sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Graciliano Ramos e a fogueira

A 'sacanagem' com Graciliano Ramos e a fogueira como amiga leal

Rodrigo Casarin, Colunista de Splash, 21/02/2024

Só um tolo rirá da cara de alguém que colocar Franz Kafka como um dos maiores artistas dos últimos tempos. Em vida, o escritor publicou livros que ainda são lembrados ("Na Colônia Penal" e "Um Artista da Fome", por exemplo) e levou ao público uma das histórias mais marcantes da literatura no século 20: "A Metamorfose".

Mas o cara era inseguro. Desconfiava do próprio talento, não botava muita fé naquilo que escrevia. Largou histórias pela metade, queimou muitos dos seus rascunhos e engavetou outros tantos. Kafka deixou um pedido para Max Brod, seu grande amigo: quando se fosse deste mundo, que desse um fim em toda aquela papelada. Que ninguém fosse xeretar seus manuscritos.

Kafka partiu em 1924, aos 40 anos, após definhar por causa da tuberculose, um dos muitos tormentos de sua vida. Para alegria dos leitores, Brod ignorou o amigo morto. "O Castelo" e "O Processo", grandes romances, estavam entre os originais que deveriam ser destruídos caso a vontade do autor fosse respeitada. A literatura agradece a traição de Brod.

Se Kafka realmente desejava que ninguém lesse aquilo que escreveu e não publicou, por que, então, não destruiu a produção? Por outro lado, para um artista, como saber qual é o momento de abdicar da feitura de uma obra e, no lugar de engavetá-la para ter com ela uma segunda chance no futuro, simplesmente aniquilá-la? Ainda: não é legítimo que alguém, por mais genial que seja, possa escolher quais de suas criações deverão ser levadas ao público?

Poderia elencar dezenas de questões que emergem do caso de Kafka, provavelmente o mais famoso quando o assunto é publicação de livro à revelia do autor morto. O espólio deixado pelo tcheco e preservado por Brod virou quiproquó internacional. Em "O Último Processo" (Arquipélago, tradução de Rodrigo Breuning), Benjamin Balint conta a história das disputas em tribunais por parte do legado do judeu que nasceu na República Tcheca e escrevia em alemão.

Tem sido agitada a entrada da obra de Graciliano Ramos em domínio público. Com uma série de edições de clássicos como "Vidas Secas", "São Bernardo" e "Angústia", herdeiros encampam uma luta para que os escritos do velho Graça não sejam usados comercialmente sem que a família também ganhe alguma grana.

Junto disso, chega às livrarias um texto que Graciliano tinha pedido para que os responsáveis pelo seu espólio mantivessem longe dos leitores. "Os Filhos da Coruja" é um poema assinado por J. Calisto, pseudônimo do escritor que se via como um poeta sem grandes virtudes. Com a entrada em domínio público, sem precisar prestar satisfações a ninguém, a Todavia publicou uma edição dos versos por meio da Baião, seu selo de literatura infantil.

"Os Filhos da Coruja" foi escrito à mão em setembro de 1923, quase três anos depois de Graciliano ficar viúvo. "A Águia e o Mocho", do francês La Fontaine, é a principal inspiração para a breve história de tom fabuloso que se inicia com o encontro da comadre Coruja com o compadre Gavião, bichos de "vaga amizade".

O texto de Graciliano aparece inteiro numa espécie de encarte no centro do volume. O que segura o livro de pouco mais de 30 páginas são as ilustrações — bonitas, sem dúvidas — inspiradas no poema feitas por Gustavo Magalhães.

Em entrevista à Folha, Ricardo Ramos Filho, neto de Graça, considerou uma "sacanagem enorme" contrariarem o desejo de seu avô e publicarem o poema. Ricardo lembra: Graciliano costumava rabiscar os originais e até queimar palavras com a ponta do cigarro para que ninguém descobrisse o que resolvia cortar de seus textos.

Olhando para o que fizeram aqui em 2024, talvez devesse ter usado mais o cigarro contra as criações das quais não se orgulhava. Como Kafka deveria ter confiado mais na lixeira que em Max Brod para manter seus escritos em sigilo. A fogueira, sempre inimiga dos livros, é a companheira mais leal daqueles que não querem que seus textos sejam publicados.

Em todo caso, entre razões de cá e de lá, a literatura costuma agradecer quando o fogo não é aceso.

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