segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Michelangelo Antonioni

Homenagem a Antonioni resgata a origem do cinema moderno

Cineasta italiano, criador de 'Blow-up - Depois Daquele Beijo', 'Profissão: Repórter' e 'O Eclipse', morreu em 2007 

Inácio Araujo, 24/10/2023, FSP

A retrospectiva que a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo traz da obra de Michelangelo Antonioni é uma rara oportunidade de rever a obra de um dos grandes inventores do cinema moderno e afastar alguns preconceitos que lhe foram aplicados ao longo de décadas.

Sim, porque, vamos e venhamos, dizer que se trata de um cineasta da incomunicabilidade, do tédio, do nada, do vazio burguês não chega a explicar grande coisa quanto à relação do cineasta com o cinema e as imagens que produz. Pior, servem para o espectador afoito logo classificá-lo de chato ou pedante — ou ambos.

Não é bem assim. Antonioni, é preciso lembrar, surgiu ainda durante a 2ª Guerra, tendo sido inclusive um dos roteiristas de "Um Piloto Retorna" (1942). O filme foi dirigido por Roberto Rossellini, que no pós-guerra se afirmou como o grande criador do neorrealismo italiano.

Nunca se dirá o bastante da importância do neorrealismo como movimento libertador do cinema. Aqui o que pode importar é a relação com a realidade que introduziu. Com essa corrente (e as teorias de André Bazin), o cinema passa a se postular como única arte capaz de captar a realidade integralmente, tempo e espaço. Trata-se de voltar à sua natureza primeira. Rossellini dirá, inclusive, que detesta a invenção, porque ela nos desvia do mundo real (as palavras não são bem essas, mas o sentido é).

Antonioni, que a rigor integra uma segunda geração neorrealista, será o cineasta que vasculhará o sentido da palavra "realidade" e, não raro, a colocará em questão. Tomemos um exemplo evidente: em "Blow-up: Depois Daquele Beijo", um fotógrafo flagra num parque um casal que, aparentemente, namora. A mulher (Vanessa Redgrave) revolta-se com essa violação de sua intimidade e exige as fotos de volta. O fotógrafo recusa.

De volta a seu laboratório, outra realidade se apresenta, à medida que revela e amplia suas fotos. Ao alinhá-las uma em seguida a outra (como faria o montador de cinema), descobre que pode ter fotografado uma tentativa de assassinato. Um problema: quanto mais amplia sua foto, em busca do detalhe revelador, mais a foto se torna granulada. Revela e oculta ao mesmo tempo. Resta-lhe a convicção.

À noite, depois de uma festa, ele volta ao parque onde o crime teria acontecido e topa com o cadáver. Tem os mesmos traços, o mesmo traje, os olhos abertos. Parece mais um boneco, na verdade. Seria a prova de sua hipótese. Um problema: ele está sem sua máquina e, quando volta ao local, pela manhã, com a máquina, o cadáver desapareceu.

Como nesse meio tempo as fotos que fez também desapareceram, resta o mistério e a decepção. O que terá ele fotografado? Uma cena "real" ou apenas sua imaginação? Porque para Antonioni existe na realidade algo que o cinema não capta, que é a imaginação. Ou por outra: talvez o real seja composto pelos homens e pelos objetos, mas também pelos seus sonhos, pelo imaginário e aquilo que mobiliza.

Nas obras de Antonioni os exemplos se multiplicam. Nunca saberemos exatamente que mal afeta a Giuliana (Monica Vitti) de "Deserto Vermelho". Sabemos que se assemelha à neblina que quase sempre cobre Ravenna, onde vive, isto é: percebemos que existe algo atrás dela, mas nossa vista não chega a ver com mínima clareza do que se trata.

No mais, o humano em Antonioni é frágil e finito, no entanto, busca compensar essa fragilidade em suas obras. Como se pode ver na magnífica sequência da Bolsa de Valores de "O Eclipse". O edifício é sólido, construído sobre colunas feitas para resistir à passagem dos séculos.

Dentro, porém, tudo é instabilidade, a começar pelos valores em dinheiro, que podem desaparecer num momento de baixar ou enriquecer alguém num movimento especulativo. Que dinheiro é esse que some e reaparece? Não sabemos. Mas podemos acompanhar a brutal agitação dos corretores, com seus gritos incessantes, agônicos.

De repente, um sino e um anúncio: um minuto de silêncio em memória de um colega que morreu (de infarto, claro: a fragilidade está sempre lá). Segue-se um tempo de silêncio total, porém inquieto, ao fim do qual a gritaria retoma, ainda mais animada. O colega já é esquecido. Contam apenas as ações, seu valor, o que se ganha ou se perde.

A realidade humana é não apenas frágil como precária. Em "A Noite", uma jovem (Vitti) mostra ao escritor Pontano (Mastroianni) a gravação de um texto que produziu. O texto, belíssimo, por sinal, impressiona ao escritor, que quer voltar a escutá-lo. Ela volta a fita no gravador e a recoloca no início, porém já não se ouve nada. Pontano olha-a, desapontado. Ela havia desgravado o belo texto ao rebobinar a fita.

O que significa? O texto não existe mais, mas, em certo sentido, nunca existiu, foi um pensamento que passou pela cabeça da moça e desapareceu. Então deixou de existir, de fazer parte do real? Ou será que foi uma quimera, que nunca existiu realmente?

São inúmeros os momentos em que essa instabilidade das coisas da imaginação (ou do sonho) se apresentam. O próprio "Deserto Vermelho" não seria um sonho (ou devaneio) de Giuliana, em meio ao mundo tão concreto, feito de máquinas e navios em que vive? Ou em que sonha?

O imaginário entra em jogo com muita força em "Profissão: Repórter", em que Jack Nicholson, por fastio de si mesmo ou qualquer outra razão, troca sua identidade com a de outro homem, que acaba de morrer. Passa então a viver uma vida segunda, a vida do outro homem, aquele de quem ele roubou a identidade. A identidade do repórter passa a ser sua carteira de identidade: ele não será senão aquilo que está indicado ali, cujo peso é tremendo e por conta da qual ele viverá as aventuras e desventuras certamente reservadas ao outro. Aqui, um é literalmente um outro.

Essas oposições entre frágil e concreto, imaginação e realidade continuarão até "O Olhar de Michelangelo".

O Michelangelo moderno, Antonioni, é frágil, pequeno e no mais cambaleante diante da obra monumental do Michelangelo renascentista: a escultura de Moisés.

Confrontam-se ali três eras: a de Moisés, fundador da civilização ocidental, a de Michelangelo, de onde emerge a obra em pedra em que o olhar de Moisés dirige-se com fúria aos homens —diria Freud que esse é o olhar do momento em que volta do Sinai com as Tábuas da Lei e encontra os seus dedicados à adoração de bezerros de ouro — e o presente.

Michelangelo, o cineasta, contempla Michelangelo, o escultor, que contempla Moisés. Um não existe sem o outro. O frágil Antonioni que visita à igreja de São Pedro in Vincoli, onde se encontra a estátua confronta a solidez do mármore e, ao mesmo tempo, a força do olhar de Moisés.

Um segue no outro, misteriosamente. E mesmo que Antonioni morra (três anos após ter feito esse pequeno filme), o encontro imaginário que reúne três eras estará registrado em película. Aspirando à eternidade tanto quanto o olhar Michelangelo sobre o olhar de Moisés.

Antonioni é um cineasta raro, que buscou e conseguiu explorar com a câmera não só a realidade palpável, como a da imaginação, dos sonhos, de tudo aquilo, enfim, que não conseguimos ver, exceto no cinema.

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 O real verde irreal

Antonioni mandou pintar a grama do parque em 'Blow-Up' para que no filme ela parecesse real 

Ruy Castro, 21/01/2024, FSP

Ao passar outro dia pelo Aterro do Flamengo e ver uma equipe filmando, lamentei a grama cinza e esturricada pelo calor e pela falta de chuva. Fosse o diretor o cineasta italiano Michelangelo Antonioni, isso não ficaria assim. A principal sequência de "Blow-Up (Depois Daquele Beijo)" (1966), filme de Antonioni, se passa num parque em Londres. Um fotógrafo zanzando por ali vê um casal se beijando à distância. Fotografa-o e, ao revelar o filme, suspeita de algo no fundo. Amplia a foto e parece uma cena de crime. Daí, a partir de sucessivas ampliações, constrói a história. Mas não é isso que interessa.

O ator David Hemmings, em cena do filme 'Blow-Up' , de 1966 - Divulgação

O principal é que, ao inspecionar a locação, Antonioni observou que a grama do parque não sairia tão exuberante no filme — o tecnicolor não lhe faria justiça. Daí aplicou em todo o gramado uma tinta com certo tom de verde para que, no filme, ele saísse como na vida real. Deu certo. Eu sei, parece louco, mas com certos diretores é assim.

Federico Fellini, ao filmar em Roma "A Doce Vida", em 1960, achou que a famosa Via Veneto, onde se passa a trama, era muito escura para ser a rua febril que justificava o título. Não hesitou: construiu uma Via Veneto de eucatex em Cinecittà, da largura da original, iluminou-a de todo jeito e fez dela a rua que queria. O francês Jacques Tati também construiu em estúdio aquele complexo de arranha-céus de "Playtime —Tempo de Diversão", de 1966. Eram tantos interiores e fachadas monumentais, e custaram tão caro, que o querido Tati quebrou.

Billy Wilder, para uma cena campestre de "A Valsa do Imperador" (1948), mandou pintar à mão 5.000 margaridas de azul. E George Stevens, em "Os Brutos Também Amam" (1953), mudou a dinamite o curso de um rio no Wyoming (depois o devolveu).

A turma do Aterro teve de filmar com a grama esturricada e tudo. Mas, com o Pão de Açúcar ao fundo, deve ter ficado lindo do mesmo jeito.


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