Clóvis Moura
Francisco: Construir pontes e não muros
O bom humor de Francisco
Papa Chico
Regulação da big techs
Beba Brahma, aposte com a Betnacional e corra para a Amil
Cachê da desgraça alheia
Raio-X na Amazônia revela vestígios de colônia portuguesa do século 18
Guerra comercial EUA x China
Maria Gladys
Merlin
Copa do Brasil parte 2
De manhã, copo na mão
SUS inglês
Manga, O maior goleiro do Inter
General José Antônio Nogueira Belham
Saneamento privado e o neoliberalismo
Pelé
Jacinta Passos
Ruth de Souza e Léa Garcia
Maria João Pires
'Minha professora protegeu o criminoso nazista mais procurado do mundo'
Wagner Tiso
Quantos planetas e estrelas existem no espaço? Entenda a conta polêmica
'Adolescência' retrata uma família 'normal'?
Foreman x Ali: a maior das lutas e um livro que não merece ser esquecido
Identidade é peso leve em lutas civis
A ascensão do autoritarismo nos EUA é uma realidade
Heloisa Teixeira (1939-2025)
Clóvis Moura
A Histórica entrevista de Clóvis Moura - vídeo
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Francisco: Construir pontes e não muros
'Construir pontes e não muros'; leia a homilia completa do funeral do papa
Jamil Chade, UOL, 26/04/2025
Cardeais acompanham o funeral do papa Francisco na Praça São Pedro Imagem: Mandel Ngan - 24.abr.2025/AFP
Coube a Giovanni Re, o decano do colégio de cardeais, liderar a missa em homenagem ao papa Francisco, hoje em Roma. Destacando sua luta pelos imigrantes, pelos mais pobres e pela paz, o cardeal lembrou as 47 viagens do papa pelo mundo e sua missão de transformar a Igreja num "hospital de campanha".
Leia a homilia completa:
Nesta majestosa praça de São Pedro, onde o Papa Francisco celebrou tantas vezes a Eucaristia e presidiu a grandes encontros ao longo destes 12 anos, encontramo-nos reunidos em oração à volta dos seus restos mortais com o coração triste, mas sustentados pela certeza da fé, que nos garante que a existência humana não termina no túmulo, mas na casa do Pai, numa vida de felicidade que não terá ocaso.
Em nome do Colégio Cardinalício saúdo, agradeço a presença de todos vós. Com grande emoção, dirijo uma deferente saudação e um vivo agradecimento aos numerosos Chefes de Estado, aos Chefes de Governo e às Delegações oficiais que vieram de muitos países para manifestar afeto, veneração e estima pelo Papa que nos deixou.
A manifestação popular de afeto e adesão, a que todos assistimos, após a sua passagem desta terra para a eternidade, mostram-nos quanto o intenso pontificado do Papa Francisco tocou mentes e corações.
A sua última imagem, que permanecerá em nossos olhos e em nossos corações, é a do último domingo, Solenidade de Páscoa, quando Papa Francisco, apesar dos sérios problemas de saúde, quis conceder a bênção do balcão da Basílica de São Pedro e depois quis descer nesta praça para saudar, do papamóvel aberto, toda a grande multidão reunida aqui para a Missa de Páscoa.
Com a nossa oração, queremos agora entregar a alma do nosso amado Pontífice a Deus, para que Ele lhe conceda a felicidade eterna no horizonte luminoso e glorioso do seu imenso amor.
Somos iluminados e guiados pela página do Evangelho, na qual ressoou a voz do próprio Cristo quando interpelou o primeiro dos Apóstolos, Pedro: «Pedro, tu amas-me mais do que estes?» (cf. Jo 21, 15). E a resposta de Pedro foi pronta e sincera: «Senhor, Tu sabes tudo, Tu bem sabes que Te amo!». E Jesus confiou-lhe a grande missão: «Apascenta as minhas ovelhas» (cf. 17). Esta será constantemente a tarefa de Pedro e dos seus Sucessores, um serviço de amor na senda do Mestre e Senhor Nosso Jesus Cristo.
Apesar da sua fragilidade nesta reta final e do seu sofrimento, o Papa Francisco escolheu percorrer este caminho de entrega até ao último dia da sua vida terrena. Seguiu as pegadas do seu Senhor, o bom Pastor, que amou as suas ovelhas até dar a própria vida por elas. E fê-lo com força e serenidade, junto do seu rebanho, a Igreja de Deus.
Quando, a 13 de março de 2013, o Cardeal Bergoglio foi eleito pelo Conclave para suceder ao Papa Bento 16, trazia consigo os anos de vida religiosa na Companhia de Jesus e, sobretudo, vinha enriquecido pela experiência de 21 anos de ministério pastoral na Arquidiocese de Buenos Aires, primeiro como Bispo auxiliar, depois como Coadjutor e em seguida como Arcebispo.
A decisão de adotar o nome Francisco manifestou-se logo como a escolha do programa e do estilo em que queria basear o seu Pontificado, procurando inspirar-se no espírito de São Francisco de Assis.
Papa Francisco conservou sempre o seu temperamento e a sua forma de orientação pastoral, imprimindo de imediato a marca da sua forte personalidade no governo da Igreja, estabelecendo um contato direto com cada pessoa e com as populações, desejoso de ser próximo a todos, com uma atenção especial às pessoas em dificuldade, gastando-se sem medida, em particular pelos últimos da terra, os marginalizados. Foi um Papa no meio do povo, com um coração aberto a todos. Foi também um Papa atento àquilo que de novo estava a surgir na sociedade e àquilo que o Espírito Santo estava a suscitar na Igreja.
Com o vocabulário que lhe era caraterístico e com a sua linguagem rica de imagens e metáforas, procurou sempre iluminar os problemas do nosso tempo com a sabedoria do Evangelho, oferecendo uma resposta à luz da fé e encorajando-nos a viver como cristãos os desafios e as contradições destes anos cheios de mudanças, que ele gostava de descrever como uma "mudança de época".
Tinha uma grande espontaneidade e uma maneira informal de se dirigir a todos, mesmo às pessoas afastadas da Igreja.
Dotado de grande calor humano e profundamente sensível aos dramas de hoje, o Papa Francisco partilhou em pleno as angústias, os sofrimentos, as esperanças do nosso tempo e, com uma mensagem capaz de chegar ao coração das pessoas de forma direta e imediata, dedicou-se a confortar e a encorajar.
O seu carisma de acolhimento e de escuta, associado a um modo de se comportar que é próprio da sensibilidade dos nossos dias, tocou os corações, procurando despertar energias morais e espirituais.
O primado da evangelização foi o guia do seu Pontificado, difundindo, com um claro cunho missionário, a alegria do Evangelho, que também foi o título da sua primeira Exortação Apostólica Evangelii gaudium. Uma alegria que enche de confiança e esperança o coração daqueles que se entregam a Deus.
O fio condutor da sua missão foi também a convicção de que a Igreja é uma casa para todos; uma casa com as portas sempre abertas. Várias vezes utilizou a imagem da Igreja como um "hospital de campanha" depois de uma batalha em que houve muitos feridos; uma Igreja desejosa de cuidar com determinação dos problemas das pessoas e das grandes angústias que dilaceram o mundo contemporâneo; uma Igreja capaz de se inclinar sobre cada homem, independentemente da sua fé e condição, curando as suas feridas.
São inúmeros os seus gestos e exortações a favor dos refugiados e deslocados. Constante foi também a sua insistência em agir a favor dos pobres.
É significativa a primeira viagem do Papa Francisco, é significativo que tenha sido a Lampedusa, ilha-símbolo do drama da emigração, com milhares de pessoas afogadas no mar. Na mesma linha se inscreve a viagem a Lesbos, com o Patriarca Ecumênico e o Arcebispo de Atenas, e a celebração de uma Missa junto da fronteira mexicana com os Estados Unidos, por ocasião da sua viagem ao México.
Das suas 47 cansativas Viagens Apostólicas, ficará para a história, de modo especial, a que fez ao Iraque em 2021, desafiando todos os riscos naquele momento. Essa difícil Visita Apostólica foi um bálsamo para as feridas do povo iraquiano, que tanto tinha sofrido com a ação desumana do Estado Islâmico. Foi uma Viagem importante também para o diálogo inter-religioso, outra dimensão relevante — essa — do seu trabalho pastoral. Com a Visita Apostólica a quatro nações da Ásia-Oceânia, em 2024, o Papa chegou "à periferia mais periférica do mundo".
O Papa Francisco sempre deu centralidade ao Evangelho da misericórdia, sublinhando repetidamente que Deus não se cansa de perdoar: Ele perdoa sempre, seja qual for a situação de quem pede perdão e regressa ao bom caminho.
E por isso ele quis o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, destacando que a misericórdia é "o coração do Evangelho".
Misericórdia e alegria do Evangelho são duas palavras-chave do Papa Francisco.
Em contraste com o que ele designou por "cultura do descarte", falou da cultura do encontro, da cultura da solidariedade. O tema da fraternidade atravessou todo o seu pontificado com tons vibrantes. Na sua Carta Encíclica Fratelli tutti, pretendeu reanimar a aspiração mundial à fraternidade, porque todos somos filhos do mesmo Pai que está nos céus. Com força, recordou-nos muitas vezes que todos pertencemos à mesma família humana e que ninguém se salva sozinho.
Em 2019, durante a Viagem aos Emirados Árabes Unidos, o Papa Francisco assinou um documento sobre "a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum", evocando a comum paternidade de Deus.
Dirigindo-se a homens e mulheres de todo o mundo, na sua Encíclica Laudato si', chamou a atenção para os deveres e a corresponsabilidade em relação à casa comum.
Perante o eclodir de tantas guerras nos últimos anos, com horrores desumanos e inúmeras mortes e destruições, o Papa Francisco levantou incessantemente a sua voz implorando a paz e convidando à sensatez, convidando a uma negociação honesta para encontrar soluções possíveis, porque a guerra - dizia ele — é apenas morte de pessoas e destruição de casas, destruição de hospitais e de escolas. A guerra deixa sempre — é uma expressão sua — o mundo pior do que estava: é sempre uma derrota dolorosa e trágica para todos.
"Construir pontes e não muros" é uma exortação que ele repetiu muitas vezes, e o serviço da fé como Sucessor do Apóstolo Pedro esteve sempre unido ao serviço do homem em todas as suas dimensões.
Em união espirtual com toda a comunidade cristã, nós estamos aqui em grande número a rezar pelo Papa Francisco, para que Deus o acolha na imensidão do seu amor.
O Papa Francisco costumava concluir os seus discursos e encontros pessoais dizendo: "Não vos esqueçais de rezar por mim".
Agora, querido Papa Francisco, pedimos-vos que rezeis por nós e pedimos que, do céu, abençoeis a Igreja, abençoeis Roma, abençoeis o mundo inteiro, como fizestes no domingo passado, do balcão central desta Basílica, num último abraço a todo o povo de Deus, mas também, idealmente, à inteira humanidade, com a humanidade que procura a verdade de coração sincero e segura bem alto a chama da esperança.
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O bom humor de Francisco
Enxergar o ridículo permite distinguir o grave, o não ridículo, como o de Milei, Trump e Bolsonaro
Ruy Castro, fsp, 23/04/2025
"O senso de humor é um certificado de sanidade", disse há tempos o papa Francisco. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/04/funeral-do-papa-francisco-sera-no-sabado-com-200-chefes-de-estado-entenda.shtml "Há mais de 40 anos rezo para pedir senso de humor. [Peço a] São Thomas More [1478-1535, humanista do Renascimento, autor da "Utopia", decapitado por Henrique 8º por sua fidelidade à Igreja Católica e canonizado como mártir], um grande homem. Coloquei essa oração na nota 101 de ‘Gaudete et Exsultate’ [‘Alegrai-vos e Exultai’, de 2018, exortação apostólica de Francisco pela santidade no mundo atual], caso alguém queira vê-la. Nela, pedimos ao Senhor a capacidade de sorrir, de rir. De ver o lado ridículo das coisas e [também] o não ridículo, para aprender que a vida sempre tem algo para se sorrir."
"A oração", continuou Francisco, "começa muito bonita: ‘Dá-me, Senhor, uma boa digestão e algo para digerir’ [risos]. Já começa com senso de humor, e gosto disso. O senso de humor humaniza. Humaniza muito. Pessoas que não têm senso de humor são chatas, chatas até consigo mesmas [risos]. Aconteceu comigo, no meu trabalho sacerdotal, de certa vez aconselhar a alguém: ‘Olhe-se no espelho e ria de si mesmo’. Mas foi muito difícil para ele, porque lhe faltava essa capacidade de humor. Veja bem, o que estou dizendo não é muito dogmático. É um pouco de sabedoria de vida que me ensinaram, e tento ajudar os outros com isso".
Foi uma entrevista de Francisco à repórter Bernarda Llorente, da agência argentina de notícias Télam. A Télam foi fechada em 2024 por Javier Milei, mas o vídeo está disponível no app da TV Brasil.
Rosto, gestos e palavras de Francisco transpiravam humor. Com todo respeito, sempre o achei fisicamente parecido com Stan Laurel, o Magro da dupla O Gordo e o Magro, um dos cômicos mais humanos do cinema — sujeito às maldades do Gordo, Oliver Hardy, mas sempre vencedor no fim, por sua resistência pacífica.
Assim como Milei, também Trump e Bolsonaro nunca acharam graça em Francisco. Ele os irritava, porque enxergava neles o não ridículo —o insano, o desumano, o não cristão.
F"O senso de humor é um certificado de sanidade", disse há tempos o papa Francisco. "Há mais de 40 anos rezo para pedir senso de humor. [Peço a] São Thomas More [1478-1535, humanista do Renascimento, autor da "Utopia", decapitado por Henrique 8º por sua fidelidade à Igreja Católica e canonizado como mártir], um grande homem. Coloquei essa oração na nota 101 de ‘Gaudete et Exsultate’ [‘Alegrai-vos e Exultai’, de 2018, exortação apostólica de Francisco pela santidade no mundo atual], caso alguém queira vê-la. Nela, pedimos ao Senhor a capacidade de sorrir, de rir. De ver o lado ridículo das coisas e [também] o não ridículo, para aprender que a vida sempre tem algo para se sorrir."
"A oração", continuou Francisco, "começa muito bonita: ‘Dá-me, Senhor, uma boa digestão e algo para digerir’ [risos]. Já começa com senso de humor, e gosto disso. O senso de humor humaniza. Humaniza muito. Pessoas que não têm senso de humor são chatas, chatas até consigo mesmas [risos]. Aconteceu comigo, no meu trabalho sacerdotal, de certa vez aconselhar a alguém: ‘Olhe-se no espelho e ria de si mesmo’. Mas foi muito difícil para ele, porque lhe faltava essa capacidade de humor. Veja bem, o que estou dizendo não é muito dogmático. É um pouco de sabedoria de vida que me ensinaram, e tento ajudar os outros com isso".
Foi uma entrevista de Francisco à repórter Bernarda Llorente, da agência argentina de notícias Télam. A Télam foi fechada em 2024 por Javier Milei, mas o vídeo está disponível no app da TV Brasil.
Rosto, gestos e palavras de Francisco transpiravam humor. Com todo respeito, sempre o achei fisicamente parecido com Stan Laurel, o Magro da dupla O Gordo e o Magro, um dos cômicos mais humanos do cinema — sujeito às maldades do Gordo, Oliver Hardy, mas sempre vencedor no fim, por sua resistência pacífica.
Assim como Milei, também Trump e Bolsonaro nunca acharam graça em Francisco. Ele os irritava, porque enxergava neles o não ridículo — o insano, o desumano, o não cristão.
O papa Francisco na Basílica de São Pedro, em 2015 - Tiziana Fabi - 5.out.15/AFP
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Papa Chico
Francisco deixa Igreja mais universal, e ultraconservadores farão ofensiva
Jamil Chade, UOL, 21/04/2025 em Nova York
18.set.2013 - Papa Francisco acena para multidão ao chegar à praça de São Pedro Imagem: TIZIANA FABI/AFP
O Papa Francisco promoveu o que muitos vaticanistas e membros da Santa Sé consideram como uma das maiores revoluções na Igreja em décadas.
Seu esforço foi por universalizar a instituição, nomeando bispos e cardeais de regiões distantes de Roma, dando poderes para religiosos de fora da Europa, nomeando santos de países pobres e percorrendo o que ele mesmo chamou de "margens" do mundo.
"Francisco construiu a Igreja do Terceiro Milênio", constatou Massimo Faggiioli, professor de teologia da Universidade Villanova, na Filadélfia.
Ele promoveu a aproximação com outras religiões, especialmente intensificando o diálogo da Igreja com o Islã e reatando com os protestantes cristãos.
Francisco ainda abriu a Igreja para que os católicos divorciados e recasados pudessem receber a comunhão e, numa frase considerada histórica dentro da Igreja, afirmou que "não poderia julgar" os homossexuais.
Na estrutura da Santa Sé, declarou guerra ao clericalismo e lutou para desmontar os privilégios de uma casta de religiosos.
Ainda que uma reforma tenha sido realizada, o ponto cego de seu pontificado foi a presença de mulheres, tanto na Igreja como na estrutura de poder do Vaticano. Temas como o aborto ficaram intocados. Enquanto isso, a possibilidade de que padres possam casar ou religiosos casados possam administrar cerimônias chegaram a ser propostos. Mas acabaram barrados.
Outros pontos de suas reformas, ainda assim, foram adiante. O Banco do Vaticano, infestado por suspeitas de lavagem de dinheiro, foi alvo de uma profunda transformação. Francisco ainda enfureceu líderes mundiais com suas posturas, sempre ao lado dos mais vulneráveis.
Sua primeira viagem foi para a ilha de Lampedusa, porta de entrada para a Europa para imigrantes. Lá, ele denunciou a "globalização da indiferença". Durante uma visita ao México, Francisco rezou na fronteira com os EUA. Ao ser questionado sobre o risco de um primeiro mandato de Donald Trump, ele respondeu: "Uma pessoa que só constrói muros e não pontes não é cristã".
Em 2025, ele enviou uma carta aos bispos americanos, uma vez mais criticando a postura de Trump sobre os imigrantes.
O meio ambiente também foi outro tema central de sua agenda. Mais uma vez, deixou líderes ultraconservadores incomodados.
Na Bolívia, em 2015, Francisco alertou sobre o "esterco do demônio, a busca desenfreada pelo dinheiro".
"Uma vez que o capital se torna um ídolo e guia as decisões das pessoas. uma vez que a ganância pelo dinheiro preside todo o sistema socioeconômico, ele arruína a sociedade, coloca as pessoas umas contra as outras e até mesmo coloca em risco nossa casa comum, nossa irmã mãe Terra. Papa Francisco
Em 2019, no Sínodo da Amazônia, Francisco apontou como a Igreja precisaria reatar as relações com a população da região, e não com os poderes que governam. O encontro causou um profundo mal-estar no governo de Jair Bolsonaro, que chegou a enviar homens da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para monitorar o evento.
Blindar legado?
O que Francisco fez, porém, foi criar uma congregação de cardeais de pessoas com uma linha de pensamento mais próxima às ideias de reforma que ele tentou implementar.
No final de 2024, pela décima vez, Francisco nomeou uma nova safra de cardeais, o que significa que ele escolheu cerca de 80% dos cardeais que elegerão o próximo papa.
Dos 141 cardeais com menos de 80 anos de idade, 111 foram nomeados por Francisco, 24 pelo Papa Bento XVI e seis pelo Papa João Paulo 2º. Ou seja, a Igreja que vai ao conclave para escolher o novo pontífice é um esforço de Francisco de que suas reformas continuem.
Quando assumiu a Igreja, em 13 de março de 2013, Jorge Bergoglio afirmou que a Santa Sé havia escolhido um papa "do fim do mundo". Era o primeiro não-europeu em mais de mil anos.
E, desde aquele dia, sua ofensiva foi por transferir o poder para fora do Velho Continente. Se a Igreja estava viva nos países em desenvolvimento, era de lá que seus novos cardeais deveriam surgir.
Ofensiva da extrema direita
Nada disso, porém, significa que o conclave não esteja sob a ameaça de uma nova onda ultraconservadora.
Para Faggioli, a pressão de fora já começou há anos. Grupos passaram a pedir a saída do papa, por supostamente violar alguns cânones da Igreja. A relação com movimentos políticos também ampliou a força dessas vozes, questionando a postura progressista do papa em temas sociais e seu constante ataque ao capitalismo.
A principal linha de acusação alega que Francisco se concentrou e questões pastorais e teria abandonado a doutrina. O cardeal australiano George Pell chegou a acusá-lo de ser "uma catástrofe". O cardeal alemão Gerhard Müller atacou abertamente a agenda progressista de Francisco.
"Essa ocupação da Igreja Católica é uma aquisição hostil da Igreja de Jesus Cristo", disse Mueller. "E eles pensam que a doutrina é apenas como um programa de um partido político, que pode mudar de acordo com seus eleitores", disse.
Francisco não ficou indiferente, alertando que essas vozes não eram de religiosos. "Elas são de um partido político, não da Igreja", alertou.
Nas últimas semanas, sites anônimos surgiram, principalmente nos EUA, com potenciais nomes de cardeais que poderiam ser considerados para substituir Francisco.
Faggioli destaca que dúvidas ainda existem sobre o fato de que muitos desses cardeais sequer se conhecem, criando um clima de incerteza para o que pode ser o conclave.
Para membros da Santa Sé, isso pode se refletir no clima que irá dominar quando o conclave se reunir. Um religioso brasileiro que pediu para não ser identificado admitiu, em Roma, que nunca foi tão importante o isolamento dos cardeais para a escolha do novo papa como numa era de fake news e campanhas de desinformação.
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Regulação da big techs
Projeto para regular big techs está pronto, de olho em golpes e crianças
Letícia Casado, UOL, 21/04/2025
O projeto do governo federal para regulamentar as big techs já está pronto e vai propor um aumento na responsabilidade das plataformas sobre os conteúdos que veiculam, diz João Brant, secretário de Políticas Digitais.
Na semana passada, uma menina de oito anos sofreu parada cardiorrespiratória e morreu em Ceilândia (DF) após inalar aerossol de desodorante para participar de um "desafio" nas redes sociais. Brant diz que esse tipo de tragédia poderia ter sido evitado pelas plataformas com o uso de sistemas de inteligência artificial para detectar a "competição".
"Não necessariamente você vai dizer que já está previsto na lei que não pode ter 'desafio'. É um conteúdo claramente danoso que está puxando crianças para fazerem um desafio com risco de vida.
Deve ter uma infração penal para isso. Mas as plataformas precisam atuar preventivamente e não atuam."
"As plataformas digitais só passam a ser responsáveis quando tem uma ordem judicial. O que isso gera? O incentivo a deixar conteúdo online. Se, por um lado, protege a liberdade de expressão, por outro, esse modelo gera um incentivo para as plataformas não fazerem nada até que recebam uma ordem judicial", afirma.
Resistência no Congresso
Deputados e senadores, em especial os bolsonaristas, resistem à ideia de regulamentar o ambiente digital. O argumento é que impor regras iria restringir a liberdade de expressão. Cabe ao presidente Lula (PT) abrir negociação com os partidos e decidir quando o projeto será enviado ao Congresso.
Mas o projeto não cria novos tipos penais, diz Brant. O objetivo, afirma, é fazer com que as plataformas sejam obrigadas a atuar na precaução e na prevenção no ambiente digital "refletindo valores que estão no Código de Defesa do Consumidor", e não apenas após ordem judicial para remover conteúdo.
"Você precisa de medidas ativas o tempo inteiro para evitar conteúdo ilegal ou danoso -- que é aquele que não é ilegal, mas que gera danos." João Brant, secretário de Políticas Digitais
Proteção de crianças e combate a golpes
O secretário diz que existe uma defasagem entre as regras impostas para o ambiente digital e o offline, a vida real das pessoas. "O projeto pauta o tema de crianças e adolescentes no ambiente digital. Pauta a questão do combate a golpes e fraudes. Tem um caráter de proteção e de garantia de segurança digital para os cidadãos brasileiros", afirma Brant.
"Como pais e mães, a gente precisa ter certeza de que nossos filhos estão em um ambiente seguro. A frequência de violação de direitos de crianças e adolescentes e a frequência de golpes estão entre as questões que mais afetam e preocupam o governo neste momento."
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Beba Brahma, aposte com a Betnacional e corra para a Amil
Mais uma vítima das apostas. Bruno Henrique é indiciado por manipulação e também paga o preço da ignorância
Juca Kfouri, fsp, 16/04/25
Não há como passar a mão na cabeça de atleta, aos 34 anos, de longa carreira, perto do fim, não apenas pela idade, mas pelo que as provas contra ele devem conduzir.
Difícil acreditar em ingenuidade, fácil perceber a ignorância, o despreparo para avaliar a gravidade do ato cometido, apesar de tão inteligente em campo.
Haverá quem o defenda, e advogado habilidoso poderá fazer de VTNC outro "Vim Trabalhar no Cruzeiro", como fez o de Dudu ao perder as estribeiras com Leila Pereira, presidenta do Palmeiras.Haverá também quem atribua a acusação ao fato de Bruno Henrique ser negro, esquecido de que Lucas Paquetá é branco e está sob a mesma fuzilaria.
Temos ainda Luiz Henrique, que de melhor jogador no Campeonato Brasileiro passado virou, estranhamente, exilado na gelada Rússia, fora das competições internacionais por hipocrisia da Fifa, que não pune nem Israel, nem os Estados Unidos, a nação mais intervencionista do planeta.
Casos tristes, deprimentes e nada surpreendentes.
Inevitável acontecer neste Brasileirão Betano, disputado pelo Atlético Mineiro H2 Bet, Bahia Viva Sorte Bet, Botafogo Vbet, Ceará Esportes da Sorte, Corinthians Esportes da Sorte, Cruzeiro Betfair, Flamengo PixBet, Fluminense Superbet, Fortaleza Cassino, Grêmio Alfa.bet, Internacional Alfa, Juventude Stake.com, Palmeiras Sportingbet, Santos Blaze, São Paulo Superbet, Sport Betnacional, Vasco Betfair e Vitória 7kBet.
Só Bragantino e Mirassol escapam de casas de apostas como patrocinadores master, embora contem com o apoio secundário da Betfast e 7kBet, respectivamente.
Inevitável acontecer sob campanhas intensas estreladas por comunicadores que, em sua maioria, como Bruno Henrique, Luiz Henrique e Lucas Paquetá, não precisam de nenhum tostão a mais para viver dignamente, mas cujas ganâncias pisoteiam a ética, os bons costumes e a saúde pública.
Tudo bem. Há até os que também fazem, de um lado, propaganda de bebidas alcoólicas, que criam dependência como a jogatina, e, do outro lado, de empresas de saúde privada.
"Beba Brahma, aposte com a Betnacional e corra para a Amil", combo melhor não há, pode apostar.
Era tão óbvio, desde sempre, que o esporte seria contaminado pelo tsunami da jogatina — algo até cansativo de repetir e digno de pedir desculpas à rara leitora e ao raro leitor.
Aparecerão também os cínicos com seus discursos "eu apenas anuncio, peço moderação e não sou responsável se alguém faz mau uso do anunciado".
Outros casos aparecerão, muitos outros.
O esporte perde por KO, nocaute em inglês.
Ou seria por KTO?
Do You "Know The Odds"?
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Cachê da desgraça alheia
Anais da jogatina. O bonde do tigrinho
Como os influenciadores ganharam fortunas e ajudaram as bets a produzir a pandemia do vício
João Batista Jr. e Alessandra Medina, piaui | Edição 220, Janeiro 2025
Casada com um bombeiro e mãe de um menino, Tathiara Barbosa Fonseca ganhava em média 15 mil reais mensais como corretora imobiliária em Gravataí, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em maio de 2022, ela vivia uma fase de estabilidade financeira, depois de receber sua parte na venda de um imóvel de família. Nas horas de descanso, sacava o celular e se entretinha com influenciadores nas redes sociais.
Um dia, deslizando pelos stories do Instagram, Fonseca viu a gaúcha Tali Ramos (hoje com 1,5 milhão de seguidores na plataforma) recomendar os cursos de outra influenciadora, Luana Fernandes, de São Paulo. As aulas davam dicas sobre como faturar alto no Aviator, um jogo no qual o usuário tenta adivinhar a hora certa de parar um avião durante a decolagem. Casualmente, o Aviator estava disponível no site de uma casa de apostas online, a Betano, cuja sede fica na Grécia. Na verdade, o Aviator não era feito para jogar – era feito para apostar. A influenciadora dizia recorrer a uma “técnica avançada” que multiplicava cada real em 50 reais. Seu mote era: “1 virando 50”.
Fonseca se matriculou no curso. Desembolsou cerca de 300 reais para ter acesso vitalício aos conteúdos. “Ela explicava sobre probabilidades e janelas de tempo para ganhar no jogo”, lembra. Com as lições do curso e o incentivo das influenciadoras, a corretora baixou o aplicativo da Betano para arriscar a sorte. De início, apostou entre 25 e 50 reais. Às vezes ganhava, às vezes perdia, mas gostou do que lhe parecia uma diversão inocente.
Com o tempo, Fonseca foi aumentando o valor das apostas. Um dia, faturou 72,5 mil reais de uma só vez. Ficou tão empolgada que apostou toda a quantia obtida para multiplicá-la. Perdeu tudo. A essa altura, estava começando a se descontrolar. Quanto mais apostava, mais perdia e mais arriscava de novo, na esperança de cobrir os sucessivos rombos. Entrou na roda-viva típica dos apostadores compulsivos. Em um único dia, torrou 134 mil reais, no Aviator e outros jogos, sempre em busca de uma aposta redentora. “O algoritmo primeiro te fascina, depois te aprisiona e depois te tira tudo”, diz ela.
Fonseca era quem controlava as despesas da casa e tinha acesso inclusive ao salário do marido. Para que ninguém soubesse de seu vício, ela apostava de madrugada, em silêncio, enquanto a família dormia. Depois de raspar toda a conta, a corretora começou a fazer empréstimos. Primeiro com bancos, depois com agiotas. Em 15 de maio de 2023, um ano depois de sua primeira aposta, fez dois Pix para a Betano, nos valores de 13 mil e 12 mil reais. “Eu já não sabia mais o que era número ou dinheiro”, diz. O marido só descobriu o segredo – e a bancarrota da família – no fim de 2023, quando um agiota bateu à porta de sua casa, cobrando os 60 mil reais que havia emprestado a Fonseca. Para saldar a dívida, o casal vendeu a moto e o carro.
Pouco tempo depois, Fonseca enfrentou uma situação-limite. Seu filho de 5 anos teve uma crise de asma e precisou de remédios, mas ela não tinha um tostão na carteira para comprar o medicamento. Ficou desolada, mas, nem assim, conseguiu abandonar seu vício no jogo. “Eu sonhava com o barulho e as cores do joguinho”, conta. “Eu nunca tinha tido um vício na vida. Não reconheci o que estava acontecendo comigo.”
No mês seguinte, ela continuou cedendo à tentação, embora com apostas moderadas – entre 10 e 30 reais. Em 29 de dezembro, fez seus últimos dois Pix para a Betano, nos valores de 100 e de 300 reais. Havia sido um final de ano difícil, no qual se sentiu isolada da própria família e passou a entender, por meio de leituras na internet, a gravidade do vício. Finalmente, conseguiu colocar um ponto final na jogatina e passou a se tratar com psiquiatra e psicólogo.
Ao longo de três anos, Fonseca perdeu 1 883 981,08 reais, sem contar juros e encargos de empréstimos. É mais do que recebeu na venda daquele imóvel de família. Os valores estão documentados no processo que ela move contra a Betano e outras 44 empresas de meios de pagamento que intermediaram suas apostas. Ela diz que, das vezes em que suas apostas deram certo, apenas uma empresa depositou o dinheiro em sua conta. No processo, Fonseca alega que o divertimento era na verdade uma emboscada – e tenta receber o dinheiro de volta.
A piauí procurou a Betano para saber a lista dos artistas e influenciadores que contratou e como o valor dos cachês era definido. A Betano não quis divulgar valores e disse que tem duas modalidades de “parceria” com influenciadores. Uns postam nas redes sociais da própria Betano em troca de uma remuneração fixa e outros divulgam a marca em suas redes sociais. A piauí também perguntou sobre as empresas de meio de pagamento contratadas pela Betano, que, na maioria, não pagaram o valor das apostas. A empresa respondeu que trabalha “somente com operadores financeiros e processadores de Pix licenciados e autorizados pelo Banco Central”.
A influenciadora Luana Fernandes disse que jamais indicou a Betano em seu curso, ou qualquer outra casa de aposta. Alega que ela descobriu uma tática infalível e, como não se pode apostar sem o uso de alguma plataforma, ela apenas “mencionava” aos alunos os nomes das plataformas em que costumava jogar. Era “como opção para jogar, não como indicação”, disse. Tali Ramos, por sua vez, afirmou que daria entrevista e pediu para receber as perguntas por escrito no WhatsApp. Depois que as perguntas foram enviadas, nunca mais voltou a fazer contato.
O desfalque sofrido pela corretora Tathiara Fonseca é uma gota no oceano de dinheiro torrado pelos brasileiros na jogatina online. O volume total é astronômico. De acordo com o Banco Central, apenas nos primeiros oito meses do ano passado 24 milhões de brasileiros gastaram, em média, 20,8 bilhões de reais por mês nas bets. Pior ainda: esse número contabiliza só pagamentos via Pix, já que outros meios de pagamento – como cartões de débito e crédito – estão fora do radar. Os jogos online afetam inclusive o Bolsa Família: dos 14,1 bilhões de reais distribuídos mensalmente pelo governo, 3 bilhões foram repassados para as bets. De novo, apenas em pagamentos via Pix.
Os números indicam que os brasileiros se tornaram usuários pesadíssimos das plataformas de apostas. Em 2022, ano da estatística mais recente disponível, o Brasil foi o campeão mundial: 113,9 milhões de apostas, segundo a Similarweb, que analisa dados de sites. Na sequência, vêm os Estados Unidos, com 77,9 milhões de apostas. Apesar de 16% da população brasileira não ter acesso à internet, o país registra o segundo maior tempo médio de navegação diária do mundo: 9 horas e 13 minutos, atrás apenas da África do Sul, de acordo com a agência We Are Social e da empresa de monitoramento online Meltwater.
Há dois tipos de plataformas de jogatina, chamadas de bets (“apostas”, em inglês). Um é o dos jogos, como o Aviator (conhecido como “aviãozinho”), o Balloon (“balãozinho”) ou o Fortune Tiger (“o tigrinho”), o mais famoso deles. Todos são adaptações digitais de videogames ou de caça-níqueis de cassinos. Simulam que tudo depende da habilidade do jogador, quando, na verdade, depende da sorte do apostador. A outra modalidade da jogatina online é a de palpites esportivos, em geral sobre futebol. As apostas versam sobre múltiplos aspectos – o placar do jogo, se alguém receberá um cartão amarelo ou vermelho, se algum jogador fará gol contra.
O volume de apostas chegou a tal ponto que a economia está sentindo o baque. O empresário Belmiro Gomes, presidente da rede de atacarejo Assaí, chegou a atribuir às bets os resultados insatisfatórios de suas 294 unidades. Disse que os clientes de baixa renda estão comprando menos comida porque destinam parte de seus ganhos aos aplicativos de apostas. A Associação Brasileira de Bares e Restaurantes, pressionada pela queda do faturamento do setor, pediu para participar de uma ação judicial contra a lei que autoriza as apostas online, sob o argumento de que viola “o princípio constitucional fundamental da dignidade humana e os princípios gerais da ordem econômica”. A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, autora original da ação judicial, divulgou que, por causa das apostas, 1,3 milhão de pessoas entraram em inadimplência no primeiro semestre de 2024.
Para provocar tamanho estrago, as bets movimentam uma máquina de propaganda de alta potência. A cartada mais audaciosa até agora foi a da própria Betano, que comprou o direito de colocar seu nome na série A do Campeonato Brasileiro de futebol masculino, que passou a se chamar Brasileirão Betano. Estima-se que ela tenha pagado à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) entre 70 e 80 milhões de reais. Dos dez maiores patrocinadores de times brasileiros, oito são bets. O Flamengo é o que mais arrecada: foram 105 milhões de reais pagos pela Pixbet em 2024. O Corinthians chegou a ter um contrato de 120 milhões de reais com a VaideBet, rescindido depois de suspeitas de uso de laranjas no pagamento.
As bets também invadiram as telas da tevê. Desde 2020, a Rede Globo abocanha um bom dinheiro nesse universo. A Betano chegou a adquirir, em 2022, uma cota publicitária do Jornal Nacional, um dos horários mais caros da emissora. No ano passado, o programa Big Brother Brasil mordeu 80 milhões de reais do site Esportes da Sorte. Um levantamento do site Notícias da TV estima que a emissora fechou o ano com faturamento em torno de 600 milhões de reais com publicidade de bets.
A Globo não confirma os valores, mas diz que o segmento das bets não está entre os cinco mais relevantes em seu faturamento. Também não comenta sobre a adequação de veicular anúncio de uma jogatina – que se vende como uma diversão, esconde que a aposta é um risco, provoca dependência e infelicita a família de milhões de brasileiros. (A Caixa Econômica, pelo menos, informa sempre as chances – ínfimas – de alguém ganhar os prêmios dos seus jogos, não concede bônus nem usa algoritmos para capturar usuários.)
O que mais chama a atenção, no entanto, é a publicidade das bets estreladas por influenciadores digitais e celebridades. Ao contrário da Globo, da CBF ou do Flamengo, os influenciadores não são pagos para apenas abrir um espaço comercial no qual as bets vendem sua imagem e seu produto. Eles são pagos para recomendarem o uso do produto e se engajam pessoalmente na mensagem, como se as apostas fizessem parte de sua rotina pessoal e dos seus ganhos. Os cachês são milionários, com valores até então inéditos no mercado publicitário. Há casos em que a remuneração é um percentual sobre a perda dos apostadores. Ou seja: quanto mais o usuário perde, mais o influenciador ganha. No mercado, a modalidade é chamada de “cachê da desgraça alheia”.
A influenciadora Gessica Kayane, conhecida como Gkay, conquistou fãs com conteúdos de humor popularesco e interações com outros influenciadores. Hoje, ela tem mais de 20 milhões de seguidores no Instagram, um número superior ao da cantora Madonna. Rica e famosa, com contratos com a Coca-Cola e o iFood, Gkay também quis se transformar numa celebridade chique e referência na moda. Passou a comprar roupas de marcas de luxo, com vestidos que chegam a custar 100 mil euros. Também começou a frequentar as semanas de moda europeias, acompanhada com uma equipe – assistente, maquiador e fotógrafo – que produz conteúdos para suas redes. Entre um desfile e outro, ela posta publis (como são chamadas as mensagens patrocinadas) que ajudam a custear o Prada de cada dia. Entre um luxo e outro, ronronam alguns tigrinhos.
Em junho passado, um vídeo mostrou Gkay no terraço de um hotel em Paris com vista para a Torre Eiffel, usando um vestido da estilista holandesa Iris van Herpen. Ela simulava posar para um ensaio fotográfico até que – pausa – suspendeu toda a cena para apostar no aplicativo Esportes da Sorte, recheado de jogos online. Gkay havia feito um contrato de ao menos dois anos com a plataforma de apostas, cuja sede fica no paraíso fiscal de Curaçau, no Caribe. Seu cachê mensal: 1,4 milhão de reais.
Quando a propaganda foi divulgada, Gkay começou a receber uma avalanche de críticas. Seus detratores diziam que, ao recorrer a um cassino online para ganhar milhões, ela havia se tornado uma Robin Hood às avessas, tirando dinheiro dos pobres para dar aos milionários empresários das bets. A má repercussão levou Gkay a romper o contrato. “Ela só queimou o próprio filme com isso”, diz uma agente de influenciadores e artistas que já fechou negócios com Gkay.
Gkay não perdeu apenas a Esportes da Sorte. As grifes de luxo do grupo lvmh – dono da Louis Vuitton e da Dior, entre outras várias marcas – não se interessam em contratar artistas e famosos que fazem propaganda de bets. Os grandes bancos também não. “A Gkay, que tem um público simples, mas quer se comunicar com o alto luxo, agora acabou, ficou num limbo”, diz a agente de influenciadores. Gkay segue, porém, faturando alto com outros contratos: cobra em média 150 mil reais para aparecer em algum evento, e 80 mil por post publicitário. Nem Gkay, nem a Esportes da Sorte quiseram dar entrevista.
(Pouco depois do caso Gkay, a Esportes da Sorte enfrentou um escândalo. O dono da empresa e outras dezoito pessoas – entre elas, a influenciadora e advogada Deolane Bezerra – foram presos sob suspeita de usar a plataforma para lavar dinheiro do crime. O cantor sertanejo Gusttavo Lima também teve a prisão decretada por suspeita de ocultar em suas empresas 49,4 milhões de reais recebidos da Esportes da Sorte e da VaideBet, da qual, segundo as investigações, ele é sócio. O cantor, que estava no exterior, só voltou ao Brasil depois que o pedido de prisão foi revogado.)
Outra influenciadora que faturou alto com as bets foi Maya Massafera. Estima-se que seu contrato com a Blaze seja de 7,8 milhões de reais anuais, mas nem ela, nem a bet confirmam o valor. Seu grande momento de garota-propaganda deu-se no Instagram, depois da cirurgia nas cordas vocais, realizada como parte do seu processo de transição de gênero. Seus 5,5 milhões de seguidores estavam ansiosos para ouvir sua voz pela primeira vez. Até então, Massafera vinha se comunicando com seus fãs por meio de gestos e beijinhos. No aguardado dia de revelar seu novo timbre, ela aproveitou para promover a Blaze, cuja sede também fica em Curaçao, no Caribe.
Massafera é rica de berço. Costuma usar roupas e bolsas de grifes caras, como Chanel e Hermès, viaja de jatinho e frequenta festas em Los Angeles, Cannes e Paris. Mesmo assim, ela tenta convencer os seguidores de que é fissurada nas apostas. Uma série de stories publicados em meados de outubro mostrava a influenciadora sentada no banco traseiro de um carro, anunciando créditos para os seguidores fazerem seus primeiros jogos no cassino online: “Vou te dar até mil reais agora. Clica aqui nesse link, tem que ter mais de 18 anos e tem que ser a primeira vez”, avisou. E prosseguiu com um discurso “responsável”: “Gente, eu ganho dinheiro, mas meu foco principal é diversão. Lembre disso. Por mais que possa ganhar dinheiro, o foco principal tem de ser diversão.” Ela então disse ter apostado 500 reais e mostrou a tela do celular, comprovando que acabara de ganhar um prêmio de 3 mil reais. “Eu amooo!!!”, disse.
Desde o contrato com a Blaze, Massafera não faz mais nenhuma propaganda para anunciantes de outras áreas. À piauí, ela disse que não pode falar sobre o assunto em razão da cláusula de confidencialidade do seu contrato. O crédito de mil reais era real, concedido para atrair apostadores, que logo perdem todo o crédito e, se a isca tiver o efeito desejado, começam a perder algum dinheiro próprio. A Blaze não respondeu ao pedido de entrevista.
Até o influenciador Felipe Neto, uma potência digital que se engaja em causas progressistas, se rendeu às bets. Ele foi contratado pela mesma Blaze. “Já na primeira vez fui procurado com uma proposta agressiva”, disse ele à piauí. Neto contou ter recusado o convite inicial, e também o segundo e o terceiro. Até que, no quarto chamado, decidiu topar. O valor do seu cachê já havia subido para a casa de dezenas de milhões de reais por ano. Ele impôs uma condição: a propaganda não podia dizer que a plataforma era uma oportunidade para que os jogadores obtivessem uma “renda extra”. Fechou um contrato com duração de três anos, que poderia ser renovado por mais cinco.
O que levou o influenciador a ceder? “No intervalo entre o primeiro e quarto convite, vi inúmeros influenciadores se tornarem embaixadores de casas de apostas. Aquilo me levou a pensar que não teria nada de mais em aceitar”, justifica. Era o caso, por exemplo, de Júlio Cocielo (24 milhões de seguidores no Instagram), também contratado da Blaze. “Não tinha praticamente quem não fizesse. Aí, seguindo uma ideia estúpida, eu me convenci de que poderia aceitar aquilo sem ser antiético.”
Mas, enquanto promovia a jogatina online, o influenciador passou a ler notícias e reportagens que falavam do vício em bets e do endividamento crescente da população. Ele conta que começou a sentir um peso na consciência. E, embora tivesse dito que não falaria das apostas como fonte de renda, cometeu um deslize. Postou em sua conta no Instagram, onde soma 17,3 milhões de seguidores, uma legenda – que veio pronta do marketing da Blaze – que apresentava o cassino online justamente como uma chance de faturar uma “renda extra”. O anúncio ficou 10 minutos na rede até ser apagado. Depois de dez meses, Felipe Neto cancelou o contrato e resolveu se tornar uma voz crítica aos influenciadores que fazem esse tipo de publicidade. “As casas de apostas criam uma ansiedade no influenciador, que recebendo cachês tão altos e mudando de patamar financeiro, sentem que precisam agradar o anunciante”, diz.
A influenciadora Virginia Fonseca assinou um contrato com a Esportes da Sorte nos termos do “cachê da desgraça alheia”. Ganha 30% do que os usuários perdem. Funciona assim: se o apostador ingressa na plataforma por meio de um link divulgado por ela e perde 100 reais numa aposta, 30 reais vão para a influenciadora. Em dezembro de 2022, ao assinar o contrato, Virginia recebeu um adiantamento de 50 milhões de reais, segundo um profissional envolvido no negócio. Indagada sobre a razão de ter aderido à modalidade do “cachê da desgraça alheia”, Virginia não respondeu.
Ela é dona do nono perfil mais popular do país no Instagram, com cerca de 52 milhões de seguidores. Também é conhecida por ser nora do cantor Leonardo e, agora, apresentadora de um programa no sbt. Virginia fez o primeiro anúncio da Esportes da Sorte em janeiro de 2023. Gravou um story fazendo uma aposta e atraiu 120 mil novos apostadores. Tempos depois, ela trocou de bet: passou a trabalhar para a Blaze. Contrato de 29 milhões por ano.
A mesma Blaze paga um cachê de 40 milhões de reais por ano para Carlinhos Maia, influenciador com 34 milhões de seguidores no Instagram. Ao ser criticado por propagandear a jogatina online que arruína a vida financeira de parte dos usuários, Maia defendeu-se: “Se eu disser ‘Pule do penhasco’, você vai pular? Não.” É um pequeno sofisma, porque o propósito de casas de apostas é que seu público jamais pule do penhasco – e seja iludido de que consegue escalá-lo até o cume do sucesso.
A Blaze está sendo investigada pela Polícia Civil do Estado de São Paulo por suspeita de estelionato, depois que apostadores denunciaram que os prêmios mais altos nunca eram pagos. O garoto-propaganda mais famoso da plataforma é o jogador Neymar, o brasileiro número 1 no Instagram, com 227 milhões de seguidores no Brasil e no mundo. Além do contrato de Neymar, estimado em 100 milhões de reais, seu pai ganhou 4,5 milhões para intermediar o acordo da bet com o Santos Futebol Clube.
Nas redes, há até quem venda o próprio nome para as bets. O ex-promotor de eventos David Brazil, amigo de artistas e jogadores de futebol, mudou o endereço de seu perfil no Instagram, com 9,1 milhões de seguidores, para @davidpixbet. Em troca, a Pixbet pagou a reforma do seu apartamento, orçada em cerca de 500 mil reais. Hoje, seu contrato com a marca é de 200 mil reais mensais.
Até pouco tempo atrás, uma fronteira intransponível para as bets era a de artistas de primeira linha e famosos da tevê. Há quem continue resistindo à tentação dos milhões. A cantora Ivete Sangalo e a atriz Taís Araújo estão entre os nomes que dizem “não” às abordagens das bets logo de cara, sem sequer discutir o cachê. “A construção da marca pessoal demora muito. O artista representa e endossa a marca que patrocina”, diz uma agente de artistas. “Os tigrinhos da vida pagam muito porque compram, na verdade, a credibilidade de alguém, para depois queimar o filme da pessoa de forma irreversível.” O empresário de uma badalada dupla sertaneja feminina conta que foi procurado com um contrato de 12 milhões de reais por seis meses para uma plataforma de jogos. Não topou.
Um dos que não demoraram a ceder foi o locutor Galvão Bueno. Ele entrou no ramo em 2021, como garoto-propaganda da Pixbet, e hoje defende a Betnacional, casa de apostas que também patrocina o jogador Vinícius Júnior, do Real Madrid, e cuja operadora também fica em Curaçao. Os astros não quiseram dar entrevista. A piauí perguntou a Felipe Neto, sócio da Play9, que agencia Galvão Bueno e Vinícius Júnior, por que apoia o contrato dos agenciados, sendo ele próprio um crítico das bets. Neto argumentou que ambos emprestam a imagem para uma empresa que foca em apostas esportivas. (Não é bem assim. A Betnacional também tem seus tigrinhos e afins.)
Entre os atores, quem quebrou o tabu recentemente foi Cauã Reymond, que tem 15 milhões de seguidores no Instagram. Desde maio de 2024, sua imagem está a serviço da BateuBet, graças a um contrato anual de 22 milhões de reais. Em um vídeo, o ator surge, como num passe de mágica, em um estúdio, ao lado de Grafite, ex-jogador de futebol e comentarista de tevê. “Não vai me dizer que eu estou num comercial de apostas, Grafite”, diz Reymond. Uma voz feminina responde: “Cauã, isso aqui na verdade é uma oportunidade.” O roteiro desvia para um papo sobre alimentação saudável, até que volta para a jogatina, e Grafite diz para o ator: “Tá com o celular na mão? Aproveita e faz um palpite no jogo de hoje.” Reymond diz: “Não, não. Não faço aposta, não.” Grafite emenda: “Não fazia. BateuBet acredita em apostar com consciência.” Em outro vídeo, Reymond diz que na BateuBet “você aposta para cair na conta e não passar da conta”.
A conversa sobre “responsabilidade” cai muito bem na publicidade, mas nas plataformas de apostas é salve-se quem puder. A BateuBet é uma das poucas empresas brasileiras, nascida no Recife e hoje sediada em Alphaville, na Grande São Paulo. Mas todas – quer fiquem no Brasil, em Curaçao ou na Grécia – funcionam do mesmo jeito: misturam apostas esportivas com cassinos online e diferentes jogos, como Rico Gorila, Gates of Olympus, Fortune Panda e o famoso Fortune Tiger, o tigrinho. E o nível de “responsabilidade” também não muda entre as plataformas. Um dos sócios da BateuBet, aliás, aparece em casos tão mal explicados, que a história merece um capítulo à parte.
O promotor de eventos pernambucano Alexsandro Paulo França de Melo, conhecido como Lekinho, comprou a BateuBet em janeiro de 2024. Três meses depois, o quadro de sócios da BateuBet se ampliou com a adesão de Thales Janguiê Diniz e duas empresas de investimentos, ambas ligadas à família Diniz – a Evimeria e a Epitychia. O pai de Thales, o empresário José Janguiê Diniz, é dono da maior rede privada de universidades do Nordeste e acumulou uma fortuna de 3,3 bilhões de reais, segundo a revista Forbes. Na última eleição municipal, ele ficou conhecido ao bater às portas dos endinheirados da Avenida Faria Lima, centro financeiro do Brasil, para apresentá-los a Pablo Marçal, o ex-coach que concorreu a prefeito de São Paulo.
Em julho passado, pouco antes do anúncio de que o governo passaria a exigir uma outorga no valor de 30 milhões de reais para que as bets pudessem operar no Brasil, os sócios fizeram um aporte robusto no capital social da BateuBet: passou de 100 mil para 51,5 milhões de reais (51% de Thales Diniz e suas empresas, e 49% de França de Melo). A dinheirama do bolso de França de Melo é intrigante.
Antes de fazer o aporte, ele parecia estar em situação de penúria. Enfrentava um pedido de prisão porque não pagava a pensão alimentícia havia três meses (no total, 1 418 reais, que ele quitou) e lidava com uma ordem de despejo por falta de pagamento do condomínio do apartamento no bairro da Madalena, no Recife. Além disso, havia anos não pagava o financiamento de um imóvel pela Caixa Econômica Federal e batalhava para impedir que o bem fosse leiloado. Em e-mail ao banco, mandou uma mensagem dramática: “Perdi minha renda fixa há alguns anos e desde então parei de pagar o financiamento imobiliário. Perdi tudo que eu tinha e acumulei várias dívidas. Nos últimos meses, comecei a trabalhar como vendedor e consegui vir pagando minhas dívidas. Contudo, a dívida do meu apartamento ficou impagável. Hoje, levo uma vida mais humilde e não tenho como morar no mesmo lugar.”
A carta propunha uma solução para a pendenga. França de Melo dizia que havia conseguido um comprador disposto a pagar 380 mil reais pelo apartamento, e que esse dinheiro poderia ficar com o banco, caso a dívida fosse eliminada. Àquela altura, havia 104 prestações em aberto, no valor total de 581 918,76 reais, além de 219 456,52 de saldo devedor. A Caixa não atendeu ao pedido e tomou o imóvel. França de Melo foi então à Justiça para reaver o bem, alegando que é sua moradia e classificando o leilão de “injusto e ilegal”. Acabou pagando a dívida e o leilão foi suspenso.
Só conseguiu quitar os valores com a ajuda providencial de um advogado chamado Victor Oliveira Silva. O advogado saldou o IPTU (11 mil reais) e o condomínio (88,8 mil) do imóvel financiado pela Caixa. Mas fez bem mais do que isso. No mesmo mês em que França de Melo se dizia falido, um imóvel de frente para o mar na Praia de Boa Viagem, uma das áreas mais caras da capital pernambucana, foi passado para seu nome. Com 221 m², o apartamento custou 2 milhões de reais. A piauí descobriu que o dinheiro da compra saiu de uma conta bancária do advogado Oliveira Silva. Procurado para falar sobre sua rápida ascensão – de endividado a protegido de um advogado e, em seguida, investidor multimilionário –, França de Melo indicou que tudo aconteceu em razão do seu trabalho. “A única coisa que cai do céu é chuva”, disse.
A BateuBet declarou à Secretaria da Fazenda de São Paulo que todo o aporte feito por França de Melo se deu por um “contrato de alienação fiduciária de quotas e outras avenças” entre ele e os sócios. Trocando em miúdos, um empréstimo. A Junta Comercial diz que isso não é ilegal, mas França de Melo não conhece o documento. “Não teve empréstimo”, diz ele. “Tudo dinheiro nosso. Coloquei dinheiro meu também.” A piauí perguntou se ele tem sócio oculto. “Não tenho sócio. Não conheço você, não vou responder.” Apesar das dívidas – com financiamento, pensão, IPTU, condomínio –, ele afirma que é abastado e tem “quase trinta apartamentos”.
No dia 29 de maio passado, França de Melo postou em uma rede social uma foto ao lado de Cauã Reymond e Grafite, feita quando os dois gravavam uma publicidade para a BateuBet. A legenda diz: “Escrevendo uma nova História.” Ele conta que o convite a Reymond foi parte de uma estratégia. “Temos a ideia do jogo responsável e consciente, ele se identificou muito com a campanha e com as diretrizes da empresa. Fiz reunião com ele em São Paulo, fechamos uma linda parceria. O ponto X da parceria foi ele ter credibilidade.” França de Melo também explicou a escolha de Grafite: “Ele nunca se envolveu em polêmica, e a gente buscava passar para o nosso público uma coisa de ser uma pessoa negra, de ter representatividade.”
Procurado pela piauí, Cauã Reymond não quis se pronunciar, mas lembrou que Galvão Bueno e Vinícius Júnior fazem publicidade para bets. Grafite também não quis fazer comentário. Por WhatsApp, o advogado Victor Oliveira Silva tampouco se manifestou: “Amigo, não sei do que se trata. Sendo assim, não irei passar qualquer informação que seja.”
A pedra fundamental do mercado das bets foi assentada no final do governo de Michel Temer. Querendo arrecadar dinheiro para investir na segurança pública, o governo teve a ideia de legalizar as apostas esportivas, que deixariam de ser uma contravenção penal. Assim, poderia cobrar impostos sobre as empresas. Naquela altura, as bets já atuavam no país ilegalmente – e, claro, não eram taxadas. Havia centenas de empresas operando na clandestinidade. No fim de 2018, Temer sancionou a lei, criando a “aposta de quota fixa”, modalidade em que o apostador sabe de antemão o valor do prêmio. A lei deveria ser regulamentada em dois anos, prorrogáveis por mais dois.
No governo de Jair Bolsonaro, no entanto, o assunto ficou na gaveta. A equipe econômica, de olho no potencial de arrecadação tributária, queria regular o setor. Na fatídica reunião ministerial de abril de 2020, o então ministro da Fazenda, Paulo Guedes, defendeu a jogatina em cassinos. Em diálogo com a ministra Damares Alves, que se opunha aos jogos virtuais ou presenciais, Guedes disse que só adultos teriam acesso e, portanto, que cada um cuidasse de si: “É só maior de idade […] Aquilo ali não atrapalha ninguém. Deixa cada um se foder. Ô Damares, Damares, Damares… O presidente fala em liberdade. Deixa o cara se foder, pô. Lá não entra nenhum brasileirinho desprotegido.”
Mas a regulamentação não saiu. Ao longo de quatro anos de limbo jurídico, criou-se então um cenário ideal para as bets. Aproveitando que estavam legalizadas, mas não tinham nenhum freio ou controle, elas expandiram seus negócios, introduzindo a operação online de jogos clássicos de cassino, como roleta, caça níquel e blackjack. Como a maioria das plataformas era estrangeira e tinha sede em paraísos fiscais, os recursos saíam do Brasil sem entrave. Por esse duto, escoaram bilhões de reais para o exterior, deixando para trás milhares de brasileiros falidos e viciados.
Em 2023, no governo Lula, finalmente começaram as providências para regular um mercado que, naquela altura, já era um fenômeno social e aparecia em todo o tipo de propaganda – na tevê, no uniforme dos jogadores de futebol, nas redes sociais. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também percebeu o potencial de arrecadação das apostas e o assunto entrou na pauta. Em julho, o governo publicou uma medida provisória com as primeiras regras de operação e taxação do setor. Em paralelo, o Congresso começou a discutir um projeto de lei que estabelecia regras adicionais, inclusive sobre tributação do setor, e definia prazos para regularização das bets.
O projeto, negociado pelo governo Lula, previa a inclusão dos jogos clássicos de cassino, cuja operação poderia se dar nos mesmos sites das bets. O Senado queria excluir esse trecho, mas o governo bateu o pé: se era para legalizar, era melhor legalizar tudo de uma vez, pois o mercado já estava tomado por esse tipo de jogatina. Em nome da bancada do PT, a deputada Dandara Tonantzin, de Minas Gerais, enfatizou que havia um acordo para aprovar a íntegra do texto, com os jogos de cassino no pacote. “Não temos medo de amanhecer o dia aqui, não! Se Vossa Excelência quiser ficar até o amanhecer do dia, nós estaremos juntos”, disse Tonantzin ao presidente da Casa, durante a votação que, de fato, avançou a madrugada do dia 22 de dezembro de 2023.
Houve reclamação de alguns aliados, como o deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que manifestou incômodo com a manutenção dos jogos no texto. “Faço a orientação do voto sem nenhum entusiasmo.” A bancada evangélica, cuja maioria sempre se opôs às apostas, também protestou. “Do jeito que está, o que esse projeto de lei vai fazer é exatamente aumentar mais ainda a garfada nos pobres”, disse o deputado General Girão (PL-RN). “Talvez agora seja necessária uma bolsa caça-níquel para garantir um dinheiro extra para o jogo”, ironizou.
Ninguém deu muita atenção. Com as bênçãos do governo e do Centrão, a lei que regulamenta o setor foi publicada no Diário Oficial da União em 30 de dezembro de 2023. Ficou conhecida como Lei das Bets. No mês seguinte, em janeiro, já implementando as primeiras medidas da regulamentação, o Ministério da Fazenda criou a Secretaria de Prêmios e Apostas. Definiu-se que as empresas teriam até o dia 20 de agosto de 2024 para pedir autorização para operar no Brasil. Proibiu-se o jogo a crédito (por cartão ou por empréstimo da plataforma) e, a partir de janeiro de 2025, as bets teriam que pagar os prêmios em até 120 minutos depois de feito o pedido. (No site Reclame Aqui, entre janeiro e outubro do ano passado, boa parte das 155 mil queixas diz respeito a prêmios não pagos.)
Tudo parecia caminhar bem, e o Ministério da Fazenda estimava arrecadar de 3,4 bilhões de reais em tributos com o segmento em 2024. Ocorre que toda a negociação sobre a regulamentação fora conduzida apenas pela equipe econômica, sem participação de outros setores – e, portanto, sem análise do impacto social e saúde mental. Na agenda do Ministério da Fazenda, as diretrizes para evitar o jogo patológico e prevenir o endividamento do apostador estavam em penúltimo lugar na lista de prioridades. A Fiquem Sabendo, agência especializada no acesso a informações públicas, mostrou que, entre março e setembro do ano passado, houve 209 reuniões sobre a regulamentação. Os representantes do Ministério da Saúde ficaram de fora de 207. Estiveram em só duas.
Até que o Banco Central divulgou aquele dado assustador: em agosto de 2024, 3 bilhões de reais do programa social mais importante das gestões petistas, o Bolsa Família, haviam escoado pelo ralo das apostas nas bets. Começou então o barata-voa.
A dirigente do PT, Gleisi Hoffmann, comparou a situação à abertura das portas do inferno. A ministra da Saúde, Nísia Trindade, anunciou que o vício em apostas era uma pandemia, mas até meados de dezembro não tinha conseguido nem nomear um porta-voz dentro da sua pasta para falar sobre o assunto. O presidente Lula ameaçou até “acabar definitivamente” com as bets se o resultado da jogatina desenfreada for o endividamento das famílias mais pobres.
O procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu ao STF que declarasse a inconstitucionalidade da lei que regulamentou as bets, por considerar que “a legislação é insuficiente para proteger direitos fundamentais dos consumidores, em face do caráter predatório que o mercado de apostas virtuais ostenta”. O ministro Luiz Fux, relator da ação no Supremo, determinou medidas para proibir publicidade de bets que atinjam crianças e adolescentes e mandou o governo vetar o uso de recursos do Bolsa Família em apostas – coisa que o governo já informou que não tem meios de fazer.
No afã de conter a avalanche de estragos, o Ministério da Justiça proibiu as bets de oferecer bônus a novos usuários, uma arapuca efetiva para menores de idade, que frequentemente não têm renda para jogar. No início de dezembro passado, um ano depois da aprovação da Lei das Bets, Lula decidiu criar um grupo de trabalho interministerial para tratar da prevenção e tratamento do vício em apostas. Pela primeira vez, reuniu todos os ministérios para discutir o assunto de maneira transversal.
No Congresso, o assunto também virou emergência. A senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) pediu a abertura de uma CPI para investigar as bets. A CPI já aprovou 170 requerimentos, entre eles a convocação de integrantes do Ministério da Fazenda, da Advocacia-Geral da União e da Polícia Federal, além dos sócios e representantes das seguintes casas de apostas: Esportes da Sorte, VaideBet, Blaze, Betfair, Betnacional, Betano e Sportingbet. Os influenciadores que divulgam sites de apostas também entraram na mira da CPI: Gkay, Deolane Bezerra, a cantora Jojo Todynho, o cantor Wesley Safadão, o humorista Tirulipa (filho do deputado federal Tiririca) e o influenciador Luan Kovarik, conhecido como Jon Vlogs.
Até meados de dezembro do ano passado, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) informava que 221 bets estavam autorizadas a funcionar em todo o territorial nacional. Outras 39 receberam o aval para operar apenas em âmbito estadual. A agência bloqueou mais de 5 mil sites que não conseguiram sinal verde para operar. As duas listas, dos aprovados e dos reprovados, estão repletas de empresas que, até pouco tempo, fizeram a festa com a jogatina online, longe do radar da fiscalização.
A explosão das bets mudou a rotina do Programa Ambulatorial do Jogo (Pro-Amjo), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), referência nacional em tratamento de ludopatias, nome que se dá ao vício em jogos. O coordenador do programa, Hermano Tavares, conta que o número de pessoas que procuram ajuda triplicou entre 2023 e 2024, mas o Pro-Amjo só consegue receber, em média, dez novos pacientes a cada mês.
A necessidade de ampliar o acesso a tratamento fará a equipe retomar a estratégia adotada durante o auge da crise do vício em bingos, em 1998: as sessões coletivas. “Eu ia para o Hospital das Clínicas num sábado e falava para um galpão cheio, com quarenta, cinquenta jogadores ao mesmo tempo. Lá, a gente tirava dúvidas e ao mesmo tempo observava as pessoas que estavam particularmente frágeis e choravam muito, eventualmente dando a elas prioridade no tratamento.”
O psiquiatra Rodrigo Machado, que também atua no Instituto de Psiquiatria da USP, diz que era previsível que as bets causariam um grande problema no país, tanto mais ao se associarem ao futebol, esporte onipresente na vida dos brasileiros. “No espaço de um jogo de uma hora e meia, duas horas, é possível realizar vinte, trinta apostas”, diz ele. O psiquiatra explica que as redes sociais são um convite à dependência, com o mecanismo das curtidas, o uso do algoritmo e a ferramenta de rolagem, que permite deslizar a tela infinitamente.
As principais vítimas do vício estão nas classes C e D. “As apostas só não pegam a classe E porque esta não tem dinheiro para apostar”, diz Hermano Tavares, do Pro-Amjo. Mas o vício é democrático. Em Porto Alegre, a psiquiatra Carla Bicca, coordenadora da Comissão da Psiquiatria das Adicções, da Associação Brasileira de Psiquiatria, lidera uma comunidade terapêutica privada para pacientes da classe alta. Entre os pacientes, há viciados em drogas, em operações financeiras de alta volatilidade na Bolsa e em jogos de aposta. O tratamento vai de duas semanas a meses.
No Reino Unido, epicentro das casas de apostas no mundo, a Clean Up Gambling, ONG que defende restrições aos jogos, denunciou a Sky Betting & Gaming por práticas abusivas ao criar perfis detalhados dos apostadores e acumular milhares de dados sobre o comportamento deles, de modo a persuadi-los a nunca desistir de tentar recuperar o dinheiro perdido. O governo britânico não conseguiu comprovar a denúncia, mas, em setembro, advertiu a Sky Betting por processar dados de navegação dos seus usuários sem autorização, o que é ilegal.
A Sky Betting é propriedade da Flutter, o maior conglomerado de casas de apostas online do mundo, e opera no Brasil por meio da Betfair. Em setembro, no mês em que era advertida pelo governo britânico, a empresa anunciou a compra, por 350 milhões de dólares, de 56% das ações da NSX, dona da Betnacional, aquela para a qual Galvão Bueno e Vinícius Júnior fazem publicidade. A Flutter estima que a Betfair fechou 2024 com faturamento de 70 milhões de dólares (420 milhões de reais). E enxerga um futuro brilhante no Brasil, devido a “uma série de características altamente atrativas”: a população de 200 milhões, a onipresença do futebol e gosto por apostas.
Thatiara Fonseca, a corretora que perdeu cerca de 1,8 milhão de reais na jogatina online, nunca apostou na Betfair, porque escolhia jogar apenas na Betano. Naquele dia 29 de dezembro de 2023 em que fez suas duas últimas apostas, o presidente Lula sancionou a Lei das Bets, publicada no dia seguinte no Diário Oficial. Fonseca atravessou todo o seu calvário de dependência numa terra sem lei, com as casas de apostas atuando sem controle e contratando celebridades e estrelas do mundo digital.
Em relação às influenciadoras Tali Ramos e Luana Fernandes, que abriram para ela as “portas do inferno”, como diria Gleisi Hoffmann mais tarde, Fonseca tem um turbilhão de sentimentos, que oscilam entre mágoa, dor e incredulidade. Às vezes, acha que as influenciadoras não sabiam das consequências do que estavam fazendo. Outras, acha que talvez soubessem, sim, e agiram de modo calculado. “O fato é que hoje eu sei que não entendo o ser humano”, diz. E, diante da regulamentação do setor, da correria do governo e do alarido do Congresso para enfrentar os estragos da jogatina, o mercado publicitário online continua adotando a modalidade do “cachê da desgraça alheia”. Sinal de que a desgraça não acabou.
Colaboraram: Camille Lichotti e Gabriela Sá Pessoa
João Batista Jr.
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Raio-X na Amazônia revela vestígios de colônia portuguesa do século 18
Tecnologia lidar leva a sistemas de canais, estradas e fortificações militares
Costa Marques (RO) | The Washington Post, fsp, 14/04/25
Estrutura remanescente da colônia portuguesa do século 18 que cercava o Forte Príncipe da Beira, em Rondônia - Rafael Vilela/The Washington Post
Conforme a tempestade se aproximava, homens avançavam na floresta, procurando pistas que pudessem desvendar um mistério centenário.
"Precisamos ir mais 50 metros", afirmou o arqueólogo Carlos Zimpel Neto numa manhã de janeiro, olhando para seu tablet, ignorando o estrondo do trovão. "Depois um pouco para a esquerda, depois um pouco para a direita."
Largou o tablet e, seguido por mosquitos, entrou numa área que um dia revelara uma das descobertas arqueológicas mais notáveis da Amazônia: uma vasta fortaleza militar portuguesa no rio Guaporé. O avistamento em 1913 da fortaleza, que havia sido abandonada por Portugal, resultou numa pergunta à qual historiadores e arqueólogos tentam responder desde então.
Onde estava o resto?
Real Forte Príncipe da Beira, em Costa Marques, Rondônia - Rafael Vilela/The Washington Post
Mapas e registros históricos mostraram que a colônia portuguesa do século 18, que em seu auge abrigava pelo menos mil pessoas, se estendia muito além da fortaleza. Teria existido uma cidade chamada Lamego, com vilas militares e igrejas. Mas a densa vegetação ao longo da fronteira do Brasil com a Bolívia ocultara tudo — até agora.
Usando uma tecnologia a laser conhecida como lidar, Zimpel e sua equipe chegaram à colônia portuguesa perdida, deparando-se com um intrincado sistema urbano de canais, estradas, fortificações militares e restos de estruturas de pedra.
O feito, anunciado em outubro, foi o mais recente exemplo de como o lidar está inaugurando uma nova era de descobertas na Amazônia. O sensor a laser, que pode ser montado em um avião ou drone, deu aos cientistas o equivalente a visão de raio-X, permitindo-lhes perfurar o denso dossel e revelar os segredos da maior floresta tropical do mundo.
Do alto, apenas uma vegetação densa é visível ao redor do Forte Príncipe da Beira e de uma vila próxima.
Os restos da colônia estavam escondidos. Então veio o lidar.
As imagens produzidas com a tecnologia se alinharam com um mapa desenhado por um espião espanhol em meados de 1700, mostrando estradas, canais e uma segunda fortaleza.
As paredes de pedra de uma terceira instalação militar, conhecida como labirinto, serviram de abrigo para um batalhão português e uma bateria de canhões.
As descobertas se estendem além do Brasil.
Cientistas encontram vestígios de colônia portuguesa do século 18 na Amazônia - fotos
Cientistas usaram lidar na Bolívia para revelar vestígios de "urbanismo que não havia sido descrito anteriormente na Amazônia", relatou um artigo de 2022 publicado na revista Nature, incluindo evidências de pirâmides de 20 metros de altura e um elaborado sistema de gestão da água.
No Equador, o lidar ajudou a localizar "aglomerados de plataformas monumentais, praças e ruas" que rivalizavam com os assentamentos maias no México e Guatemala, de acordo com um estudo publicado no ano passado na revista Science.
As revelações têm desafiado teorias de longa data sobre a história da Amazônia. Cientistas sustentavam que ali o solo não era rico o suficiente para sustentar o tipo de sociedades agrárias complexas encontradas em outras partes da América Latina. Acontece que as evidências estavam lá o tempo todo, mas pesquisadores simplesmente não dispunham de ferramentas para vê-la.
"Este é o momento de nosso maior avanço e compreensão da floresta", disse Luiz Eduardo Oliveira e Cruz de Aragão, pesquisador de sensoriamento remoto no Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
Zimpel, seguindo um mapa digital construído com base em imagens de lidar, saiu da floresta. Ele olhou através de uma clareira onde a cidade de Lamego uma vez se estendia. A maioria de suas estruturas, feitas de barro e folhas de palmeira, desintegrou-se há muito tempo.
Mas lá estava a fundação quebrada de uma igreja portuguesa, com pedaços de telhado espalhados; também havia pedaços de cerâmica quebrada, que, estima-se, teriam sido feitas de 1.200 a 2.000 anos atrás. Eles foram forjados por membros de uma sociedade indígena avançada, segundo Zimpel.
O arqueólogo diz acreditar que eles também tenham sido responsáveis por grandes geoglifos circulares na área — aparentemente visíveis agora apenas através da análise de lidar— que antecederam em muito os portugueses.
A tecnologia, de acordo com Zimpel, não apenas expõe a colônia perdida. Também ajuda a reescrever a história humana da floresta. "É como se estivéssemos levantando um tapete. Damos um puxãozinho e espiamos o que está embaixo" Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Arrancando o topo das árvores
A dificuldade de se investigar a Amazônia tem atormentado exploradores por séculos, levando muitos à beira da loucura ou à morte.
Theodore Roosevelt, que a percorreu no início dos anos 1900, chamou-a de "terra de possibilidades desconhecidas". Para o aventureiro britânico Percy Fawcett, que desapareceu enquanto caçava uma cidade perdida, ela era era o "último grande espaço em branco do mundo".
O Lidar está preenchendo cada vez mais o espaço em branco.
Inventado na década de 1960 e primeiro aplicado no desenvolvimento de tecnologias aeroespaciais, ele mede a distância até um objeto emitindo um laser e, em seguida, cronometrando quanto tempo leva para receber o reflexo.
Quando acoplado a um avião —ou, mais frequentemente nos dias de hoje, a um drone—, ele pode coletar milhões de pontos de dados para renderizar uma imagem topográfica extraordinariamente precisa da paisagem abaixo, alcançando em semanas o que antes levaria uma vida inteira.
Como ele funciona?
Um avião ou drone com um sensor lidar voa sobre uma área. O sensor mede a distância até um objeto disparando um laser e, em seguida, cronometrando quanto tempo leva para receber o reflexo.
O sensor emite tantos pulsos —cerca de 2.000 por metro quadrado — que alguns filtram através do dossel da floresta, resultando em conjuntos de dados ricos que os pesquisadores chamam de "nuvens de pontos".
Simulada em um computador, a imagem é em camadas e tridimensional.
Tudo o que os cientistas têm de fazer para analisar o leito da floresta amazônica é remover o dossel.
Eles podem então ver com clareza o que está sob as árvores, obtendo um vislumbre vívido do passado.
"É como se estivéssemos levantando um tapete", disse Eduardo Neves, que dirige o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. "Damos um puxãozinho e espiamos o que está embaixo."
Nos últimos 15 anos, conforme os avanços tecnológicos reduziram os custos, o lidar remodelou a arqueologia moderna, levando à descoberta de cidades perdidas da América Central ao Sudeste Asiático.
E nessa parte remota do Brasil, onde portugueses tentaram subjugar tanto a Amazônia quanto espanhóis, Zimpel encontrou mais do que poderia ter imaginado.
Rio Guaporé, na fronteira entre o Brasil e a Bolívia - Rafael Vilela/The Washington Post
Explorando o labirinto
A jornada de Zimpel começou no verão de 2016, quando partiu em uma longa viagem, interessado em visitar a Real Forte Príncipe da Beira omo turista. Ele viajou por Rondônia, fortemente desmatado, até chegar a um trecho preservado de floresta no final de uma estrada. Lá, surgindo da vegetação impenetrável, estava a estrutura em ruínas.
Perto dela havia um quilombo. Um de seus habitantes era Elvis Pessoa, presidente da associação comunitária e guia turístico local, que contou a Zimpel a história de seu povo.
No século 18, conforme as tensões aumentavam entre portugueses e espanhóis sobre quem controlaria a região, Portugal construiu sua maior fortaleza colonial. Para concluir o trabalho, segundo Pessoa, milhares de africanos escravizados foram transportados para a região em barcos a vapor.
Quando as potências coloniais finalmente resolveram sua disputa territorial, o posto militar perdeu sua importância estratégica. Os portugueses, sem dúvida gastando uma fortuna para manter a colônia, abandonaram tanto a fortaleza quanto os escravos que a construíram.
Enquanto conversavam, Zimpel mencionou que era professor de arqueologia na Universidade Federal de Rondônia. Isso chamou a atenção de Elvis, que disse que havia outras estruturas escondidas na floresta, agrupadas em torno de um local peculiar que os locais chamavam de labirinto. Ele perguntou se o professor gostaria de dar uma olhada.
No começo, Zimpel hesitou. Mas, na floresta, ele se deparou com visões diferentes de tudo que havia testemunhado em sua carreira: linha após linha de paredes de pedra de cinco metros de altura; um arco de porta solitário; a base de pedra de uma estrutura retangular.
Zimpel começou a escavar, primeiro com Elvis, depois com o irmão dele, Santiago, após a morte do líder da comunidade, em abril de 2023. Enquanto isso, o pesquisador examinava mapas esboçados pelos portugueses e espanhóis em meados de 1700. Ele começou a suspeitar que o que tinha visto era a colônia portuguesa perdida. Mas não podia ter certeza. Não sem o lidar.
Em 2022, seu colega de arqueologia, Neves, recebeu uma bolsa da National Geographic Society para usar a tecnologia para estudar a floresta. Neves, coordenador de um consórcio acadêmico chamado Amazon Revealed, queria explorar pelo menos 50 locais. Zimpel já tinha um lugar em mente.
No ano seguinte, após dez dias de sobrevoos, ele chegou à sua resposta. As imagens de lidar quase correspondiam perfeitamente aos mapas dos anos 1700.
"Encontramos", disse Zimpel.
Santiago Pessoa, 32, tem liderado os esforços de arqueologia do quilombo desde a morte de seu irmão, Elvis - Rafael Vilela/The Washington Post
História ameaçada
Assim que as ruínas foram descobertas, no entanto, elas pareciam estar prestes a se perder novamente.
O assentamento português, como muitos vestígios da antiguidade amazônica, está localizado no que é conhecido como o arco do desmatamento, uma faixa que percorre o sul da floresta e apresenta grande parte de sua destruição. Recentemente, enquanto um número histórico de incêndios queimava a Amazônia, com particular ferocidade no arco, a floresta que protegia as ruínas foi consumida pelas chamas.
Os moradores do quilombo, cercado por fazendas de gado e plantações de soja, disseram acreditar que os incêndios foram provocados intencionalmente para limpar as terras.
"Nunca pensamos que o fogo chegaria tão perto", disse Nucicleide da Paz Pinheiro, que se tornou presidente da associação local após a morte de Elvis. "Ele queimou 80% da nossa floresta."
Meses depois, em janeiro, Zimpel foi se encontrar com os moradores do quilombo. Conversou com a mãe de Elvis e, então, voltou à floresta para ver o que restava das ruínas. Mas ele também queria ver o que mais poderia encontrar. Com cada descoberta adicional, ele poderia solicitar às autoridades a preservação legal de mais uma parte da floresta como um sítio arqueológico.
O dano foi imenso, mas não tão ruim quanto Zimpel temia. Olhou para baixo em seu tablet e analisou o mapa criado pelo lidar, que mostrava sinais de atividade humana histórica bem à frente. Ele encontrou uma ravina rasa que corria em linha reta perfeita. Então outra a uma curta distância. Ao lado de uma delas havia um grande edifício de pedra. Estava coberto de lama e vegetação, porém aparentemente intocado pelo fogo.
O pesquisador deu um passo para trás para admirá-lo. "Essa é uma das maiores estruturas que já vimos. Há muito mais casas aqui do que pensávamos."
Enquanto os mosquitos o cercavam, Zimpel consultou seu mapa mais uma vez e desapareceu de novo na floresta.
Terrence McCoy , Rafael Vilela , Júlia Ledur e Yutao Chen
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Guerra comercial EUA x China
GUERRA COMERCIAL: EUA X CHINA - COM ELIAS JABBOUR E JOSÉ KOBORI | O MUNDO É UM MOINHO vídeo
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Maria Gladys
Filha pede ajuda para resgatar Maria Gladys; atriz está perdida em cidade mineira Aos 85 anos, a artista foi vista em Santa Rita de Jacutinga e precisa voltar para o Rio de Janeiro
Por João Paulo Dell Santo , UOL, em 10/04/2025
Filha pediu ajuda para resgatar a atriz Maria Gladys - Foto: Leo Lara/Universo Produção
Aos 85 anos e longe das novelas desde Aquele Beijo (2011) - o seu último papel na televisão foi na série Pé na Cova (2016), também de Miguel Falabella -, Maria Gladys voltou a preocupar fãs e amigos nesta quinta-feira (10).
Maria Thereza Mello Maron, filha da atriz, recorreu às redes sociais para pedir ajuda para resgatar a mãe. Segundo ela, Gladys estaria perdida na cidade de Santa Rita de Jacutinga, em Minas Gerais, e precisando voltar para o Rio de Janeiro.
"Alô amigos! Maria Gladys está em Santa Rita de Jacutinga, na rua, confusa, sozinha, sem dinheiro e sem casa. Precisa vir ao Rio me encontrar pra que eu possa trazer ela pra minha casa", afirmou Maria Thereza.
"Lá é uma cidade de difícil acesso, pois não tem transporte. Ela precisa de táxi pra chegar à Volta Redonda (RJ)a e, de lá, vir pro Rio e eu buscar ela na rodoviária. Nem eu, nem minha irmã temos o dinheiro da passagem. Quem puder ajudar, estou deixando o pix dela", completou.
De acordo com o jornalista Pablo Oliveira, do portal Uai, Maria Gladys estava pedindo dinheiro na rua com o objetivo de chegar ao centro de Volta Redonda, de onde seguiria para a capital fluminense.
Maria Gladys deu susto no início do ano
Vale lembrar que essa não é a primeira vez que Maria Gladys dá um susto nos familiares e amigos. Em janeiro deste ano, Maria Thereza também recorreu às redes sociais para informar que a mãe estava desaparecida.
"Amigos, Maria Gladys está desaparecida desde ontem [terça, dia 31 de dezembro], às 5h. A polícia diz que precisa esperar 24 horas. Não sei o que fazer! Socorro!", escreveu a filha da atriz no Facebook.
Poucas horas depois, ela informou que a artista foi encontrada. "Obrigada pela atenção. Consegui achá-la. Desculpem o susto. É porque ela está em um apartamento na [rua] Sá Ferreira [em Copacabana], quando cheguei, não a encontrei. Entrei em pânico. Gratidão", declarou.
Vale lembrar que Maria Gladys é avó da atriz americana Mia Goth.
Cadê Maria Gladys
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Merlin
A MAGIA MODERNA REVELA OS SEGREDOS MEDIEVAIS DE MERLIN (tradução livre)
Fragmentos de um raro manuscrito de Merlin de aproximadamente 1300 foram descobertos e digitalizados em um projeto inovador de três anos na Biblioteca da Universidade de Cambridge
Um frágil fragmento de manuscrito do século XIII, escondido à vista de todos como a encadernação de um registro de arquivo do século XVI, foi descoberto em Cambridge e revelou conter histórias medievais raras de Merlin e do Rei Arthur.
O manuscrito, descoberto pela primeira vez na Biblioteca da Universidade de Cambridge em 2019, foi agora identificado como parte da Suite Vulgate du Merlin, uma sequência em francês da lenda do Rei Arthur. A história fazia parte do ciclo Lancelot-Grail, um best-seller medieval, mas poucos ainda existem.
Há menos de 40 manuscritos sobreviventes da Suite Vulgate du Merlin, cada um deles único, pois foram escritos individualmente por escribas medievais. Essa última descoberta foi identificada como tendo sido escrita entre 1275 e 1315.
A capa interna do manuscrito como foi descoberta. Aqui são vistas algumas das dobras, incluindo abas e viradas, o que torna a leitura e o acesso ao texto oculto por baixo particularmente difícil sem danificar o material.
O manuscrito sobreviveu aos séculos depois de ter sido reciclado e reaproveitado nos anos 1500 como capa de um registro de propriedade de Huntingfield Manor, em Suffolk, pertencente à família Vanneck de Heveningham.
Isso significava que a notável descoberta estava dobrada, rasgada e até mesmo costurada na encadernação do livro, tornando quase impossível para os especialistas de Cambridge acessá-la, lê-la ou confirmar suas origens.
O que se seguiu à descoberta foi um projeto colaborativo inovador, que mostrou o trabalho do Cultural Heritage Imaging Laboratory (CHIL) da Biblioteca da Universidade e combinou estudos históricos com técnicas digitais de ponta para desvendar os segredos do manuscrito há muito guardados, sem danificar o documento único.
A Dra. Irène Fabry-Tehranchi, especialista francesa em coleções e contatos acadêmicos da Biblioteca da Universidade de Cambridge, foi uma das primeiras a reconhecer a importância da descoberta.
"Inicialmente, pensou-se que se tratava de uma história do século XIV sobre Sir Gawain, mas um exame mais aprofundado revelou que ela fazia parte da sequência de Merlin da Vulgata Francesa Antiga, um texto arturiano diferente e extremamente significativo."
Como todo manuscrito da época era copiado à mão, isso significa que cada um é distinto e reflete as variações introduzidas pelos escribas medievais.
Acredita-se que este pertença à versão curta do Merlin da Vulgata, e pequenos erros - como o uso errôneo do nome "Dorilas" em vez de "Dodalis" - ajudarão a Dra. Fabry-Tehranchi e sua colega Nathalie Koble (ENS Paris) a rastrear sua linhagem entre os manuscritos sobreviventes.
A capa externa direita, fotografada em condições padrão a olho nu, mostra o desgaste sofrido ao longo dos séculos, incluindo uma faixa de texto desbotado ao redor do meio, amassados e rasgos.
O texto está escrito em francês antigo, o idioma da corte e da aristocracia na Inglaterra medieval após a conquista normanda, e esse fragmento em particular pertence ao gênero de romances arturianos que eram destinados a um público nobre, incluindo mulheres.
A capa interna
O fragmento conta dois episódios importantes do final da Suite Vulgate du Merlin. A primeira parte narra a vitória dos cristãos contra os saxões na Batalha de Cambénic. Conta a luta de Gauvain (com sua espada Excalibur, seu cavalo Gringalet e seus poderes sobrenaturais), seus irmãos e seu pai, o rei Loth, contra os reis saxões Dodalis, Moydas, Oriancés e Brandalus.
A capa externa esquerda e a extensão
A segunda passagem apresenta uma cena mais cortês, ambientada na Festa da Assunção da Virgem Maria, com Merlin aparecendo na corte de Arthur disfarçado de harpista - um momento que destaca suas habilidades mágicas e sua importância como conselheiro do rei.
"Enquanto eles estavam se regozijando com a festa, e Kay, o senescal, trouxe o primeiro prato para o Rei Arthur e a Rainha Guinevere, chegou o homem mais bonito já visto em terras cristãs. Ele vestia uma túnica de seda cingida por um cinto de seda tecido com ouro e pedras preciosas que brilhava com tal intensidade que iluminava toda a sala."
Uma tradução do manuscrito Suite Vulgate du Merlin encontrado na Biblioteca da Universidade de Cambridge
O fragmento medieval foi descoberto em 2019 nesta caixa de rolos judiciais durante a recatalogação dos registros senhoriais e imobiliários relacionados aos Vannecks de Heveningham (Suffolk).
Dra. Irène Fabry-Tehranchi segurando o manuscrito raro antes de inseri-lo no scanner Micro CT no Departamento de Zoologia. Abertura virtual do fragmento Vanneck Merlin do CUL
Cientistas descobrem manuscrito medieval do Rei Arthur sendo usado como PAPEL DE RECICLAGEM! vídeo
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Copa do Brasil parte 2
A Parte 1 aqui

3ª fase da Copa do Brasil
29/04/2025
São Paulo 2 x 1 Náutico Morumbi
Fluminense 1 x 0 Aparecidense Maracnã
Atlético-MG 2 x 2 Maringá-PR Estádio Regional Willie Davids
Internacional 1 x 0 Maracanã-CE Beira-Rio
Retrô-PE 1 x 1 Fortaleza Arena de Pernambuco
30/04/2025
Botafogo 4 x 0 Capital-DF Nilton Santos
Ceará 0 x 1 Palmeiras Arena Castelão
Novorizontino 0 x 1 Corinthians Doutor Jorge Ismael de Biasi
CSA 3 x 2 Grêmio Rei Pelé
Paysandu 0 x 1 Bahia Mangueirão
01/05/2025
Brusque 0 x 0 Athletico PR Joinville Esporte Clube
Operário-PR 1 x 1 Vasco Germano Krüger Ponta Grossa
Santos 1 x 1 CRB-AL Vila Belmiro
Criciúma 1 x 0 Bragantino Heriberto Hülse
Botafogo-PB 0 x1 Flamengo Almeidão
Cruzeiro x Vila Nova Mineirão
Copa do Brasil 2023: conhecendo os clubes
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De manhã, copo na mão
O Brasil discute a legalização das drogas sem ter aprendido a lidar com a mais legalizada de todas
Ruy Castro, fsp, 09/04/2025
Todos já assistimos a esta cena. Às 7 da manhã, o homem magro, peito afundado, rosto vermelho e inchado, no balcão do botequim ou da padaria, tenta mandar para dentro um copinho de cachaça. Suas mãos tremem tanto que ele precisa usar as duas para levar o copo à boca. Sabe que está sendo observado e que as pessoas ao redor estão pensando: "Olha que vagabundo. Isso é hora de beber?". Para ele, é. Aquela será a dose que o estabilizará e, dependendo do seu grau de dependência, o manterá mais ou menos firme pela hora seguinte. Ou minutos seguintes.
Ele não é um vagabundo. É um homem doente, já perto do desfecho. Precisa beber de manhã porque passou as últimas horas dormindo e sem beber. Como seu organismo já não funciona sem a bebida, poucas horas sem ela provocam uma descarga neurológica —a tremedeira— que o transforma na triste figura que você vê. Já perdeu o emprego, a mulher, os filhos, os amigos, a saúde, a dignidade e, se ainda pode pagar por sua bebida, é porque beber no Brasil é criminosamente barato. E, não, ele não é um "viciado". É um alcoólatra. É-se alcoólatra como se é cardíaco ou diabético.
A palavra "viciado" tem conotação injusta. Leva a uma condenação moral do indivíduo, a impedir que se tente convencê-lo a procurar uma reunião do AA (Alcoólicos Anônimos) ou aceitar internar-se numa clínica para dependentes —ninguém pode ser internado contra a vontade. Mas o desconhecimento no Brasil sobre o problema é maciço. Somos um país que discute a legalização das drogas sem ter aprendido até hoje a lidar com a mais legalizada de todas.
Não há campanhas de esclarecimento ou prevenção à altura das necessidades. Pessoas que bebem todos os dias, cada dia mais cedo e em maior velocidade, acham que "bebem socialmente". Quando se diz que alguém foi internado numa clínica para "desintoxicação", pensa-se nesse lugar como um spa onde "o sem-vergonha enxugará o que anda bebendo" e saíra "pronto para outra".
Pode ser. Mas, se ele voltar à ativa, não haverá outra.
De copo na mão Leonidas/Adobe stock
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SUS inglês
SUS pode servir de inspiração para salvar a saúde do Reino Unido, diz jornal inglês
Reportagem do jornal inglês Telegraph afirma que agentes comunitários de saúde brasileiros estão inspirando projeto piloto em bairro londrino e plano decenal do governo britânico.
Publicado em 8 de abril de 2025, BBC News Brasil
Agente comunitária de saúde e enfermeira caminham na Rocinha, no Rio, durante a pandemia de covid-19. (Getty Images)
O governo britânico "está acompanhando de perto" o modelo brasileiro dos agentes comunitários de saúde, estudando aplicar algo semelhante no NHS, o sistema de saúde do Reino Unido, segundo reportagem publicada pelo jornal The Telegraph na segunda-feira (07/04).
A reportagem, assinada por Laura Donnelly e Claudia Marquis, pergunta no título: "O NHS está perto do colapso — um projeto radical das favelas brasileiras poderia salvá-lo?"
De acordo com o jornal, o governo britânico está fazendo um projeto piloto inspirado no modelo brasileiro em Pimlico, um bairro de Londres.
O projeto deve ser ampliado depois para 25 regiões na Inglaterra.
No Brasil, os agentes comunitários de saúde fazem parte da chamada Estratégia Saúde da Família, sob o guarda-chuva do Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo a reportagem do jornal britânico, os agentes comunitários propiciaram "melhorias drásticas" em indicadores de saúde no Brasil. "Poucos meses após vencer a eleição, o governo [do partido] trabalhista ficou bastante interessado na Estratégia Saúde da Família brasileira, enviando representantes da área de saúde ao Rio para assinar uma carta de intenções sobre a cooperação em saúde entre o Reino Unido e o Brasil", diz um trecho da reportagem.
Ainda de acordo com o texto, o ministro da Saúde britânico, Wes Streeting, convidou especialistas em saúde do Brasil para obter informações sobre os programas de saúde da família e para usar esse conhecimento em um planejamento de dez anos para o NHS.
Esse plano deve ser publicado em junho, de acordo com o Telegraph — com maior ênfase na prevenção a doenças e um deslocamento do foco dos hospitais em direção às comunidades, o que seria inspirado no modelo brasileiro.
Durante a campanha eleitoral, na véspera da vitória trabalhista em julho de 2024, Streeting apontou que um dos maiores problemas do sistema britânico era a dificuldade de acesso a médicos.
Um dos entusiastas do modelo brasileiro e que está trabalhando na implementação de algo parecido no Reino Unido é o médico inglês Matthew Harris.
Harris já trabalhou em Pernambuco e atualmente é pesquisador da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres. Em 2023, durante entrevista à BBC News Brasil, ele não fez cerimônia ao afirmar que a iniciativa é "100%" inspirada na Estratégia Saúde da Família.
'Senso de comunidade' funcionaria no Reino Unido?
Getty Images
A Estratégia Saúde da Família e os agentes comunitários começaram a ser implementados no Brasil no início dos anos 1990. Normalmente, os agentes comunitários fazem partes de equipes de Saúde Família com outros profissionais, como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.
A reportagem do Telegraph, que visitou equipes de agentes comunitários e pacientes em cidades como Rio de Janeiro, Duque de Caxias e Manaus, destaca que esses profissionais atuam nas áreas onde moram e são obstinados em realizar seu trabalho — mesmo enfrentando as consequências da pobreza, as longas distâncias da Amazônia e a violência das grandes cidades brasileiras.
É enfatizado também que os agentes não têm diplomas em saúde, mas recebem treinamento — a partir daí, indo de "porta em porta, oferecendo escuta atenta, recomendações de saúde e educação e conexões com os serviços de saúde".
Muitos, inclusive, são sobrecarregados pelas centenas de famílias que precisam atender, diz também o Telegraph. São mostradas histórias reais de trocas, inclusive afetivas, entre os agentes e a população. Confiança e até segredos de família fazem parte dessa relação, contam Donnelly e Marquis.
Mas as repórteres do Telegraph colocam em dúvida se um dos ingredientes do sucesso brasileiro, a proximidade entre os agentes e a população, funcionaria do outro lado do Atlântico: "Talvez seja menos claro se a Grã-Bretanha moderna tem um senso de comunidade que poderia ser aproveitado, ou se uma batida na porta seria tão bem-vinda."
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Manga
O maior goleiro do Inter
Juca Kfouri, UOL, 08/04/2025
Manga, goleiro do Internacional nos anos 70 Imagem: Reprodução
POR FABRÍCIO CARPINEJAR*
É o adeus do maior goleiro da história do Inter. Do Homem-Borracha. Do inimigo das luvas. Do milagreiro de dedos fraturados e retorcidos.
Ele apenas cuspia na mão e a esfregava com areia. Não queria nenhum material que o distanciasse do contato com a bola. Não conheci nenhum arqueiro que amasse tanto a bola quanto ele, muito mais do que centroavante, que na verdade ama as redes.
Suas façanhas foram tamanhas que o Dia do Goleiro foi criado em sua homenagem, dia 26 de abril, assinalando eternamente seu aniversário.
O pernambucano Haílton Corrêa de Arruda, o popular Manga, quis se despedir no mês em que nasceu, aos 87 anos, na manhã de terça-feira (8). O ex-jogador lutava contra um câncer de próstata e estava internado no Hospital Rio Barra, no Rio de Janeiro.
Manga defendeu o Botafogo de 1959 a 1968, por 442 jogos. No quartel-general de General Severiano, levantou quatro Campeonatos Cariocas, três Torneios Rio-São Paulo e o Torneio Intercontinental de Paris. Era estrela no pórtico de uma constelação de craques: Paulistinha, Zé Maria, Nilton Santos, Ayrton Povill, Rildo, Garrincha, Didi, Amarildo, Quarentinha e Zagallo.
Representou a seleção brasileira na Copa de 1966.
Em seguida, tornou-se ídolo no Nacional, do Uruguai, em 1971, ao conquistar a Libertadores -- é o recordista de partidas na competição -- e o Mundial.
No Inter bicampeão brasileiro de 1975-1976, octacampeão gaúcho, alcançou os píncaros da maestria, com performances sobrenaturais, a ponto de segurar um escanteio com uma só mão.
Na véspera da final de 1975, diante do Cruzeiro, no Beira-Rio, ele quebrou dois dedos no treinamento. Tirou o gesso e se fardou para a decisão.
Num dos lances memoráveis do embate com os mineiros, numa falta a ser cobrada pela truculência do chute de Nelinho, ele optou por não usar a barreira. Não era fã de ninguém à sua frente que pudesse dificultar a sua visão. Todos os jogadores colorados temeram a sua irresponsabilidade. Afinal, o lateral direito tinha um canhão. Rezava a lenda de que, com ele, os zagueiros viravam de costas na barreira de propósito, para testemunhar o gol certo.
Não é que Manga, absolutamente lesionado, espalmou um torpedo traiçoeiro que fez uma curva mudando totalmente a direção inicial? Qualquer um ficaria no meio do caminho, menos ele.
A torcida comemorou a defesa com a mesma intensidade e ovação do gol iluminado de Figueroa.
Aquele camisa 1 longevo, de 37 anos, apresentava uma coragem de guri, uma entrega jamais repetida nas cores vermelha e branca: entrava em campo disposto a morrer pela vitória.
E pensar que sua estreia no Inter não se mostrou amistosa. Falhou nos seus dois primeiros confrontos no Brasileiro de 1974. Só se manteve na titularidade pela teimosia do técnico Rubens Minelli, que confiou em sua adaptação. Logo se fundiu às traves e se converteu num mito.
Ao longo de sua carreira, ainda garantiria os títulos estaduais para o Operário MS (1977), Coritiba (1978) e Grêmio (1979), além do campeonato nacional para o Barcelona de Guayaquil (1981). Erigiu santuários por onde passou. Aposentado das chuteiras, trabalhou como preparador de goleiros no Equador e nos Estados Unidos.
Manga desafiava a lógica. Fazia o impossível na meta como se fosse fácil e rotineiro. Com reflexos felinos, mergulhava nos pés dos atacantes. Tal telepata, adivinhava os arremates, os dribles, os passes, os cruzamentos.
Ranzinza, provocador, folclórico, inigualável, acreditava tanto em si que gastava o bicho com antecedência.
Quem viu Manga atuar será para sempre um privilegiado.
*Publicado originalmente no jornal Zero Hora.
A última viagem de Manga
Morre aos 87 o ex-goleiro Manga, ídolo de Botafogo e Internacional
'Sou o melhor goleiro do Brasil': leia entrevista de Manga à Folha após título brasileiro de 1975
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General José Antônio Nogueira Belham
O general que virou alvo de protestos contra a anistia enquanto Bolsonaro discursava na Paulista
Se antes era o coronel Ustra que galvanizava as ações contra a anistia, agora esse papel cabe ao general Belham, que comandava o DOI do Rio quando Rubens Paiva morreu
Marcelo Godoy O Estado, 07/04/2025
As relações entre o Poder Civil e o poder Militar
Um militante petista segurava o cartaz com uma palavra de ordem: “Cadeia para o general Belham”. Estava ao lado de um carro do 12.º Batalhão de PM de São Paulo, na calçada da Rua Tutóia, em frente ao prédio do 36.º Distrito Policial, onde funcionou entre 1969 e 1982 o Destacamento de Operações de Informações, o DOI do 2.º Exército. Dali sairia no fim da tarde de domingo, a 5.ª Caminhada do Silêncio, um protesto anual em memória das vítimas da violência estatal.
O general da reserva José Antônio Nogueira Belham, que comandou o DOI do 1.º Exército Foto: Comissão Nacional da Verdade / Reprodução
A 2,5 quilômetros dali, Jair Bolsonaro e sete governadores discursavam para cerca de 45 mil apoiadores na Avenida Paulista. Queriam anistia para os acusados de golpe engendrado no Palácio do Planalto que levou a Procuradoria da República a denunciar o ex-presidente e outros 32 réus, a maioria militares e policiais, e a 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal a abrir a ação penal contra sete deles.
O Belham do cartaz não está entre os acusados cujas condutas foram esmiuçadas pela Polícia Federal sob os olhares do ministro Alexandre de Moraes. Também não fez parte do governo Bolsonaro, mas deve ter seu destino em breve decidido pelo mesmo STF. Trata-se de José Antônio Nogueira Belham, de 89 anos, que, como major, comandara do DOI do 1.º Exército, no Rio, na mesma época em que Carlos Alberto Brilhante Ustra comandava o destacamento paulista.
Em fevereiro, uma semana antes de o filme Ainda Estou Aqui ganhar o Oscar, um grupo de jovens levara faixas até a frente do prédio, no Flamengo, no Rio, onde o general da reserva mora. Era o primeiro “escracho” da vida do militar. “Ainda estamos aqui”, diziam as faixas. Agora, em vez da alusão ao filme, nos cartazes havia o nome de Belham, personagem indissociável da história retratada na tela.
Militante petista segura placa em que pede 'cadeia' para o general Belham durante ato em memória das vítimas da violência estatal Foto: Marcelo Godoy / Estadão
O jovem com o cartaz sobre Belham fixado em uma placa distribuía panfletos do grupo ligado à vereadora Luna Zarattini (PT), cujo avó Ricardo esteve detido no DOI antes de ser um dos 15 prisioneiros trocados pela ditadura militar pelo embaixador americano Charles Elbrick, sequestrado pela ALN e pelo MR-8. O militante petista não era o único a citar Belham ou expor seu nome no protesto, na tarde de ontem, no Paraíso, zona sul de São Paulo.
Cerca de 400 pessoas se agrupavam no pátio da delegacia, entre eles o ex-deputado federal José Genoíno (PT). “Lá (na Paulista) eles querem anistiar o capitão. Aqui, querem prender os generais.” Belham era o único general citado nominalmente nos cartazes dos manifestantes, embora faixas ao lado de Genoino pregassem “cadeia” para Bolsonaro, assim como para os “generais golpistas”.
“Aqui tem uma denúncia da tortura, da ditadura militar, que era o que os acusados no processo do Supremo queriam que voltasse”, disse o deputado federal Carlos Zarattini (PT-SP), um dos parlamentares que foi à caminhada. Lá também Sâmia Bomfim (PSOL-SP), bem como o militante Leo Alves, neto do dirigente comunista Mário Alves, preso, torturado, morto e desaparecido no DOI do 1.º Exército.
O ex-presidente do PT José Genoino em frente ao 36.º DP, de onde partiu a 5.ª Caminhada do Silêncio; Bolsonaro e generais entre os alvos Foto: Marcelo Godoy / Estadão
Foi ali, no mesmo quartel da Rua Barão de Mesquita, que um ano depois de Alves seria igualmente torturado, morto e desaparecido o ex-deputado federal Rubens Paiva, do PTB – a psicóloga Vera Paiva, sua filha, também estava no protesto. É, justamente, aqui que Belham aparece. A denúncia do caso que envolve o militar é a mesma que levou o deputado federal Oscar Pedroso Horta, então presidente do MDB, a ler no Congresso, em junho de 1971, uma carta escrita à mão.
Ela tinha 26 páginas. Sua autora era a Cecília Viveiros de Castro, uma elegante professora de história que trabalhava no Colégio Notre Dame de Sion, no Cosme Velho, onde dava aulas para as filhas do ex-deputado. Cecília foi presa quando desembarcava do Chile, onde fora encontrar o filho Luiz Rodolfo, um militante do MR-8, que lá estava exilado. Trazia mensagens na bagagem, uma delas para Paiva.
Foi o que bastou para prenderem o ex-deputado. Cecília ouviu os gritos de Paiva e foi levada com o amigo à sede do DOI do 1º Exército. Quem estava de plantão era o tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, retratado como um sádico pelos presos. Logo chegaram ali o capitão Freddie Perdigão, o Doutor Flávio, e o major Rubens Paim Sampaio, o Doutor Teixeira. Paiva foi o primeiro a ser torturado.
O ex-deputado Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice (à esq.), sua mãe e seus cinco filhos: Belham se recusou a interromper a tortura. Foto: CNV-Brasil/Arquivo Nacional
O que Cecília não sabia nem Pedroso Horta pôde contar é que, no meio do suplício de Paiva, dois oficiais se insurgiram: o tenente Armando Avólio Filho e o capitão Ronald José Motta Baptista Leão. Tentaram entrar na sala onde ex-deputado era interrogado, mas foram impedidos pelo major Paim. Decidiram denunciar o que estava acontecendo ao superior: o então major Belham.
“Major, é bom o senhor dar uma chegada lá na sala do interrogatório porque aquilo não vai terminar bem”, disse Avólio. Belham ficou olhando o tenente, que completou: “É o Hughes que está lá...”. O major nada fez. Avólio e Leão não desistiram. Foram procurar o comandante do Batalhão de Polícia do Exército, que funcionava no mesmo quartel do DOI, mas ele também não se moveu.
Belham saberia de tudo do que se passava e nada fizera para salvar o prisioneiro. No meio da madrugada, Paiva foi examinado pelo médico Amílcar Lobo, que constatou o abdome enrijecido, sinal de hemorragia interna, e uma possível falência hepática. O preso repetia apenas: “Eu sou o deputado Rubens Paiva”.
Um fantasma ronda o Planalto vídeo
Décadas depois, o major Paim contou, ao depor ao Ministério Público Federal, que foi informado pelos homens do DOI que o ex-deputado sofreu um enfarte. E que eles teriam decidido fazer um “teatrinho”: simular uma fuga de Paiva para justificar seu desaparecimento. Era, nas palavras do coronel Riscala Corbage, o Doutor Nagib do DOI do 1.º Exército, mais uma “mágica” feita no destacamento.
Assim como Bolsonaro gostava de se associar à Ustra, o então deputado federal também se aproximou de Belham. Em 2003, a professora Maria de Fátima de Campos Belham, mulher do general da reserva, foi nomeada para trabalhar no gabinete do parlamentar em Brasília. Ali, anos depois, durante a inauguração do busto de Paiva na Câmara dos Deputados, Bolsonaro cuspiria nele, dizendo de Paiva: “Teve o que mereceu, comunista desgraçado, vagabundo!“.
Com a morte de Ustra, em 2015 – o então deputado pretendia ver o nome dele inscrito entre os “heróis da Pátria” –, nenhum outro militar ocupara o espaço nos protestos de militantes de esquerda deixado pelo coronel, cuja imagem simbolizava todos os agentes envolvidos nas violações dos direitos humanos praticadas durante o regime militar. É este o papel que Belham agora parece desempenhar.
Cerca de 400 manifestantes se reuniram na sede do antigo DOI para a Caminhada do Silêncio: além de Bolsonaro, Belham virou alvo da manifestação Foto: Marcelo Godoy / Estadão
Após deixar o DOI do Rio, Belham fez a Escola de Comando e Estado-Maior. Em seguida, foi servir no Centro de Informações do Exército (CIE), onde dirigiu, ainda nos anos 1970, a Seção de Operações do órgão, a 104. Em 1977, ele substituiu nessa tarefa o amigo Brilhante Ustra. Permaneceu ali até transmitir o cargo a outro experiente “mágico” do DOI paulista, o tenente-coronel Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney, que assumiu a chefia da seção em 1980.
Belham é um dos dois únicos réus vivos do processo Paiva – o general foi denunciado pelo crime em 2014. A ação penal subiu para o STF, que agora vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante a ditadura militar. Para tanto, deve julgar três casos – o de Paiva e o de Mário Alves estão entre eles –, que devem ter repercussão geral.
Parte da lista de comandantes da Seção de Operações do CIE; ali estão os nomes dos chefes de 1975 a 1984, que contém quatro veteranos dos DOIs de São Paulo e do Rio: Ustra, Belham, Ênio e Maciel Foto: Arquivo Marcelo Godoy
A tese é a de que a ocultação de cadáver e o sequestro são crimes permanentes, portanto, ainda estariam sendo cometidos depois da Lei de Anistia. Por isso, não seriam abrangido pela legislação que encerrou as ações penais sobre outros crimes praticados por agentes do Estado. O futuro de Belham deve ser definido pelo plenário do STF. Até lá, seu nome deve continuar como uma presença certa nos protestos dos que são contra a anistia do presente e a do passado.
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Saneamento privado e o neoliberalismo
Metade das cidades terá saneamento privado até 2026 Participação, atualmente em 30%, aumentará com 26 leilões em 2025, que resultarão em R$ 70 bilhões em investimentos.
Eric Napoli Paulo Silva Pinto. Poder 360, 30.mar.2025
Empresas privadas serão responsáveis pelos serviços de água e esgoto em 50% das cidades brasileiras até 2026. Atualmente, as concessões já atendem 30% dos municípios.
A carteira de leilões de 2025 está aquecida. Serão 26 projetos ofertados em concessões e PPPs (parcerias público-privadas) até dezembro, um volume recorde para o setor. Os maiores serão no Pará e em Pernambuco, onde 14 milhões de pessoas serão atendidas. Todas as concessões para este ano resultarão em R$ 70 bilhões em investimentos.
Para o ano que vem, estão previstos 2 leilões de saneamento. O maior será a concessão do serviço de água e esgoto no Maranhão, onde se estima um investimento de R$ 18 bilhões. O outro é a privatização do esgoto em 48 municípios do Rio Grande do Norte. Os dados são da Abcon Sindicon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto).
Haverá um investimento de R$ 92 bi para as próximas concessões e PPPs em 35 anos. Desde 2020, as privatizações dos serviços de água e esgoto já levantaram mais de R$ 161 bilhões.
Com as outorgas –valor pago ao Estado pela vencedora do certame– o montante total movimentado pelas concessões de saneamento alcança R$ 216,5 bilhões.
O ano que mais levantou recursos para a universalização do saneamento no Brasil foi 2024. O motivo: a privatização da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), a maior empresa de saneamento do Brasil. O Grupo Equatorial arrematou a concessão na condição de acionista de referência em junho do ano passado.
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Em 2025, o Marco Legal do Saneamento completará 5 anos. O texto definiu como meta ter água tratada para 99% da população e esgotamento sanitário para 90% até 2033. Segundo o Instituto Trata Brasil, que acompanha a evolução do acesso ao saneamento básico no país, 42% dos brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto.
A lei que permitiu ampliar as concessões privadas de saneamento foi aprovada em junho de 2020, no início da pandemia da covid-19, com dificuldade e resistência do PT, então na oposição. Em 2024, o embate foi sobre a privatização da Sabesp.
O Brasil ainda tem uma situação precária no saneamento básico. Um exemplo é Belém, onde será realizada a COP30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) em novembro de 2025. Cerca de 80% da população local não tem acesso a esgoto.
O problema também atinge as duas maiores cidades do Brasil. Em São Paulo, nos rios Tietê e Pinheiros. No Rio, na baía de Guanabara. Analistas avaliam que haveria ganho para o turismo, para o setor imobiliário e para o lazer com a despoluição desses locais.
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Pelé
Zico com a palavra vídeo
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Jacinta Passos
Jacinta Passos: a voz poética e política da Bahia
David Souza
Jacinta Velloso Passos nasceu em 30 de novembro de 1914, na Fazenda Campo Limpo, no município de Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano. Vinda de uma família tradicional e politicamente influente — seu avô, Themístocles da Rocha Passos, foi senador da República — cresceu em um ambiente marcado por fortes valores políticos, intelectuais e culturais.

Em 1924, aos 10 anos, mudou-se com a família para São Félix e, mais tarde, para Salvador. Na capital baiana, estudou na Escola Normal da Bahia, onde se formou em 1932 com destaque, sendo a melhor aluna em matemática. Foi nesse período que começou a escrever seus primeiros versos, inicialmente com temas religiosos, reflexo de sua sensibilidade e de uma religiosidade marcante na juventude.
Durante a década de 1930, passou a frequentar os círculos literários de Salvador, especialmente a Ala das Letras e das Artes (ALA), ao lado de seu irmão Manoel Caetano Filho. Seus poemas logo conquistaram o reconhecimento da intelectualidade local, consolidando sua presença no cenário cultural baiano.
Com o avanço da Segunda Guerra Mundial, Jacinta engajou-se em movimentos antifascistas e pacifistas, aproximando-se de grupos de esquerda. Em 1942, publicou com seu irmão o livro “Nossos Poemas”, que marcou sua entrada formal na cena literária. Dois anos depois, mudou-se para São Paulo, onde se casou com James Amado, irmão do escritor Jorge Amado. Lá, estreitou relações com importantes nomes da cultura e da política, como Oswald de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda.
Em 1945, lançou o livro “Canção da Partida”, ilustrado por Lasar Segall, recebendo elogios da crítica especializada. No mesmo ano, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e candidatou-se a deputada federal pela Bahia. Embora não tenha sido eleita, seu compromisso com as causas populares e a justiça social tornou-se cada vez mais evidente, refletido em sua produção literária e nas suas ações públicas. Em 1951, publicou “Poemas Políticos”, obra que entrelaça lirismo e engajamento, denunciando desigualdades e defendendo utopias sociais.
A partir desse período, começaram a circular discursos que buscavam desqualificar sua atuação política, muitas vezes associando sua conduta a supostos distúrbios mentais. Em um contexto de crescente repressão — especialmente contra militantes de esquerda e mulheres — essas narrativas serviram como estratégia para silenciar sua voz. Ainda assim, Jacinta seguiu escrevendo e publicando. Em 1957, lançou “A Coluna”, um poema épico sobre a Coluna Prestes, reafirmando sua firmeza ideológica.
Ao longo dos anos 1960, viveu em cidades como Petrolina (PE) e Barra dos Coqueiros (SE), onde manteve sua militância política. Em 1965, já sob o regime militar, foi presa após pichar mensagens de protesto contra a ditadura em muros de Aracaju. A prisão ocorreu por militares do 28º Batalhão de Caçadores. Pouco depois, foi institucionalizada sob a alegação de incapacidade mental — uma narrativa imposta pelo regime como tentativa de neutralização política. Jacinta permaneceu internada até sua morte, em 28 de fevereiro de 1973, aos 57 anos.
A vida de Jacinta Passos não foi moldada para agradar — foi feita para confrontar. Mulher, poeta, militante e inquieta, ela escreveu com a coragem de quem não separa palavra e ação. Enfrentou a intolerância, o autoritarismo e as tentativas sistemáticas de apagamento com lucidez e convicção. Sua obra permanece como registro da luta de uma geração que ousou sonhar com justiça social e que pagou caro por isso. Jacinta não é memória suavizada: é denúncia viva, é poesia em estado de combate.
Por David Souza
Conteúdo Pedagógico
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Ruth de Souza e Léa Garcia
Bárbara Reis interpretará Ruth de Souza em peça sobre amizade com Léa Garcia
Espetáculo tem estreia marcada no Rio de Janeiro
Mônica Bergamo, fsp, 07/04/2025
A atriz Bárbara Reis, protagonista da novela das nove da TV Globo "Terra e Paixão", interpretará Ruth de Souza no teatro. Ela será acompanhada por Ivy Souza, que dará vida a Léa Garcia, em uma peça sobre a amizade das duas artistas.
O espetáculo estreará em 7 de junho no Teatro Gláucio Gil, no Rio de Janeiro, e ficará em cartaz até 28 de julho.
A atriz Barbara Reis - Ronny Santos/Folhapress
O diretor da montagem, Luiz Antônio Pilar, conta que Ruth sugeriu a ele o desenvolvimento de um projeto com a amiga, Léa, anos atrás.
O espetáculo acabou não saindo do papel antes da morte de ambas —Ruth em 2019 e Léa em 2023. Ele agora retoma os planos para homenagear a dupla.
"É a história de duas atrizes contemporâneas, jovens, que chegam no primeiro dia para ensaiar com uma diretora de um filme que vão fazer sobre Ruth e Léa. Vai ser um metateatro [obra que remete a si própria]", diz.
Veja fotos da atriz Ruth de Souza, que morreu aos 98 anos
O figurino é assinado por Rute Alves, primeira porta-bandeira da escola de samba Unidos do Viradouro. O texto é de Dione Carlos.
Pilar ganhou o prêmio Shell de melhor diretor por seu trabalho no musical "Leci Brandão — Na Palma da Mão", sobre a cantora e compositora.
Veja imagens da atriz Léa Garcia, atriz que marcou o cinema, teatro e novelas nacionais
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Maria João Pires
Maria João Pires - Julien Brocal: Schubert, Fantasie in F minor D.940 op. 103 vídeo
J.S. Bach: Cantata "Wachet auf", BWV 140 (complete) - Makris Symphony Orchestra and Choir "Orfelin" vídeo
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'Minha professora protegeu o criminoso nazista mais procurado do mundo'
Sarah Alves Moura, UOL, 03/04/2025
A jornalista Betina Anton resgatou memórias da infância para escrever o livro "Baviera Tropical" (Editora Todavia, 384 páginas), que conta a vida de Josef Mengele no Brasil. O médico nazista chamado de "anjo da morte" passou 18 anos no país e morreu em Bertioga, no litoral paulista, em 1979.
A obra ganhou o Jabuti — mais tradicional prêmio da literatura brasileira—, na categoria biografia e reportagem, em novembro. Ao UOL, Betina conta o que descobriu sobre a trajetória de Mengele no Brasil —e relata uma conexão improvável de sua infância com uma personagem do caso.
Betina Anton, autora do livro 'Baviera Tropical', que repassa os anos do nazista Josef Mengele escondido no Brasil Imagem: Marcelo do Lago
'Estranhei perder a minha professora'
Mengele era da SS (Esquadrão de Proteção, na tradução para o português), a tropa de elite do regime nazista.
O médico tinha o objetivo de terminar a guerra com o status de um grande pesquisador. Por isso, ficou famoso por experimentos sem base científica, feitos no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em que usava os prisioneiros como cobaias.
Ele priorizava pesquisas com ciganos e gêmeos, para provar a suposta superioridade da raça ariana, uma das bases ideológicas do nazismo.
Betina tinha 6 anos quando sua professora Liselotte Bossert foi descoberta por acobertar Mengele no Brasil. O nazista viveu em São Paulo entre 1961 e 1979, quando morreu aos 67 anos afogado na Praia da Enseada, em Bertioga, nos braços da família Bossert.
Mengele e os Bossert conviveram por 10 anos. Eles foram apresentados por Wolfgang Gerhard, seu aliado de fuga, um austríaco "nazista de carteirinha", como define a autora. Mengele mentiu sua identidade de início, mas não foi rejeitado ao revelá-la e era chamado de "tio" pelos filhos do casal.
Foi Liselotte quem cuidou do enterro do nazista em Embu das Artes, usando o nome de Gerhard.
Em 1985, autoridades alemãs interceptaram cartas dos Bossert e avisaram a polícia brasileira, que fez buscas. Mengele, morto, foi encontrado. Liselotte demitiu-se, e a família ficou na mira da imprensa e das autoridades do mundo todo.
Betina conta no prefácio do livro que as memórias da tante (tia) Liselotte são também algumas das primeiras que tem na vida.
O médico nazista Josef Mengele Imagem: Reprodução
Liselotte Bossert e os filhos, ao lado de Josef Mengele Imagem: Reprodução/Revista Stern A autora estudava em um colégio alemão na zona sul de São Paulo, e a ausência repentina da professora e o alvoroço sequente lhe davam a impressão de algo grave acontecendo, mesmo sem saber o que era.
"Era um mistério, eu ouvia o nome 'Mengele', mas não sabia o que era nazismo, o que ele tinha feito, não sabia o que eram os campos de concentração, mas foi algo que teve um impacto forte na minha infância", conta.
"Eu tinha seis anos de idade e estranhei perder a minha professora de uma hora para outra. Por que ela não viria mais? O que aconteceu? Eu sentia que o zum-zum-zum dos adultos em torno desse assunto guardava um ar de gravidade. Não sabia exatamente o que era, mas na minha percepção infantil entendi que havia algo errado. Tante Liselotte, a quem nossos pais nos confiavam todas as manhãs, tinha dado proteção ao criminoso nazista mais procurado do mundo naquele momento: Josef Mengele."
Baviera Tropical, pág. 8.
Mengele (ao centro), ao lado de Richard Baer (à esq.) e Rudolf Hoess -- ambos também trabalhavam em Auschwitz Imagem: Universal History Archive via Getty Images
Betina foi à procura de Liselotte Bossert enquanto apurava o livro. Sozinha, foi ameaçada por ela, que não quis falar sobre o passado com o nazista. A jornalista também diz que sofreu ameaças de processos, não relatadas no livro.
Liselotte Bossert e seu marido, Wolfram, nunca tentaram negar o vínculo com o nazista.
À época da exumação do corpo de Mengele, em 1985, a ex-professora disse que o nazista se arriscou em Auschwitz para tratar pessoas doentes e que reclamava de ser "pintado como o diabo" no mundo todo. Wolfram afirmou que Mengele "era um homem bom" e que alegava ter ser sido forçado a cumprir ordens. Ambos negaram sofrer ameaças para mantê-lo escondido.
A PF indiciou o casal por esconder um estrangeiro clandestino, em 1986. Liselotte também respondeu por falsidade ideológica, por enterrá-lo com nome falso. Apenas ela foi denunciada, em outubro daquele ano. Em 1994, foi condenada a pagamento de multa e dois anos de prisão, mas a defesa recorreu e, três anos depois, a Justiça disse que o crime já havia prescrito.
Liselotte morreu em 2018, segundo uma vizinha, meses após falar com Betina.
'É uma história internacional'
Josef Mengele, em fotos de 1930 Imagem: Getty Images
A autora tinha receio de como a comunidade alemã receberia a história, mas o retorno foi positivo aqui e fora do Brasil: a obra foi traduzida e está à venda em 15 países.
"É uma história internacional, com vítimas de diversas nacionalidades, e acho que todo mundo quer entender como esse cara passou tanto tempo no Brasil incólume, e qual a nossa reação, como brasileiros. A história já foi contata por gringos, mas nunca a fundo do nosso ponto de vista."
A autora encontrou documentos inéditos nos arquivos da PF. Eram cartas, trocadas entre Mengele, seus amigos e familiares.
Os registros mostram detalhes da vida do fugitivo no Brasil, que passou por Nova Europa, Serra Negra e pelo bairro de Eldorado, onde tinha uma casa às margens da represa Billings.
Filho de Mengele, o advogado Rolf disse que o nazista teve uma vida "miserável" no Brasil, mas a autora rebate.
Betina reconstituiu o dia a dia do alemão. Mengele passou seus últimos anos em um sítio, ia à praia com os Bossert, gostava de ler e tinha acesso a livros em alemão vindos de uma loja no Brooklin, na zona sul da capital paulista. A preocupação com o intelecto era constante, e ele gostava de manter conversas de "alto nível".
"Mengele reclamava, sim, mas a vida dele não era miserável. Tem relato dele indo à churrascaria, tomando banho de cachoeira, indo para o sítio. Ele ia à praia, tanto é que ele morreu lá, nos braços dos amigos. Que vida miserável é essa? É uma vida melhor do que muita gente tem, que muito aposentado no Brasil tem."
'Baviera Tropical' ganhou o Jabuti 2024 na categoria biografia/reportagem Imagem: Divulgação/Todavia
Racismo e medo da solidão
Mengele dizia ter pavor de negros.Luís, jardineiro que trabalhava em sua casa, citou à PF falas racistas de "seu Pedro", como o alemão era chamado. "O racismo dele contra os judeus na Europa se tornou um racismo contra os negros no Brasil", explica Betina.
"Com base nesse racismo odioso, ele criticava a novela Escrava Isaura, um dos maiores sucessos da televisão brasileira. Dizia que não gostava da produção porque havia muitos negros. Mas assistia mesmo assim pelo prazer em ver os escravizados serem maltratados."
Baviera Tropical, pág. 269
O nazista se dizia solitário e citou o medo de morrer só. "Mengele era bem quisto na região do Eldorado, mas na passagem de uma carta dá para entender o que ele pensa internamente e ele tinha muito medo de morrer sem afeto", diz Betina.
Trocas de cartas mostravam também que Mengele valorizava a amizade e apreciava a natureza brasileira.
Casa onde Mengele viveu entre 1973 e 1979, no bairro de Eldorado Imagem: Robert Nickelsberg/Getty Images
'Tinha muitas perguntas'
Mesmo com a ligação pessoal, a autora diz que a ideia de contar a passagem de sua infância surgiu só ao longo da apuração. Seu intuito com o livro era entender os impactos da vinda de Mengele e de outros nazistas ao Brasil, além do contexto histórico da época — a jornalista também é mestre em história internacional pela Escola de Economia e Ciência Política de Londres.
"Tive a ideia em 2016 e tinha muitas perguntas para começar a pesquisa, como: o que era verdade nas pesquisas de Mengele em Auschwitz? Como foi a recepção dessa história na comunidade alemã em São Paulo? Quem sabia e quem não sabia que ele se escondia aqui? Foi uma parte grande da pesquisa, porque tive muitas perguntas que eu mesma fazia e queria saber a respostas." Betina Anton
Betina conta que Mengele não citava os crimes de guerra que cometeu."Em nenhum momento ele fala de Auschwitz, repensa o que fez ou faz uma mea culpa."
O filho do nazista também já havia dito em entrevistas anteriores que ele não mencionava o passado como integrante da SS. Por isso, Betina dedica capítulos ao histórico do nazista na Segunda Guerra.
Para a autora, por mais que o foco do livro seja a vida dele no Brasil, apresentar o contexto é importante para entender o que ele fez.
Além de usar os prisioneiros como cobaias, ele tinha como assistentes vários dos grandes médicos da Europa, que eram prisioneiros também. Todos trabalhavam de graça e ainda ficam agradecidos, porque estava salvando a vida.
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Wagner Tiso
Wagner Tiso | Maestro, Pianista e Compositor | Papo com Clê vídeo
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Quantos planetas e estrelas existem no espaço? Entenda a conta polêmica
Do UOL, em São Paulo 15/10/2022
A conta não é unânime, mas os números são, literalmente, astronômicos. Estudos de astrofísicos da universidade de Harvard, nos EUA, calculam que existam cerca de 17 bilhões de planetas parecidos com a Terra apenas na Via Láctea. Se ampliarmos a pesquisa para qualquer tipo de planeta (semelhantes aos gigantes gasosos do nosso sistema solar), este número salta para 100 bilhões.
Esta quantidade, porém, ainda é ínfima diante do total mais comumente aceito pelos cientistas do número de estrelas existentes: 70 sextilhões (1022). As estimativas indicam também que há cerca de 100 bilhões (1011) de galáxias.
Mas nem os cientistas mais sérios se atrevem a calcular quantos planetas existem ao todo no universo. Por uma razão simples: estrelas e galáxias podem ser observadas porque emitem luz. Já planetas não são facilmente encontrados.
Planetas fazem parte de sistemas solares. Em média, a cada seis estrelas, uma contém um corpo rochoso como a Terra em sua órbita. Como não possuem luz própria e são muito pequenos (em relação a outros objetos), fica difícil para nós enxergarmos planetas a olho nu, até mesmo na Via Láctea.
Isso explica por que, desde a década de 90, quando foram descobertos os primeiros planetas fora do Sistema Solar - os exoplanetas -, apenas 5000 deles foram observados pelos astrônomos.
Para encontrar um planeta, é preciso sorte. Normalmente, os descobertos são grandes e estão bem perto das estrelas que orbitam.
Quando os telescópios observam uma estrela e surge um ponto negro que "caminha" pela imagem, isso indica que um planeta pode estar passando entre a estrela e o telescópio. Também é possível observar a perturbação da órbita de um astro devido à presença de outro, sem que este seja visualmente detectado.
Cálculo intergaláctico
Observar estrelas e galáxias pode ser mais fácil - mas, ainda assim, os cientistas precisam recorrer às estatísticas. Para começar o cálculo, os cientistas escolhem uma área específica do Universo para observar. Com imagens obtidas por telescópios comuns, eles contam o número de estrelas ou galáxias encontradas nesta área. A partir daí, entra a estatística para extrapolar o número contado na amostra e encontrar dados que representem o volume total.
Há ao menos um consenso quando cientistas contam galáxias: eles concordam com o princípio de que o Universo tem a mesma aparência em qualquer direção que se observa. Isso quer dizer que um observador, em qualquer parte do Universo, vai sempre observar as mesmas propriedades, independentemente da geometria geral dele.
Fontes: Sandra dos Anjos, professora do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP; Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics; site kepler.nasa.gov.
No universo: estrelas existentes: 70 sextilhões (1022). As estimativas indicam também que há cerca de 100 bilhões (1011) de galáxias. 17 bilhões de planetas parecidos com a Terra apenas na Via Láctea. Se ampliarmos a pesquisa para qualquer tipo de planeta (semelhantes aos gigantes gasosos do nosso sistema solar), este número salta para 100 bilhões.
A polêmica Image
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'Adolescência' retrata uma família 'normal'?
O sofrimento da família é tão palpável que não há como não se identificar com ela
Vera Iaconelli, fsp, 31/03/2025
A série "Adolescência" https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2025/03/adolescencia-sera-transmitida-nas-escolas-anuncia-governo-britanico.shtml ainda levanta questões a serem discutidas. A mais insistente diz respeito às razões que levariam um menino de 13 anos a esfaquear uma colega.
O filme carrega nas tintas ao retratar a escola como um ambiente caótico e hostil enquanto aponta o perigo das redes sociais. No entanto, sabemos que mesmo escolas que oferecem as melhores condições pedagógicas, nas quais não pairam dúvidas sobre a implicação do corpo docente, padecem da violência entre alunos.
Temos exemplos recentes disso e eles corroboram o efeito subterrâneo da internet nas relações sociais. Não cansaremos de afirmar a necessidade de coibir o uso do celular nesse ambiente e a seletividade e regulação de seu uso fora dele.
Por outro lado, existe uma certa condescendência em relação à família retratada. Famílias fazem uma aposta de longo prazo na criação de filhos, e só o tempo é capaz de dizer o que resultará dela. Recebemos uma educação que nos marcou, consciente e inconscientemente, estamos imersos na cultura de uma época, vivemos inúmeras experiências ao longo de nossas vidas.
Famílias são compostas do encontro desses diferentes repertórios de seus integrantes. Além disso, cada filho será tratado de forma particular e responderá a isso de maneira única. Os resultados nunca serão previsíveis.
O pai interpretado na obra fala de sua decisão de não espancar os filhos como seu próprio pai o espancava. Fala também de seu embaraço em ver o filho não corresponder às suas expectativas no esporte.
O menino demonstra pendor para o desenho, uma qualidade talvez menos viril aos olhos de ambos. Que ele retrate o pai ao final do filme, momento crucial para o adolescente, não é um detalhe menor: assumir-se como sujeito não vai sem responsabilizar-se por seus atos.
As mulheres retratadas no núcleo familiar são passivas e focadas em manter a figura do pai íntegra. Os assuntos pendentes entre o casal fazem ruído, revelando que não basta amar; há que falar sobre os demônios de cada um. A filha, que poderia ser a porta-voz de uma nova geração de mulheres, não representa uma alternativa para o casal convencional.
O amor, o cuidado são palpáveis, mas os padrões de gênero que fomentam a violência masculina e a condescendência feminina permanecem lá em nome da família.
Os pais de Jamie não são monstros, seu sofrimento é tão sincero e palpável que fica difícil não se identificar com eles. Mas incorrem em erros que devem nos fazer refletir se quisermos entender as brechas exploradas por grupos misóginos na internet.
A família comum não é necessariamente "normal", é apenas corriqueira.
Outra questão diz respeito às demais representações femininas no filme. Há quem se incomode com o choro da psiquiatra após o atendimento do jovem. Diante da violência e da miséria psíquica e social com a qual se depara, ela teria que seguir a cartilha masculina e esconder seus sentimentos até de si mesma?
Não nos cabe seguir o exemplo dos homens no trato com os afetos — sabemos no que isso dá.
Quanto ao filme ter sido escrito e dirigido por homens, penso que cabe a eles tomarem posição frente à violência que perpetuam. Estamos exaustas de fazer isso em seu lugar.
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Foreman x Ali: a maior das lutas e um livro que não merece ser esquecido
Rodrigo Casarin, Splash, 31/03/2025
Foreman tenta golpear Ali Imagem: Wikimedia Commons
"No último minuto, tendo forçado Ali contra as cordas e estando junto a ele, Foreman afastou-se e enviou um uppercut de direita por entre as luvas de Ali, e depois mais um. O segundo atravessou o topo da cabeça de Ali como uma lança. Os olhos de Ali se elevaram consternados e ele segurou o braço direito de Foreman com o seu esquerdo, apertou-o, agarrou-se. Mesmo com o braço seguro, Foreman ainda estava disposto a enviar a sua boa direita de novo, o que fez".
Pego da biblioteca "A Luta", lançado originalmente em 1975 e publicado pela Companhia das Letras em 1998. Quem traduziu essa versão que tenho em mãos foi Cláudio Weber Abramo. Há edições mais recentes. Em 2019, a L&PM mandou para as livrarias a sua versão desse clássico dos livros esportivos. Aqui, Rodrigo Breuning traduziu o texto de Norman Mailer.
Sigo na trocação de socos e agarrões com o português de Abramo:
"Quatro direitas pesadas e só meio abafadas, contundentes como os golpes desferidos contra o saco, duas contra a cabeça, depois duas no corpo, chocando-se contra Ali mesmo seguro por este, e era evidente que os socos estavam doendo. Ali saiu das cordas no abraço mais determinado de sua vida, as duas luvas presas atrás da nuca de Foreman. Os brancos dos olhos de Ali exibiam o aspecto vidrado de um soldado em combate que acaba de ver um braço desmembrado voar pelo céu após uma explosão. Que tipo de monstro era aquele?"
Norman Mailer anda esquecido. Ao lado de gente como Gay Talese, Tom Wolfe e Joan Didion, é um dos grandes nomes dos Estados Unidos quando o assunto é não ficção narrativa ou jornalismo literário. Dentre seus prêmios estão dois Pulitzers, vencidos em 1969 e 1980.
O boxe também está em baixa. Foi surrado pelo vale-tudo. Na literatura, segue fazendo sucesso como metáfora —a ideia do conto vencer por nocaute; o romance, por pontos. Imagens quase sempre usadas por gente que nunca chegou nem perto de sentir o que é um nocaute.
Já treinei muay thai. Apesar de ter o chute com a perna esquerda como golpe mais forte, a parte do boxe era a de que mais gostava. Às vezes tenho saudades de atar os punhos, vestir luvas, morder o bucal e trocar meia dúzia de bordoadas. É uma parte da vida tão esmaecida como parece ser o boxe nos dias de hoje.
E George Foreman, convenhamos, também não estava entre os atletas mais lembrados. Sua morte espantou alguns; supunham que o pugilista já estava morto. Outros tantos o reconheciam mais pelas chapas de esquentar carne —me recuso a chamar aquilo de churrasqueira— do que pelos seus feitos no ringue, dentre eles dois títulos mundiais dos pesos-pesados e a medalha de ouro nas Olimpíadas da Cidade do México, em 1968.
Em 1974, Foreman foi ao Zaire, hoje República Democrática do Congo, para enfrentar uma divindade da história do esporte: Muhammad Ali. Em jogo, muito mais do que um título mundial. No ringue, trocaram duros sopapos homens que representavam formas diferentes de enxergar e de se posicionar num mundo marcado por Guerra Fria, invasão do Vietnã e movimentos pelo fim da segregação racial nos Estados Unidos, país natal de ambos.
Mailer também partiu para o Zaire para acompanhar tudo de perto. Colou em Ali, politicamente mais próximo de suas próprias convicções. Soube aproveitar o que os dois atletas simbolizavam para, a partir de uma luta e de tudo o que estava no seu entorno, escrever um livro reportagem que nos ajuda a compreender aquela metade de anos 1970.
E reconstruiu com maestria o que aconteceu no ringue. Desconfio que ler Mailer pode ser até mais impactante do que rever a luta, uma batalha épica. Das cordas que encurralavam Ali na cena pescada do livro que veio a sacada genial decisiva para que o boxeador derrotasse seu oponente, um Foreman pintado como uma espécie de antagonista na escrita de Mailer.
Mailer anda esquecido. O boxe, desprestigiado. Ali descansa no panteão há algum tempo. Foreman virou, para muitos, nome de parafernália doméstica. Apesar disso tudo, grandes livros sempre merecem ser lembrados. Não nos esqueçamos de "A Luta".
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Identidade é peso leve em lutas civis
Em termos humanos, não existe identidade negra, nem branca, ou qualquer outro essencialismo racial
Muniz Sodré, fsp, 29/03/2025
O identitarismo é ponto central no feroz ataque de Trump aos deslocamentos simbólicos em curso nos EUA e no mundo. Curioso é que o energúmeno advoga identidade nacional fechada para o seu país, ao mesmo tempo que investe contra outras reivindicações nessa linha argumentativa.
Na gangorra entre publicidade (Steve Bannon) e performance destrutiva (Elon Musk), ele apregoa uma verdade única para a América. Mas não há nada de verdadeiro numa identidade com o rótulo de América, que sempre equivaleu a poder mercantil, financeiro e tecnológico, também como força letal ou dissuasiva.
Disso sempre fez alarde a América, desde a Segunda Guerra, como paradigma para o resto do mundo. País de imigração contínua, sem hastear bandeira de identidade nacional excludente.
Americanos que vivem na Espanha protestam, em Madri, contra as políticas do presidente Donald Trump - Isabel Infantes/Reuters
A questão identitária emerge nos anos 1970, com caráter contra-hegemônico, numa corrente de estudos ("Teoria Racial Crítica") empenhada em desmontar mecanismos institucionais que relegam os negros à subalternidade. Embora invisível, já existia um identitarismo branco diferente, porque racista, negador da humanidade do outro.
Mas toda identidade é ilusória, embora protetiva quanto às oscilações da consciência. Serve para controle nos documentos de Estado, sem implicar nenhuma essência biológica. No movimento antirracista, é só um construto validado por uma comunidade política. Em termos humanos, não existe identidade negra, nem branca, ou qualquer outro essencialismo racial.
Os EUA atravessam uma conjuntura histórica de alterações significativas na composição demográfica, com crescimento extraordinário da porcentagem de cidadãos de cor da pele diversa. Identitarismo, inflexão crítica para designar com potência renovada o antirracismo, passou a abranger questões de gênero em suas modulações. Ao se ampliar, porém, esticou ao limite a sua validação político-comunitária, enfraquecendo-se. Basta ver os imigrantes latinos nos EUA: não alegam identidade nenhuma, querem apenas inserção nacional. Seu horizonte é o do "mestre protetor" (como Marx percebeu nos camponeses franceses abatidos e humilhados), o mesmo fenômeno do oprimido seduzido pelo opressor. Uma lógica não solidarista do tipo "isso é problema dos novos, não dos antigos".
A questão deixa implícito o campo afetivo, decisivo para a compreensão dos relacionamentos intersubjetivos por parte dos que participam ou apenas orbitam em torno das movimentações civis. Assim, emoções intensas podem instilar em afrodescendentes a fantasia de uma identidade racial essencialista em reação à outra, fabricada pelo paradigma colonialista da branquitude. Mas ambas são manufaturas biopolíticas reificadas. Seria um atraso cognitivo e existencial levá-las a sério e arguir um exclusivo lugar de fala.
Entre nós, tem pesado a confusão entre identitarismo e identidade. São coisas diferentes, apesar da derivação vocabular. O conceito de identidade apenas sobrevoa o identitarismo, por sua vez um biombo semiótico para minorias. Não tem verdade acadêmica, mas é motor de ação política, jamais pretexto para ataques nem expressões de ressentimento racial.
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A ascensão do autoritarismo nos EUA é uma realidade
Jamil Chade, UOL, em Nova York, 28/03/2025
26.mar.2025 - A secretária de Segurança Interna dos Estados Unidos, Kristi Noem, em visita à prisão de segurança máxima dos EUA em El Salvador Imagem: Alex Brandon / POOL / AFP
Primeiro foram deportados os criminosos estrangeiros, aqueles indesejados numa sociedade que zela pela segurança de seus filhos. Muitos aplaudiram. Depois, foram os estrangeiros sem documentos que cometeram o crime de cruzar as fronteiras para tentar sobreviver. Mais uma vez, muitos não contiveram o sorriso. Mas não demorou para que as deportações e prisões chegassem aos estrangeiros, desta vez com todos seus papéis em ordem. Seus crimes? Expressar suas opiniões políticas.
Enquanto isso, acadêmicos passaram a ter recursos cortados por tratarem de temas "inadequados".
De repente, um mal-estar se estabeleceu.
Um novo dicionário foi publicado, vetando termos que não seriam mais adequados numa sociedade livre. Em um ano, nos estados ultraconservadores, dez mil obras foram censuradas de bibliotecas públicas e escolas.
Em palanques que flertam com cenas que pensávamos que eram incapazes de serem repetidas depois da queda do nazismo, a sugestão é de que até mesmo americanos poderiam também ser expulsos do país.
Nesta semana, uma imagem me chocou. A responsável pela Segurança Interna dos EUA, Kristi Noem, fez questão de gravar uma mensagem aos imigrantes num cenário aterrorizante. Atrás dela, não havia uma bandeira americana. Mas uma cela onde estavam homens, todos eles desnudos da parte de cima do corpo, amarrados, com a cabeça raspada e humilhados.
A ordem do governo é a de instaurar o medo. Conseguiram.
Relatos cada vez mais frequentes apontam que, temendo serem presos, imigrantes deixaram de ir ao trabalho. O resultado tem sido um desabamento de suas rendas. Sem dinheiro e ainda mais pobres, constatam que estão ainda mais vulneráveis. Cada vez mais soterrados.
Nos gabinetes do governo, a ordem é ainda a de interromper qualquer ajuda financeira, moradia ou saúde para quem não está de forma regular no país. Asfixiar os sonhos como estratégia política.
Do Salão Oval, a ordem é também a de atacar a imprensa profissional, fechar órgãos públicos de mídia e humilhar jornalistas. A censura ainda chega às artes, às universidades e cala a todos os que temem por seus destinos profissionais.
A agressão diária à constituição americana é ainda acompanhada por declarações de apoio pela expulsão de juízes, violando os princípios básicos da separação de poder numa república.
Na Casa Branca, propostas começam a ser desenhadas para que trabalhadores sejam impossibilitados de atuar em sindicatos.
Não nos enganemos: a ascensão do autoritarismo nos EUA do século 21 é uma realidade e está ocorrendo diante dos nossos olhos.
David Frum, ex-redator de discursos de George W Bush, publicou nas redes sociais um alerta:
"Quase todas as principais ações de Trump são intencionalmente ilegais. Trump está apostando que o sistema democrático dos EUA está quebrado demais para impedi-lo. Ele supõe, para usar uma frase: 'Tudo o que temos de fazer é chutar a porta e todo o edifício desmoronará'. Chegou a hora do teste."
O experimento democrático de 240 anos dos EUA está ameaçado.
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Heloisa Teixeira (1939-2025)
Morre Heloísa Teixeira, que mudou rumos do feminismo e da crítica cultural no Brasil
Intelectual da Academia Brasileira de Letras tinha 85 anos e abandonou o sobrenome Buarque de Hollanda já octogenária
Luisa Destri, fsp, 28/03/2025
A escritora Heloísa Teixeira, durante entrevista à Folha, em 1981 - Lewy Moraes - 22.jan.81 / Folhapress
Morreu nesta sexta-feira (28) a crítica literária Heloísa Teixeira, aos 85 anos, no Rio de Janeiro. Ela estava internada por causa de uma pneumonia dupla, segundo informações da Academia Brasileira de Letras.
Uma das maiores intelectuais do país durante décadas, ela já passava dos 80 anos quando anunciou que gostaria de mudar o nome pelo qual era conhecida.
Professora emérita da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia Brasileira de Letras desde 2023, Heloísa Buarque de Hollanda foi responsável pela publicação de dezenas de livros como autora ou organizadora. Mas, em 2024, decidiu assinar "Rebeldes e Marginais: Cultura nos Anos de Chumbo (1960-1970)" como Heloísa Teixeira.
O gesto teve força simbólica, já que tirou de cena o sobrenome do primeiro marido, de quem ela havia se separado no fim dos anos 1960, e fez surgir o da mãe, figura pouco lembrada nas narrativas que refazem o percurso intelectual e profissional da filha.
Heloísa Buarque de Hollanda em cena do documentário 'Helô' Divulgação
Quem é Heloisa Teixeira fotos
Nascida em Ribeirão Preto (SP), teve trajetória de grande influência masculina —como do pai, professor de medicina, de Afrânio Coutinho, professor do curso de letras de quem foi assistente no início da carreira, e do sociólogo Darcy Ribeiro, vice-governador do Rio de Janeiro que a nomeou diretora do Museu da Imagem e do Som na década de 1980.
As mulheres, porém, motivaram suas mais decisivas escolhas intelectuais, a ponto de a professora de literatura brasileira, formada em letras clássicas pela PUC do Rio de Janeiro em 1961, ter se tornado expoente feminista da crítica cultural no país —e, mais recentemente, principal interlocutora universitária de artistas e escritoras provenientes da periferia.
Em seus dois trabalhos autobiográficos — o volume intitulado "Escolhas", de 2009, e a coletânea "Onde É que Eu Estou?", de 2019 —, Heloísa relatou a definição progressiva de seu campo de atuação como pesquisadora.
Descobriu o próprio país durante uma temporada nos Estados Unidos, quando, acompanhando o primeiro marido, Luiz Buarque de Hollanda, atuou como assistente de pesquisa no Instituto de Estudos da América Latina na Universidade Harvard.
Na volta, em 1964, após aproximar-se de Coutinho, ingressou como docente na UFRJ, ministrando cursos principalmente sobre José de Alencar, Lima Barreto e Mário de Andrade —este, tema de sua pesquisa de mestrado, que resultou na publicação de "Macunaíma: Da Literatura ao Cinema" alguns anos depois, em 1978.
Até a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, viveu a efervescência no ambiente urbano e universitário do Rio de Janeiro, o que permitiu a construção de sua identidade profissional e de gênero como uma "experiência feminina fundamentalmente coletiva".
No contexto das mudanças comportamentais e políticas de sua geração, em oposição ao regime militar, as mulheres encontravam, sob estímulo do feminismo, um ambiente favorável à entrada na vida pública.
Pessoalmente, as novidades se refletiram no divórcio de Heloísa e Luiz, já pais de três filhos, após uma festa de Réveillon que ocasionou outras 17 separações, como relatou o amigo Zuenir Ventura em "1968: O Ano que Não Terminou".
Profissionalmente, a atuação na Faculdade de Letras da UFRJ, então improvisada em um galpão, forjou uma maneira de olhar para a produção cultural do presente. "Eu fui tirando tudo quanto é parede para o resto da vida", apontou ela.
Diante do vazio cultural posterior a 1968, realizou dois movimentos importantes. Experimentou uma "euforia criativa" decorrente de seu interesse pelo audiovisual, dirigindo documentários, atuando como cenógrafa e realizando programas de rádio e vídeos.
Nessa época, casou-se com o segundo marido, o fotógrafo João Carlos Horta, com quem permaneceu até a morte dele, em 2020. Além disso, passou a acompanhar a produção poética contemporânea, que parecia buscar formas de resistir ao contexto político, social e cultural da época.
Daí surgiu o primeiro trabalho a tornar seu nome conhecido: a antologia "26 Poetas Hoje", de 1976, reunindo jovens da geração que ficaria conhecida como mimeógrafo ou marginal —autores que produziam seus livros artesanalmente, fora do circuito editorial, e que atuavam na contracultura, como Ana Cristina Cesar, Torquato Neto e Roberto Piva.
Ana Cristina Cesar - fotos
A barulhenta reação à publicação, acusada de carecer de valores literários, motivou a formação de um grupo de estudos em que Heloísa, ao lado do poeta e amigo Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, buscou "fundamentos mais científicos para nossa atração fatal pela geração mimeógrafo", como afirmou a pesquisadora em entrevista.
Essa mesma poesia seria objeto de sua tese de doutorado, defendida em 1979 e publicada como livro em 1980, com o título "Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde (1960/1970)". Já as reflexões sobre a literatura realizadas à altura a levaram a expandir os fundamentos de sua atuação.
De seu "BBB teórico inicial", isto é, Walter Benjamin, Roland Barthes e Mikhail Bakhtin, se voltou a problematizar a produção artística e literária. Em 1980, publicou "Cultura e Participação nos Anos 60" ao lado do jornalista Marcos Augusto Gonçalves.
A ampliação do repertório aconteceria na década seguinte, em uma nova temporada nos Estados Unidos. Durante o pós-doutorado em sociologia da literatura na Universidade Columbia e a atuação como professora visitante de cultura brasileira em Stanford, se aprofundou nos estudos culturais, em especial no pensamento teórico feminista que então se desenvolvia na universidade.
Elaine Showalter, Jean Franco, Gayatri Spivak e Donna Haraway foram algumas autoras que estiveram em uma antologia preparada por ela em 1994: "Tendências e Impasses — O Feminismo como Crítica de Cultura".
No ambiente universitário, sua atuação "sem paredes" se caracterizou pela recusa em ocupar o lugar da professora transmissora de conhecimentos. Para além de adotar o formato de seminário em seus cursos e de realizar encontros em sua própria casa, investiu na interdisciplinaridade e na extensão.
Na Escola de Comunicação da UFRJ, fundou, em 1986, o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos e, em 1994, o Programa Avançado de Cultura Contemporânea.
A partir deste, deu início 15 anos depois àquele que considerou o projeto mais importante de sua vida, a Universidade das Quebradas, laboratório que propõe encontro entre estudiosos e produtores de cultura da universidade e da periferia.
Mesmo aí, continuou voltada às mulheres, como mostra a série "Pensamento Feminista", que organizou para a editora Bazar do Tempo entre 2019 e 2020, e a antologia "As 29 Poetas Hoje", de 2021, em que revisitava por outra ótica e temporalidade a proposta de sua coletânea já referencial dos anos 1970.
"O feminismo é uma lente que altera sua visão de mundo. E quando essa lente fica subcutânea, ferrou", afirmou certa vez. A fala é reveladora não só pelo conteúdo, mas também porque traz, mesmo transcrita, a combinação entre desembaraço e elaboração intelectual característica da pesquisadora.
Descrita por amigos, companheiros de trabalho e orientandos como generosa, antenada e antecipadora de tendências, Heloísa foi definida pelo romancista Luiz Ruffato como "contemporânea da contemporaneidade" e por Zuenir Ventura como uma pessoa capaz de enxergar, na aparente calmaria do oceano, a onda ainda começando a se formar.
Já Cacaso dedicou à amiga o poema "Relógio Quebrado", que ela mesma identificou como o seu melhor retrato: "Não sei parar na hora/ Certa".
Deixa os filhos André, Pedro e Luiz, conhecido como Lula.