma das autoras do estudo, explica que os dados vão ajudam a nortear políticas públicas. "É importante a possibilidade de acessar essas informações e de tê-las públicas. Fazer pesquisa com esses dados ajuda a ciência a pensar estratégias de prevenção baseadas em evidência", afirma a psicóloga e pesquisadora do Cidacs/Fiocruz Bahia e da Escola de Medicina de Harvard.

Quais foram os principais resultados?

Suicídio é maior entre indígenas. A população lidera os índices de suicídio e autolesões, mas tem menos hospitalizações. Isso revela um vazio assistencial no socorro e no suporte em saúde mental.

Aumento entre jovens. Notificações de automutilação e hospitalizações foram maiores entre pessoas mais jovens (faixa etária de 10 a 24 anos), enquanto as taxas de suicídio foram maiores entre idosos e adultos. Mas esse último índice tem crescido entre jovens, acompanhando as taxas globais.

Brasil na contramão dos dados mundiais. A taxa global de suicídio caiu, enquanto subiu nas Américas, com foco especialmente no Brasil —uma tendência já apontada pela OMS (Organização Mundial da Saúde).

Diferenças por gênero. Mulheres lideram as taxas de autolesão, e os homens as de suicídio, também seguindo as taxas mundiais —o suicídio foi quase quatro vezes mais frequente em homens, e as autolesões duas vezes mais frequentes em mulheres.

Olhar social sobre o suicídio

O estudo reforça como fatores socioeconômicos influenciam nos índices. Essa linha de pesquisa indica como as condições de vida favorecem o suicídio entre minorias.

"O aumento do suicídio e das automutilações podes sugerir maior exposição a fatores de risco, como o aumento da prevalência de transtornos mentais, com impactos diretos nos serviços de saúde, e associação com fatores socioeconômicos, como aumento da desigualdade social e da pobreza", escreveram os autores.

Segundo o psicólogo Thiago Bloss, que estuda suicidologia (a pesquisa do comportamento e das causas suicidas), a abordagem social é importante para entender os dados atuais, sobretudo a maior incidência entre indígenas.

"Há um padrão de violência sobre segmentos em desvantagem social que se associam ao suicídio dessas populações." Thiago Bloss, psicólogo e pesquisador de suicidologia

Essa violência não é apenas a física consumada, mas sobretudo a simbólica (que incide sobre o valor da pessoa) e a invisibilidade social dos grupos.

"Uma investigação social mínima dos perfis de classe, raça e gênero dos que mais se matam já desmente dados que individualizam a questão. Isso não quer dizer que as pessoas, eventualmente, não tenham transtorno mental, mas é importante entender que é um sofrimento para além do indivíduo, algo que é social, cultural, econômico", descreve Bloss, doutorando na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

Como combater?

Desde 2019, uma lei tornou compulsória a notificação de tentativas de suicídio e autolesão no Brasil. Fortalecer o mapeamento dos dados é o primeiro passo para pensar a prevenção.

O OMS já apontou que muitos países enfrentam imprecisão nas notificações e isso prejudica enfrentar o problema. "Se o abastecimento dos sistemas é frágil, os indicadores provavelmente vão comprometer o campo das políticas públicas", reforça o psiquiatra César Weber, doutor pela Unifesp e membro titular da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria).

Flávia Jôse Alves, psicóloga que participou do estudo, lembra que planos específicos de prevenção em outros países ajudaram a reduzir os suicídios. No Brasil, destaca ela, é necessário segmentar estratégias para os grupos mais vulneráveis, além de expandir a rede de assistência e trabalhar a comunicação. "Devemos pensar em estratégias de prevenção focadas em grupos específicos e é preciso sempre falar que o suicídio é um fenômeno multideterminado."

"Não é só a prevenção clínica, é importante ter acesso a ela, mas também é necessário pensar em fatores socioeconômicos."  Flávia Jôse Alves, psicóloga e uma das autoras da pesquisa

Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

Graciliano Ramos e a fogueira

A 'sacanagem' com Graciliano Ramos e a fogueira como amiga leal

Rodrigo Casarin, Colunista de Splash, 21/02/2024

Só um tolo rirá da cara de alguém que colocar Franz Kafka como um dos maiores artistas dos últimos tempos. Em vida, o escritor publicou livros que ainda são lembrados ("Na Colônia Penal" e "Um Artista da Fome", por exemplo) e levou ao público uma das histórias mais marcantes da literatura no século 20: "A Metamorfose".

Mas o cara era inseguro. Desconfiava do próprio talento, não botava muita fé naquilo que escrevia. Largou histórias pela metade, queimou muitos dos seus rascunhos e engavetou outros tantos. Kafka deixou um pedido para Max Brod, seu grande amigo: quando se fosse deste mundo, que desse um fim em toda aquela papelada. Que ninguém fosse xeretar seus manuscritos.

Kafka partiu em 1924, aos 40 anos, após definhar por causa da tuberculose, um dos muitos tormentos de sua vida. Para alegria dos leitores, Brod ignorou o amigo morto. "O Castelo" e "O Processo", grandes romances, estavam entre os originais que deveriam ser destruídos caso a vontade do autor fosse respeitada. A literatura agradece a traição de Brod.

Se Kafka realmente desejava que ninguém lesse aquilo que escreveu e não publicou, por que, então, não destruiu a produção? Por outro lado, para um artista, como saber qual é o momento de abdicar da feitura de uma obra e, no lugar de engavetá-la para ter com ela uma segunda chance no futuro, simplesmente aniquilá-la? Ainda: não é legítimo que alguém, por mais genial que seja, possa escolher quais de suas criações deverão ser levadas ao público?

Poderia elencar dezenas de questões que emergem do caso de Kafka, provavelmente o mais famoso quando o assunto é publicação de livro à revelia do autor morto. O espólio deixado pelo tcheco e preservado por Brod virou quiproquó internacional. Em "O Último Processo" (Arquipélago, tradução de Rodrigo Breuning), Benjamin Balint conta a história das disputas em tribunais por parte do legado do judeu que nasceu na República Tcheca e escrevia em alemão.

Tem sido agitada a entrada da obra de Graciliano Ramos em domínio público. Com uma série de edições de clássicos como "Vidas Secas", "São Bernardo" e "Angústia", herdeiros encampam uma luta para que os escritos do velho Graça não sejam usados comercialmente sem que a família também ganhe alguma grana.

Junto disso, chega às livrarias um texto que Graciliano tinha pedido para que os responsáveis pelo seu espólio mantivessem longe dos leitores. "Os Filhos da Coruja" é um poema assinado por J. Calisto, pseudônimo do escritor que se via como um poeta sem grandes virtudes. Com a entrada em domínio público, sem precisar prestar satisfações a ninguém, a Todavia publicou uma edição dos versos por meio da Baião, seu selo de literatura infantil.

"Os Filhos da Coruja" foi escrito à mão em setembro de 1923, quase três anos depois de Graciliano ficar viúvo. "A Águia e o Mocho", do francês La Fontaine, é a principal inspiração para a breve história de tom fabuloso que se inicia com o encontro da comadre Coruja com o compadre Gavião, bichos de "vaga amizade".

O texto de Graciliano aparece inteiro numa espécie de encarte no centro do volume. O que segura o livro de pouco mais de 30 páginas são as ilustrações — bonitas, sem dúvidas — inspiradas no poema feitas por Gustavo Magalhães.

Em entrevista à Folha, Ricardo Ramos Filho, neto de Graça, considerou uma "sacanagem enorme" contrariarem o desejo de seu avô e publicarem o poema. Ricardo lembra: Graciliano costumava rabiscar os originais e até queimar palavras com a ponta do cigarro para que ninguém descobrisse o que resolvia cortar de seus textos.

Olhando para o que fizeram aqui em 2024, talvez devesse ter usado mais o cigarro contra as criações das quais não se orgulhava. Como Kafka deveria ter confiado mais na lixeira que em Max Brod para manter seus escritos em sigilo. A fogueira, sempre inimiga dos livros, é a companheira mais leal daqueles que não querem que seus textos sejam publicados.

Em todo caso, entre razões de cá e de lá, a literatura costuma agradecer quando o fogo não é aceso.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Tubarões

Proteção a Alcatrazes contribui para a recuperação de tubarões ameaçados

Por João Lara Mesquita, Mar sem fim, 20 de fevereiro de 2024

Proteção a Alcatrazes contribui para a recuperação de tubarões ameaçados

A luta para fazer do arquipélago de Alcatrazes uma área protegida foi longa e dura. Custou mais de 30 anos. Ativistas tiveram que persuadir a Marinha do Brasil a parar de usar as ilhas para treino de tiros de canhão, prática iniciada nos anos 1980, durante a ditadura militar. A primeira conquista veio em 1987, com a criação da Estação Ecológica Tupinambás que protegeu parte do arquipélago. Em 2016, Michel Temer e seu Ministro do Meio Ambiente, Zequinha Sarney, finalmente designaram a ilha principal como Refúgio de Vida Silvestre. Entretanto, por exigência da MB, a ilha da Sapata permaneceu sem proteção a fim de continuar como alvo dos tiros de canhão. Oito anos depois, a proteção a Alcatrazes mostrou resultados positivos como a recuperação de tubarões ameaçados de extinção, e isso é uma ótima notícia!

Um tubarão martelo flagrado. Imagem, Unifesp @Léo Francini.

O arquipélago de Alcatrazes

O Arquipélago dos Alcatrazes fica a cerca de 45 km do Porto de São Sebastião e inclui a Ilha dos Alcatrazes como a principal, além das Ilhas da Sapata, do Paredão, do Porto ou do Farol, e do Sul. O arquipélago também conta com quatro ilhotas sem nome, cinco lajes (Dupla, Singela, do Paredão, do Farol e Negra) e dois parcéis (Nordeste e Sudeste).

Na imagem de baixo veja que a ilha da Sapata, canto superior direito, permanece sem proteção para que a Marinha do Brasil ainda possa usá-la como alvo. Ilustração, Estadão.

Sem falar no alto endemismo entre vegetais e répteis, Alcatrazes é o mais importante ninhal do Sudeste e Sul do País. Milhares de aves, de 100 espécies diferentes, usam o arquipélago para se reproduzir. Entre outras, fragatas, atobás, gaivotões, três tipos de trinta-réis, um deles ameaçado de extinção.

Em 2022 a Marinha avisou que iria usar novamente a ilha da Sapata como alvo. Contudo, os protestos foram tão intensos que obrigaram a MB a suspender a atividade. De todo modo, permanece a ameaça.

A recuperação de tubarões ameaçados

Já comentamos que os predadores do topo da  cadeia são importantíssimos para a vida marinha. São animais como os tubarões que mantêm a saúde dos cardumes. Ao mesmo tempo, a espécie que chegou na Terra ainda antes das árvores, há 450 milhões de anos, nunca sofreu tantas ameaças como agora.

Estas ameaças incluem  o aquecimento global, que prejudica toda a cadeia de vida marinha e, especialmente, a sobrepesca. Todos os anos, entre 70 e 100 milhões de tubarões são mortos pela pesca industrial. Essa caçada maciça e indecente, colocou em risco dezenas de espécies de tubarões.

A equipe do projeto. Imagem, Unifesp @Léo Francini.

Devemos comemorar muito o resultado da pesquisa da Unifesp. Os animais enfrentam muita pressão externa. A pesquisa mostrou mais uma vez que áreas de conservação são essenciais. Alcatrazes, depois de protegido, mostra resultados positivos. Recentemente, anunciamos outra boa notícia sobre tubarões no Brasil. Pesquisadores descobriram que a população de tubarões-limões, igualmente ameaçada, está crescendo no Atol das Rocas. https://marsemfim.com.br/tubarao-limao-ameacado-pode-estar-se-recuperando/

Qual a semelhança entre o Atol e Alcatrazes? Ambos são áreas de proteção integral, as mais eficazes. Alcatrazes, mais perto da costa, tem uma boa equipe de gestores do ICMBio. Isso é raro nas unidades de conservação federais marinhas. O Atol das Rocas, distante da costa, tem uma funcionária do ICMBio. Ela protege as águas contra a pesca há anos.

O estudo da Unifesp

O site da Unifesp destaca um estudo do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar/Unifesp) – Campus Baixada Santista (em Santos). O resultado demonstra a importância de expandir áreas de proteção para diferentes ecossistemas. Isso permite que a natureza se reequilibre e a vida ressurja em várias formas. Esse fenômeno ocorreu no Arquipélago de Alcatrazes, onde populações de tubarões ameaçados de extinção estão se recuperando.

Para Fábio Motta, pesquisador do Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha (LabecMar), professor do IMar/Unifesp, e líder do estudo, “ecossistemas equilibrados beneficiam os predadores de meio e de topo da cadeia alimentar, que ajudam a manter a qualidade do habitat. Assim, a presença de tubarões pode ser considerada um indicador de saúde ambiental.”

A pesquisa integra o projeto Mar de Alcatrazes, uma iniciativa que conta com o apoio da Petrobras e, desde 2022,  monitora a biodiversidade marinha do arquipélago, utilizando várias metodologias, incluindo as  filmagens remotas subaquáticas com isca (BRUV) que permitem a amostragem da fauna de maneira não invasiva.

Com essa técnica, diz a Unifesp, para alegria dos pesquisadores, foi possível observar e registrar a presença de tubarões em 16 (10,7%) das 150 operações de BRUV, com registros de sete espécies (Squalus cf. albicaudus – cação-bagre-da-cauda-branca; Carcharias taurus – tubarão-mangona; Carcharhinus plumbeus – tubarão-galhudo; Carcharhinus falciformis – tubarão-seda; Rhizoprionodon porosus – cação-frango; Sphyrna lewini – tubarão-martelo-recortado; e Sphyrna zygaena – tubarão-martelo-liso).

Destas, seis são classificadas como ameaçadas de extinção pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN).

Das sete espécies, seis estão ameaçadas de extinção

A Unifesp revela que, das sete espécies de tubarões identificadas, a IUCN classifica seis como ameaçadas. Fernanda Rolim, pesquisadora da Unifesp, achou muito gratificante filmar um tubarão-mangona, espécie em risco crítico, dentro do refúgio.

O estudo “Efeitos iniciais da expansão e aplicação de uma reserva marinha subtropical sobre espécies ameaçadas de tubarões” saiu em 10 de janeiro. Ele foi publicado no Environmental Biology of Fishes , da Springer.

As duas boas notícias mostram que pesquisadores seguem obtendo resultados positivos, o que traz esperança. Entretanto, muitas dessas iniciativas partem de universidades não sendo amplamente adotadas como políticas públicas para toda a costa brasileira, que enfrenta problemas similares. Esta omissão do MMA é o grande mistério.



GAZA WCNSF SOS

Duas raças
‘Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada’

Dorrit Harazim, O Globo, 18/02/2024

Acrônimos são aquelas sopas de letras maiúsculas que costumam designar entidades de nomes compridos como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Não existem para provocar emoção ou sentimento — em si, são neutros, indolores, inodoros. Exceto pelas cinco letras de WCNSF. Essas ferem, fazem chorar, causam horror e dor. Significam Wounded Child, no Surviving Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos. A sigla nem existia antes do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro e da consequente terraplenagem da Faixa de Gaza desencadeada por Israel. Nunca fizera falta, pois em nenhuma guerra anterior a orfandade infantil fora tão maciça.

De qualquer ângulo que se olhe, as crianças palestinas do enclave formam um capítulo à parte da desumanidade em curso. 

Estatísticas de guerras anteriores mundo afora registravam média de 20% de crianças do cômputo total de vítimas. 

Em Gaza, elas são 40%. Dados levantados pela Save the Children apontam para mais de dez crianças mutiladas por dia, com a perda de uma ou ambas as pernas. Isso há quatro meses. E talvez já chegue a 25 mil o número das que perderam ao menos um dos pais na guerra.

Em Gaza, as crianças WCNSF abrigadas em hospitais ou junto a agências internacionais por vezes nem sequer sabem declinar o nome. Emergem mudas de algum escombro, cobertas de pó e sangue. Não choram, não demonstram medo. Estão em choque, à deriva na devastação geral. Inicia-se então uma labiríntica procura por alguma família aparentada capaz de acolher mais uma infância em ruínas. Às que têm a sorte de continuar com algum colo de mãe ou presença de pai/tio/avô por perto, as sequelas previsíveis são inomináveis. Uma observação do chefe de comunicação do Unicef dá a dimensão do drama sentido por qualquer adulto na população cada vez mais sitiada: fazer de tudo para que a criança não perceba que você perdeu o controle. Essa talvez seja a carga mais dura de qualquer adulto em Gaza, hoje.

A pediatra americana Seema Jilani, assessora sênior do Comitê Internacional de Resgate, que atua globalmente em emergências de saúde, passou duas semanas no Hospital Al-Aqsa de Khan Yunis. Em longa entrevista a Isaac Chotiner, da New Yorker, ela relatou como foram suas primeiras horas de plantão ali. Chegara acompanhada de alguns cirurgiões, um obstetra, um anestesista e um intensivista vindos do Cairo.

Já trabalhara em emergências no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, no Egito, na Turquia, na Líbia, no Paquistão e há 19 anos fazia pit stops na Cisjordânia e em Gaza. Ainda assim, nada a preparara para o horror que viu no enclave desta vez. A ausência de dignidade ali possível lhe pareceu abissal.

A primeira criança a cair sob seus cuidados foi um menino de 12 meses:

— Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...) O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax... Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes — contou com crueza a dra. Jilani.
E concluiu, com empatia, que não conseguia imaginar o que poderia haver de mais emergencial que um bebê de 1 ano sem mão nem perna, sufocando no próprio sangue. A resposta, é claro, todos sabemos, a pediatra também: algum outro estropiado da guerra, com pelo menos uma ínfima chance de ser salvo. Considerando as carências colossais, não era o caso daquele bebê.

Indagada sobre como avaliava a utilidade de sua presença no caos do Al-Aqsa, Jilani apontou para algo muito além da emergência clínica: para o corpo médico do hospital, a chegada da equipe estrangeira significou que eles não haviam sido esquecidos, evidenciava que o mundo não os deixara sozinhos.
Dias atrás, mais um complexo hospitalar em Khan Yunis foi submetido a assalto maciço por parte das tropas de Israel. Segundo o governo de Benjamin Netanyahu, o hospital abrigava integrantes do Hamas e poderia esconder os restos mortais de alguns dos 130 reféns israelenses ainda em mãos do grupo terrorista. O caos, as mortes, o desamparo de civis apenas se repetem e se avolumam. O anunciado plano israelense de ataque tous azimuts à cidade de Rafah visando a derrotar os terroristas do Hamas é uma insânia. 

Ali está espremido 1,5 milhão de palestinos já exauridos. Fugiram do chão que habitavam mais ao norte para escapar dos bombardeios. Estão numa ratoeira, enquanto o Egito ergue um muro de 7 metros de altura delimitando vasta área do Sinai. Talvez para recebê-los in extremis? Quem sabe o mundo acorda? Como constatou o maravilhoso psicanalista Viktor Frankl, judeu austríaco que sobreviveu a Auschwitz, no fundo existem apenas duas raças — pessoas decentes e pessoas indecentes.

Houve o Lula treinador, o goleiro e tem o presidente, em quem adoram bater

 Alguém precisa discordar, mesmo sob risco de ser visto como bajulador 

Juca Kfouri, FSP, 21/02/2024

Preciso de uma desculpa para defender Lula aqui no pedaço do esporte.
Recorro a dois grandes Lulas, o técnico do Santos no auge, e o menos conhecido goleiro do Corinthians em fins de 1960, que substituiu o tricampeão Félix duas vezes na seleção.

Pronto! Aqui também se fala de futebol.

Dito isso, passemos ao mais famoso deles, o tripresidente.
Ele tem apanhado coisa que sirva nesta Folha, do editorial aos colunistas.
Alguém precisa discordar, mesmo sob risco de ser visto como bajulador.

Como é gostoso bater no ex-metalúrgico que para ter título universitário precisou ser o de Doutor Honoris Causa — hoje já são quase 40 títulos —, da Universidade Federal de Pernambuco, onde nasceu, até a Universidade de Coimbra, em Portugal, ou de Salamanca, na Espanha, ou, ainda, na Sciences Po, de Paris.

Quando Lula disse que "o conceito de democracia é relativo" ao se referir à Venezuela, apanhou feito boi ladrão. Embora pudesse chamar em seu auxílio o gênio Albert Einstein, que foi mais longe ao dizer que "nada é absoluto, TUDO é relativo", o presidente apanhou com méritos, porque defender Nicolás Maduro é dose.

Agora, então, ao ligar Hitler aos judeus sem tomar o cuidado de contextualizar com a delicadeza que o tema exige, levou pancada até mais não poder por aqui — e diga-se que, pelo mundo afora, com exceção do governo terrorista de Israel, a repercussão chegou perto de zero.
Holocausto houve um e ponto.
Lula não fez referência explícita a ele, mas nem precisa ser malicioso para tratar a fala como se o tivesse mencionado.

Genocídios sim, houve diversos na história da humanidade, e é inegável que num governo como o israelense, que abriga ministros capazes de dizer "Estamos lutando contra animais e agindo de acordo", como disse o da Defesa, Yoav Gallant, restam poucas dúvidas sobre seus desejos em relação a Gaza.
Há diferença entre quantidade e qualidade.

Seis milhões de mortos assassinados em campos de concentração é algo que jamais será esquecido e que nunca poderá ser citado de passagem.

Já o método de Bibi Netanyahu no campo de concentração a céu aberto que estabeleceu em Gaza pouco difere dos métodos nazistas. Sem gás.

Tivesse dito o humanista Lula que "Netanyahu está para os palestinos como Hitler esteve para os judeus" e os protestos estariam limitados aos bolsonaristas em busca de encobrir o depoimento de seu líder à PF nesta quinta-feira (22/02/2024).
Sempre que se falar em cessar o morticínio em Gaza, haverá de se exigir a devolução dos reféns nas mãos terroristas do Hamas.

E parece mentira que cause mais indignação a frase infeliz que o parágrafo da magistral coluna de Dorrit Harazin, com depoimento da pediatra americana Seema Jilani:

"Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...) O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax… Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes".

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O porquê de Finoca

A Finoca do título é o apelido da Orípia Pereira de Carvalho, 98 (21/09/1922 – 25/11/2020), minha mãe. Escrevi sobre ela neste Blog quando ela fez 89 anos. Leia aqui 

Boa parte da cabeça da Finoca foi feita num colégio de freiras. Teve sua educação formal no Colégio Anjo da Guarda em Bebedouro (colégio interno) no período de 1932 a 1942. Foram 11 anos de colégio interno divididos em quatro de primário, cinco de ginásio e dois de escola normal. Lá estudou Latim, Francês, Português, Geografia, História, Matemática, Física, Educação Moral e Cívica, Música, Trabalhos Manuais, Desenho, Sociologia, Pedagogia e Prática Pedagógica. 

Casou-se com Sebastião Cardoso Carvalho Sobrinho, 66 (02/12/1919 – 11/03/1986), o Tatau. Orípia casou-se com Sebastião no dia 5 janeiro de 1946 e exonerou-se da escola durante o período de 1945 a 1948. Neste período tiveram Aluisio (1946) e Maria Cristina (1949). Sebastião pedira à esposa que ficasse em casa para cuidar dos filhos. Mas em 1949 Finoca voltou a trabalhar a contragosto do marido, para ajudar no sustento da família. Ela contrariou o pai para casar e agora contrariava o marido para voltar ao trabalho como professora. Isto na década de 1940. Ela seguiu a história de outras duas librinas porretas: Inácia Bernarda e Mariana Librina (tias-triavó de Finoca) sobre as quais já escrevi neste Blog. Leia sobre Mariana Librina aqui e sobre Inácia aqui.

Depois a caminhada de Finoca seguiu. Até hoje (em fevereiro de 2024) na árvore genealógica dela e Tatau têm 8 filhos (4 mulheres e 4 homens), 17 netos (12 mulheres e 5 homens) e 17 bisnetos (10 mulheres e 7 homens). 

Este texto tem a pretensão de resolver a seguinte questão. De onde veio o apelido da Orípia? Finoca apareceu quando e como?

Falhamos, nós ancestrais, em não perguntar sobre a origem do apelido quando viva Orípia estava.

Geralmente procuramos fontes de investigação sobre um tema em questão. No caso existem as correspondências (cartas) entre Orípia e Sebastião. São várias, mas até então não percebi pistas que respondessem à pergunta. De onde veio Finoca?

Hoje tenho uma hipótese.

Imperativo dizer que, face ao conteúdo pedagógico do Colégio Anjo da Guarda, Orípia e colegas leram, e muito, Machado de Assis.

Já que estamos falando dele vem a tona o conto “Pobre Finoca!”. Ei-lo aqui

Kilos de utencílios tipo panos de algodão, seda, cadarço, agulhas e muito mais. Era um armarinho da rua do Ouvidor. Finoca e Alberta, no conto do Machado, frequentavam com familiares. Neste armarinho encontraram o Macedo.

Lendo mais. Finoca, Alberta e Macedo formam um trio de personagens que se interagem. Em princípio Macedo se interessava por Finoca e Alberta tinha o papel de cupido. 

Mas aí que que vem um pedaço de pouco.

Não, Finoca não tinha atração por Macedo. Ela o considerava um idiota. — Eu não disse desprezível, acudiu Finoca. — Você disse idiota. — Sim; idiota…

O que Alberta não esperava foi a desilusão com seu namorado. Ele estava em São Paulo e se engraçou com outra menina por lá.

Para onde foi a estória?

Quando Alberta notou que as cartas tinham cessado de todo, sentiu em si indignação contra o vil, e desligou-se da promessa de casar com ele. Casou três meses depois com outro, com o Macedo — aquele Macedo — o idiota Macedo. Pessoas que assistiram ao casamento, dizem que nunca viram noivos mais risonhos nem mais felizes.

Resumo da ópera. Alberta com Macedo e Finoca aliviada.

Sem ficção agora. Orípia sempre falava das amigas do Colégio Anjo da Guarda. E estas amigas leram o conto do Machado. Não deu outra. Orípia se tornou Finoca.

Tudo a ver.

Van Gogh e as cartas a Theo

 

Vicent van Gogh, Cartas a Theo, organização e notas de Jorge Coli e Felipe Martinez, tradução de Felipe Martinez, Editora 34, 2023 

Vicent van Gogh, Cartas a Theo, pp.146 - 149, Editora 34, 2023 
NB: dê um click nas imagens para ler melhor

 

Sobre Vicent van Gogh e o livro


Van Gogh conta em 'Cartas a Theo' que quis relembrar e agradecer 

Mario Sergio Conti, FSP, 09/02/24

Eis o que Vincent van Gogh achava necessário para trabalhar direito: "É preciso comer bem, estar bem instalado, trepar de vez em quando, fumar seu cachimbo e beber seu café em paz".
A respeito das relações entre trabalho artístico, comércio e existência, disse: "A arte é longa e a vida curta, e devemos ter paciência enquanto procuramos vender caro a nossa pele".

Para ele, a pintura independia da vocação, de um dom inato ou de estalos de gênio; o que contava era o empenho: "O talento é um longa paciência — e a originalidade, um esforço de vontade e observação intensa".

Sobre envelhecer e pintar, comparou-se a um artesão: "Quanto mais feio, velho, ranzinza, doente, pobre, mais desejo me vingar fazendo uma cor brilhante, bem harmonizada, resplandecente. Joalheiros também se tornam velhos e feios antes de saberem compor bem as pedras preciosas".
Não se achava genial, e sim "um cão grande e desgrenhado" que seus pais relutam em aceitar: "Ele vai entrar em casa com as patas molhadas... Vai se meter no meio de todo mundo — e late tão alto".
Mas o cão Van Gogh tem "uma alma humana, com sentimentos delicados, é capaz de sentir o que as pessoas pensam sobre ele, algo que um cachorro comum não pode fazer. E eu, admitindo que sou uma espécie de cachorro, aceito-os como eles [seus pais] são".

As observações acima, inesperadas e singelas, estão num livro de 510 páginas publicado há pouco pela editora 34. É "Cartas a Theo", uma seleta de 150 das quase 900 cartas que o pintor escreveu, a maioria endereçadas ao irmão.

Sem desdouro pela edição da L&PM de 1997, e depois ampliada, a de agora é superior. Traz cada carta na íntegra, evitando o sensacionalismo de trechos tirados do contexto. Os ensaios e notas de Jorge Coli e Felipe Martinez analisam pontos cruciais sem recorrer à erudição para experts.
"Cartas a Theo" liberta o artista da mitologia que o agrilhoa. A mitologia nos obriga a passar primeiro pela lojinha de cacarecos —pôsteres, camisetas, lenços, imãs de geladeira— para então, entupidos de imagens esquartejadas, entrarmos no museu e apreciarmos o que pintou.
Vendeu um par de telas em vida, mesmo tendo feito 800 quadros e outro tanto de desenhos. Sua obra vale hoje bilhões; só "Noite Estrelada" está avaliada em R$ 500 milhões.

Não imaginava essa valorização indecente porque seu objetivo era modesto: "Mesmo que eu me torne mais sagaz (o que evidentemente ainda não sou), acredito —acredito firmemente — que sempre serei muito pobre —estarei bem se conseguir me manter livre das dívidas".
Quando teve consciência de que sua pintura era boa, a esperança de obter remuneração justa continuou vaga: "Tenho fé na cor, mesmo no que concerne aos preços, o público pagará por ela no fim as contas".

O homem Van Gogh foi duplamente distorcido. É visto como um doido que decepou a orelha, deu-a à namorada e logo se suicidou. E é tido por naif, um ingênuo que pouco sabia da técnica e da história da pintura. Sua obra seria espontânea, produto de alucinações visuais.
"Cartas a Theo" mostra outro homem. Ele era culto, adorava Maupassant e Voltaire, Tolstói e Zola. Escrevia em holandês, francês e inglês. Conhecia Rembrandt e Delacroix de cor e salteado; e, de trás para frente, uma infinidade de obras.

Tinha um olhar aguçado. Do Lorenzo de Medici de Michelangelo, a escultura "O Pensativo", diz que "sua mão tem algo do fulgor da pata de um leão", e conclui: "Esse pensador é também o homem de ação — pode-se ver que o seu pensamento é em si mesmo uma concentração".
No temperamento, era um errante. Tentou ser professor, pastor protestante, marchand e fracassou em tudo. Suas relações amorosas foram catastróficas. Aos 27 anos, era um zero à esquerda.

Foi quando achou seu caminho, a arte. Percorreu-o com enorme sofrimento físico e mental — afinal, além de viver na miséria, sustentado por Theo, era louco. Tinha surtos que, uma vez passados, contava em cartas ao irmão. Jamais se fazia de vítima. Não se queixava, ia em frente. Para quê?
Ele responde à pergunta numa anotação de agosto de 1883. Sentia "certa obrigação e dever, porque andei nesse mundo por 30 anos — para deixar como gratidão uma certa lembrança na forma de desenho ou pintura"; uma forma "na qual se expresse um sentimento humano sincero".

Obrigação, dever, gratidão, lembrança e sentimento sincero. São palavras de uma pureza tocante. Palavras possíveis apenas na pena de um desgrenhado generoso e de fibra, Van Gogh.

Mais sobre

(...) Destaco ainda a compreensão racional que o artista tinha de seus problemas psiquiátricos, o que definitivamente mostra que sua pintura não pode ser explicada por sua loucura.
Nem todas as cartas desta edição foram escritas por Van Gogh. Algumas foram endereçadas por correspondentes como o próprio Theo, o pintor Paul Gaugin e Johanna van Gogh-Bonger, esposa de Theo. Johanna foi fundamental na consolidação da mitologia do artista. Quando Theo morreu, pouco tempo após o irmão, ela se dedicou a divulgar a obra de Van Gogh por toda a Europa. Foi responsável, já em 1914, pela primeira edição das cartas trocadas entre os irmãos, acompanhada por um texto autobiográfico em que ela narrava seu período como esposa de Theo e cunhada de Vincent. (...)
Felipe Martinez na introdução do livro (p. 19)

Obras expostas no MASP em São Paulo

O escolar de 1988 
 
A arlesiana de 1890

 



 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Tradução por inteligência artificial. E aí?

Tradução por inteligência artificial é português no corpo mas inglês na alma

E se o robô que traduz para o portinglês estiver falando a nossa língua? 

Sérgio Rodrigues, FSP, 14/02/2024

A tradução – ou algo parecido– da reportagem do jornal The New York Times sobre um erro da polícia americana foi publicada no site da Folha na terça (13) de manhã, sob o título "Homem declarado morto  reaparece após família receber cinzas nos EUA".

No texto era possível ler, entre outras coisas espantosas, a expressão "morador masculino do centro" e a seguinte frase: "Eventualmente, ele foi liberado para uma instalação de moradia temporária em Portland, Oregon, com a condição de que ele completasse um programa de recuperação de vícios".

Aqui eu poderia perguntar, repetindo o título do livro que lancei em 2005: "What língua is esta?". Inglês, óbvio, apenas com a troca de palavras do idioma original por outras semelhantes – ou falsamente semelhantes – da língua portuguesa.

Será preciso dizer que "eventually" significa "por fim" no original, enquanto seu falso cognato "eventualmente" indica aquilo que ocorre ocasionalmente? Devo apontar que "instalação de moradia temporária" e "programa de recuperação de vícios" não fazem muito sentido em nossa língua – talvez só um pouquinho mais do que "morador masculino"?

O resultado é um compósito linguístico, uma espécie de portinglês que nem precisa de palavras da língua de George Orwell para se impor: o idioma original está inteiro ali, a alma sintática é dele. Embora o corpo seja lusófono, o software é alienígena.

O texto em questão foi traduzido por uma inteligência artificial, é claro. A prática tem se disseminado na imprensa por ser quase gratuita, além de incomparavelmente mais veloz. Os tradutores humanos que lutem – mas é possível que em termos trabalhistas essa guerra já esteja perdida.

De todo modo, recomenda-se – mesmo que apenas em nome das velhas medalhas de honra que abarrotam as gavetas do jornalismo– que algum ser humano dê uma revisada naquele troço antes de publicar.

Tanto faz que seja um ser humano masculino, feminino ou não binário, como diria o robô. O importante é que tenha sangue nas veias e seja um falante mais ou menos proficiente da língua – natural, eis o xis da questão– para a qual se traduz.

Reconheça-se que esse passo foi dado pelo jornal, embora com atraso. Publicada às 9h07, a reportagem ganhou cinco horas depois uma versão expurgada dos erros de tradução mais clamorosos. O texto continuou artrítico, meio mal traduzido, mas as bobagens que provocavam riso ou ranger de dentes foram limadas.

Esta não é, embora pareça, mais uma coluna sobre a IA, o que ela já sabe fazer e o que ainda precisa ralar para aprender. Ou melhor, até é, mas tendo na mira outro problema –quem sabe mais grave.

E se em breve o ridículo portinglês de traduções robóticas como aquela se tornar exemplar do modo como falamos português no Brasil? Pensando bem, quantos leitores e leitoras já não estranham mais o "eventualmente" anglófono e acham "programa de recuperação de vícios" uma expressão normal?

Xenofobia linguística é o fim da picada, convém não esquecer. A importação de palavras estrangeiras sempre enriqueceu as línguas, nunca as ameaçou. Algo bem diferente é deixar a educação de um país se deteriorar a tal ponto que a alma da sua língua se venda baratinho e até na literatura se encontrem construções que parecem saídas de dublagens vagabundas da TV.

Será que, eventualmente, todos vamos realizar que a linguagem é sobre comunicando e relaxar?


domingo, 11 de fevereiro de 2024

A assombrosa reunião de 5 de julho de 2022

Vídeo assombra pela banalidade que revestiu a reunião do golpe

Josias de Souza, UOL, 11/02/2024

A reunião de 5 de julho de 2022 vídeo

Nada foi mais assombroso na reunião de 5 de julho de 2022 do que a normalidade que revestiu o debate sobre o golpe. Escândalos costumam brotar de acontecimentos que provocam espanto, ferindo a rotina como uma lâmina afiada. Na conversa do Palácio do Planalto, o que feriu foi a normalidade. Bolsonaro expôs ao ministério sua estratégia para subverter o resultado das urnas. E o absurdo foi recebido pelo primeiro escalão do governo com uma doce, persuasiva, admirável naturalidade.

Todos os brasileiros deveriam reservar um naco do recesso carnavalesco para assistir ao vídeo, que está disponível acima. Sugere-se ao espectador um exercício singelo: percorrer a filmagem abstraindo as declarações antidemocráticas de Bolsonaro e os flertes dos seus auxiliares mais notáveis com a ilegalidade.

Ignorem-se as vulgaridades do capitão, ou o strip-tease moral dos generais Augusto Heleno (GSI), Paulo Sérgio Nogueira (Defesa) e Mário Fernandes (número 2 da Secretaria-Geral da Presidência), ou o apagão ético de Anderson Torres (Justiça) e Wagner Rosário (CGU). Fixe-se a atenção no que acontece entre uma barbaridade e outra. Estava sobre a mesa o golpe. E nenhum dos presentes esboçou surpresa.

Se o encontro ministerial fosse um banquete e Bolsonaro servisse uma ratazana ensopada, nenhum dos ministros faria a concessão de um ponto de exclamação. O cardápio é golpe? Pois que seja antes da abertura das urnas, sugeriu o general Heleno. "Se tiver que virar a mesa, é antes das eleições". Ninguém se opôs.

O alvo é o TSE? Pois convém intensificar a "guerra", movimentando as Forças Armadas da "linha de contato" para o início da "operação" de contestação às urnas, sugeriu o general Paulo Sérgio. Nenhuma contestação. O objetivo é deter Lula? Pois "a gente precisa atuar agora", insuflou Anderson Torres, "porque todos vamos se foder (sic)". Nem sinal de objeção.

Há o risco de repetir 64? "É muito melhor assumir um pequeno risco de conturbar o país, para que aconteça antes, do que assumir um risco muito maior da conturbação no 'the day after', deu de ombros o general Mário Fernandes. De novo, não se ouviu uma reles contradita.

"O TCU já soltou o relatório dizendo que as urnas são seguras", avisou Wagner Rosário, levantando a bola para Bolsonaro cortar a cabeça de Bruno Dantas, autor do documento: "Olhem pra minha cara, por favor. Todo mundo olhou pra minha cara? Acho que não tem bobo aqui."

A atmosfera de normalidade que permeou o encontro instilou nas cenas uma impressão perturbadora: se Bolsonaro mandasse servir o ensopado de ratazana entre uma aberração retórica e outra, alguém talvez erguesse a voz: "Capricha na pimenta!".

No limite, o ambiente capturado pelo vídeo do Planalto evoca uma expressão cunhada pela filósofa alemã Hannah Arendet. Ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, ela enxergou no comportamento do personagem traços de uma "banalidade do mal".

Assim como os auxiliares de Bolsonaro, Eichmann era tido como bom funcionário, um exemplar cumpridor de ordens. Durante o seu julgamento, em Jerusalém, Eichmann contou que, quando os chefes da SS, a polícia nazista, foram convocados para planejar a implementação da "solução final" — a execução dos judeus — realizaram uma reunião de trabalho de uma hora e meia.

Ao final do fatídico encontro, disse Eichmann no banco dos réus, foram servidos aperitivos e um almoço. Nas palavras do servidor de mostruário do regime nazista, foi "uma pequena e íntima reunião social". Nada mais normal.

O encontro do Planalto durou uma hora e 33 minutos. Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, entrou mudo e saiu calado. Suponha-se que, ao retornar ao Ministério da Economia, um assessor lhe perguntasse: "Como foi a reunião?" Guedes talvez respondesse: "Nada de novo".

Não seria despropositado supor que Marcelo Queiroga, então ministro da Saúde, tenha engolido um antiácido, para evitar os efeitos gástricos dos cafezinhos que sorveu enquanto silenciou para o absurdo. Ou que Joaquim Álvaro Pereira Leite, então titular do Meio Ambiente, tenha retornado impassível à pasta do Meio Ambiente após testemunhar as tramoias palacianas para subverter o ambiente inteiro. Ou que José Carlos Oliveira (Trabalho), tenha parado numa padaria para se abastecer pão e leite antes de se entregar ao repouso doméstico. Ou...

Nenhum espelho reflete melhor a imagem de um homem do que as suas palavras. Durante a reunião ministerial do golpe, houve dois momentos em que os oradores pressentiram que não conspiravam apenas contra a democracia, mas contra a própria autoimagem.

O general Paulo Sérgio, titular da Defesa, disse a alturas tantas considerar conveniente que "os comentários fiquem entre a gente". Wagner Rosário, o chefe da Controladoria, teve a ilusão de que poderia fugir ao controle social impunemente: "A reunião está sendo gravada?", indagou.

O general Braga Netto acenou negativamente com o dedo. Bolsonaro assegurou a Rosário que mandara gravar apenas sua exposição inicial. Graças a uma cilada do destino, o delator Mauro Cid guardou no seu computador a íntegra das imagens. Capturada pela Polícia Federal, a peça foi jogada no ventilador por Alexandre de Moraes.

Presenteado com a possibilidade de comprovar a normalidade que permeou o ocaso de Bolsonaro, o brasileiro é empurrado, por assim dizer, para a conclusão de que algo de muito anormal precisa ocorrer para restabelecer a sanidade nacional. A imposição de um lote de sentenças criminais que interrompam o ciclo de impunidade de Bolsonaro e dos seus cúmplices seria um bom começo.