quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Brumadinho, um crime sócio - ambiental "A lama tirou de mim aquela vontade de viver"

Adoecida e anestesiada, Brumadinho tenta superar traumas do desastre da Vale

Cidade vê aumento do uso de remédios controlados em meio a luto coletivo e novos impactos emocionais e sociais pós-tragédia

Eliane Trindade & Marlene Bergamo, FSP, 11/01/2024

Um das áreas mais afetadas pelo rompimento da barragem, o Parque da Cachoeira virou um bairro fantasma nos arredores de Brumadinho, com imóveis vazios comprados e monitorados pela Vale e o poeirão das obras de reparação Marlene Bergamo/Folhapress 

Brumadinho (MG) - A quantidade de psicofármacos controlados distribuídos pela Central de Abastecimento Farmacêutico de Brumadinho é termômetro dos impactos psicológicos, emocionais e sociais do desastre causado pelo rompimento da barragem da mineradora Vale, em janeiro de 2019.

Em 2022, foram prescritas 82.237 caixas, frascos ou ampolas de medicamentos indicados para depressão e ansiedade no município. Até agosto de 2023, o consumo já estava em 105.459. Segundo o secretário-adjunto de Saúde, Rander Alves, nos últimos anos houve um aumento de mais de 50% na quantidade fornecida pela farmácia municipal de remédios para ansiedade, depressão e tratamento de alcoolismo e dependência de entorpecentes. "Temos uma população adoecida", constata o gestor público. "Depois dessa tragédia-crime, todos precisam de acompanhamento cuidadoso da saúde mental."

Crianças e adolescentes merecem especial atenção. Na escola Semear estão matriculados 45 dos 100 órfãos do desastre que resultou na morte de 270 pessoas — duas delas estavam grávidas e três corpos ainda não foram encontrados. "É uma geração marcada por ter alguém amado engolido pela lama. É assim que eles trazem: ‘minha mãe morreu na Vale’. É muito difícil entender a morte da forma como ela veio", afirma a psicóloga Jackeline Parreiras. Ela acompanha casos de estresse pós-traumático da pré-escola ao ensino médio. "Muitos ainda não conseguiram trabalhar o luto."

Para lidar com o trauma coletivo, a escola lançou mão de cuidados em celebrações como Dia das Mães e Dia dos Pais. "Com o olhar para essa dor, implantamos o projeto ‘Homenagem a quem tanto amo’. Cada aluno traz a pessoa de referência no contexto familiar atual", conta a diretora Tânia Campos.

A tragédia afeta toda a comunidade escolar. "Estamos adoecidos. As famílias, nossos estudantes, nossa equipe. É preciso muito entendimento e solidariedade", constata a coordenadora pedagógica Maíra Viterbo. Izabella Chaves, coordenadora da Rede de Atenção Psicossocial de Brumadinho, observa o impacto no sistema de saúde local ao receber um número crescente de pacientes com evolução de transtorno pós-traumático.

Em 2022, passaram por lá 1.090 pacientes com quadro de ansiedade e 1.857 de depressão. São monitoradas tentativas de suicídios (38 no ano passado), assim como abuso de álcool e drogas. "Era esperado um aumento de quadros depressivos e de ansiedade, do uso de medicação e até mesmo de substâncias psicoativas", diz a coordenadora, que conta com uma equipe multidisciplinar reforçada de psicólogos e psiquiatras.

A procura por diagnóstico e tratamento em saúde mental tem a ver também com as indenizações. "É um direito, mas é triste que se precise comprovar um adoecimento para acessar", afirma Izabella. "Misturou-se a garantia de direitos com o viés psicopatológico. E isso impacta os atendimentos."

Fátima Vieira, 58, moradora do distrito de Tejuco, pranteia a morte de um sobrinho, João Marcos, 25, que considerava como filho. Sentada na porta de casa, ela vê a intensa atividade de mineração ao redor. Mostra a sacolinha de remédios que passou a tomar com acompanhamento psicológico. "Meu coração dói, porque ele morreu na hora. Tava comendo", emociona-se. "Perdi a vontade de viver. Tô com muita depressão, ansiedade. Eu choro à toa."

No Parque da Cachoeira, o distrito aprazível de Brumadinho que virou canteiro de obras para a retirada de toneladas de lama pós-rompimento, Rogério Patrício, 53, também vê a vida passar sentado no bar próximo de casa. A rua esvaziava-se à medida que os vizinhos decidiam ir embora e vendiam suas casas para a Vale. Ele recebeu indenização de R$ 100 mil e ganha um salário mínimo do Programa de Transferência de Renda e uma pensão da mulher falecida depois da tragédia. "Recebi esse dinheiro da Vale. Financeiramente, melhorou. Agora, minha vida social acabou e não trabalho mais. Minhas pernas não aguentam andar. Já tô, bem dizer, inválido", relata.

O ex-pedreiro mostra os resultados de exames para checar a concentração de metais pesados no sangue e na urina dos moradores de Brumadinho e arredores. "Desta vez tem uma alteração do arsênio, mas não levei pro médico pra saber o que tem de fazer."

Pesquisadores da Fiocruz Minas e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) divulgaram em julho de 2023 a primeira etapa de um estudo que avalia as condições de vida, saúde e trabalho da população após o desastre.

A pesquisa mediu a concentração de arsênio, manganês, cádmio, mercúrio e chumbo na população.

Entre os adolescentes de Brumadinho 28,9% estão com arsênio total na urina acima dos limites de referência, assim como apresentaram níveis alterados de manganês (52,3%) e chumbo (12,2%) no sangue. Entre os adultos foram observados níveis aumentados de arsênio, em 33,7%, e de manganês, em 37%.

De acordo com os pesquisadores, os resultados indicam que há exposição aos metais, e não intoxicação, o que só poderia ser considerado após avaliação clínica e novos exames. "A detecção das possíveis fontes de exposição é de fundamental importância, de modo a guiar as ações a serem adotadas", conclui o estudo.

Ao avaliar a saúde mental, a pesquisa revelou que 22,5% dos adultos relataram quadros de depressão, contra 10,2% da população adulta brasileira, conforme dados do IBGE de 2019. Diagnóstico de ansiedade e problemas do sono foram citados por 33,4% dos entrevistados com mais de 18 anos.

Rogério Patrício, morador do Parque da Cachoeira, distrito de Brumadinho, mostra exames que revelam presença de arsênio no organismo e diz não ter ânimo para trabalhar ou viver no local, esvaziado após a tragédia - Marlene Bergamo/Folhapress

"Fiquei não sei quanto tempo sonhando que a lama estava entrando pela janela do quarto. Parece que nós não saímos dela. Isso acaba com você aos poucos", diz Rogério, que mora com a filha, genro e neto no cenário de uma tragédia que ceifou vidas, destruiu a paisagem e abalou a economia e as relações na comunidade. "A lama tirou de mim aquela vontade de viver. Parque da Cachoeira virou cidade-fantasma", lamenta.

Rogério compara o vai-vém de caminhonetes e caminhões, a poeira e os imóveis vazios a um faroeste. "É a Vale passando. Uns carros são da obra, outros monitoram casas vazias. Antes, não se ouvia falar de roubo, de violência doméstica."

Uma das maiores tristezas, diz, é a morte do rio Paraopeba. "A água tá toda contaminada. Eu tinha passarinhos que vinham na janela de casa. Cadê as cachoeiras? Cadê o prazer de ficar pescando? Que dinheiro paga uma coisa assim?", indaga o ex-pedreiro. "Tenho saudade de viver."

A assistente social Liziane Lima, integrante da força-tarefa que atuou na região após o rompimento, acompanha os efeitos do desastre. "O pós-trauma não passou depois de cinco anos. O cenário do crime ainda está vivo na retirada dos rejeitos e na busca dos três corpos não localizados. Tudo isso tem impacto grande na saúde mental."

Um agravante, diz a ex-funcionária do Ministério Público de Minas Gerais, é o rompimento dos laços sociais nas duas zonas mais impactadas. "No Parque da Cachoeira, a Vale comprou 280 propriedades, e no Córrego do Feijão, 48. Com isso, cria-se isolamento. Além de perder familiares e amigos na tragédia, o morador que fica perde sua rede de solidariedade."

O resultado são pessoas ilhadas no território da tragédia. É como diz se sentir Ernando Almeida, 55, funcionário público e morador do Córrego do Feijão, distrito de Brumadinho que abrigava a barragem rompida.

Diante da bela praça 25 de Janeiro, construída pela Vale como reparação a partir de escuta à comunidade, ele fala de solidão sentado em um quiosque de lona improvisado, de onde vislumbra com outros três amigos o novo espaço de lazer, vazio. "Antes, aqui era um bairro movimentado, todo mundo se conhecia, o pessoal era unido. A praça é perfeita, mas só tem 80 famílias aqui", lamenta ele, calculando que dois terços dos moradores já se foram.

Chama atenção a quantidade de imóveis com placas de "propriedade privada", sinal de que foram adquiridos pela mineradora. "É uma tragédia que matou e continua matando", diz Ernando, citando casos recentes de adoecimento e "autoextermínio". "A depressão é silenciosa. Todo dia às 5h a sirene toca e traz a lembrança de que ela não tocou no dia. Todo mundo dentro da Vale sabia que a barragem ia romper mais cedo ou mais tarde."

Naquele 25 de janeiro de 2019, ele foi a última pessoa a ver com vida a dona do sítio onde trabalhava. "Eu vi o mar de lama descendo e pegar a casa dela", emociona-se, ao mostrar um vídeo no celular onde aparece correndo para escapar. "Muita gente não conseguiu."

Cinco anos depois, quando retorna a Brumadinho e às chamadas zonas quentes, as áreas mais afetadas, Liziane ainda se diz em choque. "Você vê obras, praças e escolas, como se reparação fosse só dinheiro", afirma a assistente social. "Vejo, sobretudo, um território doente e cheio de cicatrizes, onde não houve de fato modificação na vida das pessoas. Foi criado um abismo, na forma de dependência, que nenhuma política pública vai dar contar de compensar lá na frente."

OUTRO LADO

Em nota, a Vale afirma que 3.500 pessoas foram atendidas pelo Programa de Assistência Integral ao Atingido (Paia). Já o Programa de Referência da Família, que funcionou por cinco anos, foi finalizado com a marca de 75 mil atendimentos para 600 famílias em Brumadinho.

Por meio de acordo com a prefeitura, a mineradora destinou recursos para assistência de saúde e psicossocial, com mais de 3.200 profissionais capacitados e 5.700 equipamentos entregues a 143 Unidades Básicas de Saúde.

Foram repassados R$ 250 milhões para contratações e novos equipamentos para o Complexo Hospitalar de Brumadinho, e R$ 461 milhões para 19 projetos de saúde já iniciados, três deles em Brumadinho.

Quanto à compra de imóveis e propriedades, a Vale diz que vão compor o Parque Ferro Carvão, que unirá as comunidades de Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira, ou foram adquiridos para compensação/recomposição florestal.

"Desde 2019, todas as ações de reparação têm sido discutidas com os moradores, visando ressignificação da comunidade e atender as reais necessidades das pessoas", diz a nota.

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