segunda-feira, 18 de novembro de 2024

Carlos Drummond de Andrade e o cinema

Drummond registrou paixão pelo cinema ao longo de 60 anos

Livro reúne textos do poeta sobre filmes e atrizes de sua predileção 

Sérgio Augusto, fsp, 16/11/2024

O poeta Carlos Drummond de Andrade, em imagem do livro "O Cinema de Perto" (ed. Record), antologia de seus textos sobre filmes e suas atrizes favoritas - Fundo Correio da Manhã / Arquivo Nacional

"Mas tudo que amamos verdadeiramente, não é bonito, é intenso, e dói"

[RESUMO] O texto a seguir é o prefácio de Sérgio Augusto para o livro "O Cinema de Perto", que reúne a produção em prosa e verso de Carlos Drummond de Andrade sobre o tema, publicada em jornais de 1920 a 1980. Um apaixonado cinemeiro , termo que preferia a cinéfilo, o poeta escreveu sobre seus filmes favoritos, fez declarações de amor para atrizes (Greta Garbo antes de todas), defendeu as vantagens do preto e branco em relação às cores, combateu a censura, celebrou a geração do cinema novo e torceu o nariz para figurões da modernidade das telas, como os cineastas Godard, Antonioni e Bergman.

Quem se aventurar a escrever a história da crítica de cinema praticada por poetas dificilmente encontrará um ancestral do norte-americano Vachel Lindsay (1879-1931). 

Um dos fundadores da poesia cantada moderna, o jazz poet de Illinois também foi o primeiro poeta a escrever sobre filmes e estética cinematográfica de que se tem registro, inclusive sob a forma de livro: seu pioneiro "The Art of the Moving Picture" foi posto à venda em 1915, quando Hollywood era pouco mais que um matagal seco e dispunha de apenas um estúdio de filmagem em funcionamento.

Já pelas bandas de cá, só na década seguinte o modernismo abriria espaço, na revista Klaxon, para que dois poetas da terra, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida, dessem vazão em público e letra de fôrma à sua paixão pelo cinema.

Mário de Andrade escreveu sobre filmes, cineastas e tópicos cognatos entre maio de 1922 e janeiro de 1923, por vezes oculto por um pseudônimo. Guilherme de Almeida, cinematographos foi mais longe, assinando críticas de filmes periodicamente no jornal O Estado de S. Paulo, entre 1926 e 1942, e editando um livro, "Gente de Cinema", em 1929.

Tempos depois, Vinicius de Moraes, o concretista José Lino Grünewald e Van Jafa, este mais comprometido com a crítica teatral diária, ampliaram a linhagem em variados veículos da imprensa carioca; noves fora Caetano Veloso, que, antes de virar compositor, foi crítico de cinema na Bahia.

Antes deles, porém, outro poeta, justo o maior de todos, Carlos Drummond de Andrade, já se dedicava, intensamente, a refletir e escrever sobre cinema e os sortilégios de seus ídolos. O poeta de Itabira foi um ativo cronista cinematográfico em publicações de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro, ao longo de praticamente seis décadas.

Tinha apenas 17 anos ao lograr uma oportunidade no modesto diário Jornal de Minas. Emplacou, em 15 de abril de 1920, um comentário sobre "a moral e o cinema", motivado pela histérica perseguição que a Liga Pela Moralidade mineira moveu contra o filme norte-americano "Diana, a Caçadora", após sua estreia no cinema Pathé, de Belo Horizonte.

Também colaborou no Diário de Minas, quando os filmes ainda eram mudos e Carlitos era chamado de Carlito, fixando-se em seguida no Minas Gerais, órgão oficial do governo do Estado, no qual publicou mais de uma centena de crônicas entre 1929 e 1934, oculto a princípio sob os pseudônimos de Antônio Crispim, Barba Azul e Mickey (como o camundongo recém-inventado por Walt Disney).

Ao mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, novos horizontes se lhe abriram na imprensa carioca e paulista. O prestigioso matutino carioca Correio da Manhã abrigou seus escritos entre 1954 e 1969. Em seu derradeiro mirante, no Jornal do Brasil (1969-1984), Drummond completaria 30 anos de atividade ininterrupta, à base de três crônicas por semana, quase sempre em prosa, com ocasionais observações e devaneios em versos.

Galeria de fotos de Drummond

Até haicais ele cometeu ao refletir sobre a "sétima arte" ou a "décima musa", expressões que, aliás, sempre evitou usar, assim como nunca se identificou como "cinéfilo", francesismo, a seu ver, pernóstico e com similar nacional.

Éramos todos "cinemeiros" simplesmente, prosaicos fãs de cinema, "esse complemento audiovisual que consola, estimula, distrai, chateia, irrita e fascina", nas palavras do poeta, fiel devoto da mais poderosa (e politeísta) religião laica do século passado. A ida ao cinema era a sua missa dominical. Buscava viver outra vida "sem perder as garantias da nossa". Juntar as duas e corrigir uma com os recursos infinitos da outra era sua mais infalível receita existencial. 

Idolatrava mais as estrelas do silencioso do que suas sucessoras na mitologia cinematográfica, por ele injustamente reduzidas à categoria de "mitinhos" para espectadores adolescentes.

Às suas favoritas, fez declarações de amor explícitas, ora e vez incitando-as a recusar papéis não condizentes com seu tipo físico ou sua aura, como fez numa crônica de 1971, para o Jornal do Brasil, tão logo soube que o italiano Luchino Visconti tentava convencer Greta Garbo a voltar às telas, por ela abandonadas 30 anos antes, no papel da proustiana rainha de Nápoles numa adaptação cinematográfica de "Em Busca do Tempo Perdido". "Nem sequer recuse, responda com seu majestoso silêncio", recomendou o cronista.

A atriz Greta Garbo - Divulgação/Divulgação 

Com frequência imaginava suas musas presentes na vida real, a encher de magia e glamour a insipidez provinciana das Alterosas e até mesmo a cosmopolita paisagem carioca. Sublimou Clara Bow embriagando-se com champanhe num baile do Automóvel Clube do Rio, Eleanor Powell dançando "num lugar feito de nuvens cinzentas", e Romy Schneider dando sopa na mesma avenida Atlântica de Copacabana em que vislumbrou um desfile com os artistas da tela mortos naquele ano, devidamente anunciados por um alto-falante.

Talvez só num livro coubesse tudo o que em verso e prosa escreveu a respeito de Greta Garbo, a suprema deusa do seu devocionário. Definiu-a, em ocasiões diversas, como "mulher-fábula", "mulher enigma", "esfinge", "mito lunar", "ninfa-nenúfar". Admirava a renitência com que cultivava sua persona etérea e reclusa ("trancada em si mesma para preservar a intangibilidade do mito"), gostava até de seus "filmes deliquescentes", e chegou a incentivar os colegas de ofício a escrever sobre ela quando estivessem sem assunto.

Para protegê-la de qualquer ameaça, criou a Sociedade dos Templários de Greta Garbo, cuja presidência entregou a Manuel Bandeira, cabendo a Stéphane Mallarmé a "presidência metafísica" da entidade, a despeito de o poeta francês ter morrido sete anos antes de Greta Lovisa Gustafsson nascer. Sua garbolatria desinibiu-se de vez em 1955, com a invenção de uma misteriosa viagem da atriz sueca à capital mineira, ocorrida 26 anos antes. Mais que misteriosa, delirante.

Segundo Drummond, em outubro de 1929, Garbo veio "dar com sua angulosa e perturbadora figura" em Belo Horizonte. O poeta Abgar Renault soubera da chegada da atriz, disfarçada de naturalista nórdica, por intermédio de um professor de sueco radicado nos Estados Unidos, e não resistiu à tentação de informar Drummond imediatamente.

O cinemeiro de Itabira não apenas ciceroneou a estrela pela cidade e arredores como se esmerou em mantê-la numa redoma, isolada até do círculo mais íntimo de amigos, e ainda a presenteou com um papagaio furtado do Parque da Cidade, que teria aprendido a falar "Hello, Greta!" e imitar a risada da atriz.

"Vimos descer do carro-dormitório, dentro de um capotão cinza que lhe cobria o queixo, e por trás dos primeiros óculos pretos que uma filha de Eva usou naquelas paragens, um vulto feminino estranho e seco, pisando duro em sapatões de salto baixo" — assim Drummond descreveu a chegada de Garbo à Estação Central de Belo Horizonte.

Por trás de seu par de "óculos pretos", ela olhou para ele como a um carregador, e disse: "I want to be alone." Revelou-se, contudo, cordialíssima, acrescentou o cronista.

Drummond admitiu que toda aquela história não passava de uma tremenda lorota na crônica "Sonho Modesto", mas o fez levando a brincadeira adiante. Segundo ele, a confissão tornou-se obrigatória apenas depois que o jornalista Pompeu de Sousa tentou persuadi-lo a relembrar o episódio numa entrevista ao Diário Carioca, suplementada por fotos, fac-símiles de bilhetes da atriz e outros souvenirs igualmente inexistentes.

Em defesa de sua musa suprema, Drummond terçou armas com Vinicius de Moraes, fã de Marlene Dietrich, por causa de um artigo de Vinicius no Diário Carioca, que, na opinião de Drummond, menoscabava o mito de Garbo, ousando comparar "uma mulher (a sra. Marlene Dietrich) com uma pura e transcendente abstração (Greta Garbo)"

 As várias faces de um mito - Marlene Dietrich

Considerava a atriz de "O Anjo Azul" (1930) um mito puramente exterior, um fenômeno de fotogenia forjado em jogos de luz por um Pigmaleão vienense, chamado Josef von Sternberg.

Além de templário de Garbo, Drummond autodeclarou-se segundo tesoureiro perpétuo da Sociedade dos Amigos de Joan Crawford, xodó de outro poeta mineiro, Emílio Moura, que cuidava do livro de atas da agremiação. É bem provável que Crawford, reconhecida por Drummond como "a única figura ou instituição que passou pela Segunda Guerra Mundial sem perda substancial de prestígio", tenha sido a segunda divindade do seu Olimpo.

Deixou-se enfeitiçar por sua "inteligência sensual", sobretudo por seus olhos grandes, meio esbugalhados, pelas sobrancelhas espessas, pela boca longa e úmida, pelo rosto quadrado, que, admitia, não era bonito. "Mas tudo que amamos verdadeiramente", ressalvou, "não é bonito, é intenso, e dói".

Comparou-a a uma "orquídea, cravo, trescalante", e, esgotado o jardim, a um verso de Baudelaire, a outro de William Blake e, turbinando a hipérbole, a uma equação einsteiniana.

Com Crawford, sublimou uma conversa, a bordo de um navio, mas não a viu pessoalmente em nenhuma das vezes em que a atriz e empresária (herdeira da Pepsi-Cola) visitou o Brasil. Dela se despediu com um poema in memoriam, em maio de 1977, preito que não pôde prestar à sua amada Garbo, que viveu mais três anos do que ele.

De todo modo, foi com ela na cabeça que Drummond escreveu seu penúltimo poema, em 1987. Àquela altura, nem precisava mais confessar que havia "imaginado, maquinado, vestido e amado" Garbo, mas o fez, para que não pairasse qualquer dúvida a respeito.

Das estrelas que lhe apertaram a mão no plano da fantasia, Catherine Deneuve parece ter sido outra das que mais vivamente o impressionavam. Supostamente apresentados em Paris, teriam mantido uma breve correspondência, tão platônica quanto fictícia, envolvendo pedras semipreciosas colecionadas pela atriz e abundantes na fazenda de soja que Cyro dos Anjos tinha em Montes Claros, no norte de Minas.

 Veja imagens de Catherine Deneuve

Saudosista, nostálgico, eclético em suas preferências, Drummond era visceralmente contrário à dublagem de filmes estrangeiros, prática que, segundo ele, "serve antes de incentivo à cristalização do analfabetismo, pela preguiça mental".

Ao contrário de Vinicius de Moraes, não se meteu na polêmica defesa do cinema mudo frente ao sonoro. Ligou-se mais no confronto entre os filmes em preto e branco e em cores. Nos primeiros, a seu ver, "as coisas feias doem menos, e as bonitas continuam bonitas, com possibilidade de se vestirem com roupagens ainda mais belas, criadas pela nossa fantasia".

Achava o cinema em Technicolor "de um cafajestismo que ofende nosso pudor visual" e não recebeu o CinemaScope e outras telas esticadas com chá e simpatia.

Adentrou a década de 1960 remando contra a maré, a torcer o nariz para os figurões da modernidade cinematográfica. Chegou a pedir uma "vacina cultural contra os gênios cinematográficos, tipo Godard, Pasolini, Antonioni", que, segundo ele, "costumam tirar à gente o gosto de ir ao cinema, devido à genialidade excessiva de suas criações". Nem sequer de Bergman livrou a cara.

Sempre cordial com o cinema brasileiro e atento aos seus eternos problemas de produção e distribuição, qualificou um plano salvacionista elaborado pelo cineasta Alberto Cavalcanti na década de 1950 de "bem-intencionado, mas inábil", pela possibilidade de manter nossa indústria de filmes controlada além da conta pelo governo.

Era uma voz permanentemente solidária contra a censura e um entusiasta do que de melhor o cinema brasileiro produziu nas últimas quatro décadas do século passado.

Helena Ignez e Paulo José em cena do filme "O Padre e a Moça", dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e inspirado no poema de Carlos Drummond de Andrade - Divulgação/Divulgação 

Defendeu e celebrou Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra e, com especial desvelo, Joaquim Pedro de Andrade, autor de "O Padre e a Moça", filme de 1966, inspirado num fragmento de seu poema "O Padre, a Moça", que a censura tudo fez para proibir em todo o território nacional, por considerá-lo "imoral e anticlerical". Também daquela vez os dois Andrades venceram a parada.

O Cinema de Perto: Prosa e Poesia, Preço R$ 89,90 (308 págs.), Autoria Carlos Drummond de Andrade, Editora Record, Organização Pedro Augusto Graña Drummond e Rodrigo Lacerda


O cinema de perto, 15/11/2024 por Jose Geraldo Couto 


O filme "O padre e a moça", no iutubi aqui e o poema de Drummond.

O PADRE, A MOÇA 

Carlos Drummond de Andrade  

Lição de Coisas. Editora José Olympio, março de 1962 

1. O padre furtou a moça, fugiu  

Pedras caem no padre, deslizam 

A moça grudou no padre, vira sombra,  

aragem matinal soprando no padre.  

Ninguém prende aqueles dois,  

Aquele um 

Negro amor de rendas brancas.  

Lá vai o padre,  

atravessa o Piauí, lá vai o padre,  

bispos correm atrás, lá vai o padre,  

lá vai o padre lá vai o padre lá vai o padre,  

diabo em forma de gente, sagrado.  

Na capela ficou a ausência do padre  

E celebra a missa dentro do arcaz.  

Longe o padre vai celebrando vai cantando  

todo amor é o amor e ninguém sabe 

onde Deus acaba e recomeça.  

2. Forças volantes atacam o padre, quem disse  

que exércitos vencem o padre? Patrulhas 

rendem-se 

O helicóptero  

desenha no ar o triângulo santíssimo,  

o padre recebe bênçãos animais, ternos relâmpagos 

douram a face da moça.  

E no alto da serra 

O padre 

entre as cordas da chuva 

o padre 

no arcano da moça 

o padre.  

Vamos cercá-los, gente, em Goiás 

Quem sabe se em Pernambuco?  

Desceu o Tocantins, foi visto em Macapá Corumbá Jaraguá Pelotas 

em pé no caminho da BR 15 com seu rosário 

na mão 

lá vai 

e a moça vai dentro dele, é reza de padre.  

Ai que não podemos 

contra vossos poderes 

guerrear  

ai que não ousamos 

contra vossos mistérios 

debater 

ai que de todo não sentimos  

contra vosso pecado 

o fecundo terror da religião.  

Perdoai-nos, padre, porque vos perseguimos.  

3. E o padre não perdoa: lá vai  

levando o Cristo e o Crime no alforje 

e deixa marcas de sola de poeira.  

Chagas se fecham, tocando-as,  

filhos resultam de ventre estéril  

mudos e árvores falam 

tudo é testemunho 

Só um anjo de asas secas, voando de Crateús,  

senta-se à beira-estrada e chora 

porque Deus tomou o partido do padre.  

Em cem léguas de sertão 

é tudo estalar de joelhos  

no chão 

é tudo implorar ao padre 

que não leve outras meninas 

para seu negro destino  

ou que leve tão leve 

que ninguém lhes sinta falta,  

amortalhadas, dispersas 

na escureza da batina.  

Quem tem sua filha moça 

padece muito vexame;  

contempla-se numa poça  

de fel em cerca de arame.  

Mas se foi Deus quem mandou?  

Anhos imolados 

não por sete alvas espadas 

mas por um dardo do céu:  

que se libere esta presa 

à sublime natureza 

de Deus com fome de moça.  

Padre, levai nossas filhas!  

O vosso amor, padre, queima 

como fogo de coivara  

não saberia queimar.  

E o padre, sem se render 

ao ofertório das virgens,  

lá vai, coisa preta no ar.  

Onde pousa o padre 

é Amor-de-Padre 

onde bebe o padre 

é Beijo-de-Padre 

onde dorme o padre 

é Noite-de-Padre 

mil lugares-padre 

ungem o Brasil 

mapa vela acesa.  

4. Mas o padre entristece. Tudo engoiva 

em redor. Não, Deus é astúcia,  

e para maior pena, maior pompa.  

Deus é espinho. E está fincado 

No ponto mais suave deste amor.  

Se toda a natureza vem a bodas,  

e os homens se prosternam,  

e a lei perde o sumo, o padre sabe 

o que não sabemos nunca, o padre esgota 

o amor humano.  

A moça beija a febre do seu rosto.  

há um gládio brilhando na alta nuvem 

que eram só carneirinhos há um instante.  – Padre, me roubaste a donzelice 

ou fui eu que te dei o que era dável?  

Não fui eu quem te amei como se ama  

Aquilo que é sublime e vem trazer-me,  

rendido,  

o que eu não merecia mas amava?  

Padre, sou teu pecado, tua angústia?  

Tua alma se escraviza à tua escrava?  

És meu prisioneiro, estás fechado 

em meu cofre de gozo e de extermínio,  

e queres liberar-te? Padre, fala!  

ou antes, cala. Padre, não me digas  

que no teu peito amor guerreia amor,  

e que não escolheste para sempre.  

5. Que repórteres são esses 

entrevistando um silêncio?  

O Correio, Globo, Estado 

Manchete, France-Presse, telef 

ortografando o invisível?  

Quem alça 

cabeça pensa 

e nas pupilas rastreia 

uma luz fosforescente 

responde não?  

Quem roga ao padre que pose  

e o padre posa e não sente 

que está posando 

entre secas oliveiras  

de um jardim onde não chega  

o retintim deste mundo?  

E que vale uma entrevista  

se o que não alcança a vista  

nem a razão apreende 

é a verdadeira notícia?  

6. É meia-treva, e o Príncipe baixando 

entre cactos 

sem mover palavra fita o padre 

na menina-dos-olhos ensombrada.  

A um breve clarear,  

o Príncipe, em toda sua púrpura 

como só merecem defrontá-lo 

os que ousam um dia. Os dois se medem 

na paisagem de couro e ossos  

estudando-se.  

O que um não diz outro pressente.  

Nem desafio nem malícia 

nem arrogância ou medo encouraçado:  

o surdo entendimento dos poderes.  

O padre já não pode ser tentado.  

Há um solene torpor no tempo morto,  

e, para além do pecado,  

uma zona em que o ato é duramente 

ato.  

Em toda a sua púrpura 

o Príncipe desintrega-se no ar.  

7. Quando lhe falta o demônio 

e Deus não o socorre;  

quando o homem é apenas homem 

por si mesmo limitado,  

em si mesmo refletido;  

e flutua 

vazio de julgamento 

no espaço sem raízes;  

e perde o eco de seu passado,  

a campainha de seu presente,  

a semente de seu futuro;  

quando está propriamente nu:  

e o jogo, feito  

até a última cartada da última jogada.  

Quando. Quando.  

Quando.  

8. Ao relento, no sílex da noite,  

os corpos entrançados transfundidos 

sorvem o mesmo sono de raízes  

e é como se de sempre se soubessem  

uma unidade errante a convocar-se 

e a diluir-se mudamente  

Mas de rompante a mão do padre sente 

o vazio do ar onde boiava 

a confiada morna ondulação  

A moça, madrugada, não existe 

O padre agarra a ausência e eis que um soluço 

humano, desumano e longiperto  

trespassa a noitidão a céu aberto 

A chama galopante vai cobrindo  

um tinido de freios mastigados 

e de patas ferreadas,  

        e em sete freguesias 

passa e repassa a grande mula aflita.  

        Urro 

        de fera 

        fúria 

        de burrinha 

        grito 

        de remorso 

        choro de criança ?  

Por que Deus se diverte castigando?  

Por que degrada o amor sem destruí-lo?  

e a cabeça da mula sem cabeça  

ainda é o rosto de amor, onde sem sigilo 

a ternura defesa vai flutuando?  

Um rosto de besta 

entre as ciências do padre 

entre as poderosas rezas do padre 

nenhuma para resgatá-lo  

Resta deitar a febre na pedra 

e aguardar 

o terceiro canto do galo 

No barro vermelho da alva 

a mão descobre 

o dormir de moça misturado 

ao dormir de padre.  

9. E já sem rumo prosseguem  

na descrença de pousar,  

clandestinos de navio 

que deitou âncora no ar 

Já não se curvam fiéis 

vendo réprobo passar,  

mas antes dedos em sustos 

implantam a cruz no ar 

A moça, o padre se fartam 

da própria gula de amar 

O amor se vinga, consome-os 

laranja cortada no ar.  

Ao fim da rota poeirenta 

ouve-se a igreja cantar 

Mas cerraram-se-lhe as portas 

e o sino entristece no ar.  

O senhor bispo, chamado 

com voz rouca de implorar,  

trancou-se na sua Roma 

de rocha, castelo de ar.  

Entre pecado e pecado 

há muito de epilogar.  

Que venha o padre sozinho,  

o resto se esfume no ar.  

Padre e moça de tão juntos 

não sabem se separar.  

Passa o tempo no destinguo 

entre duas nuvens no ar.  

10. E de tanto fugir já fogem não dos outros 

mas de sua mesma fuga a distraí-los.  

Para mais longe, aonde não chegue  

a ambição de chegar:  

área vazia 

no espaço vazio 

sem uma linha 

uma coroa 

um D.  

A gruta é grande  

e chama por todos os ecos  

organizados.  

A gruta nem é negra  

de tantos negrumes que se fundem 

nos ângulos agudos 

a gruta é branca, e chama.  

Entram curvos, como numa igreja 

feita para fiéis ajoelhados.  

Entram baixos 

terreais 

na posição dos mortos, quase.  

A gruta é funda 

a gruta é mais extensa do que a gruta 

o padre sente a gruta e o padre invade  

a moça 

a gruta se esparrama 

sobre o musgo, o calcário, o úmido medo 

à maneira católica do sono.  

Primas de luz primeira despertando 

de uma dobra qualquer de rocha mansa.  

Cantar angélico subindo 

em meio a cega fauna cavernícola 

e dizendo de céus mais que cristãos  

sobre o musgo, o calcário, o úmido medo 

da condição vivente 

Que perdão mais solene se humaniza 

e chega à provação e paira em benção?  

Que festiva paixão lança seu carro 

de ouro e glória imperial para levá-los 

à presença de Deus feita sorriso?  

Que fumo de suave sacrifício 

lhes afaga as narinas?  

Que santidade súbita lhes corta 

a respiração, com visitá-los?  

Que esvair-se de males, que desfalecimentos teresinos?  

Que sensação de vida triunfante 

no empalidecer de humano sopro contingente?  

Fora 

ao crepitar da lenha pura 

e medindo das chamas o declínio,  

eis que perseguidores se perseguiam. 





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