Autran Dourado um dia disse: "Todo ano releio três livros de Machado de Assis: Dom Casmurro, Quincas Borba, e Memórias póstumas de Brás Cubas, para limpar a língua que fica suja das leituras estrangeiras".
Com a inspiração em Autran e Machado passo a contar a estória de Belmiro.
Um "doutor" renegado
Belmiro é carioca, aposentado e divorciado. Hoje vive só. Do casamento tem um filho. Foi casado com Carmem e é pai de Enrique. A estória deste casamento é o motivo desta conversa.
Sua formação universitária foi o direito. Depois da graduação e com pouco tempo no exercício da advocacia percebeu a opção errada pelo direito. Mudou após uma feroz discussão com a mãe. Coitada, lutou tanto para que o filho fosse um "doutor". Um ingrato! É isto que você é, seu merda! Disse dona Graça, a mãe, quando da decisão de Belmiro. Não teve jeito, fez concurso na Eletrobrás e ficou por lá durante 35 anos. Mas a dona Graça merece um espaço a parte.
Dona Graça
A mãe, dona Graça, tem um quê da Manuela do filme Tudo sobre minha mãe do Almodóvar. Um quê, pois Manuela tem mais ternura. Graça, apesar de dar a vida pelo filho, era mais autoritária. No filme o filho Esteban pergunta à mãe: seria capaz de se prostituir por mim? A resposta de Manuela: já fui capaz de fazer qualquer coisa por você. Para a mesma cena qual seria a resposta da Graça para Belmiro? Ô moleque deixa de ser besta! Era assim a mãe do Belmiro. Tinha momentos de ternura, mas tinha o chicote em períodos interinos.
Carmem
Eu, você e ninguém mais. É o que espero meu bem. Estes foram os dizeres escritos num cartão enviado por Carmem. Eram jovens apaixonados. Promessas de amor eterno; juramentos de juntos até a morte e um vislumbre cego do paraíso. Carmem era a combinação da inocência com sexo, da ingenuidade com alegria. Sem dúvida foi a mulher da vida do filho da Dona Graça.
A relação com Carmem, na época do namoro e noivado, teve uma sombra presente: a mãe. No início com o argumento de que atrapalhava os estudos e no fim um transparente ciúme do filho. Esta mulher é uma sirigaita, mais tarde você verá. Era Dona Graça com o chicote.
As algemas
Belmiro casou com Carmem numa tarde de verão. Na época o sentimento que contaminava era o de um algemado pela paixão. Um condenado que se sentia feliz como tal. Tiveram dois anos maravilhosos vivendo boas passagens. Ainda com aquela impressão de que tinha feito a opção certa na hora certa: a opção Carmem. O trabalho e a vida social deixavam o casal ocupados e bem alimentados de prazeres e inutilidades perenes. Até o aparecimento do Enrique, o filho e a personagem emblemática chamada Álvaro.
Álvaro
Colega de trabalho, bom vivant, bonito e boêmio. Assim era o Álvaro. Conversa de boteco: Belmiro por favor, não reclama da vida. Tens um bom emprego, é casado com uma bela mulher, não paga aluguel e mora na cidade maravilhosa. Você quer mais o quê?
Sei não, Álvaro, tenho uma ideia atravessada sobre Carmem. Um grilo. Ela se passa por uma esposa dispersa, sem foco no casamento. Independente demais pro meu gosto.
Ideia sem braço, Belmiro. Hoje as coisas mudaram. A mulher mudou e nós, homens, não. Mulher trabalha, tem salário. Mulher também vota nessa tralha que elegemos para deputado, senador, presidente, governador, prefeito, vereador. Mulher às vezes é mãe e pai.
Álvaro, bom vivant, bonito, boêmio e dissimulado, esperto. Depois de um tempo começou a desconfiança. Belmiro não gostava de como ele olhava para Carmem.
O ciúme
Carmem, no inicio me sentia algemado por você. Hoje me sinto corrompido.
Belmiro, és um implicante, um cabeçudo. Já te falei mil vezes: tira da cabeça que tenho alguma coisa com o Álvaro. É uma ideia sem pernas, ô cara!
Mas a ação de Carmem não correspondia à intensão. Não convencia o marido.
Tome cuidado com seus desejos. Você nunca estará seguro nas mãos de uma mulher, seja ela quem for. Lembrou deste diálogo de um filme. Considerou a hipótese de que não confiava mais em Carmem. Depois de um tempo a hipótese virou tempestade.
Previsão do tempo: tempestade
Meu filho, sabes minha opinião sobre Carmem, mas tenha calma, esvazia a cabeça; tens uma família e um casamento a serem mantidos.
Sei não mãe o que me atormenta é a desconfiança; odeio fingir. Agora te conto a última: o Enrique adora o Álvaro. Domingo passado nos encontramos num restaurante e os dois conversaram o tempo todo.
Ai! Cacete, taí o Otelo falando. O Otelo ensimesmado e onisciente; e burro! Dúvidas traidoras de Shakespeare. A continuar assim o inferno está próximo e você vai para o buraco. Só faltava esta: dúvida sobre a paternidade. Poupe-me Belmiro!
A mãe tinha razão; Belmiro estava a meio caminho do inferno.
Inferno
A desconfiança se concretizou num dia em que chegou em casa e quem encontrou? Álvaro, Carmem e Enrique.
Aí perdeu a paciência e o pau comeu. Ô! calma Belmiro, deixa eu explicar. Vim aqui para trazer um presente para o Enrique. O cínico do Álvaro não convenceu. Olha aqui, seu puto, a merda você e vá botar chifre em tua mãe, seu canalha. Desabafou e logo a seguir lhe deu um safanão daqueles. Álvaro desabou por trás do sofá com a boca sangrando. Você está louco varrido. Ele é teu amigo; e meu também! Era Carmem furiosa segurando o Enrique, que chorava. O "e meu também" irritou o ciumento mais ainda. Sua puta! Traíra isto sim, é o que você é. Eu devia te matar sua filha da puta. A resposta de Carmem: ah! você não faria isto, sabe porque? porque você é um bosta e me enoja. Que tristeza ter casado com um filhinho da mãe!
Depois do acontecido houve a separação e Belmiro passou a morar sozinho. Enrique, hoje, é jovem e engenheiro eletricista. Álvaro, que também é engenheiro eletricista, mora em Natal, Rio Grande do Norte. Carmem vive com o filho e pelos boatos tem um namorado rico.
A leitora poderá inquirir Belmiro: e o teste de DNA, porque não fez? Porque não quero saber. Enrique é meu filho, tá no registro.
"O amor na sociedade é a troca de duas fantasias e o contato de duas epidermes" La regle du jeu (A regra do jogo), filme da Jean Renoir, 1939.
Um "doutor" renegado
Belmiro é carioca, aposentado e divorciado. Hoje vive só. Do casamento tem um filho. Foi casado com Carmem e é pai de Enrique. A estória deste casamento é o motivo desta conversa.
Sua formação universitária foi o direito. Depois da graduação e com pouco tempo no exercício da advocacia percebeu a opção errada pelo direito. Mudou após uma feroz discussão com a mãe. Coitada, lutou tanto para que o filho fosse um "doutor". Um ingrato! É isto que você é, seu merda! Disse dona Graça, a mãe, quando da decisão de Belmiro. Não teve jeito, fez concurso na Eletrobrás e ficou por lá durante 35 anos. Mas a dona Graça merece um espaço a parte.
Dona Graça
A mãe, dona Graça, tem um quê da Manuela do filme Tudo sobre minha mãe do Almodóvar. Um quê, pois Manuela tem mais ternura. Graça, apesar de dar a vida pelo filho, era mais autoritária. No filme o filho Esteban pergunta à mãe: seria capaz de se prostituir por mim? A resposta de Manuela: já fui capaz de fazer qualquer coisa por você. Para a mesma cena qual seria a resposta da Graça para Belmiro? Ô moleque deixa de ser besta! Era assim a mãe do Belmiro. Tinha momentos de ternura, mas tinha o chicote em períodos interinos.
Carmem
Eu, você e ninguém mais. É o que espero meu bem. Estes foram os dizeres escritos num cartão enviado por Carmem. Eram jovens apaixonados. Promessas de amor eterno; juramentos de juntos até a morte e um vislumbre cego do paraíso. Carmem era a combinação da inocência com sexo, da ingenuidade com alegria. Sem dúvida foi a mulher da vida do filho da Dona Graça.
A relação com Carmem, na época do namoro e noivado, teve uma sombra presente: a mãe. No início com o argumento de que atrapalhava os estudos e no fim um transparente ciúme do filho. Esta mulher é uma sirigaita, mais tarde você verá. Era Dona Graça com o chicote.
As algemas
Belmiro casou com Carmem numa tarde de verão. Na época o sentimento que contaminava era o de um algemado pela paixão. Um condenado que se sentia feliz como tal. Tiveram dois anos maravilhosos vivendo boas passagens. Ainda com aquela impressão de que tinha feito a opção certa na hora certa: a opção Carmem. O trabalho e a vida social deixavam o casal ocupados e bem alimentados de prazeres e inutilidades perenes. Até o aparecimento do Enrique, o filho e a personagem emblemática chamada Álvaro.
Álvaro
Colega de trabalho, bom vivant, bonito e boêmio. Assim era o Álvaro. Conversa de boteco: Belmiro por favor, não reclama da vida. Tens um bom emprego, é casado com uma bela mulher, não paga aluguel e mora na cidade maravilhosa. Você quer mais o quê?
Sei não, Álvaro, tenho uma ideia atravessada sobre Carmem. Um grilo. Ela se passa por uma esposa dispersa, sem foco no casamento. Independente demais pro meu gosto.
Ideia sem braço, Belmiro. Hoje as coisas mudaram. A mulher mudou e nós, homens, não. Mulher trabalha, tem salário. Mulher também vota nessa tralha que elegemos para deputado, senador, presidente, governador, prefeito, vereador. Mulher às vezes é mãe e pai.
Álvaro, bom vivant, bonito, boêmio e dissimulado, esperto. Depois de um tempo começou a desconfiança. Belmiro não gostava de como ele olhava para Carmem.
O ciúme
Carmem, no inicio me sentia algemado por você. Hoje me sinto corrompido.
Belmiro, és um implicante, um cabeçudo. Já te falei mil vezes: tira da cabeça que tenho alguma coisa com o Álvaro. É uma ideia sem pernas, ô cara!
Mas a ação de Carmem não correspondia à intensão. Não convencia o marido.
Tome cuidado com seus desejos. Você nunca estará seguro nas mãos de uma mulher, seja ela quem for. Lembrou deste diálogo de um filme. Considerou a hipótese de que não confiava mais em Carmem. Depois de um tempo a hipótese virou tempestade.
Previsão do tempo: tempestade
Meu filho, sabes minha opinião sobre Carmem, mas tenha calma, esvazia a cabeça; tens uma família e um casamento a serem mantidos.
Sei não mãe o que me atormenta é a desconfiança; odeio fingir. Agora te conto a última: o Enrique adora o Álvaro. Domingo passado nos encontramos num restaurante e os dois conversaram o tempo todo.
Ai! Cacete, taí o Otelo falando. O Otelo ensimesmado e onisciente; e burro! Dúvidas traidoras de Shakespeare. A continuar assim o inferno está próximo e você vai para o buraco. Só faltava esta: dúvida sobre a paternidade. Poupe-me Belmiro!
A mãe tinha razão; Belmiro estava a meio caminho do inferno.
Inferno
A desconfiança se concretizou num dia em que chegou em casa e quem encontrou? Álvaro, Carmem e Enrique.
Aí perdeu a paciência e o pau comeu. Ô! calma Belmiro, deixa eu explicar. Vim aqui para trazer um presente para o Enrique. O cínico do Álvaro não convenceu. Olha aqui, seu puto, a merda você e vá botar chifre em tua mãe, seu canalha. Desabafou e logo a seguir lhe deu um safanão daqueles. Álvaro desabou por trás do sofá com a boca sangrando. Você está louco varrido. Ele é teu amigo; e meu também! Era Carmem furiosa segurando o Enrique, que chorava. O "e meu também" irritou o ciumento mais ainda. Sua puta! Traíra isto sim, é o que você é. Eu devia te matar sua filha da puta. A resposta de Carmem: ah! você não faria isto, sabe porque? porque você é um bosta e me enoja. Que tristeza ter casado com um filhinho da mãe!
Depois do acontecido houve a separação e Belmiro passou a morar sozinho. Enrique, hoje, é jovem e engenheiro eletricista. Álvaro, que também é engenheiro eletricista, mora em Natal, Rio Grande do Norte. Carmem vive com o filho e pelos boatos tem um namorado rico.
A leitora poderá inquirir Belmiro: e o teste de DNA, porque não fez? Porque não quero saber. Enrique é meu filho, tá no registro.
"O amor na sociedade é a troca de duas fantasias e o contato de duas epidermes" La regle du jeu (A regra do jogo), filme da Jean Renoir, 1939.
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