Prefácio do J. A. Gaiarsa ao livro Wilhelm Reich, A função do orgasmo, tradução de Maria da Glória Novak, Brasiliense, 1975
Prefácio
É preciso falar de Reich.
O que ele fez é muito importante.
Compreender o que ele fez já não é muito fácil.
Compreender porque não se fala de Reich - nem se faz o que ele fez - já é um dos mistérios do mundo presente.
Ou do antigo.
Reich descobriu o corpo do homem ocidental que, por 2.000 anos, havia existido sem corpo.
Porque inconsciente e corpo se confundem - como Freud sabia.
Sabia mas não usou - nem quis aprofundar.
Freud preferiu ouvir as pessoas, afastando-se deliberadamente dos olhos.
Conclusão: os olhos atrapalham as pessoas.
Reich decidiu olhar.
E viu.
Viu que o dentro está por fora.
O inconsciente - a história genética e a história individual - está no corpo - é o corpo.
O livro está aí. Sempre aberto e folheável.
Ninguém queria ler - ou ninguém sabia ler.
Acho que não queria.
Assusta.
Assusta ver-se cercado de ódio, rancores, ressentimentos e inveja que estão aí todo o tempo - basta olhar.
É o sorriso irônico, o olhar desconfiado, o encolher de ombros, a voz chorosa, o gesto contundente - tudo isso se vê. Tudo isto confunde enormemente as pessoas porque tudo isso devia estar escondido - devia ser invisível.
A educação e os bons costumes não dizem que nada disso deve existir? Que o bom cidadão, o bom filho e a boa mãe são bons mesmos, sem maldade nem nada escondido?
Os códigos, as aulas, os sermões, as conversas dizem que assim devia ser.
Os olhos mostram que não é assim.
E todos nós, entre o que ouvimos dizer mil vezes que devia ser, e o que vemos 10 mil vezes que não é, acreditamos ao final - dizemos acreditar - no que ouvimos.
Freud foi o último pilar da tradição.
Ele também achava que nós escondemos - reprimimos - aquilo que nosso mundo social diz que é feio.
Que quer dizer reprimir?
Para Freud, que ouvia, mas não via as pessoas, reprimir quer dizer: não falar a respeito.
Nem para o outro nem para si mesmo.
Mas não é por não falar que eu não mostro.
Tudo que há em mim e que não aparece na frase, aparece na voz, no olhar, no gesto, na atitude.
A questão é saber ler.
Reich aprendeu a ler o corpo humano e descobriu que nós não econdemos nada.
Tudo aparece.
Teimamos todos - e aprendemos todos - a não ver, porque ver seria o fim do nosso mundo - o mundo no qual nos formamos.
Claro que papai, mamãe, o professor, o padre, o presidente são gente e tem defeitos - flagrantes!
Fáceis de ver.
Mas não se deve falar a respeito.
Com nossos defeitos, fazemos o que aprendemos a fazer - não os vemos. Mas eles estão aí, visíveis e potentes, alimentando todas as coisas "misteriosas" que há no mundo - simpatias e antipatias gratuitas, aproximações e afastamentos inexplicáveis, brigas e mais brigas incompreensíveis.
É que o corpo é honesto e mostra sempre como está, o que sente, o que busca, o que teme, o que ama, o que odeia.
O inconsciente é de todo visível - esse o primeiro passo do gigante, quando ainda ensinava no Seminário Psicanalítico de Viena, lá pelos 30.
Há 50 anos pois - já faz meio século! Você sabia?
Daí nasceu a "Análise do caráter", a meu ver o livro mais importante já escrito sobre o homem e a importância de seu corpo.
Sem detalhes: ele pode dar fundamento científico a todo o existencialismo e a fenomenologia.
Mas não mudemos de tom que o que falta é mais importante do que já foi.
Reich foi o primeiro cientista ocidental a examinar com uma profundidade assustadora o valor e o significado do contacto humano.
Da carícia.
A carícia, sábia, precisa, amorosa, segura, implacável - a carícia é o maior agente de transformação pessoal.
A carícia é o pior agente de tortura que um ser humano pode usar.
A verdade é muito simples: desde que nascemos - e antes - reagimos a tudo que nos fere e machuca, encolhendo o corpo - contraindo músculos mil vezes, 10 mil vezes.
Assim se forma nossa casca - nossa Couraça Muscular do Caráter - nosso jeito de viver - nosso modo de ser.
Nosso modo de não sofrer de novo o que já sofremos antes.
É sábio.
É mortal.
Ao nos defendermos do que pode machucar, nos fechamos também para tudo o que nos possa alegrar, dar prazer, fazer feliz.
Nossa proteção sábia é um caixão.
De defunto. Morte lenta.
Nossa defesa nos sufoca aos poucos e nos paraliza aos poucos.
Há mil modos de desfazer o caixão - mas o quase defunto resiste tenazmente a quase todos eles.
Pode uma ostra viver fora da concha?
Pode ela acreditar nessa possibilidade? Pode ela querer abandonar-se e aventurar-se no grande mar e seus mil perigos assim, tenra, macia, vulnerável, inconsistente?
É preciso muita fé para sair da casca e os moluscos não costumam ter muita fé.
O meio mais atuante para que a ostra abandone a casca é a carícia.
A carícia, que é o contrário da agressão, que é o jeito que desarma, que é o gesto que acolhe.
Por isso, carícias são torturas. Mostram bem - bem demais - tudo o que perdemos.
Reich começou olhando e terminou tocando ao paciente.
Nu.
Há muitos anos que Reich e seus continuadores cuidam das pessoas nuas.
A fim de ver, sentir e tocar o corpo onde ele está fechado, encolhido, preso.
Para que ele se expanda, se abra, palpite, respire e viva.
É bonito.
É terrível.
É terrível ser a ostra que deixa a concha.
Mais terrível do que issso, só a ostra que prefere permanecer na concha para sempre.
Reich foi o primeiro sinal de que o corpo humano ia começar a viver.
De que as pessoas iam começar a se ver.
De que as pessoas iam começar a se acariciar.
A se conhecer.
A transar a transa que não é mais a do Velho Patriarca nem a de sua excelentíssima esposa, a Grande Mãe.
Nem dos irmãos.
Gente apenas - sem parentesco, sem clã, sem tribo, sem igrejinha, sem panelinha.
Eu, você, ele, nós, vós, eles.
A função do orgasmo é um bom começo para se conhecer Reich, o terrível.
São Paulo, 23/3/75
Dr. J. A. Gaiarsa.
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P.S.: Reich morreu na cadeia. Nos Estados Unidos. Sob a acusação de charlatanismo. Condenado sem julgamento porque não compareceu a julgamento. Galileu e Giordano Bruno sofreram em época de obscurantismo e ignorância generalizada. Que desculpa se inventará para isentar a justiça da mais democrática das nações do mundo?
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