'Estou otimista, acho que temos chance no Oscar de 2024', diz produtora de 'Retratos Fantasmas'
Francesa radicada no Recife há mais de 20 anos, Emilie Lesclaux conta como é pilotar uma campanha por uma indicação ao prêmio
Teté Ribeiro, 18/11/2023, FSP
O fundamental é fazer com que o maior número possível de votantes da Academia assista ao filme. E para isso precisamos de dinheiro", diz Emilie Lesclaux de sua casa, no Recife, onde mora com o marido e os dois filhos gêmeos do casal, Tomás e Martin, de dez anos.
"Não precisamos de dinheiro para convencer ninguém a gostar do filme ou a votar nele, mas, sim, para fazer anúncios nos jornais, promover sessões especiais, convidar pessoas, participar de debates, entrevistas, encontros", esclarece a produtora. "É uma campanha como outra qualquer. Precisamos fazer o filme despertar a curiosidade das pessoas. O resto é com o filme, que tem sido muito bem recebido por todos os lugares em que é exibido pelo mundo."
"Retrato Fantasmas" é um longa-metragem difícil de catalogar. É quase todo documentário, mas tem um desfecho que faz uso do realismo fantástico. A cidade de Recife e os bastidores dos filmes anteriores de Kleber Mendonça Filho são como protagonistas deste estranho produto de audiovisual, que tem sido descrito como uma carta de amor ao cinema e aos cinemas do centro da capital pernambucana.
Achou confuso? Pois é. Por sorte, "Retratos" está disponível para streaming na Netflix desde o início deste mês, então todo mundo pode assistir e descrevê-lo para os amigos como achar conveniente.
O longa estreou mundialmente no Festival de Cannes, em maio. No Brasil, foi escolhido como o filme de abertura do Festival de Gramado, em agosto. Depois, passou pelos festivais de Toronto e de Nova York, e entrou em cartaz nos cinemas das maiores cidades brasileiras, de Portugal, da França e dos Estados Unidos.
Com quase 85 mil espectadores nos cinemas, "Retratos Fantasmas" está longe de ser um blockbuster, ou mesmo de alcançar as bilheterias impressionantes do filme anterior de Kleber, "Bacurau", que fez quase 800 mil. "Aquarius" e "O Som ao Redor" tiveram bilheterias mais modestas, pouco mais de 350 mil espectadores e 95 mil ingressos vendidos, respectivamente. Os três foram sucesso de crítica e premiados em festivais importantes pelo mundo. "O Som ao Redor" e "Aquarius" estão disponíveis na Netflix, e "Bacurau", na Globoplay.
No último dia 12 de setembro, Emilie comemorou duas coisas bem importantes: primeiro, seu aniversário de 44 anos. Depois, o anúncio de que "Retratos Fantasmas" foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais para ser o representante brasileiro a disputar uma vaga pela indicação de melhor filme estrangeiro no Oscar de 2024.
A decisão foi tomada por uma comissão presidida por Ilda Santiago, diretora do Festival de Cinema do Rio. Foram 28 longas-metragens inscritos. Cinco filmes foram pré-selecionados, entre eles títulos mais populares como "Nosso Sonho – A História de Claudinho e Buchecha", de Eduardo Albergaria, e "Pedágio", de Carolina Markowicz. Mas o vencedor foi "Retratos".
Agora, na corrida do Oscar, o próximo passo é passar para uma lista de 15 finalistas, entre filmes do mundo inteiro, que será anunciada no dia 21 de dezembro. Se passar dessa fase, pode ser um dos cinco indicados, anunciados no dia 23 de janeiro. A cerimônia do Oscar ocorre no dia 10 de março de 2024, em Los Angeles, quando todo mundo descobre, ao vivo, qual o vencedor.
Se "Retratos" superar todos os obstáculos do caminho e vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o primeiro do Brasil, quem vai subir no palco do teatro Dolby para receber a estatueta dourada pode ser uma estrangeira: Emilie, produtora do filme, é francesa.
"Não tinha nem pensado nisso", ela diz na entrevista, quando pergunto se ela já tem um discurso de agradecimento preparado. Tradicionalmente, é o produtor que recebe o Oscar de Melhor Filme, não o diretor, que concorre por si só com outros diretores. É verdade que, na categoria Filme Estrangeiro, hoje em dia rebatizada de Filme Internacional, muitas vezes é o diretor que sobe ao palco, acompanhado de todo o elenco e equipe de bastidores.
"Estou otimista, porque vejo que o filme toca muito as pessoas", afirma a produtora, em português fluente. "É surpreendente, achei que este filme seria muito restrito, só para um público especializado. Não sabia nem se teria algum interesse fora do Recife. Mas estamos vendo que ele realmente emociona as pessoas de diversas maneiras e que tem muitas camadas de compreensão."
Emilie nasceu na França, em Bordeaux, em 1979. Estudou ciências políticas na faculdade, mas sempre sonhou em trabalhar com cinema. Não conhecia o Brasil nem falava português até 2002, quando aceitou um convite do Consulado-Geral da França para ser a representante do país no nordeste brasileiro na área de cooperação cultural, cuja sede fica em Recife. A ideia era que ficasse um ano, com contrato renovável por mais um.
"Minha mãe é argentina, então eu já falava espanhol e conhecia a América do Sul, mas me apaixonei mesmo por Recife", conta. No trabalho, conheceu Kleber, que era programador de um cinema na cidade e vivia falando dos planos de fazer filmes ousados e independentes. "A gente tinha reuniões de trabalho, ele cobria o Festival de Cannes com apoio do consulado e da Aliança Francesa
Aos poucos, começaram a colaborar nos primeiros curtas-metragens do cineasta, quase sem recursos. "No começo, eu fazia um pouco de tudo. Coisa de produtor, né?", conta Emilie, que não abre o jogo sobre em que momento começou o romance com o cineasta.
O fato é que ela concluiu os dois anos de trabalho no consulado e nunca mais foi embora. E, conforme a carreira de Kleber ia se consolidando, o mesmo acontecia com a de Emilie, que foi se especializando em tudo relacionado à produção de um audiovisual.
Em 2012, quando "O Som ao Redor", o primeiro filme de ficção de Kleber, foi lançado, Emilie já assinava como produtora. Os dois já tinham criado muitas coisas juntos, entre elas vários curtas-metragens, um documentário chamado "Crítico", o festival de cinema Janela Internacional de Cinema do Recife e a produtora Cinemascópio. Os três últimos nasceram no mesmo ano, 2008.
"Quando terminamos ‘O Som ao Redor’, que foi como fazer um filho, pensamos que seria um bom momento para ter um filho mesmo", conta Lesclaux. No ano seguinte nasceram Tomás e Martin, no dia 10 de novembro. "Quando fizemos ‘Aquarius’ eles eram bebês, tinham pouco mais de um ano."
"Todos os dias eu me pergunto como a gente conseguiu fazer filmes e criar os meninos ao mesmo tempo. A gente enlouquece um pouco nesse processo, né? Acho que nunca estou satisfeita com nada, não consigo fazer as coisas 100% do jeito que eu quero, mas acredito que esse seja um pouco o nosso fardo como mulher. Todas nós vivemos esse dilema."
Neste ano, além da loucura extra que o sucesso de "Retratos" provocou em sua vida, Emilie produziu o longa "Sem Coração", da dupla Nara Normande e Tião, que conta uma história doce e ao mesmo tempo tensa e violenta que se passa entre adolescentes em um verão no litoral de Alagoas, nos anos 1990.
"Sem Coração" estreou mundialmente no dia 5 de setembro, no Festival de Cinema de Veneza. No Brasil, foi selecionado como o filme de abertura do Festival de Cinema do Rio, que começou no dia seguinte, onde ganhou dois prêmios, Melhor Fotografia no Première Brasil e Prêmio Felix de Melhor Filme Brasileiro. Exibido também na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, tem data de estreia programada para 22 de fevereiro.
"Adoro esse filme porque ele mostra, sem nenhum discurso, e com muita doçura, os grandes contrastes que vejo no Brasil. A beleza, a liberdade e a alegria convivem com a pobreza e a violência. É muito duro, muito difícil. Mas não troco por nada."
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