Duas raças
‘Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada’
Dorrit Harazim, O Globo, 18/02/2024
Acrônimos são aquelas sopas de letras maiúsculas que costumam designar entidades de nomes compridos como IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) ou Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization). Não existem para provocar emoção ou sentimento — em si, são neutros, indolores, inodoros. Exceto pelas cinco letras de WCNSF. Essas ferem, fazem chorar, causam horror e dor. Significam Wounded Child, no Surviving Family, ou Criança Ferida sem Familiares Vivos. A sigla nem existia antes do ataque terrorista do Hamas de 7 de outubro e da consequente terraplenagem da Faixa de Gaza desencadeada por Israel. Nunca fizera falta, pois em nenhuma guerra anterior a orfandade infantil fora tão maciça.
De qualquer ângulo que se olhe, as crianças palestinas do enclave formam um capítulo à parte da desumanidade em curso.
Estatísticas de guerras anteriores mundo afora registravam média de 20% de crianças do cômputo total de vítimas.
Em Gaza, elas são 40%. Dados levantados pela Save the Children apontam para mais de dez crianças mutiladas por dia, com a perda de uma ou ambas as pernas. Isso há quatro meses. E talvez já chegue a 25 mil o número das que perderam ao menos um dos pais na guerra.
Em Gaza, as crianças WCNSF abrigadas em hospitais ou junto a agências internacionais por vezes nem sequer sabem declinar o nome. Emergem mudas de algum escombro, cobertas de pó e sangue. Não choram, não demonstram medo. Estão em choque, à deriva na devastação geral. Inicia-se então uma labiríntica procura por alguma família aparentada capaz de acolher mais uma infância em ruínas. Às que têm a sorte de continuar com algum colo de mãe ou presença de pai/tio/avô por perto, as sequelas previsíveis são inomináveis. Uma observação do chefe de comunicação do Unicef dá a dimensão do drama sentido por qualquer adulto na população cada vez mais sitiada: fazer de tudo para que a criança não perceba que você perdeu o controle. Essa talvez seja a carga mais dura de qualquer adulto em Gaza, hoje.
A pediatra americana Seema Jilani, assessora sênior do Comitê Internacional de Resgate, que atua globalmente em emergências de saúde, passou duas semanas no Hospital Al-Aqsa de Khan Yunis. Em longa entrevista a Isaac Chotiner, da New Yorker, ela relatou como foram suas primeiras horas de plantão ali. Chegara acompanhada de alguns cirurgiões, um obstetra, um anestesista e um intensivista vindos do Cairo.
Já trabalhara em emergências no Afeganistão, no Iraque, no Líbano, no Egito, na Turquia, na Líbia, no Paquistão e há 19 anos fazia pit stops na Cisjordânia e em Gaza. Ainda assim, nada a preparara para o horror que viu no enclave desta vez. A ausência de dignidade ali possível lhe pareceu abissal.
A primeira criança a cair sob seus cuidados foi um menino de 12 meses:
— Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...) O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax... Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes — contou com crueza a dra. Jilani.
E concluiu, com empatia, que não conseguia imaginar o que poderia haver de mais emergencial que um bebê de 1 ano sem mão nem perna, sufocando no próprio sangue. A resposta, é claro, todos sabemos, a pediatra também: algum outro estropiado da guerra, com pelo menos uma ínfima chance de ser salvo. Considerando as carências colossais, não era o caso daquele bebê.
Indagada sobre como avaliava a utilidade de sua presença no caos do Al-Aqsa, Jilani apontou para algo muito além da emergência clínica: para o corpo médico do hospital, a chegada da equipe estrangeira significou que eles não haviam sido esquecidos, evidenciava que o mundo não os deixara sozinhos.
Dias atrás, mais um complexo hospitalar em Khan Yunis foi submetido a assalto maciço por parte das tropas de Israel. Segundo o governo de Benjamin Netanyahu, o hospital abrigava integrantes do Hamas e poderia esconder os restos mortais de alguns dos 130 reféns israelenses ainda em mãos do grupo terrorista. O caos, as mortes, o desamparo de civis apenas se repetem e se avolumam. O anunciado plano israelense de ataque tous azimuts à cidade de Rafah visando a derrotar os terroristas do Hamas é uma insânia.
Ali está espremido 1,5 milhão de palestinos já exauridos. Fugiram do chão que habitavam mais ao norte para escapar dos bombardeios. Estão numa ratoeira, enquanto o Egito ergue um muro de 7 metros de altura delimitando vasta área do Sinai. Talvez para recebê-los in extremis? Quem sabe o mundo acorda? Como constatou o maravilhoso psicanalista Viktor Frankl, judeu austríaco que sobreviveu a Auschwitz, no fundo existem apenas duas raças — pessoas decentes e pessoas indecentes.
Houve o Lula treinador, o goleiro e tem o presidente, em quem adoram bater
Alguém precisa discordar, mesmo sob risco de ser visto como bajulador
Juca Kfouri, FSP, 21/02/2024
Preciso de uma desculpa para defender Lula aqui no pedaço do esporte.
Recorro a dois grandes Lulas, o técnico do Santos no auge, e o menos conhecido goleiro do Corinthians em fins de 1960, que substituiu o tricampeão Félix duas vezes na seleção.
Pronto! Aqui também se fala de futebol.
Dito isso, passemos ao mais famoso deles, o tripresidente.
Ele tem apanhado coisa que sirva nesta Folha, do editorial aos colunistas.
Alguém precisa discordar, mesmo sob risco de ser visto como bajulador.
Como é gostoso bater no ex-metalúrgico que para ter título universitário precisou ser o de Doutor Honoris Causa — hoje já são quase 40 títulos —, da Universidade Federal de Pernambuco, onde nasceu, até a Universidade de Coimbra, em Portugal, ou de Salamanca, na Espanha, ou, ainda, na Sciences Po, de Paris.
Quando Lula disse que "o conceito de democracia é relativo" ao se referir à Venezuela, apanhou feito boi ladrão. Embora pudesse chamar em seu auxílio o gênio Albert Einstein, que foi mais longe ao dizer que "nada é absoluto, TUDO é relativo", o presidente apanhou com méritos, porque defender Nicolás Maduro é dose.
Agora, então, ao ligar Hitler aos judeus sem tomar o cuidado de contextualizar com a delicadeza que o tema exige, levou pancada até mais não poder por aqui — e diga-se que, pelo mundo afora, com exceção do governo terrorista de Israel, a repercussão chegou perto de zero.
Holocausto houve um e ponto.
Lula não fez referência explícita a ele, mas nem precisa ser malicioso para tratar a fala como se o tivesse mencionado.
Genocídios sim, houve diversos na história da humanidade, e é inegável que num governo como o israelense, que abriga ministros capazes de dizer "Estamos lutando contra animais e agindo de acordo", como disse o da Defesa, Yoav Gallant, restam poucas dúvidas sobre seus desejos em relação a Gaza.
Há diferença entre quantidade e qualidade.
Seis milhões de mortos assassinados em campos de concentração é algo que jamais será esquecido e que nunca poderá ser citado de passagem.
Já o método de Bibi Netanyahu no campo de concentração a céu aberto que estabeleceu em Gaza pouco difere dos métodos nazistas. Sem gás.
Tivesse dito o humanista Lula que "Netanyahu está para os palestinos como Hitler esteve para os judeus" e os protestos estariam limitados aos bolsonaristas em busca de encobrir o depoimento de seu líder à PF nesta quinta-feira (22/02/2024).
Sempre que se falar em cessar o morticínio em Gaza, haverá de se exigir a devolução dos reféns nas mãos terroristas do Hamas.
E parece mentira que cause mais indignação a frase infeliz que o parágrafo da magistral coluna de Dorrit Harazin, com depoimento da pediatra americana Seema Jilani:
"Ele tinha o braço e a perna direita arrancados por uma bomba. A fralda estava ensanguentada e se mantinha no lugar, apesar de não haver mais perna. Eu o tratei primeiro no chão, pois não havia macas disponíveis (...). A seu lado havia um homem emitindo os últimos respiros. Estava ativamente morrendo havia 24 horas, com moscas por cima (...) O bebê de 1 ano sangrava profusamente no tórax… Não havia nem respirador, nem morfina, nem medidor de pressão em meio ao caos. (...) Um cirurgião ortopédico envolveu com gaze os tocos da criança e comunicou que não a levaria de imediato para o centro cirúrgico porque havia casos mais urgentes".
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