Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Fernando Pessoa ganha biografia que quer dar conta de suas inúmeras pessoas
Catatau de Richard Zenith, finalista do Pulitzer, apresenta o homem que foi os quatro maiores poetas portugueses do século
Walter Porto, fsp, 13 jan. 2023
Fernando Pessoa viveu seus 47 anos numa existência que poderia, sem muito risco de injustiça, ser chamada de tediosa. Passava boa parte do tempo escrevendo sozinho, nunca foi afeito a grandes aventuras e, ao que tudo indica, morreu virgem.
Sua vida dificilmente renderia uma boa biografia. Mas a questão é que, dentro dele, havia muito mais gente.
Quem são Fernando Pessoa - fotos
"Há autores tão grandes quanto Pessoa, mas é difícil encontrar um autor tão vasto", diz Richard Zenith, seu biógrafo, que se valeu dessa vastidão para criar um livro de mais de 1.100 páginas — que, publicado primeiro em inglês há dois anos, acabou finalista do Pulitzer.
Apesar de ter nascido a um oceano de distância, o americano se tornou um dos maiores especialistas no autor português que estuda há mais de 30 anos. Nas páginas de sua biografia, mergulha no universo composto de tinta e papel no qual, segundo ele, Pessoa viveu sua sexualidade, sua espiritualidade e sua política.
O pesquisador e tradutor, que pontua diversos "well" em meio ao característico "S" do sotaque lusitano, vasculhou como poucos o acervo de mais de 25 mil papéis que Pessoa deixou anotados em seu apartamento e foi responsável por estabelecer uma versão respeitada do caudaloso "Livro do Desassossego", publicada aqui pela Companhia das Letras.
A Todavia lança outra versão este mês, organizada por Jerónimo Teixeira, num resgate amplo de Pessoa que também tem trazido às livrarias edições frescas do clássico "Mensagem", seu único livro publicado em vida no idioma natal, e de coletâneas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis —que também são Pessoa, apesar de não serem.
Esses heterônimos, afinal, são personalidades próprias criadas com esmero pelo escritor, num dos traços mais distintivos de seu projeto literário. Não se trata da simples assinatura de textos com pseudônimo: aqui há o gesto de elaborar de fato novos autores, com biografias, visões de mundo e trejeitos particulares.
"Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do século 20 foram Fernando Pessoa", escreve Zenith no prefácio de seu livro —mais que um subterfúgio literário, segundo ele, esse era um exercício voraz de expansão de si mesmo.
"Pessoa queria sentir tudo de todas as maneiras", afirma. "Quando ele escreve sob outro eu, há muita autobiografia também, ainda que um pouco distorcida. São aspectos do que ele era ou sonhava ser."
Álvaro de Campos, por exemplo, parecia ser o oposto de Pessoa. Enquanto este era um homem cerebral e tímido, o heterônimo era um dândi espalhafatoso, viajante contumaz, com vida sexual ativa com homens e mulheres.
A lista de assinaturas é tão ampla —Caeiro, Reis e Campos são só as mais bem delineadas— que tornam um desafio separar o que era opinião real e o que era performance do escritor. Mas talvez este seja um esforço fútil —afinal, como diz um de seus textos mais célebres, o poeta é um fingidor.
Zenith, um dos especialistas mais capacitados para fazer essa depuração, lembra o agravante de que Pessoa não era alguém de ideias fixas. "Em 1915, ele publicou um texto dizendo que o intelectual moderno tinha a obrigação cerebral de mudar de opinião várias vezes no mesmo dia. E ele mudava, porque tinha uma mentalidade flexível, estava sempre a reconsiderar."
Isso vale para suas posições políticas. Libertário, foi de um republicanismo feroz no período final da monarquia portuguesa, mas depois se desiludiu com a política partidária e passou a condenar sua instabilidade. "Houve um período, por volta de 1920, em que sua política era bastante reacionária."
Com a ascensão do fascismo pela Europa, Pessoa teve amigos que defendiam Benito Mussolini, ao qual ele jamais aderiu. Quando a ditadura que descambaria no salazarismo começou a se instalar, em 1926, ele deu a ela "o benefício da dúvida" num primeiro momento, segundo Zenith.
"Mas quando viu a repressão da palavra, a censura, a interferência na vida pessoal, ele se tornou completamente contrário ao governo. Aquelas ideias reacionárias de antes, quando ele desconfiava da democracia, foram mudando. Era crítico ao humanitarismo, mas se tornou bastante humanitário ao fim da vida."
"Mensagem", por exemplo, evidencia "ideias fantasistas" de Pessoa em prol do domínio cultural do império português sobre o mundo. "Mas depois, com os pés na terra, ele reagiu a isso."
A ditadura em Portugal - fotos
Essa fluidez de opiniões —no limite, de identidades— é algo que faz com que o escritor fale mais com os leitores de hoje do que com os de sua própria época, segundo o biógrafo. É bom lembrar, aliás, que o grosso de sua obra foi publicado depois de sua morte em 1935 —a primeira edição do "Livro do Desassossego" só viu a luz do dia em 1982.
Se na primeira metade do século os críticos costumavam enxergar seus heterônimos como uma "brincadeira curiosa", o leitorado de hoje é mais aberto a abraçar a literatura de "um ser que é muitos seres", a aceitar a falta de um eu sólido e coeso.
"Os críticos de antigamente tinham mais interesse nos textos assinados pelo próprio Pessoa, porque viam nos outros falta de sinceridade", afirma Zenith.
Hoje em dia, assumir outras personalidades para se expressar artisticamente não é entendido como disfarce, menos ainda desonestidade. "Temos uma noção melhor de que, de certo modo, estamos sempre a representar."
Pessoa: uma Biografia
Preço R$ 199,90 (1.160 págs.)
Autoria Richard Zenith
Editora Companhia das Letras
Tradução Pedro Maia Soares
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
In Fernando Pessoa, Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944.
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Tabacaria é um poema longo e complexo, onde o heterônimo Álvaro de Campos levanta as questões centrais que regem a sua poesia. A obra é das criações poéticas mais famosas de Fernando Pessoa.
Escrito em 1928 (e publicado em 1933, na Revista Presença), os versos são um registro do tempo em que viveu, da modernidade veloz e do sentimento de incerteza do sujeito que se sentia perdido diante de tantas mudanças. A sensação de vazio, de solidão e de incompreensão são as linhas norteadoras do poema. Rebeca Fuks
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