Gás e óleo na floresta atropelam agricultores com preço baixo por terra e têm aval a dezenas de poços
Empreendimento se expande em ritmo acelerado em área preservada da amazônia ocidental e ignora indígenas; Eneva diz que paga valores acima do mercado
Vinicius Sassine & Lalo de Almeida, fsp, 23.ago.2024
SILVES E ITAPIRANGA (AM)
O sossego, o silêncio e o espaço de quem se viu no meio do caminho de um gigantesco empreendimento de gás natural e óleo, no coração da floresta amazônica, podem valer de R$ 400 a pouco mais de R$ 3.000 por mês.
A 80 metros da porta da casa de José Carlos da Silva, 58, e Alzira Pereira Pinto, 65, um poço foi cavado para a prospecção de combustível fóssil, alimento futuro de termelétricas. O descampado em volta do poço e das válvulas está ainda mais perto, a 30 metros. O quintal da casa, que fica na beira de uma rodovia rumo a Itapiranga (AM), tem agora uma estrutura de gás e petróleo.
“Esse descampado já destruiu minhas plantações de coco, abacaxi, pimenta-do-reino, tucumã e macaxeira”, diz o agricultor, que é ex-cortador de cana e ex-vendedor de frutas. “Eu não sabia que tinha gás aqui. Fico vendo a perfuração e tenho medo de explosão, vazamento, essas coisas”, afirma a mulher.
Poço de gás no terreno do agricultor José Carlos da Silva, 58, que mora na casa ao fundo, na zona rural de Itapiranga (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva, uma empresa com faturamento bilionário e que é dona do maior empreendimento privado de exploração de óleo e gás na amazônia, em franca expansão, alugou o quintal de José e Alzira para cavar um poço de gás. Começou pagando R$ 3.400 por mês pelo aluguel, e reajustou para R$ 4.000, segundo o casal.
Outro pedaço do terreno foi alugado para a passagem de um gasoduto. O valor: R$ 500 ao ano, ou R$ 42 por mês. “Eles “amarraram o nó”. Disseram que se a gente não aceitasse, outros vários iam aceitar. Como que peita? Não tenho essa força. Tive de me sujeitar”, afirma José Carlos, pernambucano, há 36 anos na amazônia.
O agricultor José Carlos da Silva em bananal no seu sítio na zona rural de Itapiranga (AM), alugado em parte para exploração de gás - Lalo de Almeida/Folhapress
A casa do policial aposentado Francisco de Moraes, 65, está na beira de outra rodovia, no caminho para Silves (AM), cidade que é uma ilha, próxima a Itapiranga. Ele alugou parte de seu terreno –500 metros de comprimento, 35 metros de largura– para a Eneva seguir com o gasoduto em construção, conectando poços de exploração e unidade de tratamento do gás.
“Eu comprei isso aqui para sossego. Era o paraíso. Agora estou no inferno”, diz Francisco. “Eu encho o ouvido de algodão para tentar dormir. É muito barulho, muita zoada, principalmente à noite. Eu quero ir embora.”
O aluguel acertado, segundo ele, foi de quase R$ 5.000 ao ano, ou pouco mais de R$ 400 por mês. Tratores quebraram sua bomba d"água, uma estrada de chão imponente surgiu no fundo de sua casa, pés de tucumã, jaca e cumaru precisaram ser arrancados. “Eu me arrependi de ter aceitado. Não sabia que seria esse transtorno.”
O policial aposentado Francisco de Moraes, 65, caminha pelo terreno aberto para a passagem de um gasoduto no quintal de sua casa, em Silves (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress
A consolidação de um polo de gás e óleo em uma área superpreservada da amazônia teve início efetivo em 2021 e uma expansão sem precedentes em 2023, que avança por 2024.
Para isso, a Eneva obteve licenças para perfuração de 29 poços de gás (18 somente em 2023) em blocos na região compreendida entre Itacoatiara, Silves e Itapiranga, no leste do Amazonas, um lugar alcançado por terra, o que é raro no estado amazônico dependente do transporte fluvial em quase toda sua extensão.
As autorizações incluem um gasoduto com 32 km de extensão e a construção de usinas termelétricas. As licenças foram emitidas pelo Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas).
O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) se retirou dos processos de licenciamento do empreendimento com base em declaração da Eneva de que os projetos não impactam terras indígenas –em casos que envolvem áreas com população indígena, a competência, por lei, é do órgão federal.
Obra do Complexo Azulão, da empresa Eneva, em Silves (AM) - Lalo de Almeida/Folhapress
A Eneva afirmou, em nota, que paga aos proprietários de terra valores acima da média de mercado e que preza por transparência e bom relacionamento com os agricultores. Quase 100% das negociações foram concluídas e de forma amigável, disse a empresa.
Quem tem um poço produtor no imóvel tem direito a participação na produção, conforme a companhia. Segundo a Eneva, são 20 licenças para perfuração de poços de gás natural, e 18 já foram perfurados, com extração efetiva de 3.
No campo de Azulão, a empresa busca explorar 14,8 bilhões de metros cúbicos de gás. No campo mais recente, o Tambaqui, a expectativa é de exploração de 3,6 bilhões de metros cúbicos de gás e também de óleo, com quase 14 milhões de barris, segundo relatórios da Eneva.
A expansão de gás e petróleo pela floresta está em pleno vapor, com perfurações de poços novos para prospecção, distribuição de dutos em diferentes pontos da mata, formatação do gasoduto –que já ganha forma em diferentes trechos na floresta, para atravessar cursos d"água– e abertura de estradas de chão para a movimentação de operários e a consolidação do empreendimento.
Para avançar, o projeto usa métodos vistos em grandes obras na amazônia. Ignora a existência de comunidades tradicionais, como as aldeias muras no campo Tambaqui –no caso dos indígenas, não há nem preço ou conversa sobre o espaço. Atrai pequenos agricultores, cujas terras são necessárias para a rede de poços. Esconde informações de quem se viu no meio do caminho do óleo e do gás.
Gasoduto em construção perto de unidade de tratamento de gás no campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Integrantes de comunidades locais relatam que funcionários da Eneva destacados para o convencimento sobre o aluguel das terras se negam a fornecer cópia do contrato para leitura antes da assinatura. Também há omissão sobre a possibilidade de que o pagamento seja de uma vez, não fracionado mês a mês. Eles citam ainda ameaças de perda do terreno por meio de ordem judicial.
Há quem resista. Desde dezembro de 2023, o agricultor Francisco Correia, 51, recebe visitas de funcionários da Eneva com proposta para alugar parte do terreno onde vive –mais especificamente o pedaço de terra usado para plantação de mandioca, que é a base da farinha produzida pela própria família. A roça cederia lugar à via do gasoduto.
A proposta feita foi de R$ 3.500 por ano, menos de R$ 300 por mês, segundo Francisco, que não a aceitou. “Não estou empatando a passagem. Estou questionando um preço justo”, diz o agricultor. “Aí eles seguem vindo aqui, e precisei arrumar um advogado.”
O agricultor Francisco Correia, 51, em plantação de mandioca no seu sítio, que está no trajeto de um gasoduto do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Francisco tem um financiamento rural em aberto, captado para custear uma plantação de andiroba. O crédito tem o valor de R$ 16 mil. A Eneva, conforme o agricultor, quer pagar cerca de R$ 7.000 pela roça que seria tratorada. “Eu disse que está pouco. Não vendo só a farinha, vendo goma e tucupi. A empresa quer dar esmola”, afirma ele.
O impasse em torno do terreno almejado para o gasoduto –uma porção de 300 metros de comprimento e 35 metros de largura– permanece. “Eu vivo do meu trabalho. Tenho nove filhos e é daqui que tiro meu sustento e minha renda.”
O empreendimento da Eneva vem transformando a paisagem nesse ponto da amazônia ocidental. Há obras e abertura de poços em diferentes trechos, embora a maioria das perfurações seja para prospecção, antes da exploração definitiva.
Todos os dias, entre 20 e 30 caminhões cruzam as rodovias, segundo moradores de casas e comunidades vizinhas às estradas. O destino é Roraima, principal consumidor do gás produzido, que abastece a usina termelétrica que garante o fornecimento de energia em parte do estado vizinho ao Amazonas.
Unidade de tratamento de gás no campo de Azulão, em Silves, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress
Silves, a cidade mais próxima ao complexo em fase de ampliação, parece não sentir os efeitos de um empreendimento desse porte. A cidade vive a calma de um município pequeno, e a movimentação maior se dá em Itapiranga, com obras na esteira da expectativa do gás e do óleo, como um hotel em construção. “Existe uma certa decepção com o empreendimento”, admite o prefeito de Silves, Paulino Grana (Republicanos). “O município recebe, em royalties, entre R$ 140 mil e R$ 150 mil”, diz.
Mesmo assim, o prefeito é defensor do projeto. Diz que 500 pessoas de Silves trabalham na Eneva, um número próximo do que a prefeitura emprega, 700. Ele espera que os royalties se multipliquem por sete quando a termelétrica estiver funcionando. E aponta como principal legado a reforma de um prédio para o funcionamento de uma escola técnica.
Balsa que faz o trajeto de Silves ao continente leva operários envolvidos nas obras do campo de Azulão - Lalo de Almeida/Folhapress
Para a perfuração de diversos poços até agora, segundo Grana, a empresa faz uso de áreas do município, do estado do Amazonas, de posseiros e de proprietários privados, além de um território tradicional reivindicado pelo povo mura.
A reportagem conseguiu mapear dez poços na região entre Itacoatiara, Silves e Itapiranga. O sistema de dados públicos da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) diz que foram 12 perfurações desde 2021.
Quatro poços estão no território reivindicado por famílias muras, a Terra Indígena Gavião Real. Da rodovia até o local de dois poços, por uma estrada de terra que os indígenas dizem ter sido aberta pela empresa, são 20 quilômetros. O rio Anebá está a 400 metros do local, e há aldeias próximas.
A Eneva, em nota à reportagem, afirma que a estrada foi aberta por outra empresa, a Mil Madeiras, “anos atrás, para manejo [florestal] na área”.
Jonas Mura, liderança do povo mura, observa uma válvula instalada em um poço de gás perfurado dentro da Terra Indígena Gavião Real, em Silves - Lalo de Almeida/Folhapress
“Aqui era o braço de um igarapé que servia como caminho para caça. Aterraram o igarapé para a estrada, não dá para passar de canoa mais”, diz Jonas Mura, cacique geral da terra indígena, enquanto percorre os acessos aos poços. As comunidades, compostas por 1.360 indígenas, em sete aldeias, tentam a demarcação do território junto à Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
Jonas se tornou o rosto mais conhecido da oposição ao empreendimento de óleo e gás nesse ponto da amazônia. Ele diz ter sofrido ameaças de morte e está inserido num programa de proteção, com acesso direto a forças policiais.
A Eneva afirma que não foram identificadas terras indígenas a menos de 25 quilômetros dos empreendimentos. “Foram consideradas todas as terras descritas nas bases de dados da Funai.” Um representante da Eneva disse, em agosto de 2023, em reunião com o MPF (Ministério Público Federal), que “a Funai precisa dizer onde estão os indígenas”.
A Procuradoria da República no Amazonas pediu, em ação na Justiça Federal, a suspensão de processos de licenciamento e da exploração de poços de óleo e gás onde há sobreposição com comunidades tradicionais, além da transferência do licenciamento ao Ibama. A Justiça nega o pedido.
Poço de gás natural localizado na Terra Indígena Gavião Real, do povo mura - Lalo de Almeida/Folhapress
Uma das aldeias do território tem um posto de saúde indígena. O Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena) de Manaus, vinculado ao Ministério da Saúde, informou ao MPF que 166 famílias indígenas são atendidas pelo distrito na região de Silves. “Os parentes de lá estão prejudicados e são diretamente afetados pelos empreendimentos”, afirmou o Dsei à Procuradoria.
Desde o início de 2024, existe uma nova preocupação: a possível presença de indígenas isolados –que não desejam contato com não indígenas ou com outros indígenas– em uma área de floresta próxima do empreendimento da Eneva.
Extração de gás natural ao lado de unidade de tratamento no campo Azulão, da Eneva - Lalo de Almeida/Folhapress
O avistamento de uma família, com possibilidade de que seja de um povo em isolamento voluntário, foi feito pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) de Itacoatiara, que comunicou a Funai. Técnicos do órgão federal fizeram, então, um trabalho de campo em busca de indícios sobre os isolados.
Um documento da Diretoria de Proteção Territorial da Funai, elaborado em 19 de junho, afirma: “O local exato do avistamento dista tão somente 31 km em linha reta da área da Eneva para prospecção de gás”.
A diretora de Proteção Territorial, Maria Janete Albuquerque, disse ainda no ofício que vestígios da passagem de indígenas isolados foram encontrados, que existe “alta probabilidade” de presença de um povo em isolamento voluntário na região do igarapé Caribi e que o grupo seria “altamente vulnerável”, em razão da prospecção de gás e do manejo de madeira.
“Recomendamos fortemente a suspensão imediata das atividades de exploração de gás realizada pela empresa Eneva e do plano de manejo florestal por parte da Mil Madeiras Preciosas”, sugeriu a diretora da Funai. Áreas usadas pela Mil Madeiras se confundem com áreas usadas pela Eneva, como indicam placas nos lugares de exploração.
Placa sinaliza perfuração de um poço de gás natural na estrada que liga Itacoatiara a Silves - Lalo de Almeida/Folhapress
A empresa de gás afirmou que a própria Funai disse “de forma clara” que não há registro no banco de dados do órgão sobre a existência de indígenas isolados na região.
A cada dia, o projeto da Eneva –companhia que tem BTG Pactual, Cambuhy, Dynamo, Atmos e Partners Alpha em sua estrutura societária– se expande e se consolida na floresta. Segue o caminho do empreendimento de gás e termelétricas tocado pela mesma empresa no Maranhão.
José Carlos e Alzira, que passam os dias observando o trabalho de operários em um poço de gás aberto praticamente no quintal de casa, acreditam que está cada vez mais próxima a exploração do combustível fóssil a ser extraído da terra onde vivem há mais de 20 anos.
“Estão fazendo a canalização, a linha do gasoduto. Deve estar próximo de tirar”, diz ele. “O que ninguém da Eneva explicou até agora foi: com quem fica o dinheiro desse gás que vai sair daqui?”
Poço de gás natural no terreno do agricultor José Carlos da Silva na zona rural de Itapiranga, no Amazonas - Lalo de Almeida/Folhapress_
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John Textor está nu
Milly Lacombe, UOL, 24/08/2024
O dono do Botafogo foi desnudado, mas parece que quase ninguém ligou.
O repórter Lucio de Castro divulgou, através do site do Instituto Conhecimento Liberta, uma série de reportagens que rastreiam o passado de Textor e envolvem algumas de suas empresas em esquemas de falências, uso indevido de dinheiro público, proximidade com magnatas russos e pirâmides financeiras. Um pacote incendiário que deveria bastar para deixar o botafoguense e a botafoguense de cabelo em pé. Se em campo o time encanta, fora dele a situação parece alarmante.
O Botafogo de Textor segue bastante endividado, mas a paciência da imprensa liberal com o modelo de negócios das SAF é infinita. As dívidas não são mais um problema. Eram quando o clube ainda não havia se transformado em SAF. Vendam!, berravam por todos os lados. Salvem o Fogão! Vem, Textor. Vem ajudar a gente. Welcome, boss! You're the man. Help us, please.
Na época, o passado de Textor não foi apurado. Não importava. Era um grande empresário interessado em salvar o Botafogo, chegou trazendo grana, o Fogão saiu da serie B, veio para a A e hoje joga o melhor futebol do Brasil. Basta. Let's set this game on fire!
Infelizmente, não basta.
Seria preciso entender quem é o estadunidense e como ele opera para ter a compreensão de como Textor pode estar usando o Botafogo, um dos maiores clubes do mundo, para seguir agindo de forma despudorada. Se olharmos para a realidade desenhada na série de textos de Lucio de Castro, ao final desse filme o Botafogo terá sido apenas mais uma vítima.
O detalhe de Textor não falar português parece bobagem mas não é.
Deixemos de lado por agora o fato de termos naturalizado um time ter dono. Vamos aceitar essa aberração para refletir o seguinte: Gringo que decide comprar o time de Garrincha e Nilton Santos precisaria chegar ao Brasil falando português fluente e em posição de prece. Para começar. Para mostrar que sabe exatamente onde está pisando.
Só isso já seria motivo para crítica. Mas, desgraçadamente, não é apenas isso. Quem lê a série de matérias de Lucio de Castro a respeito dos rastros deixados pela atuação de Textor na compra de empresas sai da aventura com a impressão de que o Botafogo é mais uma aventura na vida do mega-empresário. O repórter conta que passou quase quatro meses apurando e ligando os pontos até conseguir compreender toda a teia e começar a escrever.
Lucio de Castro, um dos maiores repórteres do Brasil, não deixa pontas soltas e desenha um histórico de fraudes associadas ao proprietário do Botafogo. Está tudo ali, ponto a ponto. Quem se importa?
Textor é dono de quatro clubes no mundo. No dia 22 de agosto, a imprensa internacional revelou que um dos clubes do empresário - o francês Lyon - precisava alcançar a meta de 100 milhões de Euros em venda de atletas para, assim, apresentar um balanço condizente com os gastos feitos. Teria até o dia 29 de agosto para entregar o documento.
O que fez Textor? Colocou todo o elenco do Lyon à venda. Liquidação. Corre que é só até sábado.
Que tipo de "gestão" é essa? Devemos celebrar? Devemos pedir mais? Devemos aplaudir incondicionalmente por causa dos resultados esportivos? O que ele quer com o Botafogo? Como o Botafogo pode sair disso?
Textor não entende de futebol mas, dizem, entende de gestão. O sucesso esportivo do Botafogo é usado para provar como ele é bom. Tanto faz que as dívidas sejam muitas. Não importa. Como não importa que ele se ache no direito de chegar aqui e sair apontando o dedo para tudo o que acha intolerável, que basicamente se resume a derrotas do seu time. Não pode. Foi roubado isso aí. Tem esquema no futebol brasileiro. I'll teach you guys how to play this game and how to behave properly.
No começo da gestão de Textor eu cheguei a achar que ele estava se apaixonando pelo Botafogo e que o jogo e a paixão o transformariam. Viradas heroicas, estádio cantando apaixonadamente, lágrimas de amor, baladas com botafoguenses, alegria sem fim. Viva o Botafogo cuja grandeza vai impactar os modos de agir de um mega-empresário. Eu realmente acreditei que o celebrado Textor estava sendo fisgado pela mais bela das camisas e o mais belo dos escudos. Seria natural. É o futebol. É o time de Didi, Garrincha, Nilton Santos. Mas, depois de ler a série de reportagens de Lucio de Castro, eu diria que, infelizmente, não há como essa ser a realidade. And it's a shame.
John Textor e seus negócios - parte 4
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Billy Wilder
Livro de reportagens de Billy Wilder já revela traços do futuro cineasta
Com humor agridoce e observações profundas, artigos escritos em Berlim e Viena nos anos 1920 atraem os fãs do diretor
Inácio Araujo, fsp, 24/02/2023
De Billy Wilder quase todo mundo sabe que foi um grande diretor de cinema. São muitos, embora nem tantos, os que conhecem sua habilidade como roteirista. O repórter que ele foi na juventude é bem menos famoso, e dele podemos tomar conhecimento pelo volume "Billy Wilder: Um Repórter em Tempos Loucos", organizado por N. Isenberg.
Ali encontramos bem marcados os traços do futuro cineasta —o humor agridoce, a observação rápida e profunda das cenas, a capacidade de buscar o levemente ridículo num ritual cheio de pompa, e por vezes o sarcasmo, o desgosto com o humano.
Há um pouco de tudo isso na história (em capítulos) que abre o volume, "Garçom, Um Dançarino Por Favor", em que começa narrando suas atribulações de locatário desempregado até que um amigo consegue para ele o emprego de dançarino num hotel.
O cineasta Billy Wilder com a atriz Ginger Rogers, que ele dirigiu no filme 'A Incrível Suzana', de 1942 - Reprodução
Estamos nos anos 1920, os hotéis de peso ofereciam recepções diárias para seus hóspedes, com orquestra e dançarinos profissionais, de modo que as moças e mulheres mais velhas não corressem o risco de tomar um chá de cadeira.
Ali é fácil encontrar o roteirista e quase se poderia dizer o roteiro. A descrição de uma cena do primeiro dia de trabalho começa com "estou sentado em uma poltrona no saguão do hotel, uma poltrona macia, totalmente recostado, pernas cruzadas".
"Este então é o hotel onde 'trabalharei'", prossegue a narrativa. "O garoto das malas na porta giratória, achando que sou um hóspede, tira o chapéu graciosamente. Agira o casaco de cordeiro da Pérsia de uma moça com estreitos sapatos de couro de crocodilo, que roça contra meus joelhos, enquanto ela caminha na direção do elevador, sorri para o mensageiro, desaparece. Um valet, cheio de malas, anda aos tropeções até a porta, um cavalheiro com sobretudo e um pé teso coloca o nome no registro do hotel, enquanto o porteiro, com as costas curvadas, estende a mão para receber uma casal idoso e o bartender equilibra dois manhattans e um refrigerante."
Está aí tudo que se pode esperar de um filme de Billy Wilder —a ambientação, os personagens e figurantes, o cenário e os adereços, o movimento, o humor e, claro, a capacidade de captar tudo num traço, de fazer com que vejamos a cena se desenrolando à nossa frente de imediato.
Os objetos mudam, mas o estilo se afirma mesmo quando o objetivo é um tanto publicitário, como ao comentar a abertura de uma nova cafeteria em Viena. "A confeitaria, o jornal, os cigarros, tudo aparece na velocidade da luz. Como você se sente confortável, patriarcal, naquelas poltronas de veludo", escreve.
Um artigo de 1927 surge imaculadamente novo em 2022. Nele se insinua o amargor transfigurado em humor de tantos de seus filmes. Ali, Wilder sugere que a mentira deveria ser introduzida como matéria escolar obrigatória, de forma que a mentira se tornaria acessível a todos, algo que vê como importante porque "em duas ou três décadas as mentiras serão vistas como implemento indispensável —e portanto totalmente irrepreensível— ao nosso cotidiano".
Os objetos são diversos, de hotéis, a cidades; o voo noturno em um trimotor, a feitura de um filme em condições mais que modestas ("Gente no Domingo", de que Wilder foi um dos argumentistas).
Em todo caso, essas "reportagens especiais sobre a vida como ela é", que compõem a primeira parte do volume evocam mais um cronista antenado e talentoso que já desenvolve o estilo que se tornaria célebre no cinema. Sua culminância talvez esteja no texto sobre sua incursão infeliz à roleta, em Monte Carlo, onde deixou os últimos tostões, quando acreditava estar prestes a fazer fortuna.
Na segunda parte, o tom pode mudar. Em 1926, diante de Asta Nielsen, monstro sagrado do cinema mudo, Wilder não esconde a emoção. Entre uma e outra pergunta de praxe —"o que um homem precisa ser para você o achar atraente?"— vem a descoberta de que ela agora quer se dedicar exclusivamente ao teatro, deixando de lado o cinema, já que os americanos destruíram o cinema alemão, diz ela. "Asta Nielsen, a maior atriz de cinema do mundo, não ficará nas telas por muito tempo. Os milhares que tiveram o prazer de admirar sua brilhante arte serão reduzidos a centenas. E isso, creio eu, é um infortúnio", escreveu Wilder.
Esse momento melancólico logo será superado quando acompanha um dia na vida do príncipe de Gales e desnuda o ridículo por trás dos rituais cortesãos. De novo ressurge o Wilder cineasta, com descrições cortantes de cenas desse mundo, como "Deus tenha piedade, tão chato, 'tããõ' chato".
A terceira parte, dedicada à observação de filmes, talvez seja a mais precária para o leitor contemporâneo, na medida em que a maior parte dos filmes e mesmo das estrelas se tornaram, com boas razões ou não, invisíveis.
No entanto, aqui e ali, pipocam observações sobre uma nova Marlene Dietrich, sobre um filme de Dieterle (quando ainda na Alemanha), ou mesmo sobre "Ouro e Maldição", o célebre filme de Stroheim, que Wilder vê com certa reserva —o que comprova que, desde então, já estava muito mais próximo de Lubitsch, seu mestre.
Ao final, "Um Repórter em Tempos Loucos" se revela um livro interessante para qualquer fã de Billy Wilder, de cinema e até da escrita. No entanto, toda a ambiguidade da palavra "interessante" salta aos olhos do leitor. É uma virtude e um limite. Ao mesmo tempo que o talento do cineasta-roteirista se revela, não apaga o caráter episódico da maior parte de suas crônicas.
Billy Wilder: um repórter em tempos loucos
Preço R$ 64, 90 (240 págs.), Autoria Billy Wilder, Editora DBA
Organização Noah Isenberg, Tradução Tanize Mocellin Ferreira
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Ele nunca fez um mau filme
Com seu maravilhoso deboche que ofendia os papalvos, Billy Wilder me tira do sério
Ruy Castro, fsp, 24/08/2024
Grande ideia, a exposição "O Cinema de Billy Wilder", em cartaz no MIS de São Paulo. Billy, que morreu em 2002, aos 94 anos, iria adorar. A morte fez mal à reputação de John Ford, Frank Capra, Howard Hawks e outros grandes cineastas. À dele, não —talvez seja hoje uma unanimidade. Em vida, era admirado, mas não exatamente amado. Seu maravilhoso deboche ofendia os papalvos.
A mostra tem reproduções de seus cenários, textos, fotos, cartazes, objetos e figurinos originais, e, na tela, 13 dos seus 27 filmes. Sim, é sempre bom rever "Crepúsculo dos Deuses" (1950), "O Pecado Mora ao Lado" (1955) e "Quanto Mais Quente Melhor" (1959), eu próprio faço isso uma ou duas vezes por ano. Mas os visitantes ficarão atônitos com "Farrapo Humano" (1945), "A Montanha dos Sete Abutres" (1951) e "Se Meu Apartamento Falasse" (1960), três dos filmes mais incisivos do cinema.
O vienense Billy perdeu sua família em Auschwitz, o que não o impediu de fazer "Inferno nº 17" (1952), uma comédia passada num campo nazista de prisioneiros. Não perca também "Sabrina" (1954), "Irma la Douce" (1963), "Avanti!" (1972), "A Primeira Página" (1974). Enfim, não perca nenhum.
Mas Billy fez outros grandes filmes, ausentes neste festival e que estão sendo criminosamente apagados da sua obra: "A Incrível Susana" (1942), com Ginger Rogers, aos 31 anos, fazendo uma garota de 12; o tremendo "Pacto de Sangue" (1945), com Barbra Stanwick em seu apogeu de crueldade; o delicioso "A Valsa do Imperador" (1947), com Bing Crosby; o sensacional "A mundana" (1947), na Berlim pós-guerra, com o embate entre Jean Arthur e Marlene Dietrich; o delicado "Amor na Tarde" (1957), com Audrey Hepburn e o crepuscular Gary Cooper; o fabuloso "Cupido Não Tem Bandeira" (1961), com um show de James Cagney; o quase maldito "Beija-me, Estúpido" (1964), com Kim Novak. Nunca fez um mau filme.
Desculpe as hipérboles. É que Billy Wilder me tira do sério.
Filmes de Billy Wilder em DVD, em edições brasileiras e originais - Heloisa Seixas
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4 cliques, um certeiro: como fotógrafo bateu a foto perfeita de Medina
AFP, 30/07/2024
O fotógrafo da AFP Jerome Brouillet sabia que podia esperar algo especial quando viu o brasileiro Gabriel Medina surfar uma das maiores ondas do dia em um dos grandes pontos do esporte no mundo, na segunda-feira (29) em Teahupo'o, Taiti, durante as oitavas de final dos Jogos Olímpicos.
O que ele não sabia era que sua fotografia de Medina saindo de um tubo que rendeu a maior nota da história do surfe olímpico (9,90) se tornaria uma sensação mundial e, provavelmente, uma imagem definitiva do esporte e dos Jogos. O brasileiro fará um confronto verde-amarelo nas quartas de final.
O francês estava em um barco no canal, uma área de águas mais profundas e calmas, de lado para as ondas, mas sem uma linha de visão clara da ação inicial. Mas era exatamente onde ele pretendia estar.
O fotógrafo estava em um lugar privilegiado esperando Medina "sair" da onda. "Todo fotógrafo espera por isso. Você sabe que Gabriel Medina, especialmente em Teahupo'o, vai sair da onda e fazer algo", disse Brouillet.
Você sabe que alguma coisa vai acontecer. O único momento complicado é onde ele vai sair? Porque eu não estou vendo!".
Às vezes ele faz um gesto acrobático e, dessa vez, ele fez isso, e então eu apertei o botão… -
Post Conversa Latifat Adebayo-Ohio@Phatill
Gabriel Medina had to soar for the photog to capture one of the greatest Olympic photos I've ever seen. The video is even more poetic in slow-mo.
Astounding shot by Jerome Brouillet
#Surfing #Paris2024
Brouillet registrou Medina voando em linha reta acima das ondas, apontando um dedo para o céu, com sua prancha apontando para o céu ao seu lado. "Eu acho que quando ele estava no tubo, ele sabia que estava em uma das maiores ondas do dia. Ele estava pulando da água pensando 'cara, acho que isso é um 10'", disse Brouillet.
O fotógrafo suspeitou que também havia registrado algo especial, mas não tinha 100% de certeza.
"Quando estou fotografando em Teahupo'o, eu não fotografo em um modo de disparos tão elevado, porque no final do dia, se você apertar muito o botão, você volta com 5 mil fotos em um dia, e eu não gosto disso".
Eu fiz quatro fotos dele fora da água e uma das quatro fotos era esta.
A imagem foi utilizada por dezenas de publicações ao redor do mundo e compartilhada ou curtida milhões de vezes nas redes sociais.
"Esta pode ser a melhor foto de esportes de todos os tempos", afirmou o grupo de comunicação australiano News.com.au em sua página do Facebook.
A revista TIME descreveu a fotografia como o "a imagem definitiva do triunfo dos Jogos Olímpicos de 2024".
Medina postou a imagem em sua conta do Instagram, o que rapidamente rendeu mais de 2,4 milhões de curtidas.
Apesar dos elogios, Brouillet disse que as comemorações precisam esperar porque ele ainda tem o resto da competição para fotografar.
"Estou dormindo na casa de um amigo perto de Teahupo'o e teremos uma noite tranquila porque, se o evento retornar amanhã (nesta quarta-feira), eu tenho que acordar às cinco da manhã".
Destino Paris
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Uma imagem vale mais do que mil palavras e vale lembrar o nome do fotógrafo
Paulo Vinicius Coelho (PVC), UOL, 30/07/2024
A maior imagem olímpica até esta terça-feira (30) é a de Gabriel Medina saindo da onda, com o dedo indicador apontado para o céu e a prancha, paralela ao seu corpo, voando para a glória junto com o surfista.
Victor da Matta - A foto do dia! *Contém texto alternativo : Jerome Brouillet/Getty Images #OlimpiadasNoSportv #NossoMundo #Paris2024 #Brasil #Surf #GabrielMedina #Medina | Facebook
A imagem foi capturada pelo repórter-fotográfico francês Jêrome Brouillet. O repórter André Galindo teve a sensibilidade de procurar o jornalista, para contar o momento do clique: "Fiz a foto, olhei para a câmera, selecionei os cliques e vi as imagens do pulo e do meio. Olhei e vi que fiz um bom trabalho."
A vida do repórter-fotográfico é, muitas vezes, assim. A certeza da grande foto só vem quando se observa o material completo. Às vezes vem uma obra de arte, daquelas que nos fazem perguntar e debater: fotografia é arte?
É, tanto quanto o cinema. E o fotógrafo, o artista, muitas vezes fica anônimo, esquecido.
Quem fez a fantástica foto da bicleta de Pelé, contra a Bélgica, em 1965?
Foto da bicicleta de Pelé em jogo no Maracanã será leiloada ...
O repórter-fotográfico era Alberto Ferreira.
E a de Tupãzinho marcando o gol do título brasileiro do Corinthians, em 1990?
OClubeMaisBrasileiro - Por trás da foto: o gol de Tupãzinho no título Brasileiro de 1990
Daniel Augusto Jr.
São tantos incontáveis artistas brilhantes, que é até covardia apresentar uma imagem sem falar sobre todas. Nelson Coelho, Pedro Martinelli, Ricardo Corrêa, Sérgio Moraes, Julio Cesar Guimarães, JB Scalco, só para citar alguns que a vida deu a sorte de conhecer. Outros, como Scalco, não, por ter partido tão cedo.
Cada imagem tem uma história e uma das mais emocionantes é de Domicio PInheiro, apelidado Toc, Toc, porque onde ia tinha notícia — e ele fotografava. Injustiça com o brilhante repórter, que estava onde o fato se impunha e o fotografava, fosse história boa ou ruim.
Numa delas, a arquibancada da Vila Belmiro caiu, em 1964. Domício fotografou a tragédia, como todos os outros. Então, virou-se para o campo, para fotografar o desespero dos jogadores. Olhou para a notícia e logo para a consequência dela.
A imagem de Gabriel Medina pela lente de Jerome Brouillet ficará como a do número um do surfe. Se Medina ganhar o ouro, muita gente nem vai se lembrar de que o clique aconteceu nas oitavas de final.
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Como filha de nazista vingou a morte de Che Guevara
Livro conta a incrível ligação de alemães, ditadores e guerrilheiros na Bolívia
Sylvia Colombo, fsp, 20/07/2024
[RESUMO] "Surazo" retrata a impressionante história da comunidade nazista formada na Bolívia após a 2ª Guerra e seu entrelaçamento com as turbulências políticas da região nos anos seguintes. Hans Ert, cinegrafista da máquina de propaganda alemã, emigrou para o país andino e lá criou sua filha, Monika, que viria a se tornar guerrilheira de esquerda e assassina do militar que ordenou a morte de Che Guevara.
Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, milhares de ex-oficiais nazistas e simpatizantes do regime migraram para a América Latina. Essa história é bem conhecida por conta da vinda de nomes da alta hierarquia nazi para países como a Argentina (Adolf Eichmann) e o Brasil (Josef Mengele), entre tantos.
Menos conhecida, porém, é a instalação de nazistas de menor projeção ou apenas aliados do regime liderado por Adolf Hitler. Um deles chegou à Bolívia, com a família, e foi viver discretamente na fazenda de La Dolorida, a mil quilômetros de La Paz. Tratava-se de Hans Ertl, cinegrafista e fotógrafo que havia trabalhado na máquina de propaganda alemã. Entre outras coisas, Ertl participou da equipe que realizou filmes de Leni Riefenstahl, incluindo "Olympia" (1938), e documentou os encontros entre o füher e Mussolini.
Na Bolívia, andava apenas na companhia de outros refugiados nazistas, entre eles Klaus Barbie, ex-oficial da Gestapo, conhecido como "O Açougueiro de Lyon". Considerado um criminoso de guerra, Barbie havia sido condenado à morte na Alemanha pelo fuzilamento de milhares de pessoas e pelo envio de 44 crianças para o campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia.
Corpo de Che Guevara é observado por soldados, em Vallegrande, na Bolívia, em 1967 - Rene Cadima/Reuters
Hans Erlt, https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u5601.shtml embora conectado a essas figuras, permaneceu fora de atividades políticas em território boliviano. Dedicou-se a filmar a natureza e tem obras sobre etnografia ainda hoje consultadas por acadêmicos do país.
Em "Surazo - Hans e Monika Ertl - Uma História Alemã na Bolívia" (ed. Mundaréu), a autora austríaca Karin Harrasser conta a história dos Ertl e dessa comunidade sinistra, assim como o incrível "plot twist" dessa trama.
No meio desse ambiente nazi escondido na Bolívia, cresceu Monika Ertl, uma das três filhas de Hans que chegaram ainda crianças ao país andino. Lá, Monika passou a se comover com causas sociais: a pobreza, os direitos humanos, o racismo e as transformações no ambiente. Também se revoltou com os governos autoritários e brancos do país.
Muito jovem, Monika tornou-se uma guerrilheira de esquerda. Anos depois, entraria para a história como a mulher que vingaria a morte de Che Guevara, matando Roberto Quintanilla, o homem que deu a ordem de assassinar o revolucionário argentino. "Essa é uma história que precisa ser contada. No cenário internacional atual, em que crescem o autoritarismo e a extrema direita, é preciso conhecer as alternativas de resistência que havia naquela época. Não para usar seus mesmos métodos, como a luta armada, mas para criar consciência", diz Harrasser à Folha.
A Bolívia onde a história se desenrola vivia uma sequência de governos militares, esparsas eleições e mandatos interrompidos por golpes de Estado. Essa situação se manteve entre 1964 e 1982.
Em 2021, o atual presidente da República, Luis Arce, recebeu o primeiro relatório geral da Comissão da Verdade que vinha trabalhando desde 2017. Nele, investigaram-se os abusos contra direitos humanos de 10 presidentes militares (René Barrientos, Alfredo Ovando, Juan José Torres, Hugo Banzer, Juan Pereda, David Padilla, Albero Natusch, Luis García Meza, Celso Torrelio e Guido Vildoso) que comandaram o país no período.
A entidade até aqui levantou mais de 6.800 casos de pessoas vítimas de perseguição, mas ainda é difícil estabelecer a cifra de mortos e desaparecidos, calculados entre 6.000 e 8.000. Foram registrados ainda milhares de casos de violência sexual, expulsões e torturas. "É muito difícil investigar esse período na Bolívia, todos esses militares foram muito eficientes em destruir a documentação e os vestígios de seus crimes", conta Harrasser.
Foi no governo de René Barrientos que se deu o mais conhecido delito dos regimes autoritários bolivianos, o assassinato do revolucionário Che Guevara, em La Higuera, em 9 de outubro de 1967. Depois de ser um dos ideólogos e comandantes da Revolução Cubana (1959), Che havia saído pela África e pela América do Sul, com o sonho de exportá-la a outros territórios.
Monika Erlt tinha em Che um de seus maiores ídolos. Foi inspirada em suas ideias que entrou para o ELN (Exército de Libertação Nacional da Bolívia) https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft220616.htm ou a guerrilha de Ñancahuazú, grupo de inspiração marxista que pegou em armas para tentar derrubar os militares.
"A transformação de Monika em guerrilheira foi um processo turbulento para ela mesma, já que a conexão com seu pai era muito forte. Mas, na medida em que foi crescendo, observando como viviam os camponeses bolivianos e os mineiros chilenos, foi tomando consciência política e dando-se conta do que tinham feito os amigos de seu pai. Os valores de esquerda vão se fortalecendo nela, mas a esquerda de sua época era também uma esquerda violenta", afirma a pesquisadora.
Fotos do livro 'Che Guevara: Uma Biografia', de Jon Lee Anderson
"Foi comum entre vários jovens da idade dela a descoberta paulatina de que eram a primeira geração após os crimes de guerra cometidos pelos pais ou pelos valores nos quais seus pais acreditavam", diz Harrasser. "É claro que a opção pela resistência armada não era a melhor delas, mas eu hoje entendo porque foi a que ela tomou. Tratava-se de um ambiente de extrema violência em geral", conclui.
Mesmo estando na Bolívia, Monika passou a ter contato próximo com vários grupos europeus, como militantes italianos e maoístas alemães, até que se radicalizou, abandonou o jovem marido, também filho de imigrantes alemães, e passou à clandestinidade com a guerrilha. A partir desse momento, adotou o pseudônimo de "Imilla".
Foi por meio das conexões europeias que Monika localizou, em 1971, o paradeiro de Roberto Quintanilla Pereira, que havia sido chefe de inteligência do Exército boliviano quando Che foi preso no interior da Bolívia. Além de dar a ordem para matá-lo, Quintanilla também determinou que suas mãos fossem cortadas.
Após o episódio, Quintanilla foi transferido para Hamburgo, na Alemanha, onde passou a atuar como cônsul da Bolívia. A operação que Monika executaria era extremamente complicada. Toda a logística havia sido preparada em seus mínimos detalhes.
Ela tomou um voo em La Paz com destino à sua Alemanha natal. Chegando lá, comprou uma peruca loira. Pediu, então, uma consulta com o cônsul, apresentando-se como uma australiana que vivia em Hamburgo e queria ter informações sobre turismo na Bolívia, dizendo que pretendia passar férias no então exótico e distante país sul-americano.
O visual era chamativo, e a ideia era, de certo modo, seduzir Quintanilla, conhecido como conquistador barato na Bolívia. Ele a recebeu em 1º de abril de 1971 de terno e gravata, mostrou-lhe fole falou das belezas de seu país. A conversa entre eles fluiu. A secretária e tradutora de Quintanilla deixou registros do encontro.
De repente, Monika se levantou e retirou da bolsa a pequena pistola que lhe entregaram para a missão. O tempo era pouco, a ação foi rápida, alguns tiros e Quintanilla caiu ao chão. Estava vingada a morte brutal de Che Guevara.
Teria sido o crime perfeito se Monika não tivesse que enfrentar a mulher de Quintanilla, que acabava de entrar no escritório. Na briga, perdeu a peruca, deixou cair a bolsa e a arma, deixou várias evidências. Quando escapou e conseguiu voar ao Chile, foi aconselhada a não voltar à Bolívia. Porém, já tinha lá sua próxima missão em andamento: sequestrar Klaus Barbie, o amigo de seu pai, conhecido em sua casa como "tio Klaus".
Animada pelas ações da Mossad, agência de espionagem de Israel, para buscar e levar a julgamento nazistas na Europa, Monika se empenhou na elaboração de uma armadilha para Barbie.
70 anos do início dos Julgamentos de Nuremberg
No entanto, o ex-oficial da Gestapo estava mais bem informado que ela, além de ser um importante colaborador do ditador Hugo Banzer, cujo governo era apoiado pelos EUA.
Os serviços secretos bolivianos a emboscam em El Alto, cidade sede de várias organizações sociais e sindicais, na região metropolitana de La Paz, em 1973. Segundo testemunhas, Monika foi fuzilada em plena rua, embora seu corpo nunca tenha sido encontrado.
Hans Ertl, o pai dela, viveu mais 27 anos, reclamando a morte da filha e denunciando os abusos contra ela. Afirmava que Monika tinha sido torturada e violada pelo regime, com o qual, diz, não teria nenhuma ligação.
Segundo Harrasser, Hans fez-se vítima e tentou, o resto de sua vida, afastar-se do rótulo de nazista. No entanto, estava claro que "tudo o que falou e fez antes de morrer havia sido para aliviar sua culpa, era um mentiroso completo", completa a autora.
Surazo: Hans e Monika Ertl: Uma história alemã na Bolívia
Preço R$ 80 (288 págs.), Autoria Karin Harrasser, Editora Mundaréu, Tradução Daniel Martineschen
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Identitarismo enfraquece capacidade política da esquerda
Grupos distorcem obra de intelectuais com tribunais em redes sociais e reduzem colonialismo a homem branco
Leonardo Avritzer, fsp, 20/07/24
[RESUMO] A política identitária, rechaçada pela direita, afeta ainda mais as perspectivas de expansão da esquerda na sociedade, escreve autor, que argumenta que movimentos atuais se apropriam da obra de Michel Foucault e Edward Said aos fragmentos, usando noções equivocadas de luta contra formas injustas de poder.
Tem se desenvolvido no Brasil um paradoxo político em relação à ascensão das formas indenitárias de política que pode ser enunciado da seguinte forma: a política indenitária é fortemente atacada pela direita, mas o que ela prejudica, de fato, é a inserção e a expansão da esquerda na sociedade brasileira.
A esquerda não enxerga esse paradoxo porque sua proposta política está ligada a uma suposta afinidade eletiva entre alguns dos objetivos da política indenitária, como a inclusão de negros e mulheres na política, na academia e em outras instituições culturais, e sua concepção de fundo acerca da inclusão e da pluralização da sociedade.
Protesto em Washington contra a suspensão do direito ao aborto pela Suprema Corte dos EUA - Jose Luis Magana - 14.mai.22/AFP
No entanto, tem escapado aos atores políticos de esquerda uma dimensão adicional: a tentativa de criar uma narrativa epistemológica na qual tanto a crítica ao eurocentrismo associada à apologia acrítica do pós-colonialismo quanto a crítica generalizada da ciência e dos homens brancos acabam assumindo a dimensão de um sectarismo essencialista e antipolítico que tem afetado a capacidade política da esquerda.
Entendo como esquerda uma orientação política centrada na preocupação com a desigualdade a partir de um entendimento de que sua redução implica impor limites à forma como o mercado distribui riqueza. Mas é importante ter em mente uma segunda dimensão, que denomino de organizacional, relacionada à percepção de que a esquerda apenas se torna hegemônica quando consegue ultrapassar politicamente as fronteiras de sua base política. Foi assim na Europa do pós-guerra e na América Latina na primeira década deste século.
Neste artigo, busco analisar a crise da esquerda desde os anos 1980 e 1990 e a maneira como a esquerda, a política do corpo e o anticolonialismo se conectam nas obras de Michel Foucault (1926-1984) e Edward Said (1935-2003).No entanto, tem escapado aos atores políticos de esquerda uma dimensão adicional: a tentativa de criar uma narrativa epistemológica na qual tanto a crítica ao eurocentrismo associada à apologia acrítica do pós-colonialismo quanto a crítica generalizada da ciência e dos homens brancos acabam assumindo a dimensão de um sectarismo essencialista e antipolítico que tem afetado a capacidade política da esquerda.
Entendo como esquerda uma orientação política centrada na preocupação com a desigualdade a partir de um entendimento de que sua redução implica impor limites à forma como o mercado distribui riqueza. Mas é importante ter em mente uma segunda dimensão, que denomino de organizacional, relacionada à percepção de que a esquerda apenas se torna hegemônica quando consegue ultrapassar politicamente as fronteiras de sua base política. Foi assim na Europa do pós-guerra e na América Latina na primeira década deste século.
Neste artigo, busco analisar a crise da esquerda desde os anos 1980 e 1990 e a maneira como a esquerda, a política do corpo e o anticolonialismo se conectam nas obras de Michel Foucault (1926-1984) e Edward Said (1935-2003).
Hoje, vemos proliferar na esquerda uma ideologia que parece ter muito pouco a ver com a obra desses autores, alvo de apropriações frequentemente equivocadas. A partir do que Foucault deixou escrito, ele dificilmente concordaria com a noção identitária de justiça, muito menos com os tribunais identitários das redes sociais e os processos de cancelamento. Said foi, ao mesmo tempo, um recuperador e um crítico da tradição colonial.
Diante disso, pretendo também mostrar que a apropriação da política do corpo e da crítica do colonialismo pelo identitarismo rompe com o objetivo político desses autores e, assim, bloqueia a tradição de esquerda.
A crise da esquerda
O projeto clássico de esquerda, que se consolidou no pós-guerra, esteve centrado nas organizações da classe trabalhadora e nos partidos comunistas e socialistas. O papel dos partidos comunistas na resistência ao nazifascismo, em especial na França e na Itália, e o da União Soviética em sua derrota marcaram o início do pós-guerra como um período de forte redução das desigualdades sociais na Europa e de ampliação do número de governos de esquerda na região, como mostrou o historiador Tony Judt.
Dessa forma, houve uma integração entre dois princípios que nortearam a política do pós-guerra: de um lado, a ideia de justiça centrada em uma organização política, o partido comunista; de outro, a concepção de igualdade social ampla baseada no Estado. Esse projeto começou a naufragar com a intervenção da URSS na Hungria, em 1956, e entrou completamente em crise com a invasão da Tchecoslováquia pelos soviéticos, em 1968.
Um intelectual balizou a forma como a Europa reagiu aos dois episódios: Jean-Paul Sartre (1905-1980), que se tornou o líder intelectual inconteste da esquerda europeia ainda em 1945. Em 1948, o francês foi criticado pela URSS, que tentou impedir que proferisse uma palestra em Helsinque, então sob forte influência soviética. No mesmo ano, Sartre também foi colocado em uma lista de vetos do Vaticano por motivos completamente diversos. Para a Santa Sé, ele era um "denegridor inveterado, um blasfemista, um homem com uma visão perniciosa e venenosa, um claro corruptor da juventude", conforme registrou István Mészáros.
Sartre simbolizou um projeto europeu muito específico que conectou igualdade política e liberdade moral nas décadas de 1950 e 1960. Esse projeto fortaleceu a esquerda no pós-guerra, cruzou o Atlântico e se expressou nos Estados Unidos de uma forma diferente e extremamente relevante, associando esquerda e igualdade racial.
Sartre não condenou a invasão soviética da Hungria e, ainda em 1956, declarou que o marxismo constituía "a filosofia do nosso tempo". Porém, o expansionismo antidemocrático da União Soviética acabaria por afetar decisivamente a esquerda europeia. Sartre, então, foi se afastando completamente do marxismo até renegá-lo.
Uma tradição política não termina porque um pensador desiste dela. A maneira como Sartre e os intelectuais franceses puseram fim à tradição marxista não representou o fim da política de esquerda na França, uma vez que havia um continuador óbvio. Penso que esse papel não foi desempenhado por Perry Anderson ou Susan Neiman, mas por Foucault.
Do marxismo a Foucault
Apesar de alguns autores terem defendido que o colapso da União Soviética representaria o fim da esquerda ou o fim da história, o que ocorreu foi um forte deslocamento naquilo que passou a constituir as preocupações fundamentais dos atores de esquerda no pós-Guerra Fria.
Dois autores simbolizaram esse deslocamento ao colocar questões que passaram a ser a agenda fundamental da esquerda nas últimas décadas: o filósofo francês Michel Foucault e o crítico literário palestino Edward Said. No entanto, o interessante está na maneira como as políticas indenitária e pós-colonial se apropriaram dos dois autores, substituindo a parte pelo todo.
Foucault começou sua vida política como membro do partido comunista francês e discípulo do filósofo estruturalista Louis Althusser e, logo em seguida, abandonou ambos. Em um dos centros de suas preocupações intelectuais, há um debate nítido com o marxismo: a questão sobre o entendimento do poder.
Para Foucault, o poder não deve ser compreendido concentrado em uma questão ou em uma estrutura, tal como a teoria e a filosofia política pensaram, de Hobbes a Marx, mas diluído por diversos campos da sociedade. Para entender esses diversos campos, é indispensável o que Foucault chamou de genealogia do poder, isto é, um diagnóstico das relações entre o poder, o conhecimento e o corpo. Aqui reside o ponto fulcral do que será uma revolução de paradigma: o poder não se concentra apenas no Estado ou no capitalismo, é também uma constelação discursiva.
Essa constelação discursiva não pode ser entendida a partir de um conceito de história uniforme, como Marx pensou em obras como "Manifesto Comunista". Ao contrário, ela deve ser buscada em formas não uniformes de manifestação. A história deve perceber os indivíduos em constante movimento no que diz respeito à verdade, à beleza e, principalmente, ao próprio corpo.
Essa constelação discursiva está em muitos segmentos da obra do autor, principalmente em um texto sobre o corpo e a sexualidade. Em "História da Sexualidade", um dos pontos importantes levantados por Foucault, contra toda a historiografia anterior, está relacionado à chamada era vitoriana não ter sido marcada pela ocultação da sexualidade, mas por sua explicitação. Com isso, Foucault rompeu a demarcação geralmente aceita entre fala e silêncio ou entre lícito e ilícito e procurou mostrar como as diferentes instituições tratam o sexo.
O filósofo francês Michel Foucault - Reprodução
Entre quem entrou em cena para discutir e classificar o sexo, se encontram naturalmente a medicina e a psiquiatria, na interseção entre disciplina e conhecimento. É esse o campo em que Foucault pretendeu associar as ideias de poder e de verdade. Ele quis mostrar que o poder não é só um lugar e não se concentra apenas no Estado, mas em todas as formas de classificação que criam algum padrão de injustiça em relação a práticas reais dos indivíduos.
É dessa ideia de poder que emerge uma concepção de justiça, que também é diferente daquela proposta pelo marxismo e pela esquerda. A justiça é a capacidade de fazer com que práticas ligadas ao corpo não sejam nem classificadas nem reprimidas.
Não existe qualquer espaço para dúvidas sobre se Foucault de fato apresentou uma teoria qualitativamente diferente do marxismo, à medida que ele deslocou o problema da tomada do poder com uma visão de justiça baseada nos interesses de um ator social —no caso, a classe trabalhadora— para uma concepção na qual o exercício de certas liberdades, especialmente no campo sexual, se torna possível.
A apropriação que alguns movimentos idenitários fazem da obra do autor é decididamente parcial e frequentemente equivocada. Se Foucault teve como intenção ampliar, na direção sexual, as diferentes discussões sobre poder e dominação com o objetivo de criar novas dimensões de emancipação ou, pelo menos, de autonomia individual, os movimentos identitários transformaram essa intenção muito mais em um processo individual de busca de identidades pela via da demarcação.
Ao mesmo tempo, os movimentos identitários criaram agendas que não passam pela busca de concepções amplas e multifacetadas de justiça, mas por uma identificação individualista e simplista da afirmação de identidades sexuais como forma de justiça.
Como resultado, temos uma perda, no campo da esquerda, da noção de luta contra as formas injustas de poder e de justiça, substituída por diferentes ações de afirmação identitária que podem ser entendidas como pós-justiça — sempre centradas na linguagem, não na ação social.
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Edward Said
Edward Said se tornou, entre as décadas de 1970 e 2000, um dos autores fundamentais para repensar a esquerda a partir de uma contribuição central: a revalorização da tradição conhecida como colonial ou decolonial. Nascido em Jerusalém, com doutorado em Harvard e professor da Universidade Columbia, ele se tornou o crítico mais profundo da literatura ocidental, em especial da visão do Oriente ou do colono nessa literatura.
No seu livro mais conhecido, "Orientalismo", o autor buscou mostrar que o Oriente foi uma invenção do Ocidente destinada a designar o outro pejorativamente, à medida que os elementos comuns entre o Japão, a Arábia Saudita e a Índia não eram mais significativos que suas diferenças ou as semelhanças de cada um deles com países ocidentais.
Contudo, o ponto central da tradição que Said inaugurou é a crítica da invenção do Oriente como "um lugar de seres exóticos, memorais e paisagens assombrosas e experiências singulares". Com "Orientalismo" —mas também em suas "Reflexões sobre o Exílio", em que resgata da literatura europeia a figura do latino-americano—, o autor inaugurou uma pedagogia de reconhecimento e de valorização do outro que teve consequências políticas profundas, à medida que tanto a política no não Ocidente quanto a ideia de formas de conhecimento poderão ser entendidas de outra maneira.
Desde "Orientalismo", há na obra de Said, portanto, uma tentativa de mudar a maneira como o Oriente é visto —e, mesmo tratada em termos literários, essa mudança tem fortes consequências políticas. Em "Reflexões sobre o Exílio", Said critica a visão do pensamento liberal ou de esquerda de que países do Terceiro Mundo "sofram de feridas autoinfligidas, sendo eles mesmos seus principais inimigos".
Assim, dois aspectos são fundamentais na obra do autor: uma crítica do Ocidente, que ele remete às ações coloniais da Grã-Bretanha e da França, e uma tentativa de revalorizar as formas culturais do Oriente —aqui cabe um conjunto mais amplo daquilo que se denomina Ocidente.
O método utilizado por Said para pensar esse imbricamento entre cultura e política implicou em não operar dualisticamente, como têm feito muitos dos seus discípulos e dos defensores do que se chama decolonial. Pelo contrário, a recuperação exitosa que Said fez do pensamento colonial ou pós-colonial se articulou com múltiplas referências próprias do Ocidente na filosofia e na música.
Edward Said em sua sala na Universidade Columbia, em Nova York, em 1998 - Ruby Washington - 9.jul.98/The New York Times
O objetivo de Said, como ele mesmo colocou, é mostrar que os autores não são mecanicamente determinados por ideologia, classe e história econômica. Ainda mais importante é sua afirmação de que o imperialismo, tanto no século 19 quanto no 20, avançou em conjunto com a resistência ao imperialismo, "o que não exime os povos colonizados da crítica. Qualquer análise mínima dos países pós-coloniais revela os acertos e os erros do nacionalismo". Ou seja, na obra de Said, não existe dualismo ou "nós versus eles", como tampouco houve qualquer descarte de autores ocidentais na construção de seu modelo de análise.
Temos, assim, uma obra literária com profundas implicações políticas, mas que tem sido interpretada de forma completamente equivocada pelo movimento que chamamos de esquerda identitária.
Alguns elementos têm sido desprezados pelos supostos continuadores decoloniais do pensamento de Said. O primeiro deles é a visão sobre o homem branco em sua obra. Para o autor, o homem branco é o colonizador europeu da África e da Ásia.
Said escreveu que ser um homem branco nas colônias significava deter "uma forma de autoridade perante os não brancos e mesmo dos brancos se esperava que se curvassem a ela. Na forma institucional que ela assumiu (governos coloniais, corpos consulares, estabelecimentos comerciais), ele constituía uma agência para a expressão, difusão e implementação de uma política em relação ao mundo [...]. Ser um homem branco constituía uma maneira concreta de estar-no-mundo".
O identitarismo naturaliza e essencializa a concepção de homem branco de Said. Assim, Marx, Gramsci, Sartre e Foucault não são mais que brancos privilegiados.
Ao separar a política do corpo da política de esquerda e ao hipostasiar a ideia do homem branco colonial como forma geral do homem branco, o identitarismo assume uma posição inversa à desses atores, que estabeleceram um diálogo produtivo com a esquerda e o marxismo para ampliar a categoria dominação, a situando além do poder do Estado e do capitalismo.
O identitarismo rompe com a tradição de esquerda e não consegue substituí-la por nada mais que um corporativismo epistemológico de ex-dominados que rompe com quaisquer critérios de justiça e igualdade.
A identificação do identitarismo com o pensamento e a prática política de esquerda parece rompida porque o elemento central da política de esquerda é a possibilidade de formação de maiorias entre dominados e não dominados, de forma a consolidar um conceito amplo de justiça no qual o passado pode ter um peso limitado, mas não pode jamais substituir o presente e o futuro.
O identitarismo é uma teoria equivocada do presente na qual só o passado tem peso e nenhuma proposta de futuro comum é apresentada. Esse é o caminho para o isolamento e para a derrota do pensamento de esquerda.
Leonardo Avritzer
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Como salvar a Amazônia do ponto de não retorno
Carlos Nobre, Ecoa, 30/07/2024
Amazonia desmatamento Anualmente, 16.000 km² de floresta são derrubados Imagem: GETTY IMAGES
A Amazônia tem sofrido intensa degradação nos últimos 50 anos, com a taxa de desmatamento mais alta entre as florestas tropicais do mundo. Anualmente, 16.000 km² de floresta são derrubados, totalizando mais de 1 milhão de km² desmatados e outro milhão em degradação.
A combinação de desflorestamento, degradação induzida pelo fogo e alterações climáticas está causando danos irreversíveis à estrutura física da floresta, que pode entrar em colapso em 2050.
A região amazônica vem evoluindo há dezenas de milhões de anos, principalmente desde a formação da Cordilheira dos Andes, que resultou na expansão geológica, ecológica e climática das áreas com maiores e mais longas precipitações, cobrindo uma área de quase 7 milhões de quilômetros quadrados no norte da América do Sul. Pode-se dizer que esta floresta tropical só existe porque a floresta existe, tendo os seguintes resultados-chave desta evolução:
A maior biodiversidade do mundo
Enorme armazenamento de carbono
Reciclagem de água e de nutrientes muito eficiente
Bioma altamente úmido que bloqueia a propagação do fogo
Cerca de 13% de todas as espécies vegetais e animais conhecidas no planeta Terra são encontradas na Amazônia, sendo cerca de 50 mil espécies de plantas, 16 mil de árvores, 350 de primatas, 800 de anfíbios e répteis, 1.330 de aves e mais 100 mil insetos, entre muitos outros que são descobertos todos os anos.
A floresta armazena cerca de 150 bilhões a 200 bilhões de toneladas de carbono no solo e na vegetação acima do solo, além de ser um grande exportador de vapor d'água para fora da Bacia Amazônica. Esses "rios voadores", que liberam quantidade quase idêntica à vazão do rio Amazonas, cerca de 200 mil metros cúbicos por segundo, alimentam os sistemas hidrológicos das savanas tropicais do sul da Amazônia e até mesmo do centro-leste da América do Sul, um serviço ecossistêmico importante para o planeta.
O Homo sapiens chegou à Amazônia há cerca de 12 mil anos. Quando os europeus chegaram à região, há 500 anos, existiam entre 8 milhões e 10 milhões de pessoas indígenas, mais de 1.300 grupos étnicos com mais de mil línguas indígenas. Todas essas populações sempre mantiveram a floresta e a sua biodiversidade. E, com a notável evolução da ciência indígena, utilizaram mais de 2.000 produtos dos ecossistemas terrestres e aquáticos e domesticaram muitas plantas, como mandioca, castanha-do-pará, açaí e cacau.
O problema é que tudo isso está em risco. Nos últimos 50 anos, a Amazônia tem sido foco de intensa degradação ecossistêmica. A taxa de desmatamento é a mais alta entre as florestas tropicais da Terra.
O fogo usado por criminosos e grileiros é a mais séria ameaça ao bioma. Após um incêndio, a estrutura física da floresta muda significativamente. Mais de 1 milhão de focos de incêndio são detectados na Amazônia anualmente, mais de 90% deles provocados pelo homem. O fogo destrói raízes, troncos, galhos, folhas, sementes e frutos essenciais para a regeneração e o consumo.
Além disso, os incêndios florestais liberam monóxido de carbono e partículas na atmosfera, causando sérios problemas de saúde aos seres humanos. Somente na Amazônia brasileira são diagnosticados anualmente em média 150 mil casos de doenças respiratórias e cardiovasculares relacionadas à fumaça de incêndios.
A combinação sinérgica de desflorestamento, degradação induzida pelo fogo e alterações climáticas está causando danos irreversíveis à estrutura física da floresta. Se o desflorestamento continuar nas mesmas taxas das últimas décadas e o aquecimento global exceder significativamente 1,5°C, a floresta ultrapassará seu tipping point, ou ponto crítico, que pode levar mais de 50% da floresta a se transformar em ecossistemas de dossel aberta e altamente degradados. Fui o primeiro cientista a publicar artigos científicos sobre esse risco em 1990 na revista Science e em 1991 no Journal of Climate.
Agora, muitas observações na Amazônia mostram quão perto a floresta está de um ponto crítico: a estação seca é agora de 4 a 5 semanas mais longa em todo o sul da Amazônia desde 1979, afetando mais de 2 milhões de km²; a mortalidade de árvores está aumentando; a estação seca é de 2ºC a 3ºC mais quente e de 20% a 30% mais seca no sudeste da Amazônia, e a floresta naquela região tornou-se uma fonte de carbono.
As áreas altamente desmatadas do sul da Amazônia têm reciclado menos água, e a atmosfera está tornando-se mais quente e seca. Além disso, as alterações climáticas relacionadas com o aquecimento global induzem secas graves e frequentes, como em 2005, 2010, 2015-16 e a mais severa da história, entre 2023 e 2024. Estudos recentes indicam que, se a estação seca continuar a se prolongar, o ponto de ruptura irreversível será alcançado em 2050. Nesse caso, entre 50% e 70% da floresta se degradaria dentro de 30 a 50 anos. Isso libertaria mais de 250 bilhões de toneladas de CO2 e levaria à extinção de milhares de espécies da mais rica biodiversidade do planeta.
Como reduzir os riscos de tipping points ecológicos e sociais
Todos os países amazônicos devem estabelecer políticas sustentáveis para a governança da Amazônia. A maioria deles se comprometeu a acabar com o desflorestamento até 2030. Este compromisso foi assumido na Cúpula de Belém, em agosto de 2023.
É essencial eliminar todo desflorestamento e degradação florestal. Isso é possível aumentando a produtividade agrícola e florestal regenerativa, pois cerca de 20% da área desmatada da Amazônia está abandonada. Grande parte dessas áreas desmatadas e degradadas pode ser usada para restauração florestal e sistemas agroflorestais inclusivos, produzindo grandes quantidades de madeira, proteínas, gorduras e carboidratos de espécies nativas.
Investir numa nova sociobioeconomia de florestas saudáveis e rios fluindo é essencial para reduzir o risco de colapso na Amazônia.
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Os donos da nossa vontade
Talvez estejamos sendo invadidos por seres de outro planeta. Ou pior, talvez já nos tenham roubado o planeta
Ruy Castro, fsp, 08/08/2024
Um debate de que participei nesta terça (6), na Livraria da Travessa, com meus confrades Rosiska Darcy de Oliveira e Joaquim Falcão, da Academia Brasileira de Letras, e o jornalista Fernando Gabeira, tratou da ameaça que pende sobre a palavra escrita diante da inteligência artificial. Discutiu-se a diferença entre as medidas tomadas contra a palavra no decorrer da história —fechamento de gráficas, censura prévia, apreensão de livros e jornais, perseguição, prisão e até morte de escritores e jornalistas— e as atuais, incorpóreas, intangíveis e talvez inimputáveis.
A diferença é que aquelas medidas eram materiais, possíveis de ser enfrentadas. Hoje, não se trata mais de apagar a palavra, mas de nos induzir a usá-la contra nós mesmos. Uma simples consulta ao extrato bancário ou sobre qualquer assunto no celular permite aos algoritmos aprenderem instantaneamente tudo a nosso respeito e repassá-lo a um ente abstrato, que passa a decidir sobre o que queremos ou precisamos. O Google tornou-se dono da nossa vontade.
Em cerca de 400 a.C., Aristóteles codificou o silogismo, o processo em que duas premissas conduzem a um conhecimento lógico, à conclusão. Esses três elementos, as premissas e a conclusão, foram a base de tudo que fizemos até hoje. Ou até ontem porque, de repente, tornamo-nos meras extensões de um sistema binário que nos reduziu a um sim ou não, a um isto ou aquilo, sem as zonas de dúvida e de sombra que nos tornam humanos.
E o que dizer do mundo que agora cabe na palma da mão, ao alcance do dedo de uma criança, e faz com que as necessidades dessa criança sejam satisfeitas em 1 segundo, aviltando-a, dispensando-a da experiência do convívio e da socialização?
Não foi um debate exatamente otimista. Aventou-se a hipótese de termos sido invadidos por seres de outro planeta. Mas pode ser pior. Talvez eles já nos tenham roubado o planeta.
Karime Xavier/Folhapress
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Uma criança é morta de forma violenta a cada 2 horas no Brasil, diz estudo
Fabíola Perez, UOL, 13/08/2024
Uma criança ou um adolescente é morto de forma violenta a cada uma hora e 45 minutos. O dado faz parte de um estudo divulgado nesta terça-feira (13), realizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Imagem ilustrativa: abuso, estupro, agressão, violência contra crianças e adolescentes Imagem: Getty Images
O que aconteceu
Mais de 15 mil crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta no Brasil nos últimos três anos. No mesmo período, 165 meninos e meninas foram vítimas de violência sexual. Segundo o Unicef e o FBSP, os números do estudo "Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil" apontam para "um cenário epidêmico de violência contra crianças e adolescentes no país".
Taxa de homicídio caiu ao longo dos últimos três anos, segundo o estudo. Contudo, cresceu a porcentagem de mortes causadas por intervenção policial. Em 2023, quase uma a cada cinco crianças e adolescentes mortos no Brasil foi vitimada em ações da polícia.
Quase uma a cada cinco crianças e adolescentes mortos no Brasil foram vítimas de intervenção policial. Segundo a pesquisa, mortes de crianças e adolescentes por intervenção policial passaram de 14% do total de mortes violentas em 2021 para 17,1% no ano seguinte. Em 2023, essas mortes alcançaram o patamar de 18,6%.
Uma criança ou adolescente foi vítima de estupro a cada oito minutos no último ano. Os números levantados pelo Fórum e pelo Unicef mostram que foram registrados 46.863 casos de violência sexual em 2021. Em 2023, esse número saltou para 63.430.
Violências letais têm atingido cada vez mais crianças mais novas, dizem os pesquisadores. As mortes violentas aumentaram 15,2% entre crianças de até 9 anos. A violência sexual também cresceu entre meninas e meninos dessa faixa etária. Na comparação entre 2022 e 2023, houve um crescimento de 26,6% nos registros de estupro contra crianças de 4 anos. Entre as que têm 5 e 9 anos, o aumento foi de 20,9%.
"Meninos negros continuam a ser as maiores vítimas de mortes violentas. Já meninas seguem sendo as mais vulneráveis à violência sexual. E essas dinâmicas são ainda mais preocupantes com o aumento de casos dessas violências contra crianças mais novas." Youssouf Abdel-Jelil, representante do Unicef no Brasil
"É importante que haja um protocolo mais claro das abordagens e do uso da força pelas polícias, tendo em vista que os principais alvos são os jovens pretos e pobres da periferia." Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Mortes violentas vitimam meninos negros
Dados evidenciam a necessidade de os governos incluírem em suas agendas políticas públicas de enfrentamento aos crimes letais e à violência sexual, aponta Samira. Nos últimos três anos, a maior parte das vítimas de mortes violentas no país tinha entre 15 e 19 anos e eram pretos ou pardos do sexo masculino.
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Meninos negros de até 19 anos tem 21 vezes mais chances de ser morto do que uma menina branca da mesma faixa etária. Entre adolescentes, mortes violentas remetem ao contexto de violência armada urbana. Segundo os dados, a maioria foi morta fora de casa em via pública (62,3%) e por pessoas que a vítima não conhecia (81,5%).
Mortes de meninas e meninos de até 9 anos costumam ocorrer dentro de casa. Os dados apontam que 50% dos casos ocorrem nas residências e são cometidos por pessoas conhecidas das crianças. Segundo os pesquisadores, os números mostram uma relação com um contexto de maus-tratos e violência doméstica praticada contra as crianças por pessoas próximas.
Violência sexual afeta meninas e meninos
Crianças e adolescentes do sexo feminino são a ampla maioria das vítimas no país. Nos últimos três anos, esse grupo representa 87,3% dos casos. Considerando ambos os sexos, a maior parte das vítimas, que representa 48,3%, tem entre 10 e 14 anos. Segundo o estudo, a violência sexual atinge crianças e adolescentes durante toda a vida, desde a primeira infância até o final da adolescência.
Registros de violência sexual crescem entre crianças mais novas. Em 2021, foram 17.253 casos registrados contra crianças de até 9 anos. Em 2023, o número aumentou e chegou a 22.930 o número de crianças desta faixa etária vítimas de violência sexual.
Meninos também são vítimas dessa forma de violência. Entre os anos 2021 e 2023, foram registrados mais de 20.575 casos nos quais crianças e adolescentes do sexo masculino foram vítimas de estupro. O número é superior à quantidade de meninos da mesma faixa etária que foram mortos violentamente.