Introdução de Sheila Hue para o livro "Carta de achamento do Brasil - edição comentada"
Contam os brancos que um português disse ter descoberto o Brasil há muito tempo. Pensam mesmo que ele foi o primeiro a ver nossa terra. [...]. Nasci na floresta e sempre vivi nela. No entanto, não digo que a descobri e que, por isso, quero possuí-la. Assim como não digo que descobri o céu, ou os animais de caça! Sempre estiveram aí, desde antes de eu nascer. Davi Kopenawa, A queda do céu, p. 253.
Vozes ao vento
Uma das cenas mais intrigantes da carta de Pero Vaz de Caminha (disponível aqui) é a do primeiro contato entre os navegantes portugueses e os habitantes da terra.
Trata-se de uma cena cheia de ruído, de barulho, de vozes. O pequeno bote dos viajantes aproxima--se da boca do rio do Frade, no Sul do atual estado da Bahia. Cerca de 20 homens vêm na direção deles, “rijos”, com arcos e flechas em posição de batalha, na defensiva, guerreiros. Ao final, segundo a versão de Caminha, acabam trocando objetos: chapéus europeus por cocares de penas e colares de contas. Sabemos que os habitantes da terra falam, expressam-se oralmente, assim como os recém-chegados. Mas o autor da carta registra no texto somente o som das ondas, tão ruidoso que impedia que os indígenas fossem escutados, num local não conhecido pela arrebentação ruidosa.
“Ali não pudemos entender a fala deles nem os ouvir direito, por o mar quebrar na costa”, escreve, no dia 23 de abril de 1500, empregando uma imagem metafórica para representar o que outro texto, conhecido como Relato do piloto anônimo, descreve com mais exatidão: “não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem”. Não sabemos o que falaram, mas sabemos que os indígenas se expressaram o bastante para que sua língua fosse identificada como desconhecida.
Homem de letras, funcionário régio, conhecido por sua habilidade com a escrita, a ponto de ter redigido capítulos para as Cortes (as assembleias legislativas do reino), conhecedor do latim, sabedor da existência dos idiomas africanos da costa do Atlântico, com os quais os portugueses tinham contato havia décadas, Caminha devia ter alguma familiaridade com o árabe, falado por alguns dos membros da tripulação. A frota de 13 embarcações e cerca de 1.500 homens dirigia-se a Calicute, na Índia, para fundar o primeiro entreposto comercial português no Oriente, um empreendimento da Coroa portuguesa, com o apoio de investidores italianos. Os homens que iam no pequeno bote eram experientes, tinham viajado pelo Mediterrâneo, alguns conheciam Ceuta, outros haviam atuado na costa africana ocidental e outros ainda já tinham viajado até a Índia com Vasco da Gama, passando pela costa africana do Índico e inaugurando a rota que agora pretendiam seguir pela segunda vez. Alguns deles, como Duarte Pacheco Pereira, provavelmente já haviam estado na América do Sul.
Mas Pero Vaz de Caminha nunca viajara pelo “mar oceano”, como então se dizia. Embarcara pela primeira vez, na segunda viagem portuguesa à Índia, para assumir o lucrativo cargo de feitor em Calicute, onde seria vitimado pouco após sua chegada durante um ataque de comerciantes “mouros”, muçulmanos, insatisfeitos com a nova concorrência europeia. Talvez por não ter familiaridade com as viagens marítimas e com a realidade do encontro com outros povos, sua carta narra copiosamente mal-entendidos, equívocos ou mesmo a total ausência de comunicação entre as partes.
Apesar disso, seu relato acaba sendo eloquente ao registrar, ou silenciar, o que não é ouvido e entendido. A primeira cena do contato, em que a arrebentação das ondas impede a escuta, vai se refletir no restante da carta, na qual outros discursos indígenas, sejam peças de oratória tupi, sejam linguagens gráficas da pintura e dos artefatos corporais, serão ignorados, não compreendidos ou encarados com perplexidade.
Essa não escuta das vozes indígenas por parte de Caminha, um funcionário do empreendimento expansionista da Coroa portuguesa, será a tônica em muitos tratados, cartas, notícias e demais gêneros de escrita em que se registraram os lances da colonização do território que então, em abril de 1500, oficialmente era tomado pelo reino católico português. Os europeus liam os novos povos com o material que tinham à mão: obras medievais, literatura clássica e livros de viagem como o de Marco Polo. Colombo estava então fazendo sua terceira viagem e pela primeira vez pisaria o continente americano. E o próprio Américo Vespúcio, que viria a nomear o continente, ainda não tinha embarcado na sua viagem decisiva, que resultaria nas famosas cartas que circulariam pelo mundo em vários idiomas, criando uma imagem fantástica e irresistível da imensa nova porção de terra e de seus inquietantes e então incompreensíveis habitantes.
Dessa forma, mesmo que a frota portuguesa que aportou no Brasil já tivesse informações sobre as primeiras viagens de Colombo, sobre a chegada de Vicente Yáñez Pinzón ao Norte da América do Sul e sobre a secreta e pouco sabida incursão marítima de Duarte Pacheco Pereira em 1498 ao que viria a ser o Brasil, mesmo assim o contato com os povos tupi do litoral desafiava tudo o que já tinham experimentado nas costas africanas, nas conhecidas praças das grandes cidades africanas do Mediterrâneo ou na conturbada vivência de Vasco da Gama na Índia.
É especialmente notável a cena em que Pedro Álvares Cabral, um membro da alta nobreza do Norte de Portugal, “espera”, na beira do rio Mutari, um ancião que se aproxima. Trazendo na mão um bastão de madeira, identificado por Caminha como um remo de canoa, mas provavelmente um ibirapema – indicativo de sua relevância naquele grupo social –, o chefe ou xamã faz um longo discurso dirigido aos recém-chegados, provavelmente um exemplar dos discursos formais dos antigos tupis, conhecidos por serem grandes oradores. A fala abundante do ancião causa perplexidade, fazendo com que o capitão-mor, Cabral, se enfade e lhe vire as costas. Os nove dias de contato esparso com as populações do Sul da Bahia, os tupiniquins de então, não seriam suficientes para que alguma compreensão maior fosse possível. Três anos mais tarde, franceses da Normandia, em um navio comercial, tentariam a sorte na costa do Brasil e, ao passarem um longo tempo entre os guaranis do Sul e os tupis mais ao Norte, conseguiriam se comunicar com os “selvagens” a ponto de estabelecer alianças e contratos.
Do ponto de vista indígena, como observam Ailton Krenak, [1] Álvaro Tukano, [2] Eliane Potiguara [3] e Davi Kopenawa, [4] entre outras vozes indígenas, a chegada da frota de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, longe de ser motivo de louvor, é o marco de uma brutal disrupção das populações que habitavam o território, estimadas entre dois e nove milhões de indivíduos. Em menos de um século, as epidemias causadas por doenças contra as quais não tinham imunidade, as guerras de apresamento de escravos e as ações de tomada de território levadas a cabo pelo projeto de colonização que tomava curso em todo o continente provocariam uma depopulação talvez inédita na história da humanidade, reduzindo drasticamente o número de habitantes e provocando a desintegração social ou novos arranjos sociopolíticos quase sempre desvantajosos para os povos nativos. [5] Ler hoje a carta de Pero Vaz de Caminha é observar o início desse processo diruptivo e destrutivo provocado pela colonização do Brasil e refletir sobre os marcos iniciais do embate entre os portugueses e os povos indígenas. Mas é também perscrutar, através de uma janela, um mundo que um dia existiu e a potência daqueles povos, que até os nossos dias pode ser constatada no protagonismo histórico indígena, marcante nesta segunda década do século XXI na luta por demarcação, recuperação ou manutenção de suas terras, de sua cultura, de seu modo de vida e de seus conhecimentos milenares que hoje, mais do que nunca, podem servir de farol para um possível futuro coletivo.
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[1] Krenak, 1999; Kadiwéu & Cohn, 2019; Krenak, 2019.
[2] Kadiwéu & Cohn, 2019.
[3] Idem.
[4] Kopenawa & Albert, 2015.
[5] Fausto, 2005.
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Na carta de Caminha observamos o confronto entre dois pontos de vista, que o narrador desvela com sua hábil pena, revelando-nos a dubiedade das intenções dos viajantes, as diferentes perspectivas em jogo naquele encontro e, principalmente, compondo uma pintura viva, falante, dos povos que pela primeira vez contatava. Como um homem treinado nas artes da escrita e da retórica, e além disso dotado de um verdadeiro talento que podemos chamar de literário, sua carta ao rei D. Manuel, sem paralelo nos discursos quinhentistas sobre as navegações e a expansão territorial europeia, é principalmente uma descrição minuciosa dos indígenas, de suas atitudes, seus corpos, seus artefatos, seus grafismos, suas pinturas corporais, sua música, sua arte plumária exuberante, e mesmo dos discursos que não conseguiu ouvir, dando-nos o testemunho mais antigo da grande oratória dos antigos tupis.
Os desentendimentos ou os equívocos derivam, sobretudo, das conflitantes visões de mundo. Enquanto os povos indígenas entregavam aos recém--chegados portugueses, entendidos talvez como xamãs ou seres de dimensões espirituais, presentes que simbolizavam amizade e perspectiva de aliança, os viajantes, empenhados em uma aventura comercial, religiosa e política de expansão territorial, entendiam a troca de cocares de plumas – valiosos na Europa – e artefatos bélicos por chapéus e quinquilharias europeias como um escambo desigual e ingênuo por parte dos anfitriões, que não sabiam avaliar o valor pecuniário das coisas. A mentalidade comercial do raiar da época moderna, marcado pelo capitalismo mercantil, era inteiramente estranha à cultura tupi. Em lugar de aliança ou amizade, os futuros colonizadores buscavam ali o mesmo que já tinham achado na África Ocidental, às margens do Atlântico, na chamada Mina, cujo ouro irrigava a Coroa portuguesa e os ricos banqueiros italianos e de outras nações europeias envolvidos nas empresas marítimas portuguesas e espanholas.
O ouro, como sabemos, só seria encontrado em proporções significativas no final do século XVII, mas é o principal foco das investigações portuguesas na terra nova encontrada. O Brasil seria inicialmente explorado como território de agricultura extensiva da cana de açúcar, principal ativo econômico da colonização. Entretanto, ainda no século XX e também no XXI, a exploração de ouro continua impactando as populações indígenas da floresta, como testemunha David Kopenawa, xamã e líder yanomami, no livro A queda do céu, escrito em parceria com o etnólogo Bruce Albert, [6] no qual narra cenas de contato muito parecidas às descritas por Caminha e em que relata a destruição da natureza e das populações nativas provocada pela mineração ilegal (e também pela legal), questão premente em nosso presente histórico e que hoje transborda as fronteiras territoriais da floresta e impacta todo o país. Como observa Aílton Krenak em “O eterno retorno do encontro”, [7] “os fatos e a história recentes dos últimos 500 anos têm indicado que o tempo desse encontro entre as nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todo dia”.
É no bojo dessas atuais reflexões de pensadores indígenas que podemos perceber o quanto a carta de Pero Vaz de Caminha, escrita há mais de 500 anos, é ao mesmo tempo emissária de um outro mundo e interlocutora do presente, sendo igualmente um importante documento para a reflexão sobre o futuro.
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[6] Idem.
[7] Krenak, 1999, p. 25
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CARTA DE ACHAMENTO DO BRASIL - Edição comentada
Ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da Unicamp diretoria de tratamento da informação. Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – CRB-8a / 172
C146c Caminha, Pero Vaz de, 1450?-1500. Carta de achamento do Brasil / Pero Vaz de Caminha; introdução e modernização do texto: Sheila Hue. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2021. isbn 978-65-86253-82-5
1. Cartas portuguesas. 2. Brasil – História – Descobrimento, 1500. I. Hue, Sheila. II. Título. cdd - 869.62- 981.014
Sumário
Introdução .....................................................................9
A carta ..........................................................................55
Bibliografia .................................................................119
Lista de figuras ...........................................................129
Sobre as imagens de capa ...........................................133
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